kinoruss
cadernos de pesquisa ano 2 n. 2 2012
SOKUROVIANAS oriental
LUGAR FRONTEIRA
SOK CINEMA
PINTURA
LITERATURA
ÚROV
EDITORA RESPONSÁVEL
Neide Jallageas
CONSELHO EDITORIAL
Erivoneide Barros Fabiola Notari Neide Jallageas Tieza Tissi
REVISÃO
Erivoneide Barros
PROJETO GRÁFICO
Fabiola Notari
GP E.XXI Breno Morita Erivoneide Barros Fabiola Notari Juliana Rosa Monica Berto Neide Jallageas Tieza Tissi
COLABORADORES
Alvaro Machado Antonio Mengs Casa Contemporânea Cassia Hosni Christine Greiner Mario Ramos Marcus Siqueira Patrícia Osses Patrick Jallageas
SUPERVISÃO DE PROJETO
Arlete Cavaliere APOIO
http://www.kinoruss.com.br
Os cadernos de pesquisa kinoruss constituem-se em publicação eletrônica não comercial, semestral, editada pelo Grupo de Pesquisa E.XXI [GP E.XXI]. As opiniões expressas em seu conteúdo são de responsabilidade de seus respectivos autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização. Doações de materiais relevantes sobre o cinema russo, colaborações, sugestões e dúvidas poderão ser encaminhadas para kinoruss.cadernos@gmail.com.
EDITORIAL
19
ANOTAÇÕES
23
grenier
patricia osses
sokúrov e eisenstein: sobre a montagem em Vida Humilde breno morita
a estética dos sonhos em Elegia Oriental erivoneide barros
03 25 41
entre gravar e revelar: vestígios de uma memória em Elegia Oriental fabiola notari
57
sobre a imagem infinita de aleksandr sokúrov em Elegia Oriental juliana rosa
73
delicada intromissão: o primeiríssimo plano em Vida Humilde monica berto
89
a desproporção: de eisenstein a sokúrov neide jallageas 117
INTERSECÇÕES hojas vueltas
119 antonio mengs
rússia, território de mil demônios
127 alvaro machado
um ensaio cinematográfico para representar o imperador hirohito
139 christine greiner
a rússia na sala de espelhos: púchkin, akhmátova, blok, tarkóvski
147 mario ramos
mon japon
153 patrick jallageas
a casa dos corações partidos 159 neide jallageas e fabiola notari 167
COMPLEMENTAÇÕES
183
NOTAS AUDIOVISUAIS | SONORAS http://kinoruss.wix.com/sokurovianas_notas#!
click para ver e ouvir
http://kinoruss.wix.com/sokurovianas_notas#!
103
20
EDITORIAL O segundo número eletrônico dos cadernos de pesquisa kinoruss dá seguimento à proposta de tornar disponível resultados parciais das pesquisas efetivadas pelo Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI [GP E.XXI], que integra o Projeto de Pesquisa Eisenstein no Século XXI - confluências potenciais entre o cinema e as artes de extração russa e propiciar interlocuções criativas com pesquisadores e artistas convidados. SOKUROVIANAS, número dedicado a Aleksandr Sokúrov (1951) foi planejado e realizado a partir da Mostra Didática Sokúrov Oriental, ocorrida na Casa de Cultura Japonesa (Cidade Universitária, em São Paulo). O evento, aberto à comunidade, foi organizado pelos integrantes do GP E.XXI, de março a junho de 2011. Finalizada a Mostra, o GP E.XXI manteve ativo o site que abrigou a sua divulgação, provendo-o de documentação posterior, que consiste em curtos registros videográficos das mesas de discussão, realizadas após a exibição de cada filme. É o que pode ser verificado no endereço da Mostra: http://sokurovoriental.wordpress.com/videos-e-fotos/ Os textos apresentados nas mesas da Mostra foram reelaborados pelos pesquisadores do GP E.XXI e o conteúdo é agora compartilhado com os leitores dos cadernos de pesquisa kinoruss. Também são disponibilizados, neste número, os trabalhos artísticos desenvolvidos pelos pesquisadores, em diálogo com os filmes estudados. Foram apresentados na Mostra os três filmes que compõem o que é conhecido como Trilogia Oriental em que são levadas à tela a história e a cultura japonesas, através de singulares personagens. Os filmes são Vida Humilde (1997), dolce (1999), Elegia Oriental (1996) e, ainda, Hubert Robert. uma vida afortunada (1996). Nas ideias apresentadas pelos pesquisadores, há de se notar como os estudos sobre a teoria eisensteiniana articulam-se com a produção de Sokúrov. De Vida Humilde, ocupam-se Breno Morita e Monica Berto. Morita trabalha com dois conceitos fundamentais e caros a Eisenstein, comumente traduzidos para o português como imagem e representação, para demonstrar como estes princípios teóricos do cineasta norteiam a montagem desse filme de Sokúrov. Berto analisa o uso do
21 primeiríssimo plano, em Vida Humilde, defendendo-o enquanto elemento fundamental da montagem nesse filme e um dos provocadores do sentido tátil, quando articulado a outras partes constituintes da linguagem cinematográfica, conforme almejaram Eisenstein, Pudóvkin e Aleksandrov, em 1928, em sua Declaração. Sobre o futuro do cinema sonoro, em um momento no qual a sonorização dos filmes estava prestes a se tornar realidade. Já o filme Elegia Oriental é apresentado, em SOKUROVIANAS, sob três pontos de vista distintos e complementares. Erivoneide Barros trabalha o sonho como possibilidade estética explorada por Sokúrov, ao analisar alguns processos e elementos da construção onírica à luz da teoria psicanalítica freudiana e processos de seleção e combinação presentes na linguagem cinematográfica, assim como teorizaram Eisenstein e Jakobson. Fabiola Notari recorre aos conceitos de memória e fragmento investigados por Walter Benjamin para embasar sua argumentação sobre as escolhas audiovisuais de Sokúrov, como elementos de permanência da memória, no sentido de resgate desta por meio da montagem. Por outro lado, Juliana Rosa aproxima-se de Elegia Oriental para estudá-la à luz da estrutura artística do haicai, da qual a pesquisadora extrai o conceito de imagem infinita conforme a entendeu Serguei Eisenstein. Neide Jallageas analisa aspectos do filme Hubert Robert, uma vida afortunada, em que a tensão provocada pelo confronto entre partes diferentes, em uma obra, caracteriza o que Eisenstein denominou de desproporção e irregularidade, para conceber sua dramaturgia visual, procedimento do qual Sokúrov lança mão com o intuito de reinterpretar as possíveis tensões entre as culturas do Oriente e do Ocidente, tendo a Rússia como espaço de intersecção entre Europa e Ásia. Seguindo o projeto inicial dos cadernos kinoruss, textos e propostas artísticas de convidados integram também SOKUROVIANAS. Assim, desdobra-se, com Alvaro Machado, a problematização das influências e intercâmbios entre as culturas de leste e oeste e o que o autor denomina o pathos russo , discutindo como essa tensão perpassa grande parte da filmografia sokuroviana. Outro filme que se liga intimamente ao Japão é O Sol (2004), em que a figura central é o imperador Hirohito, mas cujo desfecho se oferece ao espectador como um encontro (ou desencontro) entre as culturas norte-americana e japonesa. Assim é exposto por Christine Greiner, que traz, para este número de kinoruss, a ideia da humanização do Imperador Sol , Hirohito, quando este aparece pela primeira vez para o público e de como realiza essa passagem, de imperador sagrado a homem público, apoiado pelo general Mac Arthur. O filme dolce (1999), último da Trilogia Oriental, está presente em SOKUROVIANAS através do curto poema de Antonio Mengs e fotogramas que retratam a viúva Miho Shimao, selecionados diretamente do filme e tratados por Fabiola Notari. Dois outros projetos artísticos, recebidos por este caderno, privilegiaram a fotografia e, embora se aproximem do universo pictórico de Sokúrov e do Japão, essas fotografias foram obtidas na França. Integrante dessa proposta, Patrícia Osses apresenta sua série Grenier, insinuando, com as lentes de sua câmera, uma aproximação [da] com a pintura, contendo a luz e privilegiando as frestas, como se quisesse alcançar certa memória. E cabe a Patrick Jallageas homenagear Sokúrov de forma lúdica. O fotógrafo escolhe a França, seu país natal, para simular o Japão e assim as imagens obtidas se tornam, um trompe l'oeil cultural, evocando clichês e os limites de sua previsibilidade.
22 E também foi convidado Mario Ramos, poeta e tradutor que, por sua vez, elabora uma delicada rede de fragmentos da melhor poesia russa evocando a problemática das fronteiras culturais e geopolíticas da Rússia. E Ramos o faz a partir de um trecho da carta de Aleksandr Púchkin ao filósofo Piotr Tchaadáiev, na qual o poeta defende, em breves palavras, o papel crucial da Rússia, entre Ásia e Europa, o que é mostrado em uma elaborada sequência do filme O Espelho (1974), de Andriêi Tarkóvski. Ramos traduz e enreda os trechos dessa carta a fragmentos de poemas de Anna Akhmátova e Aleksandr Blok, na mesma chave que problematiza a Rússia meio à Europa e à Ásia.
SOKUROVIANAS, ainda, diferente do primeiro número de kinoruss, traz uma segunda parte que reúne obras audiovisuais e sonoras. Trata-se de mais um bloco de trabalhos acrescentado ao corpo do caderno que, na versão eletrônica, pode ser acessado na última página do caderno, a 183. Nomeamos este espaço de NOTAS audiovisuais | sonoras. Os trabalhos audiovisuais são de autoria de integrantes do GP E.XXI, Breno Morita, Juliana Rosa, Fabiola Notari e Monica Berto; e das convidadas Cassia Hosni, Patrícia Osses. De Morita, Rosa e Berto é também a edição do registro da performance de Priscilla Herrerias e Tieza Tissi. A composição sonora, por sua vez, foi realizada pelo músico Marcus Siqueira, especialmente para este caderno.
ANOTAÇÕES
26
Sokúrov e Eisenstein: sobre a montagem em Vida Humilde
(1)
Breno Morita (1) Sobre a tradução do título: Lançado pela primeira vez no Brasil em 2011, Zmirinaia Jizn
(Смиренная
1997)
teve
publicado
seu
como
жизньtítulo Solidão.
Devido ao desvio de sentido que tal nome traz à leitura do filme, utilizarei, neste artigo, uma tradução mais literal do título original: Vida humilde. (2) Aleksandra Tutchínskaia é crítica
de
cinema
e
responsável pelo site oficial bilíngue Sokúrov,
de
Aleksandr
além
de
ter
auxiliado em alguns de seus filmes.
direita
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:11:57)
Classificado por Aleksandra Tutchínskaia (2) como documentário, Vida Humilde (1997), de Aleksandr Sokúrov (1951- ), mostra parte da vida da costureira japonesa Umeno Matsuyoshi em seus afazeres, dentre os quais a confecção de um quimono. Ambientado em uma paisagem montanhosa no Japão, Sokúrov nos oferece mais que registros de sua vida. O audiovisual, extrapolando as qualidades descritivas possibilitadas por seu conjunto técnico, é utilizado de maneira a provocar e expressar qualidades sensíveis na percepção do espectador.
27 (3) O filme como um todo é formado por um conjunto de sequências, que, por sua vez, são
formadas
conjunto
de
por
planos.
um Os
planos são pedaços mínimos de
filme
Por meio da montagem, o filme provoca nossos sentidos conduzindo-nos a uma experiência sensorial complexa. A partir das potencialidades geradas pela teoria da montagem de Serguei Eisenstein (1898-1948), analisarei a construção de algumas imagens em duas sequências(3) do filme.
normalmente
caracterizados
por
sua
continuidade, como descrito
Sequência da chegada
no terceiro item do verbete “plano” no Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, “apesar de seu caráter tautológico, sua definição só pode ser 'um plano é qualquer segmento de filme compreendido entre duas mudanças de plano'” (AUMONT, 2003, p.230). (4) Som off é aquele cuja fonte sonora está no fora-decampo
(AUMONT,
2003,
p.214). (5) Sem inclinação de câmera.
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:00:00 a 00:05:00 )
A primeira sequência que analisarei é a que inicia o filme. Com os créditos sobre fundo preto, ouve-se, em som off(4), o vento e o ranger de madeiras. O primeiro se intensifica enquanto o segundo diminui até cessar. Ao surgir o título do filme, ouve-se um trem. No primeiro plano, após os créditos, o som do trem e do vento continua, assim como de alguns estalidos. Em plano médio, frontalmente (5), e sem movimento de câmera, vê-se, suavemente desfocado, um aposento com luz rebaixada, difusa e, predominantemente, marrom. O pouco movimento em campo é o da chama de uma vela que ocupa uma pequena parte da metade superior do enquadramento. O plano seguinte, introduzido sem transição, é também, predominantemente, marrom, mas agora em plano detalhe e bem nítido. Percebemos a textura de uma superfície e o reflexo do fogo da vela acompanhados do mesmo conjunto sonoro de trem e vento. Após alguns segundos, a câmera, até então fixa, inicia um leve movimento ascendente, revelando, em uma moldura escura, o retrato fotográfico de uma senhora de feição oriental em primeiro plano. Enquanto a fotografia é revelada pelo movimento de câmera, o som do trem e dos estalidos
28 (6) Chama-se de continuum sonoro
quando
um
som
atravessa diferentes planos e diferentes
espaços
diegéticos, sem alteração de qualidade sonora (DELEUZE, 2005, p.278). (7) As falas aqui transcritas foram extraídas da edição brasileira em DVD. (8) Segundo Aumont, chamase campo “a porção de espaço tridimensional
que
é
percebida a cada instante na imagem fílmica” (2003, p.42), enquanto fora-de-campo, refere-se à porção que não é vista no enquadramento, mas pode ser percebida de outras maneiras, quer seja pelo som, quer seja por algum tipo de interação com aquilo que está dentro de campo (2003, p.132).
Outro
termo
relacionado é profundidade de campo, este “corresponde à zona situada entre uma distância mínima (punctum proximum) e uma distância máxima (punctum remotum) da
objetiva
da
câmera”
(AUMONT, 2003, p.242), em outras palavras, refere-se à percepção de profundidade de um campo. (9) Essa câmera instável será reincidente no decorrer do filme, transparecendo que a câmera está sendo carregada na
mão.
Abordarei
este
movimento do ponto de vista da linguagem mais adiante. (10) Corte seco designa a passagem de um plano a outro
sem
transição,
efeitos “por
de
simples
colagem” (AUMONT, 2003, p.66). (11) Fusão é um tipo de transição entre planos em que o segundo é parcialmente sobreposto ao primeiro até substituí-lo por completo (AUMONT, 2003, p.138-139).
segue atravessando os planos iniciais do filme, em um continuum sonoro (6). Ouvimos o ruído de páginas de papel sendo viradas e a voz do narrador surge, enquanto o barulho do trem diminui gradativamente até silenciar: Querida Hiroko! Ontem à noite eu não sonhei. Será que dormi mesmo ou já era a não-existência? (7). Quando a fotografia, oblíqua em relação à câmera, é enquadrada, ocupando todo o campo (8), o movimento de câmera cessa e percebe-se uma leve oscilação da câmera (9), assim como da luz sobre a fotografia, como se fosse iluminada por uma vela. Em som off, temos o ruído contínuo do vento, dos estalidos e, intermitente, a voz do narrador: Quando abri meus olhos, vi a mesma vela e ouvi o mesmo estrépito das rodas e o murmúrio do vento, como sempre. Minha viagem ao seu triste país ainda não terminou, e aqui na Rússia, não sou capaz de fugir dos sentimentos que me aprisionam . Um corte seco leva ao próximo plano. Três livros deitados, dois dos quais com escritos em douração na lombada: no da esquerda, em cirílico, e, no da direita, em japonês. Esse plano também é escuro, ainda mais que os anteriores. Ainda acompanhado pelo som do vento, o próximo plano enquadra, sem movimento de câmera e pelo lado de fora, uma janela de madeira pintada de branco, com a tinta descascando. Com suas paredes marrons, mantém-se, no plano, a coloração amarronzada que será predominante no filme. Após alguns segundos avistando a janela, sem que o narrador se manifeste, apenas com o barulho do vento, ele retoma: Minha alma devia estar à procura de beleza e bondade. Afinal, por que eu mereceria esse presente, esse encontro? . No mesmo plano, após a fala, inicia uma música, que continuará junto ao vento. O plano seguinte é aberto, sem movimento de câmera, com o campo podendo ser dividido em três partes horizontais: no terço inferior, vê-se o topo de montanhas cobertas por copas quase negras de árvores; na porção superior, um céu, também escuro; entre eles, uma névoa e uma nuvem branca pujante se movem para direita. O tom esbranquiçado da névoa e da nuvem demarca um forte contraste em relação ao céu e à mata. Quando a nuvem sai de campo, ouvimos, rompendo a tranquilidade, um som forte de algo se arrastando. Sem transição, um plano aberto e sem movimento de câmera enquadra a silhueta de uma casa no crepúsculo e, ao seu redor, algumas árvores. Aos poucos, retorna a serenidade. Ao vento e à música, somam-se ruídos que parecem ser de objetos de dentro da casa. Novamente o som de algo se arrastando; junto ao som de grilos, ouve-se a voz do narrador: Eu cheguei ao local durante o pôr do sol . Uma fusão (11) introduz um plano fechado em uma janela tipicamente japonesa. Envolvida pela escuridão, ela tem seu papel de arroz suavemente atravessado por uma luz clara amarelada. A trilha sonora continua. Ouvimos, em off, o
borbulhar de uma fervura, ruídos de móveis e a voz do narrador: O barulho do vento e minha fadiga não me deixaram em paz . Novamente o som de algo se arrastando; passa-se ao próximo plano: um close em uma pequena lamparina. Com a câmera fixa e efeito de escurecimento nas bordas do quadro, vemos sua silhueta e seu fogo débil. Na banda sonora, a música, os grilos e o narrador: Me deitei no chão. Havia uma lamparina lá . Seguese um primeiríssimo plano, sem movimento de câmera, das pontas dos dedos de uma mão masculina. No campo, vemos o roçar das pontas dos dedos em uma superfície marrom, provavelmente um tatame. Seu ruído é intenso, como se ouvíssemos através dos próprios dedos. O narrador continua: Minha roupa de cama era o assoalho . Um novo plano da lamparina, desta vez mais escuro e mais fechado, evidenciando seu fogo, que agora oscila até quase se extinguir. Com o narrador em silêncio, ouvimos o som de pequenas batidas, como o de alguém mexendo em gavetas rústicas e os grilos. Uma lenta transição faz a lâmpada dissolver-se no próximo plano, e tornamos a ouvir o narrador: Por alguma razão pensei na guerra . Uma imagem fotográfica estática aparece. Continuam a trilha sonora, os grilos e o narrador: ... e imagens de uma vida desconhecida surgiram na minha mente . Aparece, em um enquadramento frontal e ocupando todo o plano, uma imagem estática que, em tom sépia, parece ser uma fotografia. Nela se vê uma mulher, sentada na grama, de vestido escuro e babados claros. À sua esquerda, uma criança, com roupas claras e cabelo curto, brinca. Na metade direita da fotografia, vemos outra mulher, vestida de branco e virada em direção oposta às outras duas junto a um cachorro preto. Ao fundo, vêse uma casa de madeira e uma vegetação rasteira com algumas árvores.
acima
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:05:06 a 00:06:47 )
Mais um corte seco, outra imagem fotográfica ocupa o campo: três crianças nuas sentadas em um descampado; ao fundo, grandes pinheiros. O céu aparece escurecido por um degradê, dando ênfase nas crianças. O narrador continua: ...talvez do passado, ou então do futuro . Com outro corte seco, vemos a mesma imagem, agora re-enquadrada em um close, fechada nas cabeças das mesmas três crianças. Sons de pássaros sobrepõem-se à trilha sonora e aos grilos. Corte para outra fotografia e o narrador prossegue: Filhos de alguém... . Vemos na fotografia uma mulher de branco sentada em um banco de madeira ocupando a metade direita do enquadramento. Ela ergue em seus braços uma criança nua, de maneira que não conseguimos ver o rosto de nenhum dos dois. Ao fundo, grandes pinheiros. No próximo corte, o narrador continua: ... a mãe de alguém . Vê-se na fotografia uma casa de madeira, possivelmente a mesma que apareceu anteriormente, com a mesma mulher de branco, agora de pé, em direção à borda esquerda do enquadramento. Assim como a fotografia
30 das três crianças, essa fotografia também parece ter sido tratada de maneira a escurecer o céu com um degradê, acentuando a figura da mulher. Em seguida, um close da mesma fotografia, re-enquadrando o corpo da mulher, que se destaca sobre o fundo escuro provido pela casa de madeira. Na próxima imagem, com a granulação da imagem fotográfica e a materialidade do papel ainda mais evidente que nas anteriores, tem-se o close em um rosto feminino na horizontal. Ouvimos o narrador: ... verão quente . Em seguida, a mesma fotografia, em um plano mais aberto, mostra a mulher de vestido branco deitada em frente a casa e, na sua frente, um cachorro preto, também deitado. Esta imagem, a última dessa sequência de fotografias, dissolve-se lentamente, ao som da trilha sonora, e funde-se ao plano de nuvens no céu. Sem movimento de câmera, em plano aberto e ocupando todo campo, uma grande massa de nuvem move-se em campo, com diversas gradações de azuis, mais escurecidos ou esbranquiçados em função da quantidade de luz que atravessam as nuvens. Sequência do fogo
(12) Plongé, em francês, significa mergulho. Enquanto linguagem cinematográfica, tal termo nomeia um ângulo de filmagem em que se registra o tema com uma inclinação de cima para baixo. Em oposição, o contra-plongé nomeia uma inclinação de baixo para cima (MARTIN, 2003, p.41). (13) Similar ao ponto de vista, que
diz
respeito
posicionamento
de
ao um
espectador em relação àquilo que ele vê, o ponto de audição refere-se ao posicionamento de um ouvinte em relação às fontes sonoras que escuta. Para maiores informações, sugere-se consultar A dimensão sonora da linguagem audiovisual (RODRIGUES, 2006, p.313).
A próxima sequência que analisarei começa com o som intenso de uma porta se arrastando. Uma câmera fixa em plongé (12) mostra, em primeiríssimo plano, um dos cantos inferiores do batente de uma porta de madeira se abrindo. Um corte seco leva ao próximo plano. Do som intenso do arrastar da porta, temos uma mudança do ponto de audição (13). O som fica menos intenso e com frequências mais baixas, deixando-o mais grave e produzindo a sensação de eco. A câmera fixa enquadra obliquamente uma parede dispondo uma profundidade de campo diminuta. As várias manchas e texturas da parede, com seus tons marrons acinzentado, como pedra, predominam na coloração do plano. Pode-se perceber uma distorção branda, um arredondamento nas bordas do quadro causado, provavelmente, por uma lente grande angular, que possibilita enquadrar um espaço mais amplo. Do fundo, por uma porta de correr, entra a anfitriã, que logo atravessa e sai de campo. Ouvese em off alguns ruídos que sugerem seu caminhar, fora de campo, pelo cômodo e, projetado na parede, pode-se ver uma tênue sombra. Um corte seco leva ao próximo plano. Com a câmera em plongé, o enquadramento pode ser dividido em duas partes por uma diagonal que corta a imagem do canto inferior esquerdo ao superior direito. Na metade diagonal esquerda, temos a parede e, na outra, vemos um fogão e algumas vasilhas onde a anfitriã, agachada, junta alguns gravetos. Neste enquadramento, quando a personagem se afasta do fogo para quebrar mais galhos, ela sai parcialmente de campo, permanecendo dentro apenas suas mãos e seus pés.
31 A iluminação é difusa e o enquadramento tem suas bordas cobertas por uma escura penumbra, tornando-o arredondado. Com o ponto de audição bem próximo ao fogo, ouvimos os estalos dos galhos queimando. O próximo plano mostra seu rosto obliquamente em primeiro plano, ocupando a metade direita do campo; ao fundo, desfocado, aparece outro aposento, com uma luz difusa, e, entre eles, uma escuridão que torna imprecisa a distância que os separa. A iluminação em Matsuyoshi vem de cima para baixo, demarcando áreas de luz e sombra em seu rosto. Ouve-se um ruído intenso, suaves estalidos do fogo e o borbulhar de uma fervura. Em seguida, temos um plano que a enquadra, por trás e pela direita, com a câmera fixa em plongé. Um efeito de máscara redonda re-enquadra o campo, como se um foco de luz a iluminasse. Vemos Matsuyoshi junto a seus utensílios alimentando o fogo já aceso. O plano desenvolve-se em câmera lenta enquanto o som que ouvimos transcorre normalmente, produzindo um leve descompasso entre visão e audição. Ouvimos sutilmente o fogo queimando e, de repente, o ruído intenso de uma folha de papel. Alguns segundos depois, o narrador retoma: Eu me lembro bem de como tudo ficou interessante: as paredes, os utensílios, o vento, a luz, os sons... toda a vida dela ; ao fundo, ouve-se o fogo queimando e o ranger de madeiras. Ela pega em suas mãos um tubo de bambu, e, ao soprar para comburir o fogo, o ponto de audição é bem próximo ao bocal, ouvindo seu barulho intensamente. Quando sobe uma labareda, tem-se um corte seco. Uma lenta panorâmica, em diagonal para cima, esquadrinha o espaço. Vê-se nitidamente a parede, com sua textura granulada, e um pouco de fumaça subindo à direita do campo. A câmera continua se inclinando para cima e com uma leve rotação sobre seu eixo, como em um movimento espiralado, passando pelas telhas em tons marrons que tendem ao preto. Ouvem-se alguns passos, os galhos queimando e estalando e alguns ruídos de madeira. O movimento de câmera cessa ao enquadrar uma claraboia no teto. Ouve-se, então, o som de uma espécie de apito junto ao ranger de madeiras e do fogo queimando. Entra uma trilha sonora de flauta com um instrumento de corda, tocando uma música de notas longas e altas. Uma fusão faz a transição para o próximo plano. Uma câmera fixa enquadra, também de baixo para cima, a mesma claraboia, mas agora em um plano mais fechado. Um novo corte e vemos, pelo lado de fora, o topo da casa: um telhado ricamente entalhado. Vê-se o orifício por onde sai a fumaça e ouvimos, junto à música, o tilintar de pequenos sinos. Sokúrov sobrepõe, de maneira tênue, uma névoa, intensificando a percepção da fumaça sobre a casa. A câmera inicia uma lenta panorâmica para cima, deslocando o plano da casa em direção às nuvens. O céu que Sokúrov mostra é escuro,
quase negro, contrastando com as nuvens brancas. Uma lenta transição em fusão une o próximo plano. Quase em preto e branco, vemos, no plano, a silhueta de uma copa com um fundo cinza claro. A câmera continua sua lenta panorâmica para cima e, conforme a copa vai tomando o enquadramento, o preto vai predominando no campo. Ouve-se o vento e veem-se as folhas da árvore balançar. Uma fusão une o plano anterior, marcado por um movimento de câmera ascendente, ao seguinte, uma panorâmica lateral e sutilmente descendente. Assim, Sokúrov retorna a terra: o campo agora pode ser subdivido em duas partes horizontais. Na superior, escuridão; na de baixo, linhas verticais, uma ao lado da outra, desenhadas pelo jogo de luz e sombra sobre os troncos das árvores. Enquanto a lenta panorâmica desvela o que uma vez esteve fora de campo, à esquerda, ouve-se a trilha sonora de flauta de bambu. Inesperadamente, o som de um cavalo trotando e relinchando, primeiro com intensidade crescente e, em seguida, diminuindo, como se ele passasse rapidamente ao largo, sem, contudo, alterar-se o lento movimento de câmera e sem nada surgir em campo. Durante a panorâmica, a quantidade de árvores vai diminuindo, deslocando o olhar para fora da floresta. Reforçando esse deslocamento do olhar, a iluminação do plano, devido ao fechamento do diafragma, também muda. Onde antes se via um jogo de luz e sombra nas árvores, escurece, e a claridade do lado de fora da floresta vai tomando o campo, possivelmente deslocando a percepção do espectador para um ponto mais distante. Seguindo o deslocamento da panorâmica, o terreno começa a ficar íngreme, dividindo-o novamente em uma diagonal. Suas cores ficam em alto contraste, com os troncos em primeiro plano escurecidos e as nuvens, ao fundo, em nuances de cinza escuro. O movimento de câmera torna-se cada vez mais lento, até parar. Quando cessa, um corte seco leva para um plano aberto sem movimento de câmera em que se podem ver, bem no meio do enquadramento e ao longe, árvores de diferentes espécies. Na metade horizontal superior, vemos o céu cinza, repleto de nuvens, na parte inferior uma vegetação densa e belas copas de árvores, algumas com folhas e outras sem. O plano é predominantemente monocromático, com pequenas nuances de tom. À esquerda do enquadramento, entre a vegetação, pode-se ver o telhado da casa. Ouve-se a música e junto a ela trovões, pontualmente, o som de uma gota solitária caindo na água, e, alguns segundos depois, um corte seco conduz de volta ao interior da casa. Um plano sem movimento de câmera enquadra uma pequena parte de Matsuyoshi. Atrás dela, aparece um pequeno fogão e, mais ao fundo, uma porta, por onde entra a luminosidade; do lado de fora da casa, o tronco de uma árvore e sua vegetação circundante. esquerda e acima
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:14:02 a 00:19:50)
33 Nessa sequência, a câmera, de modo geral, é pouco estável, com um tremor quase constante. Essa trepidação, na linguagem cinematográfica, muitas vezes serve para marcar uma câmera subjetiva, ou seja, um tipo de câmera que pretende expressar o ponto de vista de um personagem, cujo olho se identifica com o do espectador (MARTIN, 2003, p.32). Entretanto, neste filme, a câmera não é explicitamente subjetiva, ela não explicita um personagem a ser tomado como referência, todavia, ela intensifica certo sentido de um observador atento, de alguém que vê muito de próximo a intimidade, mesmo que trivial, de outra pessoa. Outro elemento expressivo da linguagem cinematográfica que também pode ser percebido, nessa sequência, é o trabalho cromático que Sokúrov propõe ao filme. Sua coloração é predominantemente marrom acinzentada, variando de tons mais terrosos, para mais acinzentados, mas, em sua maioria, monocromáticos. Sokúrov e Eisenstein
Considerando a importância atribuída por Sokúrov a outras linguagens artísticas, como a pintura e a literatura, constantemente citadas em suas entrevistas, proponho a análise desses dois trechos a partir do corpo teórico de outro cineasta, cujo interesse nas diversas linguagens é igualmente imprescindível: Serguei Eisenstein. Ao mesmo tempo teórico e artista, Eisenstein, com sua forma de pensar a arte, fez constantes menções a outras linguagens artísticas e é por meio destes diálogos que ele busca caminhos para o cinema. Esse movimento de olhar para o passado projetando-se para o futuro e de olhar para as outras linguagens visando o cinema imbui seu pensamento de duas características marcantes: a existência de algo em comum entre todas as artes e o cinema como uma síntese delas. Tais qualidades são expressas, por exemplo, em sua percepção da arte como processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador (EISENSTEIN, 2002b, p. 21). Esse pensamento sobre arte será o caminho pelo qual proponho uma aproximação de sua teoria da montagem com Vida humilde. Para isso, serão necessárias algumas considerações sobre os significados e o lugar das imagens nesse processo. Organizar imagens no sentimento do espectador
O que quer dizer Eisenstein ao referir-se à arte como um processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador? Para ponderar o sentido dessa frase em sua teoria, discutirei, a seguir, duas acepções distintas que apontam diferentes qualidades inerentes à imagem. De antemão, alerto que o conceito imagem é suficientemente denso e abrangente para o intento deste artigo, de maneira que nos limitaremos a dois desenvolvimentos que serão caros na discussão de sua teoria da montagem. Arlindo Machado e François Albera trazem à tona uma problemática relativa à imagem nas traduções dos textos de Eisenstein cuja amplitude abarca tanto a própria palavra quanto suas acepções. Em Eisenstein e o Construtivismo Russo (2002), Albera adverte para a existência de duas palavras em russo izobrajénie (изображeние) e óbraz (oбраз) que podem igualmente ser traduzidas como imagem , mas cujos significados são sensivelmente diferentes. Segundo Albera, cada palavra nomeia diferentes regimes de imagens, ambas inerentes e concomitantes à imagem cinematográfica. A primeira,
34 izobrajénie, o autor propõe como imagem-representação; a segunda, óbraz, como imagem-conceito, observando ainda que as primeiras são apenas o alimento, o combustível destinado a produzir as segundas fora do cinema! (ALBERA, 2002, p.247).
(14) Na teoria semiótica de Lotman, uma linguagem é definida enquanto sistema semiótico de comunicação. Sistema, pois a utilização de seus elementos deve seguir uma ordenação; semiótico, por ter como elementos constitutivos os signos e de comunicação, pois assegura a troca, a conversação e a acumulação de informação na coletividade (LOTMAN, 1978, p.10).
Por sua vez, Arlindo Machado, em seu artigo Eisenstein: um dialogismo radical (1981, p.28-29), em nota de rodapé, nos aponta que, em português, normalmente, traduz-se izobrajénie como representação e óbraz, como imagem . Segundo Machado, óbraz tem um sentido generalizador e relativo a uma essência, enquanto izobrajénie refere-se a uma compreensão da imagem enquanto pura e simples referência a algo visível (Ibidem, 1981, p.28-29). Ambas as traduções trazem qualidades comuns, como, por exemplo, a compreensão de izobrajénie enquanto signo, isto é, enquanto equivalente material dos objectos, dos fenómenos, e dos conceitos que exprime (LOTMAN, 1978, p.10) (14), e óbraz com um significado mais abrangente e de difícil circunscrição: para um, imagem-conceito; para outro, um sentido generalizador . Nos escritos de Eisenstein traduzidos para o português, pode-se notar a presença de uma concepção de imagem que se aproxima deste sentido mais amplo, e não por isso genérico, como por exemplo, uma imagem da morte ou a imagem de uma fuga noturna , e outras vezes seguidas de adjetivos como imagem única , imagem total . Como ponto de partida, essa é uma importante distinção a ser feita: para ele, a imagem não se refere exclusivamente a uma figura em um suporte, como, por exemplo, aquela inscrita na película fílmica. A imagem também é considerada como fruto da atividade perceptiva, uma totalidade imaterial que surge no interior do espectador como contrapartida a estímulos exteriores, ou seja, como aquilo que uma obra de arte deve ser capaz de suscitar. Essa distinção nos traz outro importante elemento para o pensamento de Eisenstein: o espectador. No centro de sua proposta, encontra-se a capacidade sensível e intelectual do público. Tal posicionamento repercute em sua obra na forma de uma constante preocupação em fazer florescer no espectador uma imagem (óbraz), e não produzir sua representação fotográfica no rolo do filme. Em outras palavras, argumenta que cada elemento visível e sonoro justaposto deve ser escolhido como estímulo ao aparelho sensório do espectador em função de suas capacidades de construção de uma óbraz. Esses elementos, que, como dito por Albera, servirão como matéria-prima para uma imagem (óbraz), Eisenstein chama, em 1938, de representação (izobrajénie): A representação A e a representação B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possíveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua
35 justaposição - isto é, a justaposição desses próprios elementos e não de outros, alternativos - suscite na percepção e nos sentimentos do espectador a mais completa imagem do próprio tema (EISENSTEIN, 2002b, p.18).
É importante ressaltar que este princípio da montagem discutido por Eisenstein não passa necessariamente por uma racionalização dos estímulos, mas sim pela capacidade de unir elementos distintos em uma unidade sensível, a óbraz. Em seu conhecido artigo Fora de quadro, é esta "qualidade emocional" que ele elogia nas formas tanka e haikai da poesia japonesa em que: A simples combinação de dois ou três detalhes de um tipo de material cria uma representação perfeitamente terminada de outro tipo - psicológico. E se os limites eminentemente básicos dos conceitos intelectuais definidos, formados pelos ideogramas combinados, ficam obscuros nesses poemas, em qualidade emocional, porém, os conceitos florescem incomensuravelmente (EISENSTEIN, 2002a, p.38).
Sobre a abrangência desse processo, o autor traz uma série de exemplos que vai da constituição da escrita hieroglífica japonesa à poesia de Púchkin. Nessa medida, as representações A e B não se limitam de maneira nenhuma a uma representação pré-determinada. A imagem (óbraz), na montagem de Eisenstein, toma forma da justaposição dessas duas grandes partes: o autor, na forma da obra de arte, e o espectador. Da parte do autor, há uma série de procedimentos criativos discutidos por Eisenstein para que se possa conseguir o máximo de expressividade: discutindo a montagem desde a atuação dos atores aos enquadramentos; da construção de um plano à totalidade do filme, passando pela escolha de todos os elementos da linguagem cinematográfica.
(15) Sobre esta questão, Eisenstein,
Pudóvkin
e
Aleksandrov assinaram, em 1928,
uma
Uma vez introduzida esta relação entre izobrajénie e óbraz em Eisenstein, será por este viés que abordarei a montagem nas sequências anteriormente analisadas de Vida humilde. Imagens em Vida humilde
declaração
intitulada Sobre o futuro do cinema
sonoro,
em
que
traziam à tona a importância da utilização não-naturalista da informação sonora, isto é, de maneira autônoma em relação ao que se vê; enfim, “o som como um novo elemento de montagem” (EISENSTEIN, 2002a, p.226).
Na primeira sequência, podemos observar como Sokúrov constrói a imagem (óbraz) da aproximação do narrador-viajante em direção à casa que o acolherá, sem nunca mostrá-lo pegando um meio de transporte ou entrando na casa. Tudo isso se dá por meio da montagem. É importante notar que o som, tanto nas sequências, quanto no filme, não entra como informação repetitiva, reforçando aquilo que se vê (15), mas
36
(16) Hiroko é a pessoa que acompanhou
Sokúrov
no
Japão, tornando-se grandes amigos.
participa como estímulo à imaginação do espectador, como forma de representação sonora que busca, em relação aos outros elementos de montagem, provocar a percepção do espectador. Assim também é a voz do narrador, que, para além de ser um relato na forma de uma carta para Hiroko (16), entra como elemento de montagem de natureza verbal. Assim, quando em sua primeira fala, o narrador diz não saber se era sonho ou não-existência , tem-se verbalmente um indício daquilo que Sokúrov buscará construir enquanto imagem (óbraz) no decorrer do filme. É dessa maneira, como em um sonho, que se constrói a chegada do viajante a casa, conforme proporei a seguir. A sequência apresentada acima começa com os créditos sobre o fundo negro e o som do vento, que atravessará os três primeiros minutos de filme, até a silhueta da casa sob o crepúsculo, voltando novamente alguns minutos depois quando aparecem as imagens (izobrajénie) que o narrador diz não saber se são do futuro ou do passado. Esse elemento sonoro pode ser percebido como expressão sonora das imagens (izobrajénie) das nuvens, névoas e fumaças que veremos no decorrer do filme. Ao mesmo tempo em que aparece o título do filme, em cirílico, ouve-se um trem, importante elemento de montagem na construção da imagem (óbraz) de uma viagem. Vê-se, a seguir, um quarto, com diminuta iluminação à vela. Essa penumbra reforça a imagem (óbraz) da transitoriedade apresentada, conforme veremos no decorrer da sequência, sob várias formas, por exemplo, na forma visual e verbal do crepúsculo e entre, como verbalizado pelo narrador, o sonho e a não-existência . O plano seguinte, um primeiríssimo plano bem nítido, em que se pode perceber a textura áspera da superfície, aponta também ao interesse, que será reforçado em outros planos, de provocar a percepção tátil na construção da imagem (óbraz) total do filme. Introduz-se, por meio de uma fotografia, outra personagem, a primeira a aparecer no filme, evocando, desde o começo, o roçar constante do filme com a memória. A presença, em um plano seguinte, dos livros, um em cirílico e outro em japonês, é mais um elemento de montagem no sentido da imagem (óbraz) de um encontro entre Rússia e Japão. Em seguida, temos a sobreposição da janela ao som do vento e da voz do narrador, que, continuando a leitura da carta, fala sobre sua busca por beleza e sua passagem pelo Japão. Com a pausa em sua fala, o som do vento aumenta juntamente com a música instrumental. Apesar da imobilidade do movimento de câmera e do próprio movimento em campo, a presença da ventania, em sua forma sonora (izobrajénie), institui um movimento fora-decampo, que se justapõe à imagem (óbraz) de um ambiente criado por Sokúrov. Sob esta provocação sensível, somos entregues ao plano de uma paisagem montanhosa, com uma nuvem branca movendo-se, em contraste, em um céu escuro.
37
Ainda com a imagem (izobrajénie) do horizonte, surge o som brusco de algo que se arrasta, puxando novamente a imagem (óbraz) em direção a terra. Um corte seco nos leva ao próximo plano. Ouvimos o narrador contando ter chegado durante o crepúsculo e, encoberta pela escuridão da noite, avistamos a silhueta da casa. O som de grilos povoa o entorno, os sons internos da casa, como o estalar do fogo e os ruídos de utensílios domésticos, seu interior. Essa montagem de representações visuais e sonoras, além de exprimir a vida que pulsa dentro e fora da casa, constrói a imagem (óbraz) de um lar acolhedor, estabelecendo uma atmosfera íntima da casa mesmo antes de vermos seu interior. Estabelecida esta hospitalidade sensorial, avistamos uma janela. Através do papel de arroz que a entremeia, percebemos a luz interna da casa, nos aproximando ainda mais de sua vida interior. Essa típica janela japonesa, com seu papel de arroz, encerra um primeiro momento da aproximação Rússia-Japão; a chegada do narrador-viajante à anfitriã que o acolherá. Juntamente com aquela avistada no início da sequência, essa segunda representação constrói uma imagem: a travessia do espectador de uma terra à outra. Sobreposto a ela, ouvimos o narrador dizer que não consegue dormir tamanho seu cansaço. Nesse trecho, podemos sublinhar dois elementos que se reforçam poeticamente: a janela, enquanto elemento que permite o trânsito entre espaços diferentes, e o estado de extremo cansaço que aproxima, de forma indistinguível, o estado habitual do onírico. Enquanto elementos de montagem, ambas as imagens (izobrajénie) propostas, uma visual, a janela, outra verbal, o cansaço extremo, são elementos de montagem na construção da imagem (óbraz) da fluidez entre espaços interno e externo que se delineará nesta sequência do filme. Em mais um movimento em direção ao interior, vemos uma lamparina que, com seu fogo vacilante, reforça a volatilidade do estado sonolento. A isto segue o plano detalhe de uma mão, que, roçando uma superfície áspera, estimula, na percepção do espectador, seu sentido tátil. A função poética atribuída anteriormente ao papel de arroz em relação a casa, dialoga com a relação entre a pele e o ser sensível, ambos elementos que agregam porosidade à estrutura. O quase apagamento da lamparina é seguido por imagens (nesse caso, tanto izobrajénie, enquanto elementos de montagem de uma imagem maior, quanto óbraz, por terem sua percepção anteriormente construída pela montagem) as quais o narrador diz ver, mas não ser capaz de determinar se são do passado ou do futuro. Adentramos, assim, em um espaço extremamente íntimo do narrador, fundindo o movimento de aproximação da casa ao de introspecção do viajante. A última dessas imagens internas dissolve-se em nuvens no plano seguinte, fazendo convergir novamente o dentro e o fora sob as formas de espaço mental e celestial. Por meio da montagem, constrói-se, nessa sequência, a imagem (óbraz) de uma viagem. À janela, justapõe-se o planar das nuvens sobre as montanhas. Sendo-nos apresentada a casa, nos aproximamos da vida que ali pulsa. Novamente pela janela, agora da casa japonesa, continuamos nossa passagem. Do lado de dentro, a lamparina, com sua luz rebaixada e amarelada, desenha um ambiente sereno e acolhedor. Com a aparição de um corpo, expresso por uma mão que tateia, o cineasta oferece o limite de um espaço íntimo: a pele. Essa intimidade nos é oferecida na forma de suas visões internas. Por fim, com a fusão da última dessas aparições íntimas com a imagem (izobrajénie) do céu, Sokúrov não demarca uma cisão entre espaço interno e externo, construindo, assim, a imagem (óbraz) de uma convergência entre o dentro e o fora, entre o íntimo e o coletivo. Pelo movimento geral, somos levados não apenas ao interior da casa que acolhe o viajante, mas também ao interior do próprio viajante.
38
ao lado
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:24:37)
Na segunda sequência analisada, Umeno Matsuyoshi aparece entrando em um cômodo em que predomina uma tonalidade pétrea. Com a parede oblíqua em relação à câmera, delineia-se uma curta profundidade de campo. Ela entra pela porta e logo sai de campo. A percepção de seu deslocamento no espaço se dá pela banda sonora, sem que nós possamos vê-la. Nesse espaço diminuto, ouvimos os barulhos do ambiente com forte intensidade. No plano seguinte, um plongé, a parede ainda ocupa grande parte do enquadramento; ela quase não é vista, apenas seus pés e mãos. Ouvimos alguns estalos de fogo e ruídos de objetos. No plano seguinte, a intensidade dos sons aumenta, ouvimos um borbulhar, uma chuva, e vemos um close de frente da personagem, seu olhar voltado para baixo. Em seguida outro plongé, ainda mais próximo dela. Vemos e ouvimos o fogo já aceso. Apesar do ponto de vista por trás dela, o ponto de audição é próximo ao fogo; ouvimos seus estalos e o vento passando enquanto ela sopra pelo tubo de bambu. A cada sopro, vemos os gravetos cada vez mais incandescentes. A predominância da cor terrosa é marcante no conjunto do filme. De efeito patético, esse tom sépia, propositadamente construído por Sokúrov, é um importante elemento de montagem, sugerindo, por exemplo, uma outra temporalidade, sobreposta à construída pela narrativa, mais antiga, talvez geológica à totalidade do filme. Até aqui, apesar do tempo distendido, a espacialidade é diminuta, construindo a imagem (óbraz) de um corpo a corpo com a anfitriã. Quando mais um sopro de Matsuyoshi faz subir uma labareda, um corte seco para o próximo plano introduz um movimento de câmera panorâmico ascendente, abrindo a imagem (óbraz) verticalmente. Esse lento movimento de câmera que esquadrinha paredes e teto, revelando suas texturas e altura, vai desenhando verticalmente a imagem (óbraz). Os ruídos do fogo, dos passos e do ranger de madeira continuam fortes, mantendo o ponto de audição próximo aos objetos rente ao chão. Conforme o movimento de câmera vai diminuindo, ouvem-se alguns pássaros, um som agudo, como apitos. O vento e o ranger de madeira se intensificam. Entra uma música de flauta de bambu, com notas altas e longas, delineando, também com o som, uma ascendência. Com a câmera fixa, vemos a fumaça saindo pela claraboia. Com uma fusão, Sokúrov introduz um plano ainda mais fechado na saída da fumaça e os sons do vento, assim como o do apito de música, ficam mais intensos. Um corte seco introduz um plano do lado de fora da casa, enquadrando seu telhado. Vemos a fumaça saindo da casa e, após alguns segundos sem movimento de câmera, uma panorâmica vertical continua sua ascendência. Esse deslocamento do espaço interior para o exterior tem como elementos de ligação a fumaça, o vento e o movimento de câmera, imagens (izobrajénie) da fluidez. A panorâmica para cima revela então a copa de uma árvore que ocupa, cada vez mais, todo o campo, fundindo-se lentamente, por meio de uma transição, ao tronco das árvores do plano seguinte. Nesse longo percurso, passando pelos elementos, madeira, fogo, fumaça, céu e retornando à madeira, Sokúrov constrói uma imagem (óbraz) vertical e ascendente capaz de unir alto e baixo em um ciclo.
39 O movimento, até então vertical, passa a ser, predominantemente, horizontal, deslocando-se para a esquerda e fazendo a passagem da árvore para a floresta, e dela para seu exterior. Assim, esse movimento horizontal encaminha a imagem (óbraz) para fora da floresta. Seguido de um plano, vemos algumas árvores ao longe, no centro do enquadramento, onde, à esquerda, se vê o telhado da casa. Cortando para o interior da casa. Unindo-os em uma única imagem (óbraz), Sokúrov constrói, nesta sequência, uma síntese entre opostos. Confluências
A intenção, neste artigo, não foi fazer uma leitura exaustiva das sequências escolhidas, mas sim, através do corpo teórico legado por Eisenstein, adentrar alguns veios de Vida Humilde e discutir alguns de seus procedimentos cinematográficos. Sua teoria da montagem possibilita uma análise do cinema enquanto provocador e construtor de um tipo de imagem que não se encontra inscrita na película fílmica. Pesquisando e propondo a arte como uma provocadora dos sentidos, Eisenstein desenvolveu uma linguagem cinematográfica voltada para a construção de uma totalidade sensível, que leva em consideração o espectador e floresce apenas em sua percepção. Dessa maneira, Vida Humilde pode ser apreendida como um conjunto de provocações sensoriais ao espectador a fim de que este depreenda sua própria viagem, construindo em sua percepção uma imagem total.
40 Bibliografia ALBERA, François. Eisenstein e o construtivismo russo: A dramaturgia da forma em Stuttgart (1929). Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Cosac & Naify, 2002. Título original em francês: Eisenstein et le constructivisme russe Stuttgart, dramaturgie de la forme. AUMONT, Jaques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Ed. Papirus, 2003. Título original em francês: Dictionnaire théorique et critique du cinéma. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. Título do original em francês: L'image-temps. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. José Carlos Avelar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002a. _________________. O sentido do filme. Trad. José Carlos Avelar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002b. LOTMAN, Iuri. Estética e semiótica do cinema. Trad. Alberto Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. MACHADO, Arlindo. Eisenstein: Um dialogismo radical. In. Revista Polímica. São Paulo: Ed. Moraes Ltda., n.3, 1981, p.23-44. RODRÍGUEZ, Angel. A dimensão sonora da linguagem audiovisual. Trad. Rosângela Dantas. São Paulo: Ed. Senac, 2006. Título original em espanhol: La dimensión sonora del lenguage audiovisual.
42
A estética dos sonhos em Elegia Oriental Erivoneide Barros
(1) In. Felicidade Conjugal. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.
Não respondi nada e fiquei fitando-o involuntariamente nos olhos. De repente, aconteceu me algo estranho; em primeiro lugar, deixei de ver o que me cercava, depois o seu rosto desapareceu diante de mim, apenas os seus olhos, parecia, brilhavam bem em frente dos meus, em seguida tive a impressão de que esses olhos estavam dentro de mim [...] (1) Liev Tolstói
p. 56.
(2) Quando nos referimos à metonímia, incluímos
também
a
sinédoque.
noção
de
Conforme
assinala V. V. Ivánov, “a diferença entre a sinédoque (pars pro toto – 'a parte pelo todo' no sentido estrito do termo) e a metonímia (par pro parte – 'a parte pela parte' segundo C. Bally” (1995) não é tão importante, à diferença da contraposição dessas duas figuras à metáfora (totum pro toto – 'o todo pelo todo' segundo
Bally)
2009, p. 205).
(IVÁNOV,
A metáfora e a metonímia são duas figuras de linguagem amplamente utilizadas na comunicação humana. A primeira é gerada por meio de uma transferência de significado entre termos distintos em que o falante identifica algum grau de semelhança, fato que expande o campo polissêmico da palavra ou expressão envolvidas no processo comunicativo. Já a metonímia (2) é fruto de uma relação objetiva e direta entre partes de um todo, em que o falante estabelece uma relação de contiguidade, em uma espécie de síntese, em que um termo evoca outros que pertencem ao mesmo campo semântico. De um modo geral, a metonímia é estabelecida no processo de substituição. Para Roman Jakobson (1896-1982), a linguagem verbal é constituída de dois processos fundamentais: a seleção e a combinação de palavras. O processo de seleção estabelece associações entre unidades linguísticas, seja por semelhança ou por oposição. Já a combinação refere-se à capacidade de criar interação entre os signos dentro de unidades simples ou criar seu próprio contexto em uma unidade linguística mais complexa (JAKOBSON, 2010, p, 49). Esses dois processos, inerentes a qualquer língua, estabelecem dois eixos na
43
(3) Para elucidar a lógica da constituição dos eixos, Décio Pignatari sugere a seguinte analogia: “Como se convocam os jogadores de futebol da seleção nacional? Goleiros, laterais, zagueiros, médios volantes, pontas-de-lança. Para armar o time (sintagma), a comissão técnica combina os melhores elementos de cada posição (paradigmas)”. In. O que é comunicação poética. 9. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
(4) Não desconsideramos as discussões em torno do uso da terminologia “linguagem”, “metáfora” e “metonímia” nos estudos cinematográficos. No entanto, a provocação inicial para
a
possibilidade
de
empréstimo dos termos é dada por Iuri Lotman (19221993),
estudioso
da
semiótica russa, quando faz a seguinte
afirmação:
“a
linguagem: paradigmático (seleção/similaridade) e sintagmático (combinação/contiguidade) (3). As relações de similaridade geram o processo metafórico por meio da associação entre as palavras. Já a contiguidade manifesta a metonímia no processo de relação entre os termos por meio de uma determinação semântica. No processo de comunicação, a relação de projeção do eixo de seleção sobre o eixo de combinação torna [...] toda metonímia ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico (JAKOBSON, 2010, p. 191). Isso ocorre porque a metáfora surge de uma relação abstrata e analógica entre dois objetos, gerando uma situação de transferência, como dito anteriormente, semântica. A base de transferência da metáfora possibilita a criação da metonímia já que, neste tropo, o conceito de um elemento é transferido para outro. A análise do ponto de vista inverso também pode ocorrer, ou seja, é possível que a interação entre projeções metonímicas gerem conceitos metafóricos. Embora a predominância desses dois recursos apareça constantemente na elaboração da poesia, esses processos não se limitam à poética verbal, conforme assinala Roman Jakobson. O linguista também considerava a existência das relações de similaridade e contiguidade na pintura e no cinema. Além de salientar que, embora haja um profundo diálogo entre as duas figuras de linguagem, cada tropo mantém suas particularidades de acordo com o campo da linguagem em que se manifesta. Na linguagem cinematográfica (4), Jakobson, ao considerar os elementos específicos desse campo artístico, verifica o importante emprego da metonímia:
fotografia (o mais perfeito exemplo adquire
de no
iconismo) cinema
as
propriedades de palavra. É nesse sentido que se orienta, em particular, uma grande parte
dos
esforços
A partir das produções de D. W. Griffith, a arte do cinema, com sua capacidade altamente desenvolvida de variar o ângulo, a perspectiva e o foco das tomadas, rompeu com a tradição do teatro e empregou uma gama sem precedentes de grandes planos sinedóquicos e montagens metonímicas em geral (JAKOBSON, 2010, p. 72).
inovadores de Eisenstein. A utilização da imagem como se fosse um tropo poético (uma metáfora ou uma metonímia [...]”. In. Estética e semiótica do cinema. Trad. Alberto Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. p. 72.
Como a metáfora e a metonímia ocorrem por meio de um jogo entre substituição e organização linguística, esse arranjo permite ao poeta ampliar ou multiplicar a significação de uma poesia sem cortejar o simbolismo por vezes gerado por um possível caráter meramente alegórico das imagens que limita outras prováveis associações, direcionando a leitura a um significado específico. Ao tratar da linguagem cinematográfica, adotamos esses conceitos sob o prisma da proposta de Marcel Martin. O teórico nomeia de metáfora a justaposição por meio da montagem de duas imagens que, confrontadas na mente do espectador, irão produzir um choque psicológico (MARTIN
44
ao lado
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:09:28)
, 2003, p. 93) e de símbolos quando a significação [...] reside na imagem enquanto tal, em planos ou cenas pertencentes sempre à ação e que se acham investidos [...] de um valor maior e mais profundo (Idem,Ibidem, p.98). No texto, o autor apresenta algumas formas de produzir o que ele denomina de símbolo. Dentre todas as propostas apresentadas, seleciona-se aqui a construção que privilegia o conteúdo latente ou implícito da imagem. Nessa construção, é possível estabelecer, por meio do que Martin nomeia de símbolos plásticos, relações metonímicas entre elementos presentes da própria imagem, deslocando um objeto de um campo semântico a outro. No cinema de Aleksandr Sokúrov (1951- ), vê-se um uso expressivo das possibilidades dos meios disponíveis para a criação da imagem cinematográfica. A escolha de cada ângulo ou movimento da câmera possui profunda importância para a significação das imagens ali expostas. A construção do significado não se dá apenas enquanto justaposição de planos, mas ocorre através de elementos de montagem tais como som, textura, manipulação de imagem e cor. Essa postura de considerar a relevância de todos os elementos envolvidos no processo fílmico já estava presente nos escritos de Serguei Eisenstein (1898-1948). Como exemplo, citamos trecho de um texto em que o cineasta fala sobre essa perspectiva. A obra cinematográfica se baseia, da mesma maneira, não numa desvantagem mútua de certos domínios da expressão, na neutralização de uns em proveito de outros, mas na aparição justificada em primeiro plano, no momento dado, dos meios de expressão graças aos quais, num determinado instante, exprime-se plenamente o elemento que, nas condições presentes, conduz diretamente ao rendimento mais completo da matéria tratada, do pensamento, do tema, da ideia da obra (EISENSTEIN, 1969, p. 139).
Sob esse prisma, escolhemos, como exemplo do trabalho realizado por Sokúrov, o filme Elegia Oriental (1996), a fim de analisarmos os recursos da linguagem cinematográfica explorados pelo cineasta que acabam resultando em aspectos estéticos muito singulares. No filme, é apresentada, ao espectador, uma viagem reflexiva até um vilarejo japonês. O trajeto inicia em meio a um nevoeiro que marca a desorientação, em relação ao tempo e ao espaço, vivida pelo narrador/personagem. Obra introdutória ao conjunto de filmes que o cineasta dedicará à cultura japonesa, Elegia Oriental traz à tona questões ímpares, tais como a morte, a reflexão sobre a vida e o exílio. A floresta, as casas, os objetos e as pessoas são delineados, na tela, de maneira quase imaterial, efeito gerado pelo apagamento dos contornos, muitas vezes resultado de uma espécie de véu criado pela névoa que perpassa o filme. É difícil, por vezes, enxergar claramente os elementos que vão compondo os planos, principalmente os rostos das três
45 (5) Durante a película, há dois momentos em que o narrador e o espectador deparam-se com pessoas com as quais não é permitida a interação. A primeira ocorrência se dá na sequência 0:10:24 a 0:10:42 em que surge uma mulher em um jardim que parece estar alheia ao narrador que a chama e pede ajuda, mas não obtém nenhuma resposta. Posteriormente, na sequência 0:18:33 a 0:18:33, o narrador reconhece sua escrivaninha e há o enquadramento em primeiro
plano
de
uma
fotografia em que há uma mulher. Enquanto permanece essa imagem na tela, ouve-se um breve diálogo entre um homem e uma mulher cujos protagonistas permanecem ocultos ao espectador. (6) É a voz pronunciada por alguém fora do campo visual. (7) Sigmund Freud (1856 – 1939),
médico,
passou
grande parte de sua vida em Viena. Em 1900, lança A interpretação dos sonhos, obra que fundou a teoria psicanalítica e influenciou muitos
pensadores
e
correntes artísticas durante o século XX. (8) Não abordaremos as discussões
linguísticas
propostas por Lacan, em sua releitura da obra de Sigmund Freud. Apenas nos deteremos aos conceitos presentes nas obras freudianas.
personagens que são entrevistadas ao longo da película. O narrador se dirige a elas como almas que carregam uma grande bagagem da vida e possuem liberdade para falarem sobre assuntos que perpassam toda e qualquer existência humana. Trata-se de pessoas simples que, no senso comum, não obtiveram nenhuma relevância na cultura japonesa. Todavia o cineasta atribui um espaço a elas como responsáveis por manterem a sabedoria, seres que já experimentaram a vida e, com distância, podem refletir sobre ela. A evocação de significados por meio de fusões de imagens, conforme demonstraremos adiante, surge como uma tentativa de materializar algo que parece se esvair a qualquer instante, sejam os pensamentos evocados, as lembranças que surgem em meio aos relatos das três personagens que são entrevistas diretamente pelo narrador (5), as divagações do protagonista ou a própria imagem presente na tela. Já na primeira sequência do filme, é apresentado um espaço indefinido, apenas denominado como ilha, em que o narrador está buscando respostas para uma série de indagações que lança para si e para os outros, além de gozar de um papel de observador com liberdade para reflexão. O narrador, presente apenas por meio da voz off (6), afirma não saber onde está, diz apenas que tudo parece um sonho; afirmação que surgirá em outros momentos do filme. Esse espaço não definido é o típico ambiente em que podem ocorrer os sonhos tal como observou o psicanalista Sigmund Freud (7). O sonho ganha expressividade quando um desejo reprimido, abolido da consciência pela censura, retorna disfarçado pelos mecanismos oníricos, a fim de conseguir uma realização parcial. Nas artes do século XX, os mecanismos de realização do sonho, apresentados por Freud, foram amplamente utilizados, sobretudo, na literatura, no cinema e na pintura. Na primeira, o uso da metáfora e da metonímia foi aproximado por Jacques Lacan (8) aos conceitos de condensação e deslocamento que já estavam presentes nos escritos freudianos. É a esses dois processos oníricos que dedicaremos maior atenção adiante. Desse modo, entendemos que, nesta obra do ciclo oriental sokuroviano, um dos caminhos possíveis de leitura está na relação entre as possibilidades de fusão de imagens que estão na constituição do sonho e os conceitos de metonímia e metáfora manifestados de forma singular na linguagem cinematográfica. O resultado adquirido pelo conjunto de elementos cinematográficos utilizados nessa empreitada é o que se designa, neste artigo, como a estética dos sonhos. Cromatismo: síntese da linguagem
46 No texto Palavra e Imagem (1938), Serguei Eisenstein recupera a discussão sobre a imagem que surge a partir do conflito de planos. Aqui o cineasta assinala e aprofunda de forma mais contundente outro aspecto da montagem que não se limita a este conflito como princípio geral. Segundo Eisenstein (1969), a justaposição de planos dá origem a um conjunto de imagens em que cada parte forma um todo que permitirá a participação do espectador na construção do significado. Sob esse ponto de vista, O fragmento A, derivado dos elementos do tema em desenvolvimento, e o fragmento B, derivado da mesma fonte, ao serem justapostos fazem surgir a imagem na qual o conteúdo do tema é personificado de forma mais clara (EISENSTEIN, 2002, p. 51). Nesse processo, a montagem de Eisenstein propicia a transformação do que ele denominou representação, ou seja, do elemento capturado pela câmera, em imagem, entendida como as reverberações que são suscitadas na percepção do espectador. Para Eisenstein, a obra de arte cria uma imagem quando o tema proposto atinge a sensibilidade do receptor da obra: Essa imagem penetra na consciência e na sensibilidade e, por intermédio da soma, cada detalhe ali fica conservado nas sensações e na memória sem que se possa destacar do todo. Pode tratar-se de uma imagem sonora, de um quadro melódico e rítmico, ou pode tratar-se de uma imagem plástica onde os elementos da série registrada pela memória foram inseridos a título de representações (EISENSTEIN, 1969, p. 79-80).
Aleksandr Sokúrov parece ter recuperado e aperfeiçoado, na sua produção, a concepção de imagem e seu efeito diante do espectador discutidos por Eisenstein. Em Elegia Oriental, Sokúrov explora um aspecto recorrente em seus filmes: a busca de soluções estéticas inusitadas. Ao registrar de modo singular as representações, o cineasta gera um impacto direto na apreensão do conteúdo fílmico. De acordo com Alvaro Machado, a modelação dos espaços mediante a luz; a profunda intervenção nos níveis de cor; a distorção da imagem, por meio de lentes especiais; e a contraposição das diversas texturas e granulações [...] (2010, p. 18) são procedimentos que denunciam a primazia da desconstrução do espaço narrativo pelo império da imagem (Idem, Ibidem, p.18).
abaixo
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:01:45 a 00:02:52)
47 Já no início de Elegia Oriental, o espectador depara-se com uma sequência marcada pela interpolação de uma representação de nevoeiro e a voz off do narrador (o próprio Sokúrov) que declara não saber onde está, mesma situação em que possivelmente se encontra o espectador diante da película. Por meio da descrição do ambiente, realizada pelo narrador, e a panorâmica desenvolvida de forma lenta, o lugar presente na tela revelase, paulatinamente; assim, o espectador entra em contato com uma floresta, plena de pinheiros. O movimento da câmera, neste plano sequência, passa a assumir um papel fundamental na constituição da significação fílmica, construindo um tipo de montagem que Marcel Martin denominou de função encantatória dos movimentos da câmera (apud, BETTON, 1983, p.37). De acordo com o crítico, essa escolha corresponde, no plano sensorial (sensual), aos efeitos da montagem rápida no plano intelectual (cerebral) (Idem, Ibidem, p.37). Esse tipo específico de montagem também contribui para a mudança de espaço em um mesmo plano sequência (00:00:37 a 00:02:53). O narrador inicia o filme afirmando estar em uma floresta. Conforme a câmera se movimenta, revela-se uma silhueta no lado direito da tela. A panorâmica realizada pela câmera continua, gerando, sem nenhuma movimentação desse corpo, uma mudança de espaço. No final dessa sequência, a silhueta está localizada no lado esquerdo da tela, momento em que o narrador afirma estar em um litoral. Após uma transição seca e um enquadramento em plano médio em troncos de árvore, há uma nova transição que traz para o quadro a silhueta diante do mar. No final dessa nova sequência, o narrador diz avistar uma ilha e, sem corte de película, transportase para ela. A transição é realizada por meio da sobreposição de imagens. Vale lembrar que o movimento lento da panorâmica parece materializar o espaço efêmero a que a voz off faz referência. O narrador, voz que conduzirá o espectador no trajeto reflexivo proposto, afirma, como dito anteriormente, ter a sensação de estar em um sonho. De fato, a realidade onírica é a construção imagética que mais se aproxima da proposta estética delineada pelo diretor.
48 Absorção: o sonho como escolha estética
A aparente sensação de instabilidade, gerada por recursos acoplados à câmera, como lentes e filtros especiais, que interferem na nitidez da imagem, e a falta de referência ao tempo, que se apresenta já no início do filme, quando o narrador tenta compreender em que lugar está, nos remetem ao mundo do sonho. A falta de informações claras sobre o espaço físico e a temporalidade são características que estão presentes na organização onírica. Cabe lembrar que a elaboração do sonho se instaura a partir de uma realidade advinda de cada sujeito para responder a uma demanda inconsciente que busca representação para ter acesso à consciência. A fim de chegar à consciência, o desejo reprimido precisa passar pelas defesas do Ego. Para tanto, tais desejos necessitam apresentar uma expressão atenuada e disfarçada (FREUD, 1996, p. 27), apenas assim esses desejos penetrarão na consciência. Tais modificações, por vezes, tornam os sonhos ininteligíveis ou, até mesmo, incompreensíveis enquanto representação de uma realidade. De um modo geral, os sonhos são formados a partir de resíduos diurnos que se associam a elementos inconscientes. Sobre esse assunto, Freud faz a seguinte pontuação: Vê-se que o sonho é uma seleção resumida feita a partir das associações, uma seleção feita, é verdade, consoante regras que ainda não temos compreendido: os elementos do sonho são como representantes escolhidos por eleição dentre uma massa de pessoas. Não pode haver dúvida de que, por meio de nossa técnica, apreendemos algo do qual o sonho é um substituto e no qual se situa o valor psíquico do sonho [...] (1996, p. 21).
Como o sonho é realizado por meio de associações, na elaboração onírica, há dois processos mentais envolvidos; ambos são imprescindíveis para a realização do sonho: condensação e deslocamento. Assim aqueles elementos que podem permitir que qualquer ponto de contato seja detectado entre eles, são condensados em novas unidades. [...]; é como se atuasse uma força que sujeitasse o material à compressão e concentração (FREUD, 1996, p. 29), ou seja, a condensação se estabelece por meio de uma representação em eixo associativo. Já o deslocamento está atrelado a uma questão de importância. Para Freud, as diversas ideias contidas nos pensamentos oníricos, na realidade, não possuem todas valor igual; são [...] julgadas importantes e merecedoras de interesse em maior ou menor grau (Idem,Ibidem, p.29); assim o deslocamento ou mudança de acento recairá sobre uma representação específica. O psicanalista ainda destaca que a experiência clínica comprovou que a relevância de uma representação passa de elementos importantes para elementos indiferentes (Idem, op. cit., p. 29). Esse procedimento de transformação semântica presente no sonho aproxima-se da estrutura da junção de elementos que criam a metáfora e a metonímia. Na linguagem cinematográfica, tais tropos se revelam por meio de recursos técnicos específicos do cinema, sobretudo por meio da montagem. Não por acaso, o estudioso da semiótica russa, V. V. Ivánov (1929-), analisa essas figuras na filmografia de Eisenstein. De acordo com Ivánov, ao citar o estudioso polonês J. Kurylowicz (1895-1978), a metáfora, no cinema, seria a [...] mudança de signos diferentes do ponto de vista semântico em contextos sintáticos iguais (IVÁNOV, 2009, p. 205), ou seja, dois planos compostos por elementos diferentes são colocados em paralelo, em uma mesma sequência, fato que permite o espectador criar um significado para a representação oferecida na tela.
49 Podemos observar esse tipo de construção em uma pequena sequência (0:04:30 a 0:05:00) já no início do filme. Na decupagem abaixo, são apresentadas três etapas. No primeiro momento, surge a imagem de uma estátua que remete o espectador às representações de Buda. A imagem feita de pedra é apenas apresentada em um enquadramento fixo acompanhada por uma sobreposição de sons em que se destaca o rangido da luminária apresentada anteriormente. No plano seguinte à imagem com a estátua, surge uma casa acompanhada da seguinte declaração do narrador: As casas parecem ter sido petrificadas . As duas imagens são ligadas por uma característica em comum aos dois planos: a materialidade da pedra. A rigidez da pedra pode sugerir falta de vida. No entanto, é nesse espaço aparentemente apático e sem pulsões que o narrador buscará respostas para questões tão caras a humanidade.
(9) Também denominado de primeiro plano. A designação de “grande plano” realizada por Eisenstein tem origem na aparente aproximação entre a câmera e o objeto filmado.
acima
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:04:35 a 00:04:58) ao lado
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:07:57 a 00:25:42)
Já a metonímia, para Ivánov, está atrelada à ideia de grande plano ou close (9) na teoria eisensteiniana, já que uma parte passa a representar um todo. Ainda para Kurylowicz, a metonímia corresponde à mudança do lugar do acento tônico em um dos elementos da estrutura dada (IVÁNOV, 2009, p. 205), isto é, ao enquadrar em primeiro plano os objetos, o cineasta atribui a estes elementos específicos o valor de signo. É o que ocorre com os primeiros planos abundantes presentes na película de Sokúrov.
50 São destacadas partes do corpo da personagem tais como os pés, o contorno corporal, a voz e as mãos. Segundo Ingmar Bergman, o primeiro plano composto com objetividade, conduzido e representado com perfeição, é o meio mais poderoso de que o diretor dispõe para influenciar seu público [...] (BETTON, 1983, p. 32). Uma das maestrias de Sokúrov, na escolha do registro enfatizado de elementos, é permitir que o espectador, por meio da câmera subjetiva, participe diretamente do trajeto realizado na ilha pelo narrador, fato que gera uma situação quase descritiva em que são apresentadas as revelações. Dentre esses primeiros planos que denominaremos de imagens metonímicas, a mão parece ganhar significação especial; situação que parece ser paradoxal, uma vez que as imagens, recuperando o conceito proposto por Eisenstein, dão conta de um conceito abstrato que se esvai no tempo e que, em Elegia Oriental, se esgarça na filmagem e no tom melódico da fala do narrador. Essa imagem parece se diluir diante dos olhos de quem a contempla, porém é esse tempo e espaço fugidio que a mão busca materializar. Sob esse prisma, estamos no campo da coordenação de um discurso, seja onírico ou fílmico. Em Elegia Oriental, a imagem, tal como proposta por Eisenstein, é diretamente influenciada por diferentes sugestões imagéticas que o diretor lança sobre o espectador a fim de criar novos vínculos de significação assim como ocorre no processo de estruturação da metáfora, também entendendo esta figura de estilo, na linguagem cinematográfica, como um recurso que induz a uma nova forma de pensamento. Sobre a importância da metáfora como força estilística, delineia Ortega y Gasset: Todas as outras potências nos mantêm inscritos dentro do real, do que já é. O mais que podemos fazer é somar ou subtrair umas coisas de outras. Só a metáfora nos facilita a evasão e cria entre as coisas reais recifes imaginários, florescimento de ilhas sutis (2005, p. 57).
A metonímia, neste longa-metragem, está plasmada tanto no conjunto do filme quanto nas construções isoladas das sequências conforme mostramos acima. As escolhas por contiguidade quebram as ligações imediatas que o espectador poderia estabelecer e favorece a polissemia da imagem, uma vez que um objeto ou conceito é lançado para um campo semântico que não é o seu originalmente, como ocorre nas transposições de uma cena a outra em que um elemento que comporá o plano posterior é sobreposto no atual. Sobre esse tipo de montagem, Eisenstein pontua:
51
Esta transformação de umas imagens em outras, através da similitude de seu contorno, [...], de sua cor, iluminação, etc... condiciona a apreensão das sensações visuais, criando, com isto (ali onde se deve), a passagem orgânica de uns elementos expressivos a outros, embora uns e outros sejam desiguais por seu conteúdo (1982, p. 219).
Exemplo desse procedimento ocorre na sequência abaixo em que o rosto de um homem do plano posterior é inserido no meio de um plano estático em que há um jardim repleto de flores amarelecidas. O rosto surge da aproximação da cor das flores com o tom do rosto que emerge como um foco de luz. Para a construção das sobreposições, foi, possivelmente, utilizada a aproximação entre planos partindo de dois elementos básicos: cor e iluminação. A iluminação revela elementos do plano como as formas e as cores, tendo, assim, um papel fundamental não apenas nessa sequência, mas em outros momentos da obra. Já no início do filme, o narrador nos apresenta, diante de um plano geral, uma única janela em que há luz, a qual se destaca dentre às demais casas organizadas em um único plano praticamente monocromático instaurando uma relação conceitual metonímica entre aquela janela e as demais casas da vila. Este recurso, durante o filme, é direcionado a pontos específicos das cenas, criando uma iluminação de efeito. Os efeitos da iluminação, tais como a luz que incide sobre determinados objetos ou pessoas, auxiliam na construção de percepções estéticas durante o filme e contribuem para a acentuação do caráter metonímico. A cor, elemento que se une às implicações da iluminação, é utilizada como em uma pintura em que seu realizador busca as combinações perfeitas. Ela não é apenas um mero acaso das possibilidades técnicas, mas sim um novo meio de criar uma solução estética puramente cinematográfica. Para Eisenstein, de fato, a cor seria plenamente e satisfatoriamente utilizada no cinema quando os cineastas percebessem que o movimento da cor deixando de ser simples modulação de uma tinta para outra, reveste um sentido de 'imagem' e tem como finalidade dar nuança à emoção (EISEINSTEIN, 1969, p. 148). Sokúrov explora essa visão mantendo, em Elegia Oriental, as nuances de tons acinzentados. No início da obra, as matizes pouco saturadas contribuem para a sensação de uma suspensão do tempo e do espaço que vai se alterando ao longo das sequências até o momento em que o narrador começa a reconhecer espaços como a sua casa e um parque. Essa transição é marcada pela paleta de cores que se torna mais amarelada conforme se acompanha na sequência acima (00:20:38 a 00:20:55). Em Elegia Oriental, a narrativa traz uma dicotomia entre ocultar e revelar. Durante o longa-metragem, as nuvens encobrem parte do que poderia ser exposto livremente na tela, enquanto, paralelamente, a câmera se aproxima dos objetos a fim de conduzir o espectador a olhar os detalhes selecionados. Em meio às incertezas, o espectador é levado a construir uma imagem plena, ou seja, uma imagem do todo capaz de gerar algum nível de compreensão, não definitivo, como é sentido, ao final do longa-metragem, em que a sensação de busca ainda está e permanece presente. Sobre essa dicotomia entre o que se vê na tela e as reverberações subjacentes aos elementos cinematográficos, Sokúrov afirma: É preciso estar muito atento aos detalhes do cotidiano e perceber que eles são muito mais intensos e importantes do que nossa capacidade de assimilação. Há sempre mais detalhes do que o observador é capaz de assimilar (Apud. MACHADO, 2002, p. 119).
ao lado
Elegia Oriental. (SOKĂšROV, 1996, 00:20:15 a 00:23:28)
53
(10) Em algumas técnicas de ensino da arte de desenhar, o objeto pode ser observado a p a r t i r
d e
d o i s
posicionamentos: o espaço
Outro efeito atingido com o uso direcionado da iluminação e baixa saturação das cores é o reforço da imagem metonímica por meio do escurecimento do contorno, como ocorre com as imagens do narrador em que fica impressa uma tentativa de não representação ao optar pelo destaque apenas do espaço negativo (10).
negativo e o espaço positivo. Neste, a atenção recai sobre o espaço que o objeto ocupa; naquele, são valorizados os elementos que compõem o entorno do objeto alvo da observação.
Em vários momentos, o narrador é introduzido na cena apenas por meio da sombra, criando um conflito entre o seu contorno e a luz que incide sobre os demais objetos da cena, além de lançar a atenção do espectador para as sensações visuais exploradas no plano, fugindo de uma simples representação. As resoluções estéticas geradas por meio da exploração de texturas no trabalho de produção e pósprodução também funcionam como uma espécie de metáfora que se sobrepõe às relações de contiguidade a fim de permitir ao espectador dar um caráter mais abrangente às imagens sem limitá-las a um espaço ou tempo, ampliando sua carga polissêmica. Alastramento
Ao retomar as ideias de Jakobson sobre a metáfora e a metonímia, evocamos a afirmação de que a linguagem, verbal ou não, se estabelece na polaridade dessas duas figuras. Na teoria de Eisenstein, segundo o linguista, tais procedimentos foram experimentados por um novo tipo metafórico de montagem com suas 'fusões superpostas' (JAKOBSON, 2010, p. 73). Como resultado, teríamos uma imagem que se constituiria a partir da leitura e compreensão do espectador. A abertura dada pela dualidade expressa pelo cineasta, como no sonho em que sua interpretação está aberta às interrelações, apresenta a estruturação estética propícia para a trajetória sensorial indicada por Sokúrov. Diante de tais escolhas estéticas, resta-nos a aproximação com o final do percurso realizado pelo cineasta e, consequentemente, por seus espectadores, além da imersão na imagem final evocada. O longa-metragem termina, recuperando na memória do espectador, uma sequência similar ao fechamento realizado no filme de Andriêi Tarkóvski, Solaris (1972): a câmera, em um enquadramento fixo, revela, no canto superior direito da tela, uma ilha solitária, no meio do mar, que some da mesma maneira como surgiu.
54 A solidão da ilha, em meio às imagens efêmeras geradas pela nebulosidade do início do filme, leva-nos a sugestão do modelo que representa o contato do homem consigo mesmo, em um processo em que o sujeito está desprovido de qualquer racionalização ou censura do estado de vigília. Talvez, por esta razão, o narrador encontre um espaço de certeza diante das incertezas que emanavam de suas reflexões e daí advenha sua conclusão, como uma espécie de epílogo: Parece que sou bem-vindo aqui... e essa ilha é o suficiente para todos os meus sonhos. Eu ficarei .
ao lado
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:12:12 a 00:13:10)
55 Bibliografia BETTON, Gerard. Estética do cinema. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Coleção Opus-86. EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ___________________. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. ___________________. Cinematismo. Trad. Luis Sepúlveda. Buenos Aires: Domingo Cortizo Editor, 1982. Original em russo. FREUD, Sigmund. Revisão da teoria dos sonhos. In. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). Rio de Janeiro. Imago, 1996. V. XXII. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). p. 17-38. IVÁNOV, V. V. Dos diários de Serguei Eisenstein e outros ensaios. Trad. Aurora F. Bernardini e Noé Silva. São Paulo: Edusp, 2009. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2010. _________________. Decadência do cinema?. In. Lingüística. Poética. Cinema. Trad.Francisco Achcar. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Série Debates). p. 153-161. MACHADO, Alvaro (org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2003. ORTEGA & GASSET, José. A desumanização da arte. 5. ed. Trad. Ricardo Araújo. São Paulo: Cortez, 2005.
esquerda
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:16:17) direita
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:30:08 a 00:30:00)
56
58
Entre gravar e revelar: vestígios de uma memória em Elegia Oriental Fabiola Notari Aleksandr Nikoláievitch Sokúrov (1951 - ), em seu filme Elegia Oriental (1996), leva o espectador a uma viagem em direção ao Oriente, ao Japão, por meio de seus habitantes e de sua paisagem, que, envolta em névoa, simulam um tempo e espaço outro, quase imateriais. Através de suas lentes e de um trabalho exaustivo de pós-produção, o cineasta nos aproxima de uma cultura cada vez mais inacessível e esquecida, principalmente, para os Ocidentais, que nunca de fato a acessaram. No filme, a cultura japonesa é resgatada de diversas maneiras, dentre elas, pelos relatos de alguns de seus habitantes que permanecem na ilha mostrada nos primeiros minutos. Neste longa metragem, as memórias são exaltadas e moldadas como matéria-prima para a construção das imagens, aproximando o espectador do Japão a essas memórias perdidas no tempo. Nessa construção espaço-temporal, analisa-se o filme Elegia Oriental a partir de dois conceitos: fragmento e memória, que surgiram da provocação lançada a partir da citação de Jeanne Marie Gagnebin (1): (1) Jeanne Marie Gagnebin (1949 - ) é professora de
(...) a memória dos homens se constrói entre esses dois pólos:
filosofia na PUC/SP e de teoria
o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da
literária na Unicamp. Autora, entre outros, de História e Narração em Walter Benjamin (Ed. Perspectiva, 1994) e de Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História (Ed. Imago, 1997).
conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas que desenha o vulto da ausência. Nem a presença viva nem a fixação pela escritura conseguem assegurar a imortalidade; ambas, aliás, nem mesmo garantem a certeza da duração, apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência, e do esforço de dizê-la. (GAGNEBIN, 2009, p.11)
59 Nesse trecho, a pesquisadora afirma o difícil e complexo processo ao qual a memória do homem está condenada, pois nem com a transmissão oral e nem com a escrita é possível mantê-la em sua plenitude. Mesmo estando condenada ao esquecimento, a permanência da memória torna-se uma inquietação do homem, que busca de diferentes maneiras guardar, catalogar, organizar e resgatar essas diversas memórias, como se só assim fosse possível manter sua existência. Dentre tantas outras linguagens que o homem criou e desenvolveu para lidar com essa questão e outras intrínsecas a ela, o cinema surge como possibilidade de mesclar a transmissão oral viva com a inscrição, a gravação de uma mensagem por meio de códigos, no caso, imagens num determinado tempo e espaço que tocam o presente no momento em que são assistidas, ao serem revisitadas. Iuri Lotman (1922-1993), em seu livro Estética e Semiótica do Cinema (1978), lança a seguinte pergunta O cinema é um sistema de comunicação? . Ao que ele mesmo responde: (...) parece [que] ninguém põe isso em dúvida. Os cineastas, os atores, os argumentistas [roteiristas], todos aqueles que criam um filme querem dizer-nos algo com a sua obra. Ela é como uma carta, uma mensagem dirigida aos espectadores. Mas para compreender a mensagem é necessário conhecer a sua linguagem. (LOTMAN, 1978, p.13).
Lotman estuda o cinema a partir da interpenetração dos signos verbais e figurativos, isto é, o cinema permite a adoção de uma narrativa às imagens, lidas como um texto. Essa forma de narrativa por imagens está presente na cultura humana desde as pinturas rupestres, por exemplo, como um esforço de síntese de conhecimento, cada qual com sua convenção histórica e valor artístico. Ao se analisar o cinema como uma linguagem artística, Lotman afirma que o cinema não se restringe em reproduzir o mundo como um espelho, mas transforma as imagens do mundo em signos, pois (...) [o cinema] é uma cadeia de descobertas que visa expulsar o automatismo de todos os aspectos susceptíveis de um tratamento artístico (LOTMAN, 1978, p.34). Nessa forma de criação, o cineasta não se limita à continuidade e sequencialidade do espaço e tempo da vida. Libertas das amarras da descrição linear, as imagens cinematográficas fluem com regras próprias, às quais o espectador é introduzido durante o filme. Ao relacionar a linguagem cinematográfica teorizada por Lotman com a problematização apresentada por Gagnebin sobre a permanência ou não da memória, busca-se demonstrar como o cineasta elabora a construção dos planos a fim de criar um possível lugar de permanência da memória. Para isso, observa-se que ambas as estruturas possuem uma característica em comum, o fragmento.
60
(2) Então, desceu o Senhor para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. BIBLIA. Português. A Bíblia sagrada. 2. ed. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. (3) “À la recherche du temp perdu” publicado em sete partes entre 1913 e 1927.
Segundo Walter Benjamin (1892-1940), o fragmento consegue guardar um ponto de vista único sobre o todo. Tal afirmação pode ser observada no seu texto A tarefa do tradutor (1923) em que afirma: Do mesmo modo que os cacos tornamse reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, assim também original e traduções tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior (BRANCO, 2008, p.61). Nessa metáfora, Benjamin demonstra a importância de cada fragmento, no caso, de cada tradução, como sendo únicos em si, porém, complementares a um entendimento amplo e maior, perdido, segundo seu argumento, na Torre de Babel (2). Junto ao conceito de fragmento, que foi tomado como base para análise do filme Elegia Oriental, é importante esclarecer os limites do conceito de memória. A memória, segundo Benjamin, não é unidirecional, não é apenas um movimento que surge no presente e se volta para o passado, como é o caso da rememoração; mas é bidirecional, em que no presente tanto se visa o passado quanto o futuro. Este tempo de intersecções é o agora [Jeztzeit], no qual esses dois tempos, passado e futuro, se tocam. O agora de Benjamin é a convergência de passado e futuro, como é possível observar no livro Em busca do tempo perdido (3) de Marcel Proust (1871-1922). O passado faz-se presente como imagem transfigurando o próprio presente em agora, mas, de modo ainda mais radical, sustenta-se que tudo que verdadeiramente resta do passado é essa potência de transfiguração do futuro. Assim, a tarefa do historiador, para Benjamin, é redimir os acontecimentos, percebendo no passado os indícios de uma potência de transfiguração; e isso só é possível no agora. Essa tarefa é urgente porque os indícios estão sempre prestes a desaparecer. A busca pela permanência é sempre dada no presente, no qual há a retomada de um passado junto com uma projeção de um futuro. No entanto, para que isso ocorra, são necessários estímulos, indícios que façam essa intersecção acontecer. Segundo Jacques Aumont (1942), a imagem, em ambos os casos, é esse indício, com uma finalidade determinada, estabelecer relações com o mundo, entre espectador e
61 realidade. No caso da imagem cinematográfica, a montagem, no sentido eiseinsteniano, é parte essencial para sua construção. Dessa maneira, apresenta-se no próximo capítulo a construção de cada uma das duas sequências que são analisadas. As sequências
Os conceitos de memória e de fragmento são articulados na análise de dois trechos nos quais aparecem pessoas relatando episódios de suas vidas. Os dois personagens japoneses descrevem e comentam momentos marcantes a partir de colocações e provocações que o narrador, sempre em voz off, faz.
(4) Essa dúvida é gerada pela ausência
de
nitidez
da
imagem, pois, além da falta de detalhes, a lente da câmera causa uma leve distorção, tornando-a mais esférica.
A primeira sequência a ser analisada é a de uma mulher (00:14:20-00:18:01). A câmera encontra-se fixa em um canto, dentro de um cômodo escuro, no qual só é possível ver uma janela, ou, pelo menos, algo que lembre uma abertura (4). Simultaneamente, ouvem-se sons externos, o vento soprando junto com vozes incompreensíveis que parecem cantar e eis que surge uma voz masculina, que denominaremos de narrador, dizendo em russo: Eu sinto você e eu estou escutando . Em seguida, surge uma voz off feminina que fala em japonês, e, a seguir, um vulto cinza embaçado, próximo ao centro do quadro, enquanto o espaço interno escurece. Durante toda a sequência, observa-se que a fala feminina é seguida pela voz off do narrador, que a traduz do japonês para o russo. Com uma fala calma e pausada, a japonesa, logo depois, relata algo que não necessariamente seja tão tranquilo quanto sua voz faz transparecer, enquanto que o vulto inicial torna-se mais nítido, mostrando que é um rosto, o rosto da japonesa. Ela descreve um dia qualquer de sua infância, no qual pessoas de sua comunidade estavam limpando uma rua. Por causa da neblina, não conseguiam se ver. Conforme a neblina se dissipava, as pessoas começavam a se reconhecer.
abaixo
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:14:27 a 00:18:01)
A câmera mantém-se fixa o tempo todo, como se prestasse atenção ao que aquela voz relata, e, de maneira sutil, o que era um rosto embaçado, torna-se um pouco mais
62 nítido. A granulação dos negros e cinzas cria uma atmosfera de suspensão e de imaterialidade, como se a qualquer momento, este rosto pudesse desaparecer, como poeira ao vento. Dando sequência ao relato, a mulher diz que era uma criança que sofria de paralisia e de solidão . Sua fala, mesmo sendo fragmentada, transmite a tensão pela qual passou. Ao final da sequência, o rosto funde-se à imagem de uma porta ou janela. Ele é sobreposto por uma paisagem externa, em que é possível ver edificações ao pé de uma montanha; novamente, com a sobreposição, a câmera aproxima-se de uma janela que rapidamente se sobrepõe à janela de dentro do cômodo. Depois desse deslocamento espacial, atravessado em todo momento por uma neblina constante e por um som de chuva com alguns trovões, o rosto da japonesa emerge do escuro do espaço interno. Ela começa a argumentar que nunca teve medo da solidão, e que é uma pessoa feliz, pois sempre buscou ser autônoma em suas atividades, no entanto isso lhe trouxe um afastamento do mundo, tornando-se mais solitária ainda. Quando diz isso, seu rosto é sobreposto por uma mão que acaricia o que, possivelmente, seja um tatame. O som volta a ser o mesmo do início da sequência, o de uma ventania que assopra e assobia, mas agora misturada com o som do mar. Enquanto ainda a câmera mostra a mão no tatame, o narrador faz uma pergunta à japonesa: O que se pode perguntar para Deus? Quando inicia a voz, em resposta à pergunta, a câmera volta a filmar o rosto embaçado que surge do fundo negro, porém, agora, o rosto está mais centralizado no enquadramento do plano e também mais ampliado, ainda indefinido e granulado como descrito anteriormente. Depois de uma pausa, responde que pediria bom senso e um julgamento justo. Em seguida, o narrador faz novamente outra pergunta: A vida tem te desgastado? Quando a câmera volta a filmar o rosto da japonesa, há uma melhor percepção das feições de seu rosto. Suspirando, responde que sim. Num corte seco, a câmera retorna ao vulto por trás do anteparo. Simultaneamente, inicia um som, como uma voz a cantarolar, e o personagem por trás do anteparo começa a se movimentar, a passar a mão na cabeça e no rosto. Novamente, mais um corte brusco, a câmera mostra a japonesa fazendo o mesmo gesto: com as mãos no rosto, faz pequenos movimentos na região do olho. O tom de cinza muda, tornando-se mais acastanhado, e assim a voz off do narrador diz: Que sonho estranho! Onde eu nasci? Antes de responder, há um corte seco no plano que mostra outra sequência que tem os mesmos tons avermelhados e amarelados que se iniciou no plano da japonesa com as mãos nos olhos.
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65 Como no trecho descrito acima, o segundo relato (00:20:15-00:27:42) mantém as mesmas características, a voz off do narrador se dirige a outra pessoa, dessa vez um japonês. Diferente da sequência anterior, esta inicia mostrando uma área externa o que aparenta ser a entrada de uma casa. Essa imagem é acompanhada pelo som de um cantarolar e de uma ventania, como na sequência anterior. Logo após, surge uma voz off masculina que se expressa em japonês, cujo conteúdo é traduzido pelo narrador. Ele relata um naufrágio que aconteceu certa noite. Na manhã seguinte, após o acidente, os pescadores, com suas redes, recolhiam os corpos dos marinheiros mortos e estes eram colocados enfileirados na praia cobertos com esteiras. Enquanto o japonês relata o início dessa história, a imagem do ambiente externo vai escurecendo, dando lugar a uma imagem indefinida, que, ao se completar, surge como uma pequena cabeça sem corpo no meio do plano. Seus tons são diferentes das tonalidades da sequência da japonesa; eles são mais quentes, esmaecidos entre o granulado e o negro do plano. A imagem do rosto do japonês vibra sutilmente, como uma chama de fogo, enquanto relata que, no vilarejo onde houve o naufrágio, havia uma mulher louca que, com caretas, começou a dançar e gritar entre os corpos. Mesmo com essa atitude estranha, ninguém a interrompeu. Enquanto continua o relato, essa imagem escurece gradativamente e fica cada vez menor. A presença do japonês é reduzida praticamente ao som, pois ela mal consegue ser vista. Dessa maneira, tem-se a sensação de que a qualquer momento ela irá desaparecer por completo, como uma chama de fogo que perde intensidade. Esse homem revela que ficara curioso e espantado com a beleza de um dos mortos e de como seus negros cabelos se movimentavam com as ondas do mar. Aproximou-se do corpo do jovem marinheiro que falou a ele: Tudo está bem, tudo dará certo . Finalizando este relato, o japonês afirma que este jovem marinheiro morto, prematuramente, encontrase entre as ondas repetindo: Tudo está bem, tudo está bem .
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Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:20:15 a 00:27:45)
66 Ao traduzir essas palavras, o narrador, prolonga-se na sua fala, deixando-a mais lenta e arrastada. Simultaneamente, o rosto do japonês, que já mal se consegue ver, fundese à chama de uma lamparina. No entanto, a voz do japonês continua, como também o cantarolar e a ventania. A seguir, inverte-se a imagem: a lamparina desaparece lentamente e o rosto do japonês, agora, aparece um pouco mais ampliado. Nesse momento, o narrador pergunta ao japonês sobre seu pai. Em todo momento, a câmera permanece fixa. Ao falar sobre seu pai, comenta uma característica que sempre o intrigou, ele chamava sua esposa de mãe. Ainda fixa, a câmera permanece atenta e ouvinte quando há um corte seco, em que se mostra um inseto em close-up que, escondido entre partes de uma casa, não é notado pelos habitantes daquele lugar, que podem ser percebidos pelos estalos de madeira, como se estivessem andando. Após essa sequência, o narrador faz uma pergunta: Você sabe o quanto que os homens mudam depois da morte? , a que responde: Eles se tornam mais ternos, eu aprendi isso depois que falei com pessoas como eu, que não estão mais nesse mundo . Mais um corte seco, para mostrar, em seguida, a imagem de uma lamparina próxima a uma mão que acaricia um tatame, aparentemente, parece ser a mesma mão da sequência da japonesa. Há um silêncio na fala, mas, mesmo assim, conseguimos ouvir uma respiração, um suspiro. Esse silêncio é rompido pela pergunta do narrador: Por que tem tanta tristeza na poesia? Talvez você saiba . O japonês sugere com o corpo o entendimento da pergunta, mas nada responde. O narrador, chamando a atenção do japonês, diz: Volte para nós, precisamos de pessoas como você! . Em seguida, o japonês responde: Está bem, já chega, já é o suficiente. Eu não quero mais. Estou cansado . E continua: Mas, se eu tiver que viver a vida na terra novamente, eu gostaria de viver como uma bela árvore com frutos vermelhos . Quando o japonês agradece com o movimento característico de se curvar para frente, o quadro é preenchido pelo som off de gaivotas. Após um corte seco, pássaros surgem voando. Mais um corte seco, que substitui a imagem dos pássaros pela imagem de uma paisagem envolta de uma névoa, enquanto o som dos pássaros permanece.
67 Reflexões
Em ambos os trechos selecionados para análise (00:14:20-00:18:01 e 00:20:1500:27:42), Aleksandr Sokúrov articula as imagens como peças, dessa maneira, a cada nova combinação, a cada nova montagem, comunica-se uma determinada mensagem ao espectador. Conforme sua declaração em entrevista cedida a Jeremi Szaniawski: (...) a natureza intelectual do cinema é baseada na literatura e literatura é montagem, montagem de palavras. Na palavra em si sempre há montagem. Ao unir duas palavras, eu reforço seus sentidos e a associação incorreta de duas palavras pode torná-las incompreensíveis, torná-las algo universalmente comum ou desconhecido. O mesmo acontece com a montagem (VASCONCELLOS, 2011, p.13).
Observando a maneira como cada plano é construído e como cada imagem é articulada, a montagem torna-se uma peça fundamental neste filme, como recurso de construção de um lugar de permanência da memória. Nessa articulação, tanto o conceito do filme quanto os instrumentos utilizados na sua construção dialogam entre si, pois quais são as imagens possíveis de serem suscitadas quando se fala sobre memória? Quais as escolhas estéticas feitas por Sokúrov? Alguns elementos da montagem nos dão pistas de como se articulou o processo de criação das imagens no filme, entre eles, sobreposições e deformações de fragmentos. Não existe uma regra pré-determinada para a sua utilização, como o próprio Sokúrov já afirmou. Em muitos momentos, a sua intuição faz com que crie e modifique partes da cena independente de sua lógica, pois busca em seu repertório e conhecimento nas outras artes, como a pintura, soluções para a construção dessas imagens. Assim, ao estudar cada cena, também se estuda o resultado da reunião de diferentes planos que se articulam no espaço e no tempo da película. Nos dois trechos selecionados descritos anteriormente, buscou-se criar relações entre os conceitos de fragmento e de memória com a articulação dos elementos audiovisuais proposta pelo cineasta. A primeira delas é a sobreposição. Entre as fusões que mostram o fim de uma cena e início de outra, há um eclipse temporal e espacial, possibilitando assim uma junção entre fragmentos. Até então, a cena anterior e a posterior eram independentes entre si e continham seus próprios significados, logo é possível associá-las ao conceito de fragmento, como sendo uma parte completa em si, mas que faz parte de um todo maior: o plano. No momento da intersecção, ambos os planos dialogam entre si, mesmo que não haja nenhuma ligação lógica entre as imagens. Segundo Serguei Eisenstein (1898-1948), a montagem é uma ideia que nasce da colisão de planos independentes - planos até opostos um ao outro: o princípio 'dramático' (2002, p. 52). Esse princípio dramático , citado como metodologia da forma, surge, quando, por exemplo, a japonesa funde-se ao fundo negro e uma mão surge acariciando a superfície de um tatame. Algo parecido acontece no segundo trecho do filme no qual há uma lamparina que funde-se ao rosto do japonês. Em nenhuma das duas sequências, as imagens sobrepostas dialogam entre si, nem no nível visual, nem no sonoro, logo, percebe-se que não há subordinação, mas complementação e soma. Dessa colisão de imagens, algo surge, uma terceira imagem que se amarra ao
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Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:07:03)
restante das imagens, criando um sentido. As escolhas por recursos da montagem fade in, fade out e cortes secos trazem ao filme um movimento, um ritmo que está diretamente ligado à montagem de cada plano, que, justapostos e sobrepostos, levam o espectador a ser participante do filme, a fazer a ligação entre as imagens, mesmo que para isso seja necessário desconstruir uma narrativa para construir um sentido. No texto Sincronização dos sentidos, Eisenstein sintetiza esse pensamento: O circuito foi completado. Pela mesma fórmula que une o significado de todo o fragmento (seja todo o filme ou uma única seqüência) e a seleção meticulosa, hábil dos fragmentos, surge a imagem do tema, fiel a seu conteúdo. Através desta fusão, e através da fusão da lógica do tema do filme com a forma superior na qual distribui este tema, aparece a total revelação do significado do filme (EISENSTEIN, 2002b, p.61).
Por todo o filme, o som alterna-se entre falas, gemidos, sussurros, músicas e ruídos. Esses atravessamentos podem estimular e provocar no espectador sensações, experiências sinestésicas que ampliam o alcance da imagem através da montagem. Ao mesmo tempo em que é fragmento, o som, como as outras imagens, é um elemento para estabelecer a continuidade entre um plano e outro, pois ora ele é anunciador de imagens posteriores, ora é elemento de resgate de imagens anteriores. Na montagem, os planos são articulados a partir do direcionamento do cineasta e daquilo que busca comunicar ao outro, ao espectador. Entre a fidelidade e a liberdade, o cineasta cria imagens, comunica o incomunicável como entrelinhas de um texto. Segundo Lotman: Nem toda comunicação tem necessariamente um sentido, nem encerra necessariamente determinada informação. (...) A informação consiste no desaparecimento de uma determinada incerteza, na supressão da ignorância e na substituição pelo conhecimento. Onde não há ignorância também não pode haver informação (LOTMAN, 1978, p.29).
Como dito no início deste texto, Sokúrov, no filme Elegia Oriental, convida o espectador a uma viagem ao Japão, no entanto não como um país asiático reconhecido por sua economia, história, política, cultura ou geografia, mas, sendo o país o lugar das pequenas histórias, dos detalhes e das efemeridades. A partir desse micro universo intrigante e quase inacessível, o cineasta mostra outro tempo e espaço imateriais, feitos de memórias, suas e de outros.
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(5) A granulação do papel fotográfico é resultado do composto
químico
fotossensível do qual é feito, o haleto de prata que possui forma de cristais.
Além da sobreposição, o diretor trabalha com a deformação. Podendo ser observada em todo o filme; a granulação é um desses recursos. Característica predominante das fotografias P/B (5), essa visualidade é criada por Sokúrov por meio de filtros, utilizados nas câmeras, como também por um trabalho exaustivo de pós-produção. As imagens surgem a partir desses grãos estando imersas a eles, como se a todo o momento pudessem ser apagadas, com o sopro de vento. Relacionando essa escolha estética ao conceito de memória, percebe-se uma possível relação plástica, pois, frequentemente, as imagens surgem e desaparecem. O movimento de ir e vir por entre essas temporalidades aponta, no filme, uma impossibilidade, trazendo à tona diversos presentes por meio da projeção desse filme que opera por anacronismo, uma vez que concebe a experiência do tempo como um espaço repleto de agoras. Nesse espaço cinematográfico, há a montagem reivindicada como construção da memória, processo por intermédio do qual se produz o conhecimento. Nesse sentido, Benjamin afirma que o historiador (materialista) (...) deve visar uma montagem: vale dizer: de uma collage de escombros e fragmentos que só existe na sua configuração presente de destroço (BENJAMIN apud SELLIGMANN-SILVA, 2003, p.70). Nesse ponto, associa-se a figura do cineasta a deste historiador, pois o passado não é mais visto como um passado eterno , mas como fato em movimento, fato de memória, que evoca os acontecimentos e os constrói no saber presente do cineasta e novamente quando o filme é assistido. Sendo assim, o cineasta é um trapaceiro da memória das coisas, seu trabalho se fundamenta na interpretação e reapresentação de rastros, assim tudo é anacrônico e simultâneo, as memórias não fazem parte do passado desaparecido, são matéria que sobrevive. Nisso há uma tensão dialética, pois, enquanto busca-se a necessidade do lembrar-se, depara-se com a sua impossibilidade. As imagens são construídas a partir disso, estão sempre no limite entre vistas e reconhecidas, entre presenças e ausências. A partir do entrecruzamento de manifestações passadas e presentes, torna-se cada vez mais difícil determinar as marcas que caracterizam presente, passado e aspirações ao futuro, logo, à medida que o filme é acessado, ele se transforma. Esse movimento permite a reconstituição de vários presentes que se fundem para compor outro presente, que resiste como forma. Nesse sentido, o cineasta, ao trabalhar com planos, com fragmentos, transforma essas imagens em memórias ao mesmo tempo em que essas memórias se tornam imagens, tendo consciência de sua transformação no tempo e no espaço.
70 Junto com a granulação, há a deformação dada por uma lente esférica. Mais um dos recursos de Sokúrov que pode ter sido utilizado tanto na hora da filmagem quanto na edição e pós-produção do filme. Como se fossem vistos por orifícios e/ou pequenas aberturas, os dois japoneses são acessados parcialmente, não sendo possível ter detalhes de suas feições e nem reconhecer claramente o ambiente onde se encontram, apenas sabese que são ambientes internos escurecidos. Entre construção e desconstrução de sequências e temporalidades heterogêneas, Sokúrov elabora imagens que circulam em um tempo aberto, sem início ou fim, apenas o meio, o entre. Essa suspensão do tempo encarna a memória no presente. O filme se transforma em ruína, frágil e fadada à destruição; por causa disso, o tempo presente se revela importante a partir da ameaça constante do esquecimento e do desaparecimento. Por fim
Ao buscar novas formas de olhar, Sokúrov muda constantemente, desagregando constantemente sua identidade, e, ao fazer isso, armazena em sua memória impressões que se transformam em imagens. A memória manifesta-se na luta contra o movimento implacável do tempo, contra o esquecimento. Tanto na montagem quanto no enredo do filme, a memória passa a ser percebida na maneira como as imagens são construídas e pelas sensações causadas no espectador, entre a inacessibilidade e a inconstância. Sokúrov afirma: O que acontece na associação de duas imagens em frente de nossos olhos? Qual é essa explosão, essa conflagração? Eu estou disposto, em decorrência disso, e eu pretendo, em meus esforços artísticos, enquanto tiver oportunidade, fazer experiências com certos domínios da técnica, principalmente com a montagem. E, no caso da cena em questão, eu não queria um corte seco. Queria uma dissolução tênue (Apud. VASCONCELLOS, 2011, p.13).
Por meio da linguagem do cinema, Sokúrov busca confrontar a história e o presente; busca conduzir o espectador à percepção de que o presente está ameaçado, sendo sempre um esboço que se reorganiza permanentemente. Em um núcleo de tensão, o tempo permanece entre sua constituição e sua destruição, por isso o fascínio e a fixação pela memória, concebida como criação e conhecimento, e pelo contingente efêmero. Nesse sentido, busca aproximar o que está distante e distanciar o que está próximo, retornando ao passado a partir do presente que nos é próprio, ou seja, operando anacronismo. Em Elegia Oriental, Sokúrov traduz em imagens a consciência da perenidade do presente e demonstra a busca incessante pela permanência da memória, mesmo esta feita de fragmentos.
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Elegia Oriental. (SOKĂšROV, 1996, 00:31:14)
72 Bibliografia AUMONT, Jacques. A imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. Campinas: Papirus Editora, 2010. BRANCO, Lucia Castello (org.). A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2002a. __________________. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2002b. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. LOTMAN, Iuri. Estética e semiótica do cinema. Trad. Alberto Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. MACHADO, Álvaro (org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac&Naify, 2002. SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Unicamp, 2003.
74
Sobre a imagem infinita de Aleksandr Sokúrov em Elegia Oriental Juliana Rosa The unending gift Um pintor prometeu-nos um quadro. Agora, em New England, fico sabendo que ele morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos. (Só os deuses podem prometer, por serem imortais.) Pensei num lugar predeterminado que a tela não ocupará. Depois pensei: se estivesse ali, com o tempo seria apenas uma coisa a mais, uma coisa, uma das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém ligada. Existe, de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o fim. Obrigado, Jorge Larco. (1) In. Poesia, organização de poesias de Jorge Luis Borges. São Paulo: Companhia das
(Também os homens podem prometer, porque há na promessa algo imortal.) (1) Jorge Luis Borges
Letras, 2009, p. 32.
Pretende-se, neste texto, trazer uma possível concepção sobre a imagem infinita, ideia que abordo considerando o filme Elegia Oriental (1996) de Aleksandr Sokúrov (1951-), sob a luz do haicai como estrutura poética análoga a um cinema que procura um laconismo máximo para representação visual de conceitos abstratos (EISENSTEIN, 2002, p. 37). Imagem infinita, essa que Jorge Luis Borges (1899 1986), nos sugere como ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém ligada .
75 Dessa maneira, será discutida, ao longo do texto, parte da constituição da imagem cinematográfica a partir dos escritos que balizam a concepção de montagem de Serguei Eisenstein (1898 - 1948) em relação aos componentes expressivos do haicai que despertam imagens mentais e disparam discussões em relação a alguns aspectos do filme Elegia Oriental. Além de Eisenstein, chamo para diálogo o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895 - 1975), a fim de pensar sobre a pertinência de dois dos seus conceitos em relação à construção da imagem infinita. São eles inacabamento e compreendente responsivo, conceitos trazidos à discussão no decorrer do texto.
(2) Universidade Russa de Cinematografia criada em homenagem
a
S.A.
Gerasimov. O Instituto Estatal de Cinema de Moscou foi fundado
em
1919
pelo
cineasta Vladimir Gardin.
Aleksandr Nikoláievitch Sokúrov nasceu em 1951, em Podorvikha, na região de Irkutsk, Sibéria Oriental e, além de trabalhar em uma equipe de televisão, produzindo programas e filmes, cursou História na Universidade de Górki (atual Níjni Nóvgorod). Em seguida, entrou para a VGIK (2), o mais antigo instituto de cinema do mundo, que hoje é uma universidade e teve entre seus alunos nomes como os de Vsévolod Pudóvkin, Serguei Eisenstein, Serguei Bondarchuk, Serguei Paradjanov e Andriêi Tarkóvski. Este último foi um amigo de quem Sokúrov recebeu apoio quando o instituto VGIK não aceitou seu trabalho de conclusão de curso. Diante de uma vasta produção cinematográfica, em 1996, Sokúrov apresenta o primeiro filme de seu ciclo oriental, intitulado Elegia Oriental, seguido de Vida Humilde, de 1997 e dolce..., de 1999. O autor nos oferece, em seus filmes, um forte apelo ao mistério, à ancestralidade e à espiritualidade.
(3) A Mostra Didática Sokúrov Oriental
apresentou
e
colocou em debate os quatro filmes do Ciclo Oriental. Segue o endereço eletrônico para maiores informações www.sokurovoriental.wordpr ess.com.
Em 2011, foi realizado, em São Paulo, a Mostra Didática Sokúrov Oriental (3). Nela foi apresentado o filme Elegia Oriental, entre outros de seus filmes relacionados ao Japão. Nessa ocasião, apresentei o trabalho audiovisual Paisagem Vertical, que dialogou com o filme de Sokúrov e a montagem eisensteiniana. Desse processo, emerge o conceito de imagem infinita. Para iniciar a discussão, foquemos na estrutura artística do haicai e sua relação com uma sequência específica do filme Elegia Oriental. A lógica construtiva do haicai em Elegia Oriental
(4) Também transliterado como haikai e haiku.
O haicai (4) surge no Japão, em meados do séc. XIII, sendo reconhecido, principalmente, por sua concisão. A partir de sua estrutura poética sofisticada, discutirei a constituição da imagem em alguns trechos do filme Elegia Oriental. Considero a imagem poética enquanto uma forma específica de construção
76 da imagem cinematográfica demarcada por Eisenstein por meio da imagem cinematográfica demarcada por Eisenstein por meio da montagem. Tanto Sokúrov quanto Eisenstein aproximam-se do Japão de maneira a processar e devolver poeticamente suas experiências. Trazidos a este diálogo, esses cineastas nos ajudarão a discutir o haicai como um possível modus operandi cinematográfico. Eisenstein, em seu livro A forma do filme (2002), faz considerações acerca do haicai como uma estrutura poética sofisticada, sem perder de vista sua intenção maior, a saber, discutir o conceito de montagem. Essa forma de expressão de poesia tradicional japonesa possui dezessete sílabas com uma rigorosa métrica de cinco-sete-cinco e tem como tônica o laconismo. Dessa maneira, no haicai está condensado Um pouco mais do que o universo (TAKAHASHI, 2010). Diante de muitas frestas para adentrarmos o poema japonês, temos, em vista, o processo de construção de um estágio anterior ao haicai: o ideograma. Como nos diz Jô Takahashi: No haiku, o processo de construção da imagem, e do significante, provém certamente da estrutura composicional e ancestral do ideograma, fruto de uma coalizão de signos autônomos, capazes de gerar um novo conceito, uma montagem de hieróglifos , no entender de Eisenstein. Esta lógica da construção o aproxima daquilo que o mesmo Eisenstein classificava como montagem intelectual (in O princípio cinematográfico e o ideograma, 1929) no cinema, onde metáforas justapostas e encadeadas criam metonímias, que por fim produzem o sentido das coisas. O leitor ou o espectador, em suas respectivas funções no poema e no cinema, teriam como função interagir para criar uma montagem intelectual a partir das sugestões metafóricas. Ernest Fenollosa, orientalista norte-americano do início do século 20, chamaria esse processo de método ideogrâmico de compor (TAKAHASHI, 2010)
O cineasta defende, em seu famoso texto Fora de quadro (1929), que A cinematografia é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem (EISENSTEIN, 2002, p. 35). Sendo assim, a analogia ao ideograma nasce de uma necessidade de reflexão sobre o modo de construção do haicai, mas no intuito de se pesquisar a lógica de construção do cinema. Segue abaixo uma definição de Eisenstein sobre o princípio da montagem: ... a combinação (...) de dois hieróglifos da série mais simples deve ser considerada não como sua soma, mas como seu produto, isto é, como um valor de outra dimensão, outro grau; cada um, separadamente, corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinação correspondente a um conceito. De hieróglifos separados foi fundido o ideograma (EISENSTEIN, 2002, p. 36).
A ênfase de Eisenstein se dá na junção de elementos que solitários possuem sentidos específicos, mas na combinação destes há o nascimento de um terceiro conceito. Do fragmento mínimo que, fundido a outro, alcança uma expressão nova em significado. Eisenstein (2002) nos exemplifica ainda dentro do contexto da formação do ideograma japonês por meio da combinação de duas descrições que é possível chegar a um conceito novo: da imagem da água justaposta à imagem do olho, surge o conceito chorar. Assim, a construção do ideograma se dá por meio de uma coalizão de objetos contrastantes, resultando em uma terceira imagem. Desse modo, Eisenstein continua a desenvolver sua noção de montagem, mas considerando agora o haicai como uma forma análoga ao ideograma, declarando que este não descreve, mas multissignifica sua imagem
77 quando O mesmo método, expandido para o luxo de um grupo de combinações verbais já formadas, floresce num esplendor de efeito imagístico (EISENSTEIN, 2002, p. 37). De ideogramas separados, foi fundido o haicai. De uma maneira mais complexa, as combinações entre os elementos do haicai alcançam um nível sofisticado e poético. Mesmo sabendo que, posteriormente, Eisenstein alarga seu conceito de montagem, inspirado na escrita chinesa (5), este a caracteriza, especificamente, a partir da colisão, ou do ... conflito de duas peças em oposição entre si (Ibidem, p. 42). A construção de sentido só ocorre pela discordância entre os elementos. No cinema, há tanto conflitos dentro dos planos quanto na relação entre eles.
(5) Ver página 42 do livro A imagem-tempo Gilles Deleuze.
(2005)
de
Dessa maneira, temos agora mais elementos que nos ajudam a pensar sobre a dimensão que Eisenstein dá à construção cinematográfica no haicai e, por este caminho, se abrem as possibilidades de discussão pertinente à imagem em Elegia Oriental. Vejamos um haicai citado por Eisenstein em seu texto O princípio cinematográfico e o ideograma.
Um corvo solitário Sobre um galho sem folhas, Uma noite de outono. BASHŌ
No desejo de entender um pouco mais sobre a lógica do haicai, elejo o laconismo dentre outras possíveis entradas para o entendimento da sua formação. Sua precisão formal chama atenção no sentido de que é possível expressar o mínimo de maneira suficiente. Falar da profundidade de um estado de espírito em formas econômicas. O cineasta Andriêi Tarkóvski (1932 - 1986) nos relata o haicai como ...uma observação precisa da vida... e ainda diz que o que o deslumbra nessa forma de poesia ...é a recusa em até mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem... (TARKÓVSKI, 2002, p. 123). Nesse caminho, Eisenstein nos lembra que, do ponto de vista cinematográfico, as frases do haicai: ...são as frases de montagem. Lista de planos. A simples combinação de dois ou três detalhes de tipo de material cria uma representação perfeitamente terminada de outro tipo psicológico (EISENSTEIN, 2002, p. 38). O poema de Matsuo Bashō, poeta do período Edo do século XVII um grande mestre do haicai segue como exemplo de estrutura poética passível de aproximação da linguagem cinematográfica. Temos o corvo mergulhado em uma profunda
78 solidão, já que foi colocado em relação a um galho que também assim o é, pois não está completo com todas as suas folhas companheiras. A cor negra do corvo conflui com a escuridão da noite, o que intensifica espacialmente a noção de um lugar aberto e infinito que aprofunda sua solidão. Em seguida, temos a presença do elemento temporal do haicai, pois estamos na noite de outono, folhas caídas e uma temperatura que não nos é aconchegante. Pois bem, construiu-se um sentido para a imagem a partir do que se conhece sobre cada elemento. Um animal, uma árvore e o outono. Eles disparam um estado alterado de tempo e espaço e, pensando na linguagem cinematográfica, é possível dizer que corvo e galho surgiriam em um primeiro plano mais fechado em relação ao objeto enquadrado , e o outono (que traz o espaço da paisagem), corresponderia a um plano geral mais abrangente. Para adensarmos essa leitura do haicai, a partir da linguagem cinematográfica, partimos agora para a análise de algumas sequências do próprio filme Elegia Oriental com a ajuda de alguns fotogramas que seguem.
(6)
Escrito
em
1937,
retrabalhado entre março e maio do ano seguinte e publicado apenas em parte na edição de janeiro e 1939 de Iskusstvo cinema).
Kino
(Arte
Outra
do vez
retrabalhado para publicação como primeiro capítulo de O sentido do filme em 1941. Eisenstein mudou o título (de Montagem 1938 para Palavra e imagem) e ajustou o texto para o leitor de língua inglesa. (EISENSTEIN, 2002, p. 49).
ao lado
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:00:28 a 02:34:00)
O primeiro elemento do filme que chama atenção por sua constante presença é a névoa. Esse componente de fundamental importância liga os fragmentos do filme para formação de uma imagem total, termo de Eisenstein destacado de seu texto Palavra e imagem (6) que se vale da noção de que todos os elementos da imagem, seja visual, sonoro, tátil, gráfico, etc., ou seja, a própria montagem, confluem no sentido de um conceito maior que perpassa o filme como um todo (EISENSTEIN, 2002, p. 18).
79 A névoa consurge como uma das imagens totais em Elegia Oriental por trazer, enquanto elementos expressivos, características como a continuidade, a flutuação, a fluidez, a transitoriedade, a lentidão e o estado etéreo. Tais propriedades escapam, invadem e atravessam os tempos e os espaços fílmicos. No primeiro quadro do filme, temos a presença dela, a névoa que, em conjunto com o som do vento, é elemento que demarca expressividade. O movimento da névoa dentro do quadro tem colaboração direta do campo sonoro, este que é dado pelo vento. A cor do quadro é monocromática e a iluminação bastante sutil, econômica e precisa. O narrador, que tem a voz de um homem (o próprio Sokúrov), encaminha o tom do filme, pois é entoada de uma maneira calma, lenta e suave. Ela nos diz: Tudo é como um sonho. Eu vejo nuvens, névoa. Um pinheiral . A imagem desse pinheiral não é nítida e a névoa é sobreposta a ela. A imagem é difusa e a transparência possibilita o efeito de justaposição entre a névoa e os pinheiros. O movimento de câmera vem como uma panorâmica muito lenta, que desvenda aos poucos esse espaço dos pinheiros. A névoa acompanha lentamente um travelling panorâmico vagaroso. A palheta de cores se aproxima do amarelo e do laranja e os pinheiros enegrecidos ocupam quase todo o quadro. A profundidade de campo é percebida pela disposição das árvores, que são muitas. No campo sonoro, temos novamente a voz do narrador, Um litoral que não me é estranho . Ao mesmo tempo, temos o som de uma flauta de bambu e, aos poucos, surge o som de ondas do mar. Não há pesar algum afligindo meu coração , diz o narrador acompanhado do som de ondas batendo em pedras. Os pinheiros são verticais, eretos, da mesma maneira que o homem se encontra, solitário, contemplando o mar. Sua desproporção no quadro nos oferece profundidade de campo. A solidão, também presente no haicai de Bashō, surge
(7) “Chama-se corte seco a passagem de um plano a outro por uma simples colagem, sem que o raccord
seja
marcado por um efeito de ritmo ou por uma trucagem” (AUMONT; MARIA, 2003, p. 66).
como elemento expressivo em Elegia Oriental, em que o equilíbrio é representado por meio de formas verticais e estáticas como o homem, os pinheiros e o reflexo do sol no mar. A presença de um plano geral, também observado no haicai, acentua a solidão do homem que é pequeno em relação à grandiosidade da natureza apresentada em todos os níveis: terra, céu e mar. A panorâmica finalmente é interrompida, dando lugar a uma câmera fixa. Temos, então, o primeiro corte seco (7), que é amenizado pela continuidade da névoa e do campo sonoro, dando-nos a impressão de que ainda estamos no mesmo espaço. Ao som de ondas e de vento, o narrador diz: Acho que alguém me chamou . Temos outro corte seco, mas os sons continuam a habitar o espaço fílmico, mesmo com a mudança de plano. Não, não tem ninguém lá , diz o narrador que não está representado no quadro visualmente, quadro este que traz
80
(8) Espaço fora de quadro, que não é visível, mas construído por meio do campo sonoro.
um plano médio e que mostra o pinheiral por outra perspectiva da já mostrada. A mobilidade do entre espaços visíveis complexifica os espaços off (8). A névoa continua sobreposta à imagem desta segunda, do pinheiral. Novamente, temos um corte seco que mostra mais um quadro dividido proporcionalmente em três partes verticais. Podemos dizer que, na primeira parte, vemos uma escura silhueta do homem que já apareceu antes, novamente desproporcional em relação à ocupação do mar e do céu no quadro. Ele se parece com uma estátua. Estático, o personagem diz Uma ilha surge no mar . O som da flauta de bambu continua conjuntamente ao som das ondas do mar. Na porção do meio do quadro, temos, próximo à borda superior, o esboço de uma ilha, à qual o narrador se refere. Ela é pouquíssimo iluminada, como o quadro inteiro; na terceira e última parte da porção do quadro, temos um sol, que mais parece com a lua por conta do enegrecimento do quadro e seu reflexo no mar em forma de um caminho vertical. Aos poucos, o plano é iluminado, mas não o suficiente para desvendarmos mais sobre a imagem. De repente eu já estou na ilha. Degraus antigos de pedra . O percurso do personagem não nos é dado. Ele, de repente, aparece nessa ilha. Mais uma vez, a construção dos espaços no filme é complexa, pois, em um momento, o homem está em um lugar, de repente, ele rapidamente, sem nenhuma fusão entre as imagens, está na ilha. Esse movimento entre os espaços indicia a presença de outra lógica de existência mais próxima do onírico e da própria morte. Nessa outra seleção de fotogramas, que dá continuidade a sequência anterior, temos uma imagem difusa com permanência da sobreposição da névoa. Como o narrador já nos alertou, temos uma escada antiga de pedras. Nas bordas da escada, há uma vegetação que surge com um tom esverdeado. Cor que contamina o resto do quadro. O ângulo da câmera está em contra-plongé, o que nos dá a impressão de uma escada infinita. Enquanto um homem sobe as escadas, é possível notar que a profundidade de campo é dada pela angulação da câmera. As bordas são escurecidas e o movimento de ascensão é oferecido tanto por meio do movimento do homem no quadro, quanto pelo movimento da névoa. O som da flauta de bambu continua, o que possibilita a ligação entre os planos junto à névoa e ao som do vento. O narrador diz Criptomérias enormes. Respiro fundo e me encho com perfume de jasmim . Sobre essa invocação de outros sentidos, por meio da construção audiovisual, veremos mais a diante.
(9)
“Termo
técnico
que
designa o aparecimento ou desaparecimento de uma imagem, obtida por uma variação
da
exposição”
(AUMONT, MARIA, 2003, p. 138).
Após uma fusão (9) quase imperceptível por conta do movimento da névoa entre os quadros, temos novamente a imagem de uma escada, mas agora com o plano um pouco mais fechado. Ela é de pedra e o movimento de câmera flutua junto ao movimento da névoa.
Após mais um corte seco, há o som de ondas batendo em pedras. O som da flauta é contíguo ao do vento e, assim, o narrador nos diz: Sons e mais sons... , até que outro plano surge: uma estátua de um buda à direita, com pedras embaixo dele. Ao seu redor, existem algumas árvores e pétalas vermelhas caídas no chão. A cor da folhagem da vegetação é esverdeada e o canto superior esquerdo está escurecido. O foco da iluminação está na estátua de pedra que parece meditar. Noto que a presença de elementos estáticos se relaciona com os enquadramentos e a câmera fixa. Poucas coisas se movimentam e, quando assim fazem, o deslocamento é sutil. Em seguida a mais um corte seco, temos uma mudança repentina dada pela dramática música wagneriana. Da calma, chegamos a um estado mais tenso, pesado. O plano é aberto, habitado por casas tradicionais japonesas. O quadro é monocromático e a iluminação do plano vai se esvanecendo, tornando-se cada vez mais escura. Mais um elemento do campo sonoro surge: uma mulher cantando em japonês. O vento, o canto, a flauta de bambu e a voz do narrador recheiam o campo sonoro. Será que estou no paraíso? . A névoa continua presente como sobreposição e em movimento. O céu. A lua. A névoa e toda a escuridão pairam. Mas se for isso mesmo, por que me sinto tão triste? . Novamente temos um corte seco para um plano médio. O enquadramento, em contra-plongé, faz que as casas aumentem de tamanho no quadro. A música de Wagner fica cada vez mais dramática, encadeando o tom pesado no plano. Que ilha mais estranha . Há poucos pontos de iluminação nas casas. Temos uma fusão lenta para a imagem de um lustre que está em primeiro plano ocupando quase todo o espaço do quadro. O espaço sonoro agora é habitado pelo ranger da corrente que sustenta o lustre, o grulhar de aves, o canto japonês na voz de uma mulher e a música instrumental. O próximo plano surge a partir de um corte seco e o campo sonoro dá continuidade aos planos. Nesse quadro, temos a imagem de uma estátua anamórfica. Esta não possui pescoço e sua qualidade de pedra é oferecida pela cor verde acinzentada. Seus olhos estão cerrados e sua cabeça está voltada para cima. Nesse quadro, somente a estátua é iluminada. Seu redor é escurecido. O som do ranger do lustre, o grulhar estridente de aves, o canto japonês e o som da flauta continuam. Esse campo sonoro traz mistério e constrói vários outros espaços que existem fora do quadro. Por exemplo, em nenhum momento, a imagem visual da mulher que canta em japonês aparece na sequência.
Em uma fusão muito lenta, as casas tradicionais japonesas surgem pouco iluminadas. As casas parecem ter sido petrificadas . A partir dessa análise, podemos dizer que os elementos da linguagem cinematográfica em Elegia Oriental, como o campo sonoro, os movimentos de câmera, a iluminação, os enquadramentos, o tratamento das cores, a voz do narrador, entre outros, confluem à imagem total do filme. Esses componentes se aproximam das características da névoa: são contínuos, flutuantes, lentos, calmos, equilibrados, etéreos e escapam, se invadem e se atravessam. Nada parece se sustentar. Temos, em Elegia Oriental, uma profusão de qualidades e sensações de peso, cheiros, sons, volumes, tatos, entre tantas outras. Formalmente, a névoa, em lento movimento constante, é sobreposta (ou somada, se quisermos lembrar a montagem eisensteiniana) a outras imagens trabalhadas. No caso dos frames escolhidos, a névoa e seu movimento lento e contínuo são sobrepostos às imagens. Elegia Oriental persiste em se manter, ao mesmo tempo em que se desmancha no ar, indicando o conflito entre a permanência e a dissolução. Podemos notar isso nas sequências analisadas, pois encontramos nelas, por exemplo, a representação de objetos não maleáveis: o lustre, a estátua e as casas que, sobrepostos à névoa, ganham as propriedades dela, alimentando o valor de uma imagem que é construída, nunca dada. Nesse momento, podemos relembrar o haicai de Bashō e aproximá-lo das sequências escolhidas e investigadas. Será o laconismo uma característica que de fato se baliza tanto na estrutura do haicai como nas imagens analisadas em Elegia Oriental? Caso ela coexista nas duas linguagens, como identificar essa precisão formal? Vejamos. Elegia Oriental possui laconismo. Pensemos na imagem do homem que contempla o mar. A solidão é construída ao longo da sequência. O plano é geral, como a paisagem no haicai de Bashō. Existe um homem, como existe um corvo; essa solidão, ou esse sentimento de vazio, é acentuado com a imagem de um galho sem folhas . As cores dos espaços são enegrecidas: o haicai pela confluência da cor do corvo com a noite; e, nos planos de Elegia Oriental, o monocromatismo é presente como escuridão serrada que não nos permite ver uma imagem nítida. O tempo é construído no haicai pela presença da noite e do outono ; já no filme, a névoa e seu movimento lento materializam o tempo. O corvo está sobre o galho, o que nos indica a posição do animal em silêncio. O homem está na terra,
83 contemplando a infinitude do mar e o vazio. Essas imagens trazidas tanto pelo haicai, quanto pelo filme pro-in-vocam o espectador. Disparam estados subjetivos. É um tipo de montagem de elementos que podem nos deslocar da condição de espectadores para a de participantes. Lembremo-nos de Eisenstein para entender tal questão: A montagem ajuda na solução desta tarefa. A força da montagem reside nisto, no fato de incluir no processo criativo a razão e o sentimento do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. O espectador não apenas vê os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta o processo dinâmico do surgimento e reunião da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor (EISENSTEIN, 2002, p. 28).
Os elementos convergem à construção de um espaço de representação que abriga várias possibilidades de leituras e interpretações. A montagem no haicai, enquanto criação tão singular e sintética, faz que as imagens, no filme de Sokúrov, extrapolem suas formas e possibilita que o participante crie suas próprias imagens e construa sentido. Eisenstein nos diz que ... a lírica japonesa evidencia uma interessante 'fusão' de imagens, e atinge os mais variados sentidos." (EISENSTEIN, 2002, p. 33-38). A montagem de elementos minunciosamente escolhidos pelo artista se mantém responsável pela criação da imagem poética. Reparemos também que o haicai, habitualmente, sugere ao invés de dizer e pode alcançar Um indício de vida para além do quadro, para o infinito (TARKÓVSKI, 2002, p. 139), ou ainda, assemelha-se a Um mundo inteiro refletido como que numa gota d'água (Ibidem, p.130). Como o próprio Sokúrov nos diz:
(10)
Aleksandr
Sokúrov.
Entrevista. Disponível em: <http://www.youtube.com/w atch?v=ML6lxlXH9Mk&featur e=youtu.be>. Acesso em 14 dez. 2011.
A imagem plana tem algo. Algo não concedido ao espectador. Uma reticência. E arte é apenas onde esta reticência existe. Uma limitação em relação àquilo que efetivamente podemos ver e sentir. Tem que haver um mistério. E a imagem plana provê este mistério. (10)
84 Temos aqui mais um caminho que nos permite sustentar a construção cinematográfica de Elegia Oriental como uma produção em que é possível perceber a presença da íntima relação entre a constituição da imagem cinematográfica e do haicai. O que são suas paisagens se não uma provocação às imagens abertas em significado e que dependem das inter-relações feitas por nós espectadores? A constituição do haicai também se aproxima da produção de Sokúrov com delicadeza. O cineasta trabalha então com uma imagem que vai para além da visão ocular, instigando, por meio dela, outras esferas dos nossos sentidos. Nos fotogramas escolhidos a seguir, temos o exemplo dessa construção de imagem, no caso, olfativa. O cheiro de jasmim no litoral é muito agradável , diz o narrador. A flor de jasmim é representada, a priori, sem cor, mas, à medida que o narrador fala de como o cheiro da flor é agradável, a cor, somente na flor de jasmim, se torna amarela. Esse é um exemplo de como, por meio da linguagem do cinema, é possível aguçar certas sensações. A adição da cor se tornou uma estratégia de linguagem para a representação do cheiro da flor. Eisenstein nos dá possibilidades de reflexão sobre a construção de representações desses estímulos, mas agora em outra linguagem, o teatro tradicional japonês kabuki. Nele: ... ocorre uma única sensação monística da provocação teatral. Os japoneses consideram cada elemento teatral não uma unidade incomensurável entre as várias categorias de sensações (dos vários órgãos sensoriais), mas uma unidade única do teatro, [...]. Dirigindo-se aos vários órgãos dos sentidos, eles constroem sua soma [de fragmentos individuais] em direção a uma grandiosa provocação total do cérebro humano, sem prestar atenção a qual desses vários caminhos estão seguindo (EISENSTEIN, 2002, p. 72).
Temos aqui um trecho ainda pertinente à concepção do haicai e de Elegia Oriental, como um estímulo total aos nossos órgãos sensoriais, que está para além de sua estrutura formal, seguindo para criação de estados poéticos fora da poesia, mas que só existem por conta dela. Caso consideremos o espectador como participante do processo de constituição de uma obra artística, podemos pensar que este multissignifica o trabalho, ou seja, a obra se completa à medida que o outro se relaciona com ela, seja essa obra um haicai, um filme, ou uma paisagem, como nos diz Takahashi: Nos jardins da Villa Imperial de Katsura, um outro elemento fundamental do paisagismo japonês se baseava na interatividade entre o espectador e a paisagem criada. Passear pelas trilhas de pedras sobre as águas do lago era mais do que um exercício cinestésico. O reflexo
ao lado
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:09:20 a 00:09:28
85 do espectador na água fundia-se com o cromatismo das folhas e flores e, em noites de lua cheia, com uma virtualidade celestial. Ou seja, a obra em si, seja ela um jardim, seja ela um poema, só se completaria com a participação do espectador/leitor e somente através dela teria o seu universo semântico desenhado por completo. A obra criativa, no Japão, é gestada para ser propositalmente incompleta e imperfeita, ao contrário de todos os dogmas clássicos da arte ocidental (TAKAHASHI, 2010).
Sobre a imperfeição da obra artística, Eisenstein cita Yone Noguchi: ... são os leitores que tornam a imperfeição do haiku uma perfeição artística (EISENSTEIN, 2002, p. 33-38). A incompletude da obra nos oferece espaço para participação e criação. Para tanto, é necessário encaminharmos o texto no sentido da conceituação do que nomeio imagem infinita e dessa maneira, chamar o teórico russo Mikhail Bakhtin a fim de pensarmos sobre a participação do espectador e a obra criativa incompleta e imperfeita: Chamo sentido ao que é resposta a uma pergunta. O que não responde a nenhuma pergunta carece de sentido. (...) O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato com outro sentido (o sentido do outro), mesmo que seja apenas no contato com uma pergunta no discurso interior do compreendente. Ele deve sempre entrar em contato com outro sentido para revelar os novos momentos de sua infinidade (assim como a palavra revela suas significações somente num contexto). O sentido não se atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e entram em contato. Não há um sentido em si . O sentido existe só para outro sentido, com o qual existe conjuntamente. O sentido não existe sozinho (solitário) (BAKHTIN, 1997, p. 386)
Pois bem, Bakhtin nos fala de algo que se relaciona com a origem da constituição dos dois campos de expressão artística trazidos ao longo do texto: o haicai e o filme Elegia Oriental. A montagem eisensteiniana segue em direção a construção de sentido trazida por Bakhtin. É somente no contato com o outro, no caso uma obra, que se torna possível construir sentido. O outro para Bakhtin está sempre inacabado, conceito do autor que se sustenta na relação, no diálogo entre a obra e o espectador. Essa não é a lógica do haicai e de Elegia Oriental? Relembrando Eisenstein, a provocação total dos nossos sentidos, por meio da montagem que realiza a imagem poética, nos coloca nesse lugar do compreendente responsivo, conceito caro a Bakhtin que se baseia no entendimento de que uma pessoa, no encontro com uma obra, a responde, completando-a e renovando-a, atualizando e construindo seu sentido. Dessa forma, introduzo a noção de imagem infinita considerando a discussão sobre a constituição do haicai e de Elegia Oriental. Seus componentes confluem para certo tipo de imagem que somente se completa na mente, no discurso interior do espectador. Se o sentido é dado sempre na renovação da obra e sabendo que ela se atualiza sempre, esse sentido segue em um movimento incessante e ilimitado. O espectador, como compreendente responsivo, interpreta e completa a obra à sua maneira, sendo infinitas as formas de responder à obra, já que é infinita a possibilidade de recriá-la. Se considerarmos que o sentido nunca é solitário e sempre se atualiza no encontro com outro, podemos dizer que a imagem de Elegia Oriental só adquire sentido quando se coloca em contato com o espectador, compreendente responsivo que se encontra no centro do processo em que o diálogo se dá em uma perspectiva aberta, multifacetada e, por isso, inacabada. Mas não basta apenas se colocar em contato com o espectador, precisa, desde sua concepção, pensá-lo como participante ativo do processo.
86
Imperfeita e inconclusa, as imagens poéticas construídas no haicai e em Elegia Oriental sempre carecerão de sentido, estarão dispostas a renovações contínuas, cuja imperfeição e inacabamento nos propiciam vias múltiplas de entendimento, de sensações e percepções. Exercício do imaginário. Podemos pensar que o inacabamento estimula o espectador a construir imagens (por exemplo, por meio das imagens visuais e sonoras do cinema), como uma provocação total dos nossos sentidos, o que também nos leva a construção de uma imagem infinita, que não cabe nela própria, porque sempre precisa do outro. Temos aqui a ideia de que não é possível a existência de um sentido solitário, pois este só se atualiza em contato com outros sentidos. Só na interação de sentidos e na resposta ativa do espectador, em relação à imagem, é que a obra artística se completa, como na teoria de montagem eisensteiniana em que seu princípio preza pela incompletude existente na constituição das imagens haicais-cinematográficas. Reforço aqui o conceito de inacabamento como preceito estético que considera a imagem a partir dos elementos que extrapolam para além dela mesma e que dá movimento ao modo construtivo do haicai e da linguagem cinematográfica aqui estudada. A sugestão, a lógica não linear, a atenção substancial que se dá ao outro no diálogo entre espectador-autor, o laconismo, o conflito, a multissignificação, os elementos materiais poéticos (como a névoa) e a apreensão da paisagem contribuem para a construção de uma imagem ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém ligada , como nos diz Borges. Uma imagem infinita que só existe por sua necessidade de estabelecer diálogo e renovar-se sempre, como ainda nos diz Bakhtin: Por isso não pode haver um sentido primeiro ou último, pois o sentido se situa sempre entre os sentidos, elo na cadeia do sentido que é a única suscetível, em seu todo, de ser uma realidade. Na vida histórica, essa cadeia cresce infinitamente; é por essa razão que cada um dos seus elos se renova sempre; a bem dizer, renasce outra vez (1997, p. 386).
Assim, Bakhtin nos ajuda a entender que o centro do processo dialógico tanto em Sokúrov, quanto na teoria eisensteiniana e na constituição do haicai é o outro e sua resposta. O trabalho artístico existe enquanto processo e, quando foi construído, de maneira a considerar concebível a existência de uma resposta. Essa responsividade possui níveis e aberturas, mas em todo caso, ela existe enquanto percepção de significado, entendimento. A montagem eisensteiniana e sua inspiração da lógica ideogramática consideram importante a diferença entre os elementos a serem montados, ou seja, valoriza o conflito para construção de sentido. Dentro do diálogo entre obra e espectador, essa lógica também se mostra ativa, pois é na diferença entre esses dois lugares que é possível construir um sentido outro. O inacabamento para Bakhtin está dentro de uma concepção de mundo que não é totalizante ou acabada em si mesma. Quando consideramos tal colocação, podemos pensar nas imagens trabalhadas, ao longo do texto, como sugestivas, nunca fechadas em si. Elas não são dadas, mas sempre construídas no processo complexo da relação autorobra-espectador. São elas as imagens infinitas. Enfim, existiu, neste texto, uma busca por uma possível lógica de construção da imagem no haicai e em Elegia Oriental pela mediação da teoria eisensteiniana sobre montagem e os conceitos inacabamento e compreendente responsivo de Bakhtin, isso para
87 conseguirmos refletir sobre a existência de uma imagem infinita, pronta para que qualquer pessoa possa respondê-la de inúmeras maneiras. A aproximação do modo de constituição do haicai com o cinema foi de caráter introdutório e investigativo. Mas, trouxe, enquanto encaminhamento, possibilidades de aprofundamento na constituição da imagem dentro do campo artístico.
direita
Elegia Oriental. (SOKÚROV, 1996, 00:33:39
88 Bibliografia AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas : Papirus, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Original em russo: Estetika Sloviêsnova Tvórtchestva. Moscou: Iskustvo, 1979. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. José Carlos Avelar (Org.). Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. __________________. O princípio cinematográfico e o ideograma. In: CAMPOS, Haroldo de (org.) Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. Trad. Heloysa de Lima Dantas. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, 149-166. __________________. O sentido do filme. AVELAR, José Carlos (Org.). Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. FRANCHETTI, Paulo (Org.); DOI, Elza Taeko; DANTAS, Luis. Haikai. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996. MACHADO, Alvaro Machado (Org.). Aleksandr Sokúrov. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Versão inglesa de: Jefferson Luiz Camargo. Original em alemão: Die versiegelte zeit. Gedanken zur Kunst, Asthetik und Poetik dês Films. Frankfurt-Brelim: Ullstein, 1985.
Documentos eletrõnicos MACHADO, Irene. Inacabamento como modelo artístico de mundo. BAKHTINIANA. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo: v.1, n. 3, 2010. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3372>. Acesso em: 10 dez. 2011. TAKAHASHI, Jô. Artigo. Universos mínimos. Revista Cult, São Paulo: Editora Bregantini, 2004. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/universos-minimos/>. Acesso em: 25 nov. 2011.
90
Delicada intromissão: o primeiríssimo plano em Vida Humilde
(1)
Monica Berto (1) O título em língua russa, Smiriennaia jizn (Смиренная жизнь, 1997, 75 min) é referido, neste texto, como Vida Humilde, de acordo com
O primeiríssimo plano ou close-up é um procedimento de enquadramento de câmera que tem sido reconhecido como um dos trunfos do cinema e sua utilização tem sido frequente nos filmes de Aleksandr Sokúrov.
a n t e r i o r m e n t e
Em meu primeiro contato com o documentário (2) Vida Humilde, intui que os primeiríssimos planos, frequentes ao longo do filme, de alguma maneira, seriam responsáveis pela atmosfera rica em provocações dos sentidos que predomina neste. Seguindo esta intuição, lancei-me ao estudo de potencialidades expressivas desses primeiríssimos planos, ancorando-me em algumas pesquisas basilares do cinema, procurando inter-relacioná-las com indícios presentes no documentário e aqueles disponibilizados pelo diretor russo e sua equipe. Segundo a apresentação do filme, realizada por Alexandra Tutchínskaia, crítica e pesquisadora de cinema e editora responsável pelo site oficial do diretor, percebe-se a preocupação com o tipo de relato minucioso que Sokúrov intenciona para este documentário: A câmera de Sokúrov não espreita esta personagem, não faz perguntas, não a surpreende, mas extrai, ininterruptamente, imagens poéticas a partir de detalhes triviais de uma realidade física ... (TUTCHÍNSKAIA, 2011). Também encontro ressonância, em relação à preocupação do diretor com a esfera dos sentidos, nas palavras dele próprio: As pessoas estão acostumadas a obter pensamentos dos filmes, mas não sentimentos e o que eu procuro oferecer são sentimentos, procuro fazer que as pessoas sintam (Apud. MADEIRA, 2004, p.27).
disponibilizados nas línguas
Inicio minha investigação percorrendo brevemente
a tradução realizada pelo Grupo de Pesquisa Eisenstein no século XXI, por ocasião da Mostra Didática Sokúrov Oriental. A tradução direta do russo levou em consideração também os títulos traduzidos para o francês Une Vie Humble e para o inglês A Humble Life, que constam em um DVD distribuído no Brasil pela
EUROARTS,
com
legendagem em francês e em inglês. No Brasil, o filme referido
foi,
em
2010,
c o m e r c i a l m e n t e disponibilizado em DVD, distribuído pela MAGNUS OPUS, com legendagem em Português, e com o título de Solidão, que avaliamos se distanciar da tradução direta ou
indireta
dos
títulos
russa, inglesa e francesa. (2) Conforme classificado no
91 site oficial do diretor, Vida Humilde (com o título de A Humble Life no site) é um documentário.
territórios do cinema de onde pinço reflexões sobre potencialidades expressivas do close-up que se aproximam daquelas abordadas neste ensaio. Béla Balázs (1884-1949) escritor, ator e diretor húngaro- afirma: O close-up talvez dê algumas vezes a impressão de uma preocupação meramente naturalista com o detalhe. Não obstante, bons close-ups irradiam uma atitude humana carinhosa na contemplação de coisas escondidas, uma delicada solicitude, um gentil debruçar-se sobre intimidades de uma vida-em-miniatura, uma cálida sensibilidade. Bons close-ups são líricos; é o coração e não os olhos que os perceberam (1952, p. 56).
E Germaine Dulac (1882-1942) - diretora e escritora Francesa -, reflete sobre a expressividade do close-up, dizendo que (...) o primeiro plano, como o chamamos, é o próprio pensamento da personagem projetado na tela. É sua alma, sua emoção, seus desejos... A vida interior tornada perceptível pelas imagens (...) (apud AUMONT; MARIE; 2009, p. 162). Ecoando as citações acima, afirmo que o enquadramento em close-up parece invadir a esfera dos sentidos, pois, como respectivamente sugerem Balázs e Dulac, ele pode expandir a contemplação visual de detalhes a um perceber que atinja a exaltação do espírito, que se manifesta pela expressão viva de sentimentos acepção de lirismo (HOUAISS, 2009, s.p.) ou quando busca no âmago da personagem, em close-up, sentimentos recônditos, instigando certa faculdade de sentirmos termos sensações.
(3) Iuri Mikhailovitch Lotman, estudioso
literário,
semioticista
e
um
dos
fundadores da Escola de Tartu-Moscou de semiótica da cultura. (4) Serguei Mikhailovitch Eisenstein,
cineasta
do
cinema russo-soviético que teve uma produção teórica importante sobre cinema.
A princípio chamo de 'delicada intromissão' a uma investigação lírica, cuidadosa (delicada) e bastante íntima (intrometida, pois infiltrada no espaço e na intimidade de um lar japonês) que me parece enfatizada pelas imagens em close-up de Vida Humilde. Neste ensaio, discuto o porquê penso no conjunto de primeiríssimos planos desse filme, concomitante a outros procedimentos cinematográficos mencionados, ao longo do texto, como a principal estratégia de produção de imagem que dá o tom de 'delicada intromissão' ao filme como um todo. Além disso, procuro elucidar minha ideia sobre como, em especial, duas sequências em close-up indicam o que nomeio como exaltação do sentido tátil , aguçando percepções de sentidos além do áudio e do visual. Como sustentáculo teórico, busco entender a utilização do primeiríssimo plano, na cinematografia, sob a luz da estética e semiótica do cinema produzida pelo teórico literário e semioticista russo Iuri Lotman (3) (1922-1993) em inter-relação com a teoria de Serguei Eisenstein (4) (1898-1948) para o cinema. Examino as discussões e proposições destes dois entusiastas do cinema que discutem principalmente o
92 (5)
Ver
nota
2
para
entendimento de Aumont (1993
e
2006)
sobre
a
definição de plano.
Segundo Aumont (1995), a noção de plano abrange um conjunto de parâmetros variados - dimensão, quadro, ponto de vista, duração, movimento e ritmo e é um termo de definição empírica (e quase tautológica): qualquer pedaço de filme compreendido entre duas mudanças de plano (Ibidem, 40). Quando, neste texto, refiro-me a plano, primeiríssimo plano ou close-up, considero a noção de plano que toma ...uma questão do enquadramento... e a ... instituição de um ponto de vista da câmera sobre o evento representado (AUMONT, loc. cit.). O vocábulo 'primeiro plano', contido no Dicionário Crítico e Teórico do Cinema de Jacques Aumont e Michel Marie (2009), denomina um tipo de plano que, dentro da escala de planos (Ibidem, p. 101), concebe um enquadramento em que se vê o objeto representado como se este estivesse sendo olhado em aproximação, com uma lupa. Assim, o primeiríssimo plano, ou close-up, representaria o extremo dessa aproximação em que geralmente se vê um fragmento do objeto filmado que, ocupando grande parte do plano (senão o plano como um todo), encontra-se descontextualizado espacialmente. O termo também tem sido qualitativamente considerado por diversos cineastas e teóricos, como, por exemplo, o faz Eisenstein para quem, segundo Aumont e Marie, este é um meio de cortar o objeto filmado de sua referência realista... , causando um efeito de estranhamento ao que se vê (Ibidem, p.241). Como continuação das ideias de Eisenstein, propõe-se que haja efeitos de aumento e corte 'mentais', ou seja, sugerem, por exemplo, aumento de atenção ou intensidade. Conforme veremos ao longo do texto, proponho que os primeiríssimos planos, no filme referenciado, atinjam certos efeitos qualitativos na linha de uma maior intensidade na provocação dos sentidos.
(6) Irene Machado é Livre Docente em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações
(ECA-USP) desde 2011, tendo fundado
em de
2001,
Imagens
unitárias
presentes na sequência de um filme ou vídeo que neste caso foram extraídas do filme em questão.
Acerca do sentido tátil em Vida Humilde
a
Estudos
Semióticos (ABES). (7)
Chamo também ao diálogo o teórico literário e filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) e uma interlocutora e estudiosa de seu trabalho, a pesquisadora brasileira Irene Machado (6), para discutir e embasar a importância que vinculo aos primeiríssimos planos referenciados neste ensaio como veículos de uma entonação para o filme como um todo.
e Artes da
Universidade de São Paulo
Associação
plano (5) como elemento expressivo no cinema. Antes, porém, é importante circunscrever um entendimento de plano e, por conseguinte, de primeiríssimo plano e close-up.
Apresento a seguir as duas sequências fílmicas (aqui ilustradas por meio de fotogramas (7)), que acontecem nos dez primeiros minutos de filme, em que a utilização do primeiríssimo plano é notória.
93 (8) Numa sequência fílmica anterior a essa, uma voz masculina diz que chegou ao local onde dormiria: um tatame. Assim, também por associação lógica relacionada a essa sequência anterior, pode-se
pensar
que
a
superfície acariciada é a do tatame. (9)Considero
aqui
entendimento
no
comum
que
um
senso
geralmente
relaciona a mão e os dedos ao sentido tátil, mas vale apontar que o tato, enquanto sentido
acima
ou faculdade de perceber
Vida Humilde.
sensações, tem possibilidade
(SOKÚROV, 1997, 00:04:25)
de acontecer via outras partes do corpo. Interessante notar que na língua portuguesa, segundo designa o Dicionário HOUAISS, o tato tem acepções que, derivadas por metáfora, relacionam-no “procedimento
a:
cauteloso;
prudência, tino” e a “sutileza e sensibilidade
para
se
expressar”
que
são
significados
que,
por
relaciono
aos
hipótese,
primeiríssimos
planos
estudados. (10) Neste ensaio, dado o enfoque do estudo, não realizo uma análise mais aprofundada
de
procedimentos
outros
de
áudio
(efeitos-sonoros) e de visual (cor,
luminosidade,
apesar
de
etc),
reconhecer
a
riqueza de procedimentos e estratégias
como,
por
exemplo, o som-off (ver AUMONT, 2006, p. 214, 275278) utilizados por Sokúrov. (11) No sentido do conceito de
estranhamento
desenvolvido pelo estudioso russo Victor Chklóvski (18931994) (1973).
O fotograma da acima ilustra uma breve sequência de treze segundos (SOKUROV; 00:04:25 a 00:04:38) em que é enquadrado um fragmento de mão (dedos) que se movimenta muito lentamente, como que acariciando o que parece ser um tatame. O áudio, ao longo desta sequência, também indica leve fricção da mão no tatame (8) (além de remeter a presença de grilo e pássaro e de conter uma suave e nostálgica música). Primeiramente gostaria de enfatizar, pecando por ser repetitiva, que assistimos a um movimento cuja lentidão implica na ideia de carícia que realizada por uma mão (dedos principalmente) separada de seu contexto espacial (corporal, etc), clama-se principal protagonista na sequência e que somente deixa ver, no restante do plano, o espaço onde ela toca. Todos os elementos grifados, nessa descrição de sequência, indicam um privilégio e um zelo dado ao sentido tátil (9), a meu ver. No entanto, há um procedimento (10) ou efeito de áudio, concomitante ao enquadramento em close-up que, mesmo sendo sutil nos treze segundos da sequência, adiciona ao todo não só a ideia da presença do sentido tátil, como também uma pitada de enlevo poético. Sokúrov compõe áudio e visual de forma disjunta, ou seja, há incongruência entre o movimento da mão e o som de fricção, pois enquanto a mão visual acaricia num ritmo, a mão sonora o faz num outro ritmo e ambas não correspondem diretamente uma a outra, causando um estranhamento (11). Apesar dos ritmos de carícia (visual e sonora) serem disjuntos, ambos ainda remetem a uma mesma ação: àquela da experiência do tatear algo que se quer conhecer, perceber de forma sutil. Assim, considerando que esta ação acontece justamente no momento quando o visitante
94 já deu início a sua jornada ao Japão, mais especificamente quando ele estabelece seu primeiro contato com o local onde passará a primeira noite da viagem (12), penso que o tipo de 'aproximação' de câmera em primeiríssimo plano remeta ao tipo de aproximação que este visitante pretende fazer ao local e à anciã: com todos os seus sentidos e de forma minuciosa e íntima (delicada intromissão). Iuri Lotman afirma que o plano é um veículo fundamental das significações da linguagem cinematográfica (1978, p.51), alertando-nos que este conserva sua autonomia como veículo de significação mesmo integrado ao conjunto do filme. Entendo, portanto, o fotograma acima enquanto veículo de significação, como ênfase ao sentido tátil e penso que tal alerta aos sentidos prepara o espectador para o tipo de documentário que virá a seguir, ou seja, provoca-o a perceber o detalhe apresentado não como mera descrição, mas como indício sobre o modo de se aproximar desse local, desse lar Japonês.
(13)
Lotman refere-se ao
close-up (grande plano) de A Greve de S. Eisenstein em que se vê somente um par de olhos
arregalados
que
simbolicamente tornam-se “A
Consciência
Humanidade”,
da
conforme
aponta o semioticista. (Op. cit.) Nessa passagem de seu livro, o autor não esmiúça a ação simbólica em si referida ao procedimento de closeup, mas tendo em mente o restante de seu estudo, poderia
dizer
que
as
significações, no exemplo dado,
vão
além
do
procedimento em si já que o reconhecimento icônico do par de olhos é importante para a significação simbólica atribuída à sequência fílmica.
Além disso, Lotman aponta que os procedimentos cinematográficos efeitos de áudio, de câmera, montagem, etc são elementos da linguagem cinematográfica também portadores de significações (que dependem da cultura e do conhecimento e experiência com cinema do espectador). Oferece, como exemplo, o close-up ou o grande plano (conforme aparece nomeado na tradução portuguesa de seu texto): Assim, na linguagem cinematográfica, os olhos captados em grande plano acabaram por se tornar a metáfora da consciência e do juízo moral. (13) (LOTMAN, loc. cit.); num segundo momento, o semioticista lembra-nos que há procedimentos capazes de gerar resultados inesperados em uma determinada cultura e/ou linguagem, podem também ser veículos de informação artística, ou seja, A informação opõe-se ao automatismo: sempre que um acontecimento tem automaticamente como consequência outro, não existe informação (LOTMAN, loc. cit.). Sublinha então que a arte não se limita a reproduzir o mundo com o automatismo inerte de um espelho: ao transformar em signos as imagens do mundo, a arte enche-o de significações (LOTMAN, loc. cit.). Primeiríssimo plano e áudio disjunto do visual são procedimentos bastante frequentes ao longo deste documentário, mas considero a sequência seguinte - que tem uma duração maior que a anterior (1 minuto e 18 segundos) como muito emblemática da maneira como o visitante pretende adentrar no lar e relacionar-se com o mundo oriental e com a costureira Umeno Matshueshi. Lotman refere-se ao close-up (grande plano) de A Greve de S. Eisenstein em que se vê somente um par de olhos arregalados que simbolicamente tornam-se A Consciência da
95
(14) A qualidade subjetiva do olhar ou de uma visão é frequentemente associada à câmera ou ao enquadramento resultante desta no plano do filme, segundo Aumont e Marie, devido à “mobilidade da
câmera
e
o
caráter
centrado (focalizado) do que ela mostra (...). Por ser o enquadramento, além disso, o vestígio de uma escolha naquilo que é mostrado, procedendo
de
uma
intencionalidade, a analogia entre quadro e olhar foi com frequência prolongada pela assimilação de um plano a uma visão subjetiva (no sentido neutro: relacionada a
Humanidade , conforme aponta o semioticista. (Op. cit.) Nessa passagem de seu livro, o autor não esmiúça a ação simbólica em si referida ao procedimento de close-up, mas tendo em mente o restante de seu estudo, poderia dizer que as significações, no exemplo dado, vão além do procedimento em si já que o reconhecimento icônico do par de olhos é importante para a significação simbólica atribuída à sequência fílmica. No frame abaixo, está uma imagem que indica que a câmera, posicionada dentro da casa, captura imagens da parte externa dela. Há de se notar que tal posicionamento causa estranhamento se considerarmos o momento representado nessa sequência: nesse momento da narrativa, espera-se que o visitante adentre na casa. No entanto, o posicionamento da câmera deixa o indício de que ele já está dentro. O movimento da câmera, ao longo da sequência, reforça o estranhamento já que ela como que flutuará, realizando um travelling que começa no chão da parte externa da casa e segue um percurso de entrada na casa, se rotacionando para baixo, enquadrando em primeiríssimo plano o chão, num movimento aparente de marcha à ré, como se - considerando esta câmera como subjetiva (14) do visitante e do espectador - o espectador entrasse de costas olhando com muita atenção (como que usando uma lupa) todos os detalhes (triviais, entretanto) dessa entrada na casa.
um sujeito)” (2006, p. 279).
acima
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:07:16)
nota-se, a presença de uma massa arenosa e de outras que remetem à madeira. Apesar da descontextualização espacial gerada pelo primeiríssimo plano, a designação
96 'areia' e 'madeira' afirmamo-la, segundo explicação de Lotman, estabelecendo relações semânticas entre o signo visual e o objeto designado na imagem. Tal relação, que se dá de maneira muito intensa no plano (em relação ao filme como um todo), é ainda reforçada pelo plano em close-up (1978, p.51). (14) A qualidade subjetiva do olhar ou de uma visão é frequentemente associada à câmera ou ao enquadramento resultante desta no plano do filme, segundo Aumont e Marie, devido à “mobilidade da
câmera
e
o
caráter
centrado (focalizado) do que ela mostra (...). Por ser o enquadramento, além disso, o vestígio de uma escolha naquilo que é mostrado, procedendo
de
uma
intencionalidade, a analogia entre quadro e olhar foi com frequência prolongada pela assimilação de um plano a uma visão subjetiva (no sentido neutro: relacionada a um sujeito)” (2006, p. 279).
ao lado
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:07:20)
Nas seguintes, também há supressão da perspectiva e das referências espaciais devido aos limites do plano em closeup, em paralelo a uma saliência das qualidades dos materiais percebidos segundo seus referentes (areia, madeira, tatame). Ademais dessa saliência matérica, enunciada pela imagem, há, no enunciado sonoro, uma referência mais direta ao material representado na imagem visual. Ou seja, enquanto vemos uma tábua de madeira, ouvimos um ranger que remete ao som de madeira sob pressão e que se dá num ritmo que lembra-nos passos. Visualmente não vemos (e nem veremos em nenhuma outra sequência próxima a esta) os pés que imprimem tais passos sobre esta madeira. O áudio, seguindo o mesmo tipo de manifestação que ocorre na sequência anterior, é incongruente ao enunciado visual. Não obstante, repetindo-se o mesmo tipo de disjunção audiovisual anterior, o que há de comum nos dois enunciados é a presença do material: som de ação sobre a madeira e tábuas de madeira em close-up; som de uma porta que desliza e trilhos de porta em close-up; e finalmente, som de passos sobre um tatame e superfície que remete a tatame, em close-up.
ao lado
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 00:07:40, 00:08:05, 00:08:10)
(15) Vale reforçar a diferença entre
sincronização
e
disjunção das porções áudio e visual no cinema, conforme discutidos neste ensaio. Há sincronização entre som e imagem no documentário Vida Humilde já que som e imagem se passam no mesmo limite
de
sincronia.
tempo,
em
No entanto, há
disjunção
onde
som,
conforme uma determinada lógica explicada ao longo do ensaio, é incongruente à sucessão de imagens. A disjunção, ou a polifonia clamada por Eisenstein, diz respeito a montagens em que esses
dois
elementos
expressivos são tomados de uma maneira não naturalista, s e n d o
f o n t e
estranhamento
d e e
de
informação, conforme sugere Lotman (1978). (16)
Baseando-se
“sensação
monística
na de
'provocação' teatral” que afirma ser elemento essencial na experiência do Kabuki japonês e na sua experiência sobre o pensamento japonês. (Op. cit).
Neste momento, trago a proposta que S. Eisenstein (2002), em conjunto com V. Pudóvkin e G. Alexandrov, fez, em 1928, sobre o cinema sonoro: eles afirmam (este é o tom do texto que é intitulado Declaração. Sobre o futuro do cinema sonoro) que o som deve ser tratado como um elemento de montagem, ou seja, divorciado da imagem visual para desta forma, potencializar-se como elemento expressivo e artístico no cinema. Apelam para que APENAS UM USO POLIFÔNICO do som com relação à peça de montagem visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento e aperfeiçoamento da montagem (Ibidem, p. 226). Tal uso da polifonia do som acontece nas sequências acima descritas, ou seja, há imagens sonoras e visuais sincronizadas (15) que se correspondem em alguns aspectos, mas que divergem em outros e o que aponto é que isso se dá de forma a ressaltar a percepção tátil da areia, da madeira, do tatame, etc. Eisenstein defendia que os sentidos deveriam ser provocados de maneira a gerar significações de acordo com a provocação central do filme (2002b, p.51-56). Em seu texto que aborda a montagem vertical Sincronização dos sentidos, escrito em 1940 Eisenstein afirma que não há diferença fundamental quanto às abordagens dos problemas da montagem puramente visual e a montagem que liga diferentes esferas do sentido, (...) no processo de criação de uma imagem única, unificadora, [sic] audio-visual (Ibid., p. 54). Nota-se a preocupação de Eisenstein em teorizar sobre a montagem dos elementos da linguagem cinematográfica, afirmando o áudio e o visual como ligação entre as diferentes esferas do sentido [assim grafado no original] , o que indica um pensamento que caminha na direção da exploração dos sentidos como um todo, tal qual sugiro como sendo a exploração que Sokúrov pretende com seus grandes planos aliados ao áudio disjunto (Ibid.). Eisenstein aborda essa questão mesmo em textos anteriores, como, por exemplo, o de 1928, intitulado Uma inesperada junção (2002). Entusiasta e estudioso, discorre sobre a importância para o cinema daquilo que denomina conjunto monístico (16) (Ibid., p. 28-29), ancorando-se em sua experiência com o Kabuki. A partir dessa unidade múltipla provocativa à percepção, o autor diz que o Kabuki (e assim deve
98 ser o cinema) dirige-se aos vários órgãos do sentido, construindo sua soma em direção a uma grandiosa provocação total do cérebro humano, sem evidenciar em qual desses vários caminhos estão perseguindo (Ibid., p. 28). A meu ver, Sokúrov realiza, nestas sequências estudadas, algo que se aproxima desse conjunto monístico teorizado e praticado por Eisenstein, já que as provocações sonoras e visuais de Vida Humilde estão em níveis equivalentes de importância entre si numa provocação desautomatizada dos sentidos. Concluindo sobre a questão da presença do tátil nas sequências em primeiríssimo plano de Vida Humilde, chamo Lotman (1978) que afirma que a experiência tátil é possível mediante a sugestão sinestésica (que depende de uma relação cultural determinada, vale lembrar), e a Aumont que corrobora a ideia de aparecimento de qualidades táteis suscitadas pelo primeiríssimo plano, quando afirma que este materializa quase literalmente a metáfora do tato visual , já que o close-up acentua ao mesmo tempo e de modo contraditório, a superfície da imagem (porque nela o grão está mais perceptível) e o volume imaginário do objeto filmado (que é como que extraído do espaço circundante), cuja profundidade é abolida (2008, p.141). Entonação
Os procedimentos com primeiríssimo plano e com o áudio disjunto manifestam-se ao longo do filme, trazendo consigo outros elementos táteis referentes a outros materiais (água, fogo, etc), além de outras possíveis significações. Mas, especialmente as duas sequências que se referem à entrada noturna e diurna do visitante a casa, possibilitam o entendimento (por meio dos procedimentos cinematográficos discutidos anteriormente) que o momento de chegada à casa estrangeira é cuidadoso, minucioso no olhar, sereno na produção de ruídos: delicada intromissão, sedenta de vestígios culturais ancestrais impregnados em todos os cantos arquitetônicos (17) da casa e do cotidiano humilde da anfitriã Umeno Matshueshi. (17) E também humanos, pois, mais adiante no filme, existem muitas sequências que
se
dão
de
forma
semelhante, porém tendo o corpo
humano
da
personagem-costureira, a anciã dona da casa como referente.
Em linhas gerais, atribui à habilidade cinematográfica do diretor o redimensionamento destas para a elaboração de uma atmosfera que propicie uma apreensão do relato concreto via um imaginário oriental encantado e mágico. Mas, como embasar meu entendimento que o tom do filme é dado por tais sequências? Irene Machado (2011), ao discutir características de formas composicionais, menciona a abordagem de Bakhtin para o problema do tom em formas discursivas. Interessa-me tomar a noção de tom dessa discussão para utilizá-la como base
99 para o problema do tom em formas discursivas. Interessa-me tomar a noção de tom dessa discussão para utilizá-la como base de meu pensamento sobre como Sokúrov imprime um tom ao seu discurso audiovisual que aborda o encontro com o Japão de Umeno Matshuieshi. Bakhtin (2010) refere-se ao tom no discurso como um mundo quase abstrato, que reflete as interrelações dos falantes (sua escala, sua hierarquia, etc.) e como uma sensação aguda de mim mesmo e do outro na vida do discurso para então afirmar O papel excepcional do tom , apesar de considerá-lo um dos aspectos menos discutidos na vida do discurso (Ibid., p. 376, 391). Lotman conclui sua estética e semiótica do cinema reafirmando que o cinema/filme fala-nos, comunica-se conosco por meio do seu discurso audiovisual e de sua linguagem. Assim, parece-me que Sokúrov elabora seu discurso audiovisual de forma a realçar um mundo de difícil apreensão categórica, a saber, aquele das inter-relações dos envolvidos num diálogo estabelecido no encontro com o outro (alguém de referência indefinida). Ou seja, o discurso dá-se menos por palavras e mais por gestos, menos por intenções categóricas e mais por atitudes cautelosas, além de ser menos afirmativo, cedendo lugar ao sugestivo e assim, 'sussurrando-nos' sobre como encontrar o outro, aquele ser e aquele local ao qual desejamos vivenciar numa atmosfera repleta de sentimentos. Assim, a maneira e atitude aproximativas escolhidas por Sokúrov para seu discurso aproximam-se muito desse mundo que é extra-objetual e sentimental do falante, ou melhor, esse mundo: Não é o mundo dos tropos, porém o mundo dos tons e matizes pessoais, mas não em relação aos objetos (fenômenos, conceitos) e sim ao mundo das personalidades dos outros. O tom não é determinado pelo conteúdo concreto do enunciado ou pelas vivências do falante mas pela relação do falante com a pessoa do interlocutor (com sua categoria, importância, etc.) (BAKHTIN, 2010, p.391).
(18)
Tal
eloquência,
geralmente, associada ao close-up é verbalizada na esfera
do
cinema
com
palavras como as de autoria de
Jean
Epstein
(Apud.
MARTIN, 2003, p. 38-39): “cauda de pavão”, “geografia ardente”, “romã despida (...) bárbara”, “teatro da pele”.
O diretor de Vida Humilde escolhe, então, um tom ao apresentar-nos uma coleção de primeiríssimos planos que indicam essa aproximação, esse tatear que acaricia em busca de algo, uma intrusão ao detalhe e às trivialidades do mundo do outro que é, no entanto, bastante cautelosa. Assim, os close-ups da câmera de Fiédorov diretor de fotografia do filme dirigidos, selecionados e pós-produzidos por Sokúrov perpassam por adjetivações eloquentes de caráter intimista (18) que, no caso deste filme, orbitam na esfera da pura delicadeza e do aconchego, dando o tom ao filme como um todo.
100 (19) Os textos, citados neste ensaio, que provém do livro Nel centro dell´oceano (SOKÚROV, 2009) teve tradução
para
a
língua
O próprio Sokúrov (2009) (19) afirma, em suas anotações (do diário japonês de 20 de agosto de 1990 (20)), sua preocupação em relação aos encontros e experiências que busca em solo japonês:
portuguesa realizada pela autora do ensaio. (20) Pouco antes de sua viagem ao Japão, para filmar sobre a vida e obra de Toshio Shimao (que podemos ver como resultado fílmico no filme-documentário
Lançar-se ao Oriente [Japão] não é fácil aquele não é o mundo dos contrastes, mas dos semitons. No Oriente não se deve caminhar, mas deslocar-se, não se deve falar, mas pronunciar as palavras. E não se deve tomar qualquer ação - onde estes limites são transgredidos, há o início da agressão (Ibid., p.125).
dolce...
de 1999, que também faz parte do DVD recentemente comercializado no Brasil que contém Elegia Oriental e
Mas, além da preocupação proeminente, afirma-se, em sintonia com o outro, mais especificamente com o Japão e sua habitante anciã Umeno Matshueshi:
Solidão (Smiriennaia jizn). Nos diários – pelo menos nos trechos editados e contidos no
livro
Nel
centro
dell´oceano (2009, p. 123157)
–
nota-se
preocupação
essa
em
como
acessar e encontrar-se com o Japão e seus habitantes. Apesar da busca principal da viagem ao Japão parecer ser a vida e obra de Shimao,
(...) Entendo porque ela se põe a olhar durante tanto tempo pela janela, porque lhe agrada oferecer comida às pessoas que vem estar com ela, porque passa por tanto tempo o seu avental, porque de repente, durante o almoço, pensa em algo que a faz rir [refere-se a trechos do filme]. (...) Nesses momentos procuro esquecer-se de mim mesmo e entregar-me a essa pessoa com quem estou trabalhando. Então tudo fica transparente. Nos filmes que costumam chamar de documentais , intenciono manter o curso da vida: não intenciono que eles criem uma obra de arte, intenciono manter e mostrar, sem interrupção, o curso da vida (MADEIRA et alii, 2004, p. 34).
Sokúrov menciona filmagens de eventos e encontros (o diretor na costa da ilha mirando o oceano, encontro com um xamã, filmagem do tufão/tempestade, etc.) que se podem reconhecer nos outros dois filmes que são anteriores a dolce..., apesar de posteriores às filmagens. Permito-me, assim, assumir que
tal
preocupação
de
aproximação e encontro com o Oriente (Japão) não tenha abandonado Sokúrov tanto para a filmagem como para a pós-produção
de
Vida
Humilde. (21) A voz que se ouve durante quase todo o filme, fala em russo e parece estar lendo
um
texto
–
pois
também se ouve o som de páginas de papel sendo manipuladas como numa
Uma fala durante o filme que assumimos ser proferida pelo próprio Sokúrov (21) corrobora por outro caminho meu entendimento sobre a entonação do filme, pois ela explicita a intenção e o tipo de movimento de aproximação a ser realizada pelo visitante da artesã de quimonos. A voz masculina afirma que da sua viagem àquele país se lembra bem de como tudo se tornou interessante: paredes, utensílios, vento, luz, sons toda sua vida , justificando que se sentou (...) perto dela com a sua permissão. E isto foi realmente necessário, pois pude contemplá-la para minha total satisfação, com todo meu coração (THE ISLAND OF SOKÚROV, 2011). Desta maneira, a aproximação extrema da câmera parece ser essencial ao filme enquanto procedimento de produção de imagens -, pois, além de ser necessária, é consensual. Vale ainda reforçar que Sokúrov e sua trupe de mágicos presenteiam-nos com um filme que vai muito além da descrição da intimidade de uma paisagem japonesa e das trivialidades da rotina e dos afazeres da costureira Umeno Matshuieshi, pois, como também diz a voz masculina no filme, Eu não posso me apartar de sentimentos que me capturaram... como se minha alma estivesse em busca de Beleza e Bondade (THE ISLAND OF SOKÚROV, 2011).
101 leitura convencional de um livro - que é de autoria do próprio Sokúrov, segundo informações publicadas no site oficial (versão em inglês – referenciada na nota abaixo) do diretor russo e segundo o livro Nel centro dell´oceano que contém tal fala impressa na sua totalidade (SOKÚROV, 2009, p.209-224). (22) Texto traduzido pela autora, a partir do texto contido no site THE ISLAND OF SOKUROV: A Humble Life. Documentaries. Filmography. An oficial site of Aleksandr Sokurov. Disponível em < http://www.sokurov.spb.ru/i sland_en/documetaries/smir ennaya_zhizn'/mnp_smz.ht ml >. Acesso em 3 de dez. 2011.
(THE ISLAND OF SOKÚROV, 2011)
(22).
Conforme já mencionei anteriormente, Lotman conclui: o cinema fala-nos por meio de diversas vozes que formam contrapontos complexos. Além disso, esse autor declara a intenção de seu trabalho sobre a estética e semiótica do cinema como a de esclarecer ao espectador a existência de uma linguagem cinematográfica, contribuindo para o desenvolvimento das suas [espectador] observações e reflexos neste domínio (1978, p.181). Assim também declaro as proposições deste ensaio: como um estudo e reflexão sobre o como o cinema de Sokúrov em Vida Humilde fala-nos, sussurranos e conversa conosco provocando nossos sentidos e sentimentos recônditos.
102 Bibliografia AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2008. _________________. A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1993. _________________.MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas: Papirus, 2006 BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BALÁZS, Béla. The Theory of the film: Character and Growth of a New Art. London, Dennis Dobson, 1952. EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. __________________. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002(b). HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Edição eletrônica versão 1.0. S.l.: Editora Objetiva, 2009. LOTMAN, Yuri. Estética e Semiótica do Cinema. Lisboa: Editorial Estampa, 1978. MACHADO, Irene. Analogia do Dissimilar: Bakhtin e o Formalismo Russo. São Paulo:Perspectiva, 2011. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003 SOKUROV, Aleksandr. Nel centro dell´oceano. Milano: Bompiani, 2009 MADEIRA, Maria et alii. Aleksandr Sokurov: Elegías Visuales. Trad. Jorge Segovia. S.l: MALDOROR ediciones, 2004. Disponível em: < www.maldororediciones.eu/pages/sokurov.hmt >. Acesso em: 8 dez. 2010. THE ISLAND OF SOKUROV. (Остров Сокурова). Site oficial de Aleksandr Sokúrov. Disponível em <http://www.sokurov.spb.ru/island_en/documetaries/smirennaya_zhizn'/mnp_smz.html >. Acesso em: 3 dez. 2011.
ao lado
Vida Humilde. (SOKÚROV, 1997, 01:02:39)
104
A desproporção: de Eisenstein a Sokúrov Neide Jallageas ...é tarefa da arte tornar manifestas as contradições do Ser. Serguei Eisentein
Iniciemos pensando em que poderia consistir a desproporção a ser aqui discutida. Caso consultemos um dos dicionários da língua portuguesa (do Brasil), o Houaiss, por exemplo, poderemos constatar que desproporção pode ter as seguintes acepções: 1 desigualdade na proporção. 2 desarmonia em relação ao que se considera proporção normal, desconformidade, anormalidade . Em qualquer dos casos, trata-se de algo que, estando em relação a um conjunto, a este é comparado e dele se destaca pela diferença. Daí, por exemplo, é desproporcional o que é observado em relação a um conjunto em que os elementos se equiparam por semelhante ou igual proporção. O mesmo ocorre com a irregularidade, termo que Eisenstein lança mão como um equivalente à desproporção espacial. É irregular o que é observado em relação a um conjunto de regulares, assim considerados por obedecerem a determinadas regras.
105 (1) Victor Chklóvski foi um dos fundadores do OPOIAZ (Óbchchestvo po izutchéniu poetítcheskovo traduzido como
iaziká,
Associação
para o Estudo da Linguagem Poética),
um
centro
de
pesquisas criado em 1914 por jovens investigadores da linguagem. (Joaquín Jordá. In. SHKLOVSKI, 1971, p. 7-22).
Para grande parte dos teóricos, filósofos e artistas russos contemporâneos de Eisenstein, a tensão provocada pelo confronto entre partes diferentes em uma obra, assim como a desproporção e a irregularidade, é condição inalienável da experiência artística. Para eles, a interação entre opostos no campo artístico constitui-se em forma de dinamizar a percepção da obra e do mundo. Assim também pensavam, o filósofo Pável Floriênski (1882-1937) e o linguista Victor Chklóvski (1893-1984) (1), dois bons exemplos no campo teórico russo do início do Século XX. Floriênski escreveu, dentre outros, A perspectiva inversa (Obrátnaia perspektiva), ensaio teórico que objetivou colocar em cheque a proporção geométrica no espaço artístico, buscando na perspectiva inversa um ponto de partida para pensar a imagem em outra chave que não a da codificação matemática. Chklóvski, por sua vez, forjou o neologismo ostraniênie (остранение), que pode ser traduzido para o português como estranhamento , para nomear o procedimento através do qual o artista destaca o objeto dos fatos da vida (CHKLOVSKI, 1973, p. 43-44) possibilitando ao espectador novas possibilidades de perceber a obra de arte. Dentro do repertório conceitual de Serguei Eisenstein (1898-1948), a interação da parte desproporcional com as demais, ou seja, a desproporção, é um procedimento utilizado constantemente pelos artistas de todos os tempos, por meio do qual é possível dinamizar a inércia da percepção, sendo também o que determina a força de expressão da obra de arte. Ao pensar em uma dramaturgia que não se esgote na dramaturgia do argumento do filme , Eisenstein chega à concepção de uma dramaturgia visual, aquela que é forjada pela sintaxe, pela gramática do cinema e composta por várias classes de desproporção. Dentre estas, Eisenstein distingue a desproporção espacial da desproporção temporal (EISENSTEIN, 1990, p. 53). Para a finalidade da presente discussão, vou me deter, por hora, apenas na primeira, a desproporção espacial a qual é também nomeada pelo cineasta de irregularidade. As conclusões a que chega o cineasta, na formulação de sua teoria, sempre são embasadas em estudos que realiza de obras de vários períodos e lugares e dos mais diversos autores. Assim, por exemplo, cita, como fontes de seus estudos sobre a desproporção, dentre outros, tanto um pintor francês, no caso Auguste Renoir (1841-1919), como um poeta também francês, Charles Baudelaire (1821-1867), quanto um artista japonês do Século XVII, Toshusai Sharaku, de quem é tributário para criar os seus mais radicais grandes planos , discutidos a seguir. Note-se, por exemplo, como Eisenstein cita Renoir, quando este afirma que:
106 A beleza de qualquer descrição vi encontrar seu encanto na variedade. A natureza odeia tanto o vácuo quanto a regularidade. Pela mesma razão, nenhuma obra de arte pode ser realmente assim chamada se não foi criada por um artista que acredita na irregularidade e rejeita qualquer forma estabelecida. Regularidade, ordem, desejo de perfeição (que é sempre uma falsa perfeição) destroem a arte. A única possibilidade de manter o sabor da arte é inculcar nos artistas e no público a importância da irregularidade. Irregularidade é a base de qualquer arte (Ibidem, p. 54).
E recorre também a Baudelaire, quando este argumenta que O que não é um pouco distorcido não tem apelo emocional; disso se segue que a irregularidade - isto é, o inesperado, a surpresa e o espanto, são uma parte essencial e característica da beleza (Ibidem, p. 54). Para colocar em prática o que entende por irregularidade ou desproporção espacial, Eisenstein também estuda os retratos do ator japonês Tomisaburo Nakayama, nas gravuras de Toshusai Sharaku (figuras abaixo), a partir da análise de Julius Kurth (18701949). Nelas o cineasta observa como a expressão do ator retratado ganha força através de distâncias desproporcionais entre partes do rosto e de membros, conforme Kurth:
esquerda
Toshusai Sharaku The Actors Arashi Ryuzo and Otani Hiroji III. 1794. ditreita
Tōshūsai Sharaku The Kabuki actors Bandō Zenji ; 1794.
Foi com uma total consciência que ele [Sharaku] repudiou a normalidade e, apesar de o desenho de traços isolados depender do naturalismo rigorosamente concentrado, suas proporções foram subordinas a considerações puramente intelectuais. Ele estabeleceu a essência da expressão psíquica como a norma para as proporções dos traços isolados (apud EISENSTEIN, 1990, p. 38)
107 Eisenstein levanta a hipótese de que, no cinema, essa desproporção, originada de um desmembramento de um evento que flui na tela, oferece a ao espectador a oportunidade de reunir suas partes desmembradas em um todo, sob o seu próprio ponto de vista, conforme a relação que cada espectador tenha com o evento em questão. Dessa forma, o cineasta concebe a desproporção espacial entre vários planos sequenciais. Um bom exemplo desta formulação de Eisenstein levada às telas, encontra-se em seu último filme, Ivan, o Terrível. Em pouco mais de três minutos, pouquíssimos diálogos e planos que se alternam em gerais, primeiros e médios, até alcançar o primeiríssimo plano do rosto de Ivan que, em dado momento, se contrapõe aos milhares de súditos ao fundo, em um processo também gráfico, uma linha ondulante desenhada por Eisenstein para redimensionar, à percepção do público, de forma dramatúrgica visual , a obediência, a submissão do povo russo ao
acima
Ivan, o terrível. (EISEINSTEIN, 1944, 01:35:28 a 01:38:52
108 poder do Tzar. Esta imagem é obtida através do conflito de planos, finalmente, em um único fotograma. Temos o primeiro plano. Se Eisenstein arquitetou, em teoria e prática, a dramaturgia visual , na primeira metade do século XX, é na virada do século XX para o XXI, que Sokúrov o retoma em vários de seus filmes, dentre os quais, um bom exemplo é Hupert Robert, uma vida afortunada realizado em 1996. Levantar alguns dos aspectos do conceito eisensteiniano da desproporção, observados neste filme de Sokúrov, é o que se pretende a seguir. (2) Refere-se aqui ao DVD da Ideale Audience International, 2006. Alexei Iankóvski é Assistente
de
Direção
e
Coordenador de Produção de Hubert Robert, uma vida afortunada.
Hubert Robert (1733-1808) foi um pintor francês. Se para nós, no Brasil, Robert é quase um ilustre desconhecido, o crítico russo Alexei Iankóvski o apresenta, nas notas que acompanham o filme de Sokúrov (2), como um pintor conhecido por qualquer colegial de São Petersburgo, pois, nesta cidade encontra se um grande número de suas pinturas (e não apenas no Hermitage que detém aproximadamente quarenta telas de Robert). Sabe-se que os tzares e a nobreza russa tinham por este pintor grande admiração, talvez comprassem suas obras com tanto entuasiasmo, porque (também segundo Iankóvski) se consideravam mais próximos da Europa Ocidental que da Rússia . Iankóvski afirma ainda que, apesar da notoriedade entre a mais alta nobreza russa, Hupert Robert é mais considerado um 'decorador de interior' e suas pinturas são consideradas medianas. E assim, arremata ele, com certa ironia, foi neste contexto que foi realizado o filme sobre a triste história de uma vida feliz, uma carreira de artista de muito sucesso . A ironia de Iankóvski ao comentar o filme de Sokúrov não é casual. Vejamos: Convidado pela direção do Hermitage a fazer o primeiro filme que integraria a série de curtas O universo do Hermitage (o que hoje, sabemos, daria origem a Arca Russa realizado em 2002), foi Sokúrov quem escolheu o seu tema. Além de optar por um determinado pintor, que representaria o Hermitage e o apreço dos russos pela arte européia, o cineasta escolheu também um conjunto de obras para expressar suas ideias e logo tratou de colocar em diálogo duas culturas centrais em seu próprio universo temático: Oriente e Ocidente (e a cultura russa entre uma e outra).
109 Sabe-se que Hubert Robert foi um artista afortunado . Sua pintura, forjada pela imaginação e grande domínio técnico e dinamismo criativo, o fez concorridíssimo entre os poderosos e Sokúrov, descrevendo o pintor ao longo do filme, em voz off, irônica e tristemente, nos assegura que os tzares russos não poupavam rublos para adquirir suas telas.
(2) Refere-se aqui ao DVD da Ideale Audience International, 2006. Alexei Iankóvski é Assistente
de
Direção
e
Coordenador de Produção de Hubert Robert, uma vida afortunada.
E cabe responder, ainda que de forma resumida, a seguinte questão: em que consistem tais telas? Esse dado é relevante para avançarmos na discussão sobre a desproporção espacial, pois Robert trabalha justamente a desproporção humana frente a ruínas históricas. Na maior parte das telas selecionadas por Sokúrov, diminutas figuras humanas são dispostas meio a imensas ruínas e, em uma dessas telas, em particular, há uma pequena figura que é um autoretrato do pintor, diante de uma ruína romana de grandes dimensões, trata-se da tela denominada Maison Carrée. Guardemos em mente esta pintura será retomada à medida que seguimos.
esquerda
Hubert Robert Paisagem, pintura a óleo. 1790 direita
Hubert Robert Paisagem, pintura a óleo. 1783
110 Antes, porém, vejamos um pouco mais da vida afortunada de Robert. É historicamente sabido - e Sokúrov sublinha no filme -, que o final da vida do pintor foi um tanto trágico, o que por si só demonstra uma contradição entre o que é conhecido da biografia de Robert, e o subtítulo do filme: uma vida afortunada. Bem sucedido comercialmente e beneficiado pela corte, Robert viu morrer todos os seus quatro filhos, um a um, e ainda, quando Napoleão subiu ao trono, desalojou-o da residência luxuosa que ocupara por vinte e cinco anos, junto à família, no Louvre, local em que trabalhara como conservador. As duas faces: a glória e o infortúnio em uma mesma vida. O filme tem pouco mais de vinte minutos. A voz off, doce, tranquila e talvez triste de Sokúrov, vai descrevendo a vida de Robert, sua fortuna e sua desventura. De início, é mostrada uma cena externa, provavelmente no Japão, durante a qual ocorre uma apresentação de teatro Nô. Sokúrov alterna sequências desta apresentação com imagens que mostram pinturas de Robert no interior do Hermitage, até que a apresentação japonesa chegue ao final e até que seja concluída sua narrativa sobre Robert. Tudo construído em um tempo ralentado, em que a câmera, ao capturar tais pinturas e o interior do museu, desliza suavemente sobre cada uma delas, muito próxima e com grande intimidade. A imagem é elaborada de forma que o resultado final se mostre com distorções, quer as figuras sejam alongadas, quer pouco definidas, ou alteradas em suas cores e luminosidade. Uma dessas pinturas é merecedora de atenção especial. Trata-se da já mencionada Maison Carrée, na qual o próprio Robert está autorretratado. Sokúrov fragmenta, desmembra (segundo o vocabulário eisensteiniano), as imagens em planos diversos e mais, utiliza recursos ópticos para distorcer. A pequena figura do pintor ocupa, em seu filme, grandes dimensões, todo o espaço do quadro, mas se apresenta distorcida, em variações. É essa figura distorcida do pintor, que sabemos ser um fragmento da tela toda (Maison Carrée), que dirige seu olhar para o alto do quadro, à esquerda. E esse fragmento é seguido de outros, de imagens de ruínas, ou melhor, de outros fragmentos, que são cortes de imagens de ruínas e ocupam todo o quadro. Tal procedimento de intercalar a pequena figura, cada vez distorcida, com cortes de imagens de ruínas, se repete várias vezes, ao longo do filme, enquanto a voz off de Sokúrov segue descrevendo a vida do pintor. Merecedoras de atenção, também, são as sequências da apresentação de teatro Nô. O filme inicia-se exatamente com a sequência dos atores entrando no espaço cênico do Nô, montado ao ar livre, rodeado por cerejeiras, durante a noite, sob a neve que cai suavemente. O filme finaliza mostrando o término da encenação Nô. Também aqui, fragmentos recortados da longa sequência de toda a encenação Nô, do início ao fim, são intercalados por pequenas sequências que capturam as telas de Robert e também detalhes arquitetônicos do Hermitage. A oposição entre as sequências com os atores Nô e as sequências que narram a vida e a obra de Robert evidencia-se através do discurso visual, ou como Eisenstein nomeou, da dramaturgia visual.
111
(3) A tradução do russo, foi realizada de forma livre, pela autora.
abaixo
Hubert Robert. uma vida afortunada (SOKÚROV, 1996, 00:04:04 a 00:04:54)
Sokúrov realça a atuação dos atores japoneses. Conforme sua narrativa em voz off, os atores surgem em silêncio, meio à névoa, e parecia que não pensavam em nada (3). O que é mostrado é exatamente o que é narrado pela voz off: os atores entrando lentamente no cenário do Nô, meio à névoa, eretos, elegantes, serenos, graciosos, ocupando todo o quadro, sendo que a imagem de seus corpos é cortada pouco abaixo de seus quadris. A máscara , explica Sokúrov, cobria o rosto dos grandes atores, atores eternos . E os vemos altivos, preenchendo o quadro, com suas roupas cor de cereja, brilhantes, frente a uma árvore que se lhes equipara em altura. Um milagre , afirma ainda Sokúrov em voz off. E, enquanto continua mostrando os atores em cena, a narrativa começa a se distanciar do que é mostrado. O cineasta narrador recorda um texto de Dostoiévski: Sem saber como, me encontrei em outro país. Tudo era igual ao nosso país, mas tudo parecia radiante, alcançando a glória, finalmente. Árvores altas e belas se erguiam em todo o seu explendor mostrando suas flores e suas incontáveis folhas, tenho certeza, me saudavam com seu sussuro suave e estranho como se murmurassem palavras de amor. Pouco antes deste ponto final a copa de cerejeiras fundese aos poucos a outra imagem que lhe é sobreposta, trata-se da copa de outra árvore. E a voz off de Sokúrov segue: Por fim enxerguei os habitantes desta terra feliz. Eles se aproximaram e me acariciaram. Todos queriam me acalmar. Não me perguntaram nada, mas pareciam saber de tudo. Nesse momento, é mostrada, com definição (embora distorcida pelas lentes da câmera), a imagem da copa da árvore da pintura de Robert, Parede verde , soberana, e Sokúrov continua: Que
112
(4) Para Eisenstein, pars pro toto
constitui-se
na
“identidade da parte com o todo e, em consequência, a 'equivalência', a significação igual quando se substitui um pelo outro” (Ibidem, p. 124).
quadro tão maravilhoso Mas quem é seu autor? E por que me apareceu precisamente este quadro? E repete: Sem perceber, encontrei-me em outro país. Tudo parecia radiante, alcançando o triunfo por fim. Árvores altas e belas se erguiam em todo o seu explendor mostrando suas flores e suas incontáveis folhas, tenho certeza, me saudavam com seu sussuro suave e estranho como se murmurassem palavras de amor. A câmera continua percorrendo lentamente o quadro e a voz off segue: Mas quem pintou este quadro? Ah, agora me recordo, Robert. Hubert Robert . Daí para a frente, tem início as variações sucessivas que serão realizadas entre os fragmentos de quadros, de vistas do Hermitage e das sequências do Nô, até o final. Nesse ponto, podemos retomar Eisenstein, para quem a montagem não se constitui em sequência, mas em sobreposição, o que pode ser conferido em sua argumentação sobre a sintaxe do cinema, ou seja, a linguagem do cinema e sua concepção de dramaturgia espacial. Sobreposições também podem ser observadas neste filme de Sokúrov, conforme acabamos de notar: uma sobreposição fundamental neste filme é realizada com as imagens das árvores, uma capturada a partir da tela de Hubert Robert e a outra, da cerejeira, próxima aos atores Nô. Essa sobreposição inicial das árvores, uma espécie de prólogo, anuncia o eixo da dramaturgia visual que constitui todo o filme. Tais árvores são, como Eisenstein nomeia, pars pro toto (4), ou seja, as árvores são parte de um todo, sendo a cerejeira parte do Oriente e a árvore de Hubert, parte do Ocidente. Tal interação de imagens se reveste de especial beleza poética e vai prosseguir por todo o filme, conforme as imagens do Nô e de Robert sejam intercaladas. Este seria o processo ideogramático. Eisenstein recorre a ele quando discute a desproporção nas gravuras de Sharaku. Para o cineasta, nos retratos do japonês, os traços isolados (a desproporção entre olhos, nariz, boca e pescoço, por exemplo) são restabelecidos pelo espectador para formar um novo significado, uma expressão psíquica e não naturalista do retratado. Da mesma maneira, Eisenstein compreendeu que procedimento equivalente pode ser realizado com a imagem em
113 movimento, fragmentando partes de um evento que flui normalmente , desintegrando o evento em vários planos , resultando disso uma desproporção monstruosa (Ibidem, p. 38-39). É o que podemos observar com os cortes e recortes que Sokúrov procede nas sequências acima descritas em Hubert Robert. Tanto no evento do Nô, quanto da narrativa visual da vida e obra de Robert, há a desintegração de ambos os eventos. E mais: ambos vão se alternando, em contraponto. O espaço do Ocidente e o espaço do Oriente em tensão. A fragilidade e a individualidade do pintor europeu, um homem de sua época , sua felicidade e sua desgraça, contrapostas ao anonimato, ao silêncio e à tranquilidade dos eternos atores orientais. Sokúrov reafirma o tema oriental através de um filme que, de início, deveria ser dedicado ao Museu Hermitage e mais, à coleção de um de seus pintores europeus. Mas o que o cineasta faz é problematizar, ainda que com argúcia poética, as relações, aproximações e distanciamentos entre Ocidente e Oriente e a Rússia, neste espaço de intersecção entre Europa e Ásia. Duas culturas que são contrapostas, através de sua arte, de seus artistas. O que acima é demonstrado constitui-se apenas em uma das possibilidades do que Eisenstein teoriza sobre a dramaturgia da forma do filme . Ainda que não tenhamos visto e discutido aqui outras possibilidades, vale ressaltar que Sokúrov demonstra a sua
ao lado
Hubert Robert. uma vida afortunada (SOKÚROV, 1996, 00:02:25 e 00:01:53)
114 desenvoltura em efetivar a dramaturgia visual , também construindo camadas sutis do texto, trabalhando a sintaxe no plano discursivo verbalizado por ele mesmo, mas também na seleção de sons, ruídos, música, que resulta na montagem dos planos, nos reenquadramentos, nas distorções ópticas. Ou seja, Sokúrov elabora uma complexa tessitura de contraposição de imagens enquanto seu discurso verbal, delicado e suave, descreve a ação com as quais ele se defronta: o movimento soberano dos atores do teatro Nô, as vestes volumosas que os fazem parecer maiores ainda e a câmera sokuroviana que os traz, em primeiro plano, enquadrando-as levemente de baixo para cima (o que, sabemos, faz com que o objeto pareça ainda maior). E vai enquadrar a diminuta figura de Robert, em Maison Carrée, de cima para baixo, de tal forma que as ruínas sejam maiores ainda, repetindo, inclusive, a própria ação do pintor, que se autorretratou em tamanho ínfimo, diante das ruínas. E, para tornar o discurso ainda mais complexo, ouvimos Sokúrov afirmar, docemente: Quando uma obra arquitetônica morre de morte natural não há horror, apenas melancolia. A melancolia mais simples e, portanto, a mais universalmente compreensível. Ruínas. Pode-se passar horas olhando para elas e, sem dúvida, isso cura a arrogância . Pode-se, talvez, afirmar que a maior dificuldade de Sokúrov tem consistido em sua incapacidade de oferecer o óbvio ao espectador. Em vez disso, lança o seu público por caminhos tortuosos para um exercício de percepção sensível. A aparente delicadeza com que ele tece seu discurso encobre, tal e qual a máscara do Nô, uma trama de conflitos dos mais diversos níveis no plano da imagem, do som e tudo isso elaborado através dos recursos da montagem plano a plano e dentro de um mesmo plano. E neste sentido, Sokúrov parece proceder exatamente segundo o que Eisenstein insistiu em afirmar: que do impacto (ou colisão, ou conflito) de dois planos diferentes entre si, em oposição, nasce um conceito, ou, ainda, o princípio dramático.
115 Bibliografia CHKLOVSKI, Victor. A Arte como Procedimento . In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira. Teoria da Literatura formalistas russos. 1ª ed. 2ª reimpr. Trad. Ana Mariza Ribeiro Filipouski; Maria Aparecida Pereira; Regina L. Zilberman; Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo, 1973. Original russo. DOISTOIÉVSKI, Fiódor. O crocodilo e Notas de Inverno sobre impressões de verão. Trad. Schnaiderman. São Paulo: 34, 2008.
Boris
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. São Paulo: Jorge Zahar, 1990. HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0.10. São Paulo: Objetiva, 2006. CD-ROM. JANKOWSKI, Alexei. Notas de Edición. Hubert Robert. Una vida afortunada . In Dolorosa Indiferencia. Paris: Ideale Audience International; Chicago: Facets Video, 2006. DVD. SCHNAIDERMAN, Boris In DOISTOIÉVSKI, Fiódor. O crocodilo e Notas de Inverno sobre impressões de verão. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2008.
116
abaixo
Hubert Robert. uma vida afortunada (SOKĂ&#x161;ROV, 1996, 00:19:51)
INTERSECÇÕES
He estado viendo algunas películas de Sokurov que no conocía. 'Dolce', por ejemplo. Qué cosa tan magnífica, siendo nada. Que salpicadura de agua, qué maravilla de salpicadura. Escribí unas líneas después, líneas que no se pueden llamar poema pero que me gustaría poner aquí. Árboles de tinta mancharon su costado. Pasión del sufrimiento sobrevenido. Como la lluvia, al caer se hace fuente la muda voz del mundo.
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Rússia, território de mil demônios Alvaro Machado Texto atualizado em abril de 2012, a partir de comunicação no evento Cinema Russo: Sokúrov em Debate, promovido pelo Departamento de Línguas Orientais da Universidade de São Paulo, nos dias 17 e 18/11/2009, e do qual participaram também o eslavista Georges Nivat e os professores Boris Schnaiderman, Elena Vássina, Arlete Cavaliere e Neide Jallageas.
(1) Composta por Elegia Oriental (1996), Vida Humilde (1997), e dolce... (1999).
No limite geográfico do Ocidente e tributária desse hemisfério quanto aos grandes ciclos de arte e pensamento, a nação russa é, ao mesmo tempo, como um portal para a imensa antítese cultural representada pelos povos a Oriente. Nessa situação, de tal maneira intermediária e sujeita a receber influências, a Rússia possui, de fato, uma cultura original? Em seu trajeto histórico, tem posicionado balizas próprias ou, ao contrário, não seria mais que filha bastarda da tradição europeia, eterna devedora da literatura e filosofia francogermânicas? Na filmografia de Aleksandr Sokúrov, composta até o momento de sessenta obras entre ficções e documentários de caráter autoral, estes nomeados elegias , a questão das passagens e intercâmbios entre o pathos russo e as culturas a leste e a oeste de Moscou surge com frequência. Não importa a língua ouvida na trilha sonora inglês, alemão, japonês ou francês , a reflexão sobre a ambivalência da posição russa no panorama global se encontra em obras sokurovianas tão distintas entre si quanto a adaptação da Madame Bovary, de Flaubert (Salvai e Protegei, 1989), a filmagem da peça Heartbrake House, de Bernard Shaw (Dolorosa Indiferença, 1987), ou, ainda, em todos os títulos da trilogia oriental rodada no Japão ao longo dos anos 90. (1) Mesmo a mais recente obra do cineasta, o Fausto (2011), baseada no clássico de Goethe, aponta em suas entrelinhas a posição peculiar da Rússia perante a grande questão ética que a partir do século XVII abrange todo o mundo ocidental culto o poder científico. Simplesmente porque
129 Sokúrov decidiu entregar a interpretação do demônio, ou Mefistófeles, a um ator de expressão corporal requintada (Anton Adasinki, também mímico profissional) que é o único russo em meio ao elenco de intérpretes alemães e austríacos. De maneira sutil, porém inequívoca, com tal escalação de papéis, o diretor identifica o caráter russo ao desvio de conduta, ao olhar divergente, à vocação para o mergulho nos infernos, que, aliás, a literatura de seu país empreendeu bravamente, após Goethe e a era romântica, com a linhagem de escritores iniciada por Púchkin e Gógol. Em sua investigação sobre tema tão amplo, o diretor aliás, formado em História antes de Cinema tem encontrado, sobretudo pelo estudo da citada literatura, respostas muito diversas daquelas obtidas pelos cineastas-pensadores que o antecederam em seu país. Mesmo se considerarmos que, nos olhares que lançou sobre o tzar Ivan e o general Aleksandr Niévski emblemas nacionais que empreenderam campanhas contra povos a oeste e a leste de Moscou , Serguei Eisenstein tenha acabado por colocar de ponta-cabeça a cartilha da História, como bem perceberam Stálin e seus prepostos ao condenarem ao limbo todos os filmes que o diretor realizou entre 1931 e 1945. A inclinação para a reinterpretação histórica em suas mais amplas possibilidades é patente, sobretudo, no único sucesso de público de Sokúrov, Arca Russa (2002), uma original aliança entre novas técnicas digitais e imitação de modos e escolas de pintar na tradição ocidental. No âmbito da discussão mundial levantada por esse filme à época de sua estreia, o professor Boris Schnaiderman escreveu dois artigos memoráveis, nos quais se deteve sobre a visão sokuroviana das confluências e distanciamentos entre as maneiras de sentir, pensar e agir de Europa e Rússia. (2) (2) SCHNAIDERMAN,
Boris.
Artigos para o jornal O Estado de S. Paulo (Caderno 2) em 16/10/2002 e 05/01/2003.
Ou, situando-se a questão de outro ângulo: Schnaiderman e muitos outros antes dele refletiu sobre a tão ambígua sintonia entre esses dois pólos, pois, segundo Sokúrov e sua Arca Russa, a despeito das definições correntes, a Rússia parece ser Europa apenas como travesti, ou seja, de maneira postiça ou fortemente adaptada e, no limite, falsa. De que outra maneira interpretar, por exemplo, as gags visuais e verbais que o diretor destinou aos grandes monarcas russos ao longo desse filme? Apesar de percorrer as alas de um museu-palácio de maneira espacialmente linear, a obra lança mão de uma série de recursos de linguagem reviravoltas cronológicas que ressignificam passado e presente, fatos superpostos por meio de profundidade de campo, e ainda toda uma rede de sentidos advinda de tratamentos de colorido e luz capazes de ampliar seu conteúdo para muito além do que é medido pelo
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(3) GARCIA DOS SANTOS, Laymert.
In
Aleksandr
Sokúrov (MACHADO, Alvaro, org.), São Paulo: 2002, Cosac Naify/Mostra Internacional de Cinema, p. 65.
cronômetro e potencializando os 96 minutos de projeção para dimensões insuspeitadas. Veja-se, por exemplo, a apreciação do ensaísta Laymert Garcia dos Santos, para o qual Arca Russa constitui uma série de imagens virtuais da memória do Museu Hermitage mescladas a suas imagens atuais (3), ou seja, aquilo que é habilmente sugerido nos interstícios assume importância tão grande quanto o que é expressamente exposto na tela de cinema. Assim, o filme revisa aspectos da história do monumental edifício inaugurado no século XVIII como palácio de inverno da monarquia russa, e da formação de uma coleção de arte, alimentada por uma sucessão de tzares desejosos de emprestar verniz europeu, tanto à burguesia russa ascendente quanto a um aparato aristocrático de maneiras, àquela época, muitas vezes comparáveis às de camponeses embrutecidos pela pobreza extrema. Para tal finalidade, lembra o cineasta-historiador, ou seja, para fazer São Petersburgo alcançar e superar os brilhos do Oeste, foram convocados aos salões palacianos tantos pincéis de mestres ingleses, franceses, alemães, espanhóis, italianos e flamengos. Formou-se, assim, tamanho tesouro de interpretação da beleza que, apenas cem anos após as primeiras aquisições, ou seja, em meados do século XIX, o tzar Alexandre I, de formação iluminista, não viu alternativa senão abrir à visitação pública a estupenda coleção e, com ela, parte dos aposentos do edifício em estilo rococó. Na ritualística que costuma cercar a gravação de uma encenação em tempo real que em Arca Russa excede muito os limites físicos de um palco teatral , milhares de moradores da atual São Petersburgo ajudaram a recriar algo como o último baile imperial , a cerimônia de despedida de tantos séculos de governo monárquico. Mais do que integrar uma grande reconstituição histórica, número tão significativo de participantes locais contribuiu para avalizar a tese do diretor de triunfo do inabalável edifício mescla de último refúgio do modo de vida aristocrático com templo e catálogo da memória universal sobre o século XX de revoluções populares e massificação da produção artística. Por outro lado, parte da crítica europeia viu nessa encenação apenas nostalgia pessoal e o diretor foi rasamente tachado de reacionário . De maneira previsível, vários críticos brasileiros lotados na grande imprensa ecoaram a opinião. Como se soubesse perfeitamente das reações que provocaria na crítica mais despreparada e nos profissionais do lugar-comum, e como se zombasse antecipadamente do julgamento néscio, Sokúrov destinou o papel de narradorprotagonista a um marquês e escritor francês. Este se movimenta da maneira mais livre possível pelo palácio-cenário:
131 como um fantasma, atravessa portas e paredes, flanando pelas antigas alas residenciais e salões de recepção gradualmente convertidos no Museu Hermitage. Mostra-se capaz, ainda, de avançar e retroceder no tempo, em intervalos de até três séculos. Em todas as situações, porém, o nobre transpira julgamento crítico e um olhar superior , ou mesmo depreciativo, podendo-se citar, como exemplo de seu espírito ácido, certo comentário sobre Púchkin, poeta seminal da modernidade russa. Ao mesmo tempo, o aristocrata estrangeiro parece dotado de grande vivacidade e mesmo de capacidade de maravilhamento perante certas atitudes de seus congêneres peterburguenses, às quais ele assiste de camarote (e, com ele, o espectador). Acompanhamos, enfim, o nobre francês espreitar as relações estabelecidas pela monarquia russa com alguns estilos e escolas europeus de arte e arquitetura, até o retrato oficial, recriado em película cinematográfica, dos Romanov, última geração do império, já às vésperas do fuzilamento. Em Arca Russa, testemunhamos, enfim, a par de idiossincrasias monumentais dos governantes, as providências régias para a educação artística da corte russa, de modo que esta não fosse rebaixada quando confrontada, em matéria de ilustração, com as elites sociais a oeste de São Petersburgo. Porém, não importa o brilho do jantar e do baile oferecidos por Nicolau II. Nos minutos finais da silenciosa saída dos convidados dessa protegida reunião e da arca russa do palácio, imiscui-se o veneno da famigerada melancolia russa, para mostrar em especial com a visão da névoa e da neve sobre o espelho do rio Nievá , que toda essa multidão de espectros gentis está destinada à lata de lixo da História. Subitamente desalojada do conforto monárquico, a massa de mil pessoas será confrontada, nas palavras em off do narrador, com a solidão e o desespero do mar que engole as pernas . Conforme repete o diretor em alguns de seus filmes, como o documentário em cinco partes Obediência (1998), o gelado mar do Norte seria como a corporificação da morte e do nada ( Oh Senhor, e agora, o que será? Apenas o mar, o mar... , diz o narrador de Arca Russa). O desalento empana, enfim, a graça de qualquer volteio elegante de valsa e mesmo o marquês, antes tão animado, parece desorientado e impotente ante a visão da debandada dos convidados. A cultura europeia que interpenetra a literatura e a arte russas nos últimos séculos é tema privilegiado do diretor não apenas nesse filme. A ambiguidade dessa relação, que admite em certos momentos até mesmo o grotesco do decalque, também é exposta com clareza meridiana em Salvai e Protegei, a versão sokuroviana da Madame Bovary, de Flaubert.
132 Nesse filme, a protagonista ora se expressa num francês rebuscado, para interlocutores que não a compreendem, ora num russo que não domina, tornando a comunicação verbal desse filme uma tarefa impossível, seja para russos, seja para ocidentais. Cinco anos antes dessa produção, e logo após testemunhar a exibição de seus filmes em festivais ocidentais, o cineasta revelara ao diretor e teórico de cinema Paul Schrader: Comecei a experimentar certo arrependimento [por permitir a exibição de seus filmes em circuitos internacionais], porque às vezes observo, no Ocidente, reações muito estranhas. Às vezes alguém gargalha na plateia. É claro que compreendo que os ocidentais são muito diferentes e, ao mesmo tempo, muito solitários. Muitos mais solitários que a gente da Rússia. Eu diria, mesmo, mais enfermos espiritualmente, com sistemas morais obviamente muito diversos daqueles da Rússia (...). Assim, percebo que, no Ocidente, trato com um modo de vida que jamais chegarei a compreender . (4) (4)
SCHRADER,
Entrevista
Paul.
publicada
originalmente na revista Film & Culture, Nova York, set/97. In
Aleksandr
Sokúrov
(MACHADO, Alvaro, org.), São Paulo;
2002,
Cosac
Naify/Mostra Internacional de Cinema, p. 22.
(5) No entanto, em 2002, após debate promovido pela Mostra Cinema
Internacional e
realizado
de no
CineSesc (São Paulo), durante os autógrafos da coletânea de artigos sobre seu trabalho já citada, o cineasta conversou com dezenas de pessoas entre as cerca de cem que formaram fila, expressandose,
com
cada
uma,
em
diferentes idiomas e até mesmo por mímica.
esquerda
dolce. (SOKÚROV, 1999, 00:05:01)
Vale a pena notar, nessa citação, a objetividade com que o diretor designa Ocidente , ou seja, em oposição à Rússia , como se fazia em seu país até o século XIX. A partir de tal declaração, é fácil imaginar o desconcerto do diretor russo em sua visita ao Brasil, em novembro de 2002 (ainda que, felizmente, não se tenha registrado risos nas plateias da retrospectiva Sokúrov promovida). Na ocasião, o diretor revelou à intérprete Polina Vasiliev sua sensação de ter desembarcado diretamente na Lua e, para fugir a qualquer contato mais direto, alegava sistematicamente não saber expressar-se em inglês, francês ou espanhol (5). Paris parece constituir, de fato, para Sokúrov a última fronteira real do Ocidente. Para o temperamento desse cidadão nascido na antiga Sibéria oriental, mesmo Lisboa, já à beira do Atlântico, parece ter tido efeito desestabilizador, considerando que seu filme rodado naquela cidade, Pai e Filho, de 2003, soa como exercício de autoindulgência ou registro de férias na companhia de um punhado de atores diletos. Se, por um lado, nas elegias e documentários de Sokúrov, aborda-se com frequência o tema do exílio sofrido por artistas russos, como o cineasta Andriêi Tarkóvski e o baixobarítono e ator Fiódor Chaliápin (este foi tema de duas de suas elegias), trazendo à baila, portanto, nova carga de reflexão sobre a delicada relação entre Moscou-Petersburgo e o Ocidente , também o germanismo e o acervo intelectual da pátria de Goethe e Marx bem como do pintor romântico Caspar David Friedrich , constituem grandes influências, ou temas de
133
esquerda
dolce. (SOKĂ&#x161;ROV, 1999, 00:34:57 a 00:41:01)
134
135 estudo, desse artista que, mais que diretor, declara-se pintor de cinema e que, no lugar de pincéis, projeta e manda executar lentes e filtros especiais. Sem esquecer, nessa conta germânica, as obras musicais de Bach, Mozart e, sobretudo, do ultrarromântico Gustav Mahler, muito presente em suas trilhas sonoras. Páginas Ocultas (1993) é, por mais de um motivo, um dos melhores exemplos para o cinéfilo se aproximar da questão russa na visão de Sokúrov. Basta um dado técnico anterior às próprias filmagens para entender a razão. Ora, para as locações dessa obra livremente inspirada na literatura russa do século XIX e, em especial, em Crime e Castigo, de Dostoiévski, em vez de escolher um bairro arquitetonicamente preservado da própria São Petersburgo na qual se movimenta originalmente Raskólnikov, ou alguma cidade intacta do Leste Europeu com lugares que lembrassem os cortiços daquela capital nos anos 1860, o diretor transferiu elenco e equipe técnica inteira para a antiga Prússia, mais precisamente para as ruínas das indústrias Krupp, de onde saíram as armas e canhões com os quais a Alemanha açoitou Europa e Rússia ao longo das duas grandes guerras. Não poderia haver comentário mais direto quanto ao espírito alemão e europeu que regeu a construção de São Petersburgo e as consequências dessa filiação para a metrópole russa. A fábrica de armamentos abandonada com ares apocalípticos ou assombrados, como nas paisagens pintadas pelo suíço Bocklin e pelos alemães Caspar David Friedrich e Anselm Kieffer , forneceu uma moldura que com certeza dispensou retoques fotográficos por parte de Sokúrov. O diretor voltaria à Alemanha, em 1999, para inaugurar sua tetralogia sobre o poder. Moloch é o filme que teatraliza a intimidade de Hitler, escolhido pelo Festival de Cinema de Cannes para catapultar, com algum escândalo, o nome do cineasta para o mundo. A série do diretor sobre a megalomania alimentada pelo poder irrestrito seguiu com obras sobre Lênin e o imperador Hirohito e foi finalizada com o Fausto, este com locações realizadas na zona intermediária da República Tcheca e nas desabitadas terras de ninguém vulcânicas da Islândia. Já a escolha de Hirohito para continuar a tetralogia sobre a doença do poder é bastante significativa. O diretor poderia ter focalizado, por exemplo, Mussolini em lugar do japonês de suaves maneiras, manipulado por seu estado-maior. Mas a aproximação com a cultura oriental, e, em especial, com a japonesa, ocupa posição tão privilegiada no imaginário de Sokúrov quanto as questões da transplantação de culturas europeias para a Rússia e da incontornável proximidade ou contaminação? com a cepa alemã. Um visionário nascido, como Sokúrov, na Sibéria Oriental, ou seja, nas franjas da Ásia, talvez carregue em seus recônditos interiores meios insuspeitados de compreender as culturas a Leste de Moscou e o verdadeiro espírito oriental que tantos escritores, historiadores e filósofos reputam decisivo na formação do caráter russo. Mas, em lugar do célebre barbarismo de tártaros, mongóis e outros povos de olhos rasgados (e apesar de ter escolhido diversas vezes essas fronteiras para locações, como as de Os Dias do Eclipse (1988), Sokúrov prefere se debruçar sobre o extremo Oriente, sobre o Japão pródigo de enlevos e de sentimentos sutis até o limite do esgarçamento, e, nesse território, sobre o refinamento de existências devotadas a uma paixão exclusiva, circunstância que, aliás, sinaliza loucura ou ascese moral e espiritual. Sokúrov, e com ele o espectador, movimentase, portanto, na esfera de concentração mais característica da cultura nipônica. O Sol (2004), à parte expor o irracionalismo fanático dos súditos do imperador (mas também a refinada educação aristocrática e o alto senso de disciplina do povo), ecoa em outro diapasão os voos líricos que o diretor flagrou na trilogia composta por Elegia Oriental (1996), Vida Humilde (1997), e dolce... (1999), todos filmados no Japão.
136 Essa trilogia oriental , financiada em boa parte por capital japonês, se inaugura com Elegia Oriental, que focaliza um casal de habitantes de uma pequena ilha do arquipélago do Japão. Homem e mulher são mostrados em separado, sublinhando a opção quase monástica pela solidão, a despeito de seu casamento. Eles ritualizam para a câmera gestos e expressões que remetem às maneiras feudais do século XVI. Surgem a princípio desfocados e entre brumas, em depoimentos de tal forma à parte do tempo corrente que é como se o diretor tivesse filmado autênticos fantasmas, ou retomado os personagens do além-mundo que assombram o sempre incontornável (quando nos referimos à cultura japonesa clássica) Contos da Lua Vaga Após a Chuva (Ugetsu, 1953), de Kenji Mizoguchi. Por outro lado, o rigor revelado pela ética desses personagens, os cúmulos de sinceridade e os extremos de desapego afetivo e material ecoam curiosamente os monólogos dostoievskianos em que os personagens resolvem pôr em prática o autoexame definitivo. O filme termina com uma singela menção à imagem final de Solaris (1972), de Andriêi Tarkóvski, com a ilha de consciência planetária isolada em meio a um mar de esquecimento. Também não parece pertencer a este mundo a velha costureira de quimonos longamente estudada pela câmera de Vida Humilde (1997), única habitante de uma casa centenária, em região erma, e que recebe apenas, ocasionalmente, a visita de monges budistas pedintes (além, claro, de diretores russos de cinema). O contingente sokuroviano de viúvas-fantasmas a homenagear seus antepassados mortos seria engrossado, dois anos depois, com a extraordinária elegia visual e sonora que é dolce... . Dessa vez, o diretor tomou um episódio conhecido da literatura do Japão e, com uma equipe técnica reduzida, rendeu visita, numa ilha remota do mar do Sul, à viúva do premiado escritor Toshio Shimao (1917-1986). O contingente sokuroviano de viúvas-fantasmas a homenagear seus antepassados mortos seria engrossado, dois anos depois, com o extraordinário lamento visual e sonoro que é dolce... . Dessa vez, o diretor tomou um episódio conhecido da literatura do Japão e, com uma equipe técnica reduzida, rendeu visita, numa ilha remota do mar do Sul, à viúva do premiado escritor Toshio Shimao (1917-1986). Miho, a viúva, vive afastada do mundo, junto a uma filha inválida. Conserva, porém, vestes e adereços pessoais requintados em sua casa no alto de um penhasco. Atingida por acontecimentos trágicos em torno do casamento dos pais, a filha foi privada da fala e da locomoção plena. A história de Miho e seu marido já aparecera no cinema, no aterrador O Ferrão da Morte (Shi no Toge, 1990), obra-prima do diretor Kôhei Oguri premiada 14 vezes no Japão e no Ocidente, sobretudo pela interpretação da atriz Keiko Matsuzaka, impossível de ser descrita com adjetivos. O Ferrão da Morte (também título da principal obra de Shimao) narra o episódio em que, após descobrir que o marido mantinha um relacionamento extra-conjugal, a mulher do escritor perde a razão, sendo internada, então, na cela gradeada de um hospital psiquiátrico. O marido resolve internar-se na mesma cela e, após meses de confrontos e estilhaçamentos psicológicos inenarráveis, o casal renasce para a sociedade. Nessa última elegia oriental de Sokúrov, a Miho real parece ter depositado confiança irrestrita no diretor, a ponto de representar para a câmera sua própria biografia, mencionando diretamente, inclusive, o episódio abordado no filme de Oguri. Com o mesmo grau de entrega, Maya, a filha, também interage com a câmera de Sokúrov. A intimidade com o diretor torna-se oportunidade para Miho renovar seus rituais
137 de luto, que se tornaram, aliás, a razão de sua vida. Com gestos e entonações de artista de butô, Miho Shimao, então com 79 anos (e falecida sete anos depois) veste chapéu e luvas de luto ocidental para falar da inesquecível perda de sua mãe, quando ainda era adolescente. Depois escolhe um quimono branco com paisagem pintada em negro para cultivar, a um só tempo, as memórias do marido e do pai, este um valente que, ao tempo da Segunda Guerra, naquela ilha quase esquecida, ainda trajava-se à moda antiga, com quimono e espada de samurai. Nessa sequência impressionante, Sokúrov extrai de Miho nada mais, nada menos, que a narrativa detalhada da relação platônica incestuosa entre o pai samurai e a devotada filha professorinha de escola secundária, já que, para obrigá-la a viajar para a cidade de Kobe e casar-se com o então oficial da aviação Toshio, que certa vez a cortejara, o progenitor ameaça sacar ali mesmo sua espada e praticar o seppuku. Eis, portanto, sob uma vestimenta de imagem e de som que está entre as mais requintadas já obtidas pelo diretor russo, uma poderosa reinterpretação não só do tema do trabalho oriental do luto, que deu à cinematografia japonesa alguns de seus mais altos exemplos, mas também uma surpreendente síntese russa ou seja, sem rodeios do tema do pertencimento incestuoso. Quase prescindível lembrar, neste ponto, um dos mais frequentes enredos do mais japonês dos diretores japoneses, Yasujiro Ozu, autor de Pai e Filha (Banshun, 1949) e de outras três obras-primas em torno dessa questão tão cara à cultura de seu país.
138 O verdadeiro artista costuma revelar-se capaz de transcender largamente, em sua obra, conceitos de pátria, nacionalidade, filiação cultural etc. Porém, das arcas e elegias russas às nuances nipônicas, a filmografia de Sokúrov sugere, por outro lado, a Rússia como identidade singular, independente dos conceitos tanto de Ocidente como de Oriente, território cultural capaz de incorporar os espíritos de ambos os lados para devolvê-los, em seguida, com uma luz extraordinariamente nova. Aleksandr Sokúrov e sua obra indicam, portanto, a Rússia como valiosa intersecção, como intérprete das mais profundas escolhas de ambos os hemisférios, numa época que ameaça sepultar, em definitivo, especificidades culturais e filigranas do olhar.
ao lado
dolce. (SOKÚROV, 1999, 00:50:26 e 00:10:44)
140
Um ensaio cinematográfico para representar o Imperador Hirohito Christine Greiner O filme O Sol (2004), de Aleksandr Sokúrov, gira em torno do imperador japonês Hirohito. No entanto, não se trata de um filme que se contenta em narrar a biografia do polêmico imperador. É provável que alguns filmes de ficção que abordam personagens reais - assim como ocorre com documentários que combinam ficção e realidade - tenham se tornado, pouco a pouco, um novo gênero: o filme ensaio . É justamente assim que vejo a obra de Sokúrov. Ela nasce marcada por um olhar autoral que recorta alguns aspectos bem específicos de seu personagem principal, mas, ao mesmo tempo, não abandona a coerência histórica nem o teor analítico. Sokúrov opta por analisar personagem e contexto a partir de modos de percepção e não de concepções dadas a priori. Por isso, o que fala no filme é aquilo que não se diz: o silêncio, o gesto, o olhar. A primeira pergunta que floresce no decorrer da trama é afinal de que história Sokúrov está falando. Sem dúvida, ele não se restringe aos dados oficiais ou às imagens ideológicas de um dos homens mais surpreendentes da história do Japão. A sua opção é clara: trafegar pelos acontecimentos de passagem entre a imagem do imperador Sol e a do homem que, pela primeira vez, aparece para o público (e para si mesmo). As dificuldades nascem no período que antecede a narrativa construída por Sokúrov. Para os japoneses, Showa é o nome de um imperador e de uma era que vai de 1926 a 1989. Para o mundo, o imperador que esteve no poder durante todos esses anos ficou conhecido como Hirohito. No entanto, a sua fama não diz respeito apenas a seis décadas em que foi imperador, mas, sobretudo, aos acontecimentos que marcaram a época. A era Showa englobou o amadurecimento da modernidade no Japão (conhecida como era Meiji e que se estendeu de 1868 a 1912), a catástrofe da II Grande Guerra, o reconhecimento da derrota (assumido pelo próprio Hirohito) e o espantoso crescimento econômico aliado às mudanças da vida cotidiana que ocorreram após a devastação da guerra. Não é pouca coisa. Por isso, não é surpreendente que Sokúrov tenha escolhido Hirohito para completar a sua trilogia sobre ditadores que havia começado em 1999 com Moloch (sobre
141 Hitler) e, em 2000, com Taurus (sobre Lenin). A escolha do ator Issei Ogata para protagonizar o filme não poderia ser mais adequada. Nascido em Fukuoka, em 1952, Ogata já havia participado de filmes como Yi Yi (As coisas simples da vida, 2000) e Tony Takitani (2004), entre outros. No entanto é a atuação como Hirohito que marca definitivamente a sua carreira. Além de ser fisicamente parecido com o Imperador, Ogata incorporou, de maneira surpreendente, a gestualidade e a personalidade enigmática do personagem. O filme não pretende contar a longa história de Hirohito, mas, conforme mencionei anteriormente, concentra-se em um aspecto fundamental, como sugere o próprio título: a humanização do Imperador após a Guerra. O Sol transforma-se em ser humano. Deixa de ser um ente divino inacessível, tendo a sua fragilidade confundida com as ruínas das cidades devastadas pela Guerra. Trata-se de uma grande ruptura. Tradicionalmente, o imperador no Japão não era considerado humano, e sim uma divindade. Até a II Grande Guerra, o Imperador nunca havia sido fotografado ou sequer visto pela população. Este resguardo fazia parte da preservação de seu papel praticamente apolítico. A primeira decisão do Imperador foi justamente o reconhecimento da derrota para os Estados Unidos e, mesmo assim, esta foi considerada, na época, uma espécie de intervenção divina . Hirohito foi bastante hábil para realizar esta passagem. Assumiu o papel de inimigo convertido e passou a ecoar os desejos estadunidenses como seus. Ele sabia que precisava dos Estados Unidos para protegê-lo e, para tanto, contava com o apoio do general Mac Arthur. Ao final, Hirohito foi considerado uma marionete dos militares japoneses, e assim se redimiu em relação ao resto do mundo. A fragilidade de sua figura, finalmente humanizada, é reconhecida como uma metáfora do feminino, como explica o professor Yoshikuni Igarashi (2011, p. 84). Lado a lado com Mac Arthur, Hirohito foi transformado em uma personagem feminina, uma figura desamparada, digna da condescendência do militar americano. O pronunciamento do imperador acerca da sua responsabilidade na guerra e autossacrifício apenas reforçou a sua imagem dócil. Quando visitou os Estados Unidos pela primeira vez, em outubro de 1975, a mídia americana o saudou. O New York Times escreveu, na ocasião, que Hirohito tinha um charme tímido e que transmitia aos que o conheceram, um senso de honestidade árduo, sincero e afável (apud IGARASHI, op.cit., p. 106). Em Los Angeles, Hirohito foi recebido por todos os ícones mais conservadores do cinema americano como John Wayne e Charlton Heston. Mais uma vez evidenciou-se a docilidade e a feminilidade do Imperador.
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144 Ao lado do fortão John Wayne, o contraste com a sua imagem miúda e frágil remetia, imediatamente, ao filme O Bárbaro e a gueixa de 1958. Neste que foi um grande fracasso de bilheteria, do diretor John Ford, Wayne interpreta Townsend Harris que havia negociado a abertura dos portos japoneses para os Estados Unidos e, durante a sua missão, apaixonase por uma gueixa delicada, interpretada por Eiko Ando. As analogias entre Hirohito e Mac Arthur, Hirohito e John Wayne, renderiam por si só um ensaio curioso sobre os modos de representação do poder. Como Sokúrov apresenta no filme, após a guerra, o imperador decide afirmar-se como biologista marinho, o que representou uma saída de mestre frente aos conflitos decorrentes da derrota japonesa. Um bom exemplo ocorreu durante a sua visita aos Estados Unidos. Enquanto ainda circulavam protestos políticos contra o Imperador, planava, em uma flâmula atada a um avião, a mensagem: Imperador Hirohito por favor, salve nossas baleias , reforçando assim, a sua nova imagem de cientista. O filme de Sokúrov aborda todas essas passagens. Nem sempre de maneira literal, mas nos modos como trabalha a linguagem. Por exemplo, a iluminação em sépia que nos chama a atenção para o fato de se tratar de imagens da memória. Detalhes como a temporalidade da edição e o cuidado com os pormenores históricos são apenas alguns dos aspectos que singularizam esta obra impecável. Os modos como os gestos delicados de Hirohito são valorizados e o tique nervoso com a boca também testemunham a ambivalência de sua situação como autoridade divina suprema e homem dócil subjugado. Se as fotografias veiculadas no pós-guerra passaram a afirmar Hirohito como uma figura inexpressiva, em contraste com o poderoso Mac Arthur, valorizando a profanação do Imperador, que deixava de ser uma entidade sagrada para se tornar um homem comum, o filme de Sokúrov complexifica a representação do Imperador e a sua relação com o oficial americano. Se por um lado, continua presente o desequilíbrio entre os dois - o forte e o frágil, o masculino e o feminino - por outro, anunciam-se os modos como o conflito foi resolvido, as crises pessoais do Imperador, a sua reinvenção como homem da ciência e a valorização da natureza. Não há como deixar de observar a contundência dessa crítica que se evidencia após as catástrofes nucleares de Hiroshima e Nagasaki. Sem fazer parte de um Japão militarizado e armado, a nova imagem do Imperador passou a ser a do defensor da natureza e dos seres vivos. É o que todos esperavam naquele momento. Um caminho que viabilizasse a passagem do poder sobre a vida para uma política em função da vida. As múltiplas representações de Hirohito esboçaram esta mudança ao longo do tempo e, de certa forma, foi Sokúrov quem redimensionou a sua imagem tornando-a ainda mais ambivalente e complexa.
145 Bibliografia GLUCK, Carol; GRAUBARD, Stephen R.. Showa, the Japan of Hirohito. New York: W.W. Norton, 1992. IGARASHI,Yoshikuni. Corpos da Mem贸ria, narrativas do p贸s-guerra na cultura japonesa (1945-1970). Trad. Marco Souza e Marcela Canizo. S茫o Paulo: Ed. Annablume, 2011.
146
abaixo
Sol. (SOKÚROV, 2004, 00:38:01 a 00:43:24)
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A Rússia na sala de espelhos: Púchkin, Akhmátova, Blok, Tarkóvski Mario Ramos (1) Lançado em 1974, é o quarto
filme
Arsênievitch
de
Andriêi
Tarkóvski
(1932-1986).
Através de seu Espelho (1), lugar da memória, o cineasta Andriêi Tarkóvski abre as portas do tempo para que a Rússia, tartamuda a princípio, ganhe voz e fale... E é no ínfimo olhar do menino que se encontra o reflexo da grande missão, do destino de um povo. A partir daqui, apenas mantemos a porta desta arca poética aberta, para de lá de dentro ouví-los: Púchkin, Akhmátova, Blok... vozes desta Rússia de tantas palavras, espelho de dupla face, de ocidente a oriente. Deixemos que conversem, muito além dos limites dos tempos... Carta de Aleksándr Serguéievitch Púchkin a Piótr Iákovlevitch Tchaadáiev, em 19 de outubro de 1836, enviada de São Petersburgo a Moscou (2)
(2) A tradução da carta e dos poemas foi realizada por Mario Ramos. (3) Piótr Tchaadáiev (17941856): filósofo russo, a quem Púchkin envia a carta aqui traduzida.
Os caminhos do sangue levam aos caminhos da Providência (3) Agradeço pelo livro que tu me enviaste. Fiquei maravilhado ao lê-lo novamente, ainda que surpreso ao vê-lo traduzido e impresso. Estou feliz com a tradução: ela mantém a energia e a desenvoltura do original. Quanto às ideias, bem sabes que estou longe de estar de acordo contigo. Não há dúvidas de que o cisma nos apartou do resto da Europa e de que não tivemos participação em nenhum dos grandes eventos que a abalaram, mas tivemos nossa própria predestinação. A Rússia, com seus vastos territórios, absorveu a invasão mongol. Os tártaros não se atreveram a cruzar nossas fronteiras ocidentais para nos ter na retaguarda. Eles se retiraram aos seus desertos e a civilização cristã ficou a salvo.
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Quando na angústia dos suicidas Os alemães eram esperados, E a austera alma bizantina Já nos havia abandonado,
Quando a capital do Nievá, Da glória passada esquecida, Rameira a se embriagar, Não sabia em que mãos cairia,
Chegou-me uma voz em consolo E disse-me: “vem para cá, Deixa o pecado e o desconforto, Deixa tua Rússia pra lá.
Lavo o sangue de tuas mãos, Do coração tiro a desonra, Sob um nome novo e são Cubro a ofensa, a perda, a vergonha.
Mas tapei os meus ouvidos, Sempre indiferente e calma, Pra que a voz desse bandido (4) Anna Akhmátova (1889-
Não profanasse minh'alma. (4)
1966), do poema “Quando na angústia
dos
suicidas”,
escrito em São Petersburgo, em 1917.
Para que isto acontecesse, nós tivemos que assumir uma existência completamente à parte que, ao nos manter cristãos, fez-nos, todavia, totalmente alheios ao mundo cristão. De modo que, com nosso martírio, o desenvolvimento da Europa católica ficou livre de todos os empecilhos. Tu disseste que a fonte de onde brotou o cristianismo não era pura, que Bizâncio foi desprezível e desprezada e etc... Ah, meu amigo! Por acaso Jesus Cristo não nasceu judeu, e Jerusalém não tinha já sua história conhecida por todos? E o Evangelho por isso seria menos respeitável? Nós tomamos dos gregos o evangelho e as tradições, mas não o espírito de mesquinhez infantil e o palavreado. Os costumes de Bizâncio nunca foram os de Kiev. Nosso clero, até Theofanes, foi digno de respeito, nunca se sujou com vilanias e, claro, nunca teria provocado uma reforma no momento em que a humanidade
150 mais precisasse de unidade. Concordo que nosso clero está atualmente defasado. Quer saber a razão? Nosso clero tem barba, e isso é tudo. Ele não pertence a uma boa sociedade. Quanto à nossa insignificância histórica, eu realmente não concordo com você. As guerras de Oliég e Sviatoslav e até mesmo conflitos mais específicos, não seria isto aquela vida, cheia de agitação e emoção, de atividade apaixonante e inútil, que caracteriza a juventude em todos os povos? A invasão tártara foi um grande e triste espetáculo. O despertar da Rússia, o desenvolvimento de seu poder, seu movimento em direção à unidade (à unidade russa, é claro), o grande drama de Ivan, quer começou em Úglitch e terminou no mosteiro de Ipatiev... Como, então... tudo isso não seria história, mas apenas um vago e pálido sonho?
Amigo, creia, há de brilhar, Eterna estrela da ventura, A Rússia, enfim, despertará E sob nossa assinatura (5) Aleksándr Púchkin (1799-
Em ruínas, a ira do tzar (5)
1837), fragmento do poema “Para Tchaadáiev”, de 1818.
E Pedro, o Grande, que em si já traz a história do mundo inteiro! E Catarina II, que colocou a Rússia às portas da Europa? E Alexandre, que trouxe tudo a Paris? E (muito honestamente) será que não encontraram nada de significativo na atual situação da Rússia, nada que pudesse impressionar os historiadores do futuro? Será que você acha que ele vai nos afastar da Europa?
Sim, nós somos citas. Sim, somos asiáticos De olhos oblíquos e famintos!
Para vocês, um século. Para nós, uma hora Nós, como bons escravos de outrora Erguemos o escudo entre as duas hordas: (6) Fragmento do poema “Os Citas”, de Aleksándr Blok (1880-1921), de 1918.
Os mongóis e a Europa! (6)
151 Embora eu esteja pessoalmente ligado ao governo, não vou admirar tudo o que vejo a minha volta. Como escritor, aborrecem-me. Como um ser humano com preconceitos, sinto-me ofendido. Eu posso estar indignado, mas juro por minha honra, por nada neste mundo eu trocaria de pátria ou teria uma outra história, diferente da história de nossos antepassados, da história que Deus nos deu.
Tu, desertor, por uma ilha Vendeste tua terra natal, Nossos cantos, nossos ícones, O lago e seu pinheiral.
........................... Profana e ufana-te bastante, Destrói a alma ortodoxa, Fica no reino distante E ama tua liberdade, agora.
Por que te queixas e choras Ao pé da minha varanda? Sabes bem em que mar te afogas, Imune ante a luta nefanda. ......................................... (7)
A carta acabou ficando longa. Ao discutir contigo, devo dizer (7) Fragmentos de poema sem título de Anna Akhmátova, escrito na propriedade rural
que tua carta é profundamente verdadeira. Na verdade, temos que admitir que nossa vida social é uma coisa muito triste. A
de Sliepnióvo, de Nikolai
falta de opinião pública, a indiferença a tudo que é dever,
Gumilióv, em 1917.
justiça e verdade, tudo isso resulta em cínico desprezo para com o pensamento humano e a dignidade... e isso pode levar ao desespero. Fizeste bem em colocar tudo isto em voz alta. Mas eu tenho medo... espero que tuas visões históricas não te machuquem. Por fim, lamento que eu não estivesse ao teu lado quando entregaste teu manuscrito aos jornalistas. Eu não
152 tenho frequentado os lugares e não posso te dizer se o artigo tem causado boa impressão. Espero que não o exagerem. Já leste o terceiro número de O Contemporâneo? Os artigos Walter e John Tanner são meus. Kozlóvski se tornaria a minha providência, se ele quisesse de uma vez por todas fazer-se escritor. Adeus, meu amigo. Caso veja Orlov ou Raiévski, mande-lhes um “olá”. O que eles dizem sobre a tua carta, esses cristãos tão medíocres? (A. S. Púchkin, 19 de outubro de 1836).
Veio um homem de uma só perna E falava sozinho no pátio:
'Tempos terríveis se achegam, No chão já não cabem as covas. Peste, morte, fome, medo. O eclipse, a luz dessas horas.
Mas nossa terra não será cindida Para a diversão do verdugo: Estenderá a virgem ungida (8) Fragmento de poema de
Seu branco véu sobre os lutos' (8)
Anna Akhmátova, escrito em 1914.
A voz da Rússia, na voz de Akhmátova (acaso, a quem falarão tais palavras?):
Tu me inventaste. Como eu, no mundo, não há. Como eu, no mundo, não pode haver. (9) Fragmento de poema de Anna Akhmátova, escrito em 1956.
Nem médico há de curar, nem poeta, saciar. (9)
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mon japon (mi Japón)
Je ne suis jamais allé au Japon. Avec ce travail, j'ai voulu faire un voyage comme il était possible de le faire avant que les cartes ne soient exactes, c'est-à-dire en utilisant ces rumeurs (comme les stéréotypes) qui peuvent donner à penser qu'il est possible de reconnaître avant d'avoir connu. Nunca he estado en Japón. Con este trabajo, que quería hacer un viaje, ya que era posible hacerlo antes de que las cartas son correctas, es decir, con estos rumores (como los estereotipos) que puede indicar que es posible reconocer antes conocida.
Patrick Jallageas http://patrick.jallageas.free.fr/monjapon.htm
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160
161 ONDE ESTÁ A CASA DOS CORAÇÕES PARTIDOS
CASA DOS CORAÇÕES PARTIDOS não é apenas o nome da peça a que estas linhas servem de prefácio. É a Europa culta e ociosa de antes da (1) Refere-se o Autor à
guerra (1). Quando a peça começou a ser escrita, nenhum tiro ainda
Primeira Guerra Mundial, de
havia sido disparado; e só os diplomatas profissionais e os amadores
1914, durante a qual foi concebida
a
peça.
prefácio data de 1919.
Este
que procuram se distrair com as charadas da política internacional sabiam que os canhões já estavam carregados. Um escritor russo, Tchekhov, havia feito quatro fascinantes estudos Dramáticos sobre a Casa dos corações partidos. Três deles – O Jardim das Cerejas, Tio Vânia e A Gaivota – tinha sido representados na Inglaterra. Tolstói, em Frutos da Razão, tinha nos conduzido através dela, numa atitude de desprezo feroz. Tolstói não sentia nenhuma simpatia pela Casa dos corações partidos, nela via o ambiente em que a alma da Europa estava se dissolvendo. E sabia que a nossa
162
displicência e futilidade naquela sufocante atmosfera de sala de visitas acabariam entregando o mundo ao domínio da astúcia ignorante e da energia desalmada com as tremendas conseqüências que agora se desdobram sobre ele. Tolstói não era um pessimista: não deixaria a casa de pé, se pudesse derrubá-la sobre a cabeça dos seus amáveis e voluptuosos moradores; e manejava a marreta com genuína fúria. Considerava o estado dos habitantes da moradia fatal como um caso de intoxicação pelo ópio, em que é preciso agarrar as vítimas, sacudi-las e obrigá-las a movimentos forçados até acordarem de vez. Tchekhov, de temperamento mais inclinado ao fatalismo, não acreditava que aquelas encantadoras criaturas pudessem se salvar. Pensava que, no leilão judicial da Casa, seriam atiradas na rua pelos meirinhos. Por isso não experimentava escrúpulo em explorar e até lisonjear a graça que as adorna.
163 O MAL NO TRONO DO BEM Tão aguda era esta angústia dos mansos, que mesmo aqueles que, sem derramar sangue com as próprias mãos, sem testemunhar a carnagem com os próprios olhos, participavam da guerra na vida civil, mal ousavam as suas amarguras. Contudo, mesmo aqueles que permanecem no lar em relativa segurança, quando tinham que falar ou escrever a respeito da guerra, a custo calavam a voz da sua consciência para deliberadamente trabalhar de acordo com um padrão de mal inevitável em vez do ideal de uma vida mais abundante para todos. Posso dar o meu testemunho em relação a um indivíduo ao menos para quem a transformação da sabedoria de Jesus e de São Francisco na moral de Ricardo II e na loucura de D. Quixote foi extremamente penosa. Mas esta mudança de atitude tinha que ser feita. Todos perdemos com isto, exceto apenas aqueles para quem não se tratava de verdadeira mudança, mas só de uma folga à sua hipocrisia habitual. Lembremo-nos também daqueles que, conquanto não tivessem que escrever ou combater, nem possuíssem filhos para perder, compreendiam o prejuízo inestimável para o mundo representado por quatro anos de vida de uma geração consumidos a destruir. Dificilmente qualquer das obras-primas do espírito humano poderia ter sido produzida se os seus autores fossem, durante quatro anos críticos, desviados do trabalho próprio do seu gênero. Na guerra, estavam sendo assassinados talvez homens da mesma estirpe espiritual de Platão e Shakespeare. É preciso considerar também que muito do que havia de melhor na alma dos sobreviventes foi consumido, em perda irremediável, no solo árido das trincheiras. E isto não se deve entender apenas em relação à Inglaterra. Para o homem verdadeiramente civilizado, para o genuíno europeu, a mortandade da mocidade alemã foi tão lamentável quanto a da inglesa. Houve loucos que festejavam as “perdas dos alemães”. Eram nossas perdas também. Seria a mesma coisa se alguém exultasse no caso de Beethoven ter sido assassinado por um qualquer músico de cabaré.
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165
COMANDANTE (cedendo) – Tome cuidado. Já estou caduco. Os velhos são perigosos, porque não se importam mais com o que possa suceder a este mundo. Sentam-se lado a lodo no sofá. Ellie reclina-se afetuosamente contra o Comandante e, com os olhos semicerrados, encosta a cabeça no seu ombro.
ELLIE (suavemente) – Eu diria que nada tem importância para os velhos. Eles não podem mais interessar-se muito pelo que lhes vai acontecer.
COMANDANTE – O interesse de um homem pelo que possa acontecer ao mundo é apenas a sobra do seu interesse nele mesmo. Quando a gente é criança ainda, a capacidade de nos interessarmos é um vaso que ainda não está cheio; a gente cresce e o vaso transborda: o homem torna-se um sábio, um político, um descobridor ou um aventureiro; chega a velhice e o vaso seca, não há mais sobras para transbordar: voltase à infância. Posso lhe dar as memórias da minha antiga sabedoria: meras migalhas e resíduos; mas na realidade nada mais me interessa senão as minhas pequenas necessidades e os meus caprichos. Fico por aqui a ruminar velhas idéias, imaginando novos meios de destruir os meus semelhantes. Vejo minhas filhas e seus homens vivendo uma existência sem sentido, de romance, sentimentalismo e convenções. Vejo você, que representa a geração nova, abandonando o romance, o sentimentalismo e as convenções por amor ao dinheiro, ao conforto e a uma sensatez rija e dura. Lutando contra a fúria de um tufão, na ponte do meu navio, ou encalhado e imobilizado nos gelos dos mares árticos, sentia-me dez vezes mais feliz do que elas ou você jamais se sentiram ou se sentirão. Você procura um marido rico. Quando tinha a sua idade, eu procurava trabalhos, perigos, horrores e riscos de morte, para poder sentir a vida com maior intensidade. Nunca deixei que o medo da morte dominasse a minha vida; e por isso vivi; foi a minha recompensa. Você está deixando que o medo da pobreza domine a sua existência; a sua recompensa será que você terá o que comer; mas não viverá.
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COMPLEMENTAÇÕES
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Do inacabamento, no ato de ver:
Se queremos falar de coisa sérias, devemos nos ater a detalhes aparentemente desimportantes. (...) É preciso estar muito atento aos detalhes do cotidiano e perceber que eles são muito mais intensos e importantes do que nossa capacidade de assimilação. Há sempre mais detalhes do que o observador é capaz de assimilar. Aleksandr Sokurov Grenier vem do sótão de uma antiga fazenda na região de Auvergne, França. A casa data do século XIX, e o sótão era um dos poucos cômodos que se insistia original. Piso e teto de madeira, tesouras do telhado obrigando ao abaixar-se para percorrer, cantos onde a luz há muito tempo não chega, gerações confundindose nos objetos acumulados. Era a falta de luz que interessava, mais que a presença dela. Uma luz, tão antiga e aquecida, que pedia assemelhar-se à pintura. Grenier foi realizado em casa alheia, em país estrangeiro, nos meandros de outra língua, que é quando tudo se renomeia. No sótão o lugar amedronta, a penumbra ameaça, o ar é frio e a arquitetura não nos protege: nunca dominamos o lugar pela visão, ele sempre pode nos reservar surpresas. O silêncio se faz cúmplice em um lugar onde o nome não importa mais. Os sons, como a luz, penetram apenas de forma clandestina, vindos de fora. E trazem mais densidade ao lugar viscoso das imagens sem contornos, à presença quase duvidosa do objeto fotografado, mudo como personagens de Páginas Ocultas (1993). Finalmente, o que nos é tão acessível que não mais absorvemos, que não mais vemos. Em Grenier descemos ainda um nível abaixo do cotidiano, aos objetos esquecidos, acumulados, que não queremos mais ver e que ainda assim persistem, existindo nesse entre-tempo de penumbra e tesouras de madeira. Na memória, porém, não há mais espaço para eles. A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato estético. Jorge Luis Borges
Patrícia Osses
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Filmografia
(em ordem cronológica)
IVAN, O TERRÍVEL (1944). Direção: Serguei Eisenstein. Roteiro: Serguei Eisenstein. Direção de Arte: Iosif Shpinel. Intérpretes: Nikolai Cherkasov, Serafina Birman, Pavel Kadochnikov, Mikhail Zharov. Fotografia: Andrei Moskvin, Eduard Tisse. Música: Serguei Prokofiev. Edição: Esfir Tobak. Produção: Alma Ata Studio (União Soviética). Continental Homme Video. DVD (85min.), p/b, em russo.Bondarchuk, Vasili Solo
O ESPELHO (1974). Direção: Andrei Tarkovski. Roteiro: Andrei Tarkovski, Aleksandr Misharin. Intérpretes: Margarita Terékhova, Filip Yankovski, Ignat Daniltsev, Oleg Yankovski, Yuri Nazarov Anatoli Solonitisyn. Direção de Arte: Nikolai Dvigubski Romadin. Fotografia: Gueorgi Rerberg. Música: Eduard Artemiev, J. S. Bach, H. Purcell, G. B. Pergolesi. Edição: Ludmila Feignova. Produção: Mosfilm. Continental Home Vídeo. Dvd (101 Min.) Dual Layer, 4:3 Fullscreen, Cor/pp, Ntsc, Dolby Digital 2.0, em russo. Legendas: português, inglês e espanhol. Original em Russo: Zierkalo. DOLOROSA INDIFERENÇA (1983-87), 110 min., cor. Direção: Aleksandr Sokúrov. Roteiro: Yury Arabov. Câmera: Sergey Yurizditsky. Som: Vladimir Persov. Production Design: Yelena Amshinskaya. Consultor: Tatiana Boborykina. Editor: Leda Semyonova. Intérpretes: Ramaz Chkhikvadze, Alla Osipenko. Co-produção: Vladimir Zamansky, Tatiana Egorova, Victoriya Amitova, Irina Sokolova, Dmitry Bryantsev, Vadim Zhuck, Andrey Reshetin, Vladimir Dmitriev. Produção: North Foundation, Eskom film, zero film (Alemanha), Lenfilm. PÁGINAS OCULTAS (1993), 77 min., cor. Direção: Aleksandr Sokúrov. Roteiro: Yury Arabov. Câmera: Alexander Burov. Som: Vladimir Persov. Trilha sonora: G. Mahler, O. Nussio. Production Design: Vera Zelinskaya. Consultor: Irina Sotina, M. Tarasova, Alexandra Tuchinskaya. Editor: Leda Semyonova. Intérpretes: Alexander Cherednik, Elizaveta Koroleva. Co-produção: Sergey Barkovsky, Galina Nikulina, Olga Onischenko. Produção: North Foundation, Eskom film, zero film (Alemanha), Lenfilm. ELEGIA ORIENTAL (1996), 45 min., cor, Betacam SP, PAL, Stereo. Direção: Aleksandr Sokúrov. Cenário: A. Sokúrov. Câmera: A. Fedorov, Y. Kawabata. Som: S. Moshkov. Diretor de Arte: V. Zelinskaya. Produção: North Foundation, NHK, Lenfilm, SONY Corporation. HUBERT ROBERT.UMA VIDA AFORTUNADA (1996), 26 min., cor, Betacam SP. Direção: Aleksandr Sokúrov. Produtor: A. Deryabin. Cenário: A. Sokúrov. Câmera: A. Fedorov. Som: V. Persov. Editor: L. Semenova. Produção: Bridge Studio. VIDA HUMILDE (1997), 75 min., cor, Betacam SP, Stereo. Direção: Aleksandr Sokúrov. Cenário: A. Sokúrov. Câmera: A. Fedorov, Y. Kawabata. Som: S. Moshkov. Editor: L. Semenova. Produção: The Japan Foundation, North Foundation, Pandora Co., Ltd (Japão). DOLCE (1999), 60 min., cor, Betacam SP, Stereo. Direção: Aleksandr Sokúrov. Roteiro: A. Sokúrov. Câmera: Koshiro Otsu. Som: Sergei Moshkov. Editor: Alexei Jankowski, Sergei Ivanov. Produtor: Yudji Kogure. International Project Manager: Hiroko Kodjima. Produção: Studio Bereg, Quest (Japão). Original em Russo: dolce...
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MOLOCH (1999), 107 min., cor, Dolby SR. Direção: Aleksandr Sokúrov, Yury Arabov. Produtor: Victor Sergeev, Rio Saitani, Tomas Kufus. Câmera: Aleksey Fedorov, Anatoly Rodionov. Som: Vladimir Persov, Sergey Moshkov. Production Design: Sergey Kokovkin. Maquiagem: Ekaterina Beschastnaya, Lyudmila Kozinets, Zhanna Rodionova. Editor: Leda Semenova. Video Editor: Aleksey Yankovsky, Sergey Ivanov. Intérpretes: Elena Rufanova, Leonid Mozgovoi. Co-produção: Leonid Sokol, Elena Spiridonova, Vladimir Bogdanov, Sergey Razhuk. Produção: Lenfilm, zero film (Alemanha), Fusion Product com participação de Fabrica, ARTE/WDR, Filmboard Berlin/Brandenburg GmbH, Fondation Montecinemaverita. TAURUS (2000), 94 min., cor, Dolby digital. Direção: Aleksandr Sokúrov, Yury Arabov. Produtor: Victor Sergeev. Câmera: Anatoly Rodionov. Som: Sergey Moshkov. Compositor: Andrey Sigle. Production Design: Natalia Kochergina. Figurino: Lidia Kryukova. Maquiagem: Zhanna Rodionova, Lyudmila Kozinets, Tatyana Kolomitseva. Editor: Leda Semyonova. Intérpretes: Leonid Mozgovoi, Maria Kuznetsova. Co-produção: Natalia Nikulenko, Sergey Razhuk, Lev Eliseev, Nikolay Ustinov. Produção: Lenfilm, Ministry of Culture of the Russian Federation, State Committee of Cinematography of Russia. ARCA RUSSA (2002), 99 min., 35mm, cor, Dolby digital. Direção: Aleksandr Sokúrov, Anatoly Nikiforov. Diretor de Fotografia: Tilman Büttner. Som: Sergey Moshkov, Vladimir Persov. Compositor: Sergey Yevtushenko. Trilha sonora: M. Glinka, P. Chaikovsky, G. Persella, G. Teleman. Production Design: Yelena Zhukova, Natalia Kochergina. Figurino: Lidiya Kryukova. Designer: Tamara Seferyan, Maria Grishanova. Maquiagem: Zhanna Rodionova, Lyudmila Kozinets. Editor: Sergey Ivanov. Intérprete: Sergey Dreiden. Co-produção: Maria Kuznetsova, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani, Alexander Chaban, Lev Yeliseyev, Oleg Khmelnitsky, Alla Osipenko, Leonid Mozgovoy, Artem Strelnikov, Tamara Kurenkova, Maxim Sergeyev, Natalia Nikulenko, Yelena Rufanova, Yelena Spiridonova, Konstantin Anisimov, Alexey Barabash, Ilya Shakunov. Produção: The State Hermitage Museum, Hermitage Bridge Studio, Egoli Tossell Film AG production, Ministry of Culture of the Russian Federation, Fora Film M, Celluloid Dreams. SOL (2004), 110 min., 35 mm, cor, Dolby digital. Direção: Aleksandr Sokúrov, Yury Arabov. Produtor: Igor Kalenov. Câmera: Anatoly Rodionov. Som: Sergey Moshkov. Production Design: Yelena Zhukova, Yury Kuper. Editor: Sergey Ivanov. Intérprete: Issey Ogata, Robert Dawson, Andrei Sigle, Marco Muller. Co-Produção: Kaori Momoi, Shiro Sano, Shinmei Tsuji, Taijiro Tamura, Georgy Pitskhelauri. Produção: Nikola film, Proline Film, Downtown Pictures (Itália), Mact Productions (França), Riforma Film (Suíça) com suporte de: Federal Agency for Culture and Cinematography of Russian Federation, RAI Cinema (Itália), Istituto Luce (Itália), Centre National de la Cinematographic (França), com participação de: CTC Television Network, Lenfilm studio. FAUSTO (2011) 137 min, 35 mm, cor, Dolby digital. Direção: Aleksandr Sokúrov, Yuriy Arabov. Roteiro: A. Sokúrov. Direção Fotográfica: Bruno Delbonnel. Som: Aleksandr Zlamal. Compositor: Andrey Sigle. Produtor: Andrey Sigle. Copy Editor na Alemanha: Marina Koreneva. Director of Photography: Bruno Delbonnel. Production Design: Elena Zhukova. Figurino: Lidya Krukova. Intérpretes: Johaness Zailer, Anton Adasinskiy, Isolda Dychauk. Co-produção: Georg Friedrich, Hanna Schygulla, Antje Lehwald, Florian Brueckner, Maxim Mehmet, Sigurdur Skulasson. Produção: Proline Film (Rússia).
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Alvaro Machado
é jornalista brasileiro, colaborador de jornais e revistas na
área cultural, e editor-responsável por Opera Prima Editorial. Entre os livros que organizou estão Manoel de Oliveira, Cinema Político Italiano, Amos Gitai Percursos e Aleksandr Sokúrov, todos pela Cosac Naify. Pela Opera Prima, escreveu o estudo introdutório e as notas de Orgia
Os diários de
Tulio Carella, Recife, 1960 , publicado em 2011.
Antonio Mengs
é espanhol. Formado em Filologia Árabe pela
Universidade Autônoma de Madri. Desenvolve suas atividades artísticas no campo da poesia e da fotografia, que dá a conhecer pela internet, interessando-se particularmente pelo cinema de Aleksandr Sokúrov e também de Andriêi Tarkóvski sobre o qual publicou, pela editora Rialp (Madri), o título Stalker, de Andrei Tarkovski, em 2004.
Arlete Orlando Cavaliere
é brasileira. Livre-docente e professora titular do
Departamento de Línguas Orientais (FFLCH-USP) e professora convidada da Universidade Estatal Lomonóssov de Moscou. Pesquisa teatro, literatura e cultura russa além de publicar obras sobre a estética teatral. Traduziu e publicou, mais recentemente, os livros Teatro Completo de Nikolai Gógol (Editora 34) e Teatro Russo: Percurso para um estudo da paródia e do grotesco (Humanitas), resultantes de pesquisa realizada nos arquivos de Moscou. É supervisora do Projeto Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI.
Breno Morita
é artista brasileiro,
bacharel em artes visuais e
pesquisador do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias da Belas Artes de São Paulo.
176 Cassia Hosni
é mestranda em Multimeios pela Universidade Estadual
de São Paulo (UNICAMP) e faz parte do Centro de Pesquisa de Cinema Documentário. Participou como artista convidada da Mostra Didática Sokúrov Oriental.
Christine Greiner
é pesquisadora de Arte, Cultura e Semiótica com ênfase
em estudos japoneses e artes do corpo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Realizou pós-doutorado na Universidade de Tóquio, International Research Center for Japanese Studies e New York University. É professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de O teatro Nô e o Ocidente (Annablume, 2000).
Erivoneide Barros
é mestranda em Arte e Cultura Russa pela Universidade
de São Paulo (USP), com ênfase na relação entre poética russa e cinema russo. Pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI) e licenciada em Letras.
Fabiola Notari
é artista e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa
Eisenstein no Século XXI). É mestre em Poéticas Visuais pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), na linha de pesquisa em artes e práticas experimentais com a dissertação linhamanuscrita: relações poéticas entre memória, escrita e esquecimento. Desde 2010, é artista residente e organizadora do espaço coletivo Estúdio Valongo localizado no centro histórico de Santos.
177 Juliana Rosa
é artista brasileira, bacharel em artes visuais e
pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Como artista, apresentou seus trabalhos na Mostra Didática Sokúrov Oriental e em exposições nas galerias da Belas Artes de São Paulo.
Mario Ramos
é poeta e pesquisador brasileiro. Doutor em Literatura e
Cultura Russa, professor do Departamento de Línguas Orientais (FFLCH/USP) e foi professor-leitor da Universidade Estatal Lomonóssov de Moscou. Pesquisa e traduz poesia russa. Coordena o Grupo de Pesquisa Poesia Russa em Tradução.
Monica Berto
é mestranda em Poéticas Visuais pela Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI). Em 2011, atuou como assistente pedagógica no curso Ações Multiplicadoras do PISC da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Marcus Siqueira
compositor, formado em Música pela Universidade de
São Paulo (USP). Estudou com Willy Corrêa de Oliveira. Suas composições tem sido apresentadas em festivais e bienais de música no Brasil e no exterior, por músicos brasileiros e estrangeiros e orquestras consagradas. Recebeu importantes prêmios por suas composições para cinema e teatro. Utiliza recursos multimídia e eletrônicos em trabalhos para o teatro, e, em especial, para o espetáculo BR3, do Teatro da Vertigem (2006). Seus trabalhos tem sido gravados por selos já consagrados e selos independentes.
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Neide Jallageas
é brasileira. Contemplada com bolsa Fapesp, realiza pós-
doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Russo (DLO/FFLCH/USP), pesquisando a obra de Serguei Eisenstein em confluência com o cinema e as artes na Rússia do Século XXI. Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) quando investigou o cinema de Andriêi Tarkóvski. Mestre em Estética do Audiovisual (ECA-USP), traduziu um conto de Clarice Lispector para a linguagem do vídeo e da fotografia, trabalho que se encontra em acervos públicos (Mam-SP, Coleção Pirelli-Masp e SescSP). Coordena o GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).
Patrícia Osses
é doutoranda na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA/USP) sob orientação de Carlos Fajardo. Possui formação em Arquitetura e Música (violoncelo). Seu trabalho trata de reflexões sobre o espaço e sua relação com o indivíduo, através de diversos meios como instalação, performance, fotografia e som.
Patrick Jallageas
Fotógrafo francês que vive e trabalha em Bordeaux.
Participou de diversas exposições em que apresenta a memória, o tempo e a história como principais eixos de sua pesquisa poética.
Tieza Tissi
é atriz brasileira, mestranda em Literatura e Cultura
Russa pela Universidade de São Paulo (USP), na linha de Teatro Russo. Traduziu diretamente do russo as partituras de Stanislávski e pesquisa a relação entre as formas poéticas deste com as de Anton Tchekhov. É pesquisadora do GP E.XXI (Grupo de Pesquisa Eisenstein no Século XXI).
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Imagens não creditadas no texto
Dolorosa Indiferença, 1983-87 (capa, 159 - 166, 181, 183) fragmento da partitura de Nocturne Razluka de Mikhail Glinka (2, 17) www.1tv.ru/news/culture/178532 (19) Vida Humilde, 1997 (25, 89, 169) Elegia Oriental, 1996 (41, 57, 73) Hubert Robert, 1996 (55) dolce..., 1999 (127) O Sol, 2004 (139) Andriêi Tarkóvski, O Espelho, 1974 ( 147) Patrícia Osses, Grenier, 2011 (3 - 16)
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Sobre
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ISSN 2237-2105