Liderança Lições de Liderança de Shakespeare | Por que ler: Entender os desafios da liderança por meio de personagens literários. Neste artigo: • O estilo de liderança de Henrique V retratado na obra de Shakespeare • A adaptabilidade do discurso do líder • A atitude do líder como estratégia de motivação
Lições de
liderança de Shakespeare
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De acordo com o vice-reitor da Rotman, Jim Fisher, a relevância contínua de Shakespeare é resultado de seu domínio sobre um tema universal: por que fazemos as coisas que fazemos? Entrevista a Karen Christensen
Foto: Vern Evans
Shakespeare escreveu “Henrique V” (e a maioria de seus outros trabalhos) por volta de 1600. Hoje, 400 anos mais tarde, a metade de todo teatro realizado no mundo em qualquer momento é de sua autoria. Como você explica sua notável “permanência no poder”? A razão de Shakespeare ser atemporal é que, nas palavras de um grande especialista em Shakespeare, Harold Bloom, “ele inventou o humano” na literatura. Shakespeare não estava interessado no “o que vai acontecer em seguida?” Estava mais interessado no “por que isso vai acontecer?” Suas peças exploram os mistérios da humanidade: por que às vezes realizamos grandes coisas e outras vezes notoriamente fazemos coisas más? Esse é um tema incrivelmente universal e atemporal, e ele tinha o dom mágico de gerar insights profundos em poucas palavras: ele podia ir direto ao ponto em três ou quatro linhas. As
pessoas não vão assistir a suas peças para descobrir o que vai acontecer - a esta altura todos nós conhecemos suas tramas - mas somos infinitamente fascinados com o porquê, e há bastante mistério no fato de que atores e diretores montam a mesma peça e ainda conseguem encontrar diferentes nuances nela. Por isso Shakespeare ainda é tão relevante como era há 400 anos - como será daqui a 400 anos. Você estudou detalhadamente o discurso da Batalha de Agincourt, de “Henrique V”, bem como o incidente em si, e frequentemente utiliza-o como estudo de caso em suas aulas sobre liderança. Por que esse discurso é tão especial? O discurso não é especial por causa das palavras que Henrique usa. Na verdade, a primeira vez que eu o ouvi, não fiquei assim tão impressionado. Pensei, “discurso legal, mas o que há de tão notável nele?” Para entender por que é especial, é
* Este artigo foi traduzido e reproduzido pelo LAB SSJ com a permissão da Rotman magazine.
preciso entendê-lo no contexto em que Henrique se encontrava, quem ele era como pessoa, e o plano de batalha que ele organizou. Henrique tinha essa batalha realmente impossível para enfrentar, e ele a combateu de uma forma que ninguém esperava. Essencialmente, juntou um exército desfalcado - que havia marchado quase 300 quilômetros na chuva nas duas últimas semanas, sem alimento por dias e estava doente e morrendo de um vírus local - e em vez de colocá-los em posição de defesa, ele os colocou sozinhos no meio de um campo enlameado, sem nenhuma defesa em volta, a não ser um novo tipo de arco longo não testado que ele os fez usar. Não havia nenhuma maneira que pudesse ter convencido previamente seus soldados de que esta estratégia funcionaria, porque ela nunca havia sido tentada antes. Mas ele precisava que eles estivessem lá ombro-a-ombro - mesmo que soubessem que estavam em menor número
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e tivessem a expectativa de morrer da maneira mais horrível imaginável. Agora você me pergunta, por que ele fez aquele discurso específico? Ele fez porque era um discurso que fazia seu plano de batalha funcionar, e seu plano de batalha fazia o discurso funcionar. É pelo fato de os dois se juntarem tão perfeitamente. Se você não sabe como a Batalha de Agincourt funcionou, você não pode apreciar de fato como o discurso é bom. Outra coisa que é fabulosa sobre o discurso é que ele era totalmente apropriado e plausível ao que Henrique era como pessoa. Era o primeiro rei da Inglaterra desde William, o Conquistador, capaz de falar anglo-saxão. Então o fato de ele poder dizer “Nós poucos, sortudos nós poucos, bando de irmãos; pois aquele que hoje derrama seu sangue comigo é meu irmão” era digno de crédito, por causa de quem ele era. Ele era um cara comum – era o “Hal” – um cara que preferia compartilhar, tomar cerveja e se divertir a ficar na corte fazendo cortesias. Então ele tinha essa credibilidade com seus homens. Se você souber quem era Henrique, qual era seu plano de batalha e quais eram as circunstâncias, esse foi o discurso que fez tudo funcionar. Esse não é um discurso para todas as ocasiões: é um discurso para essa pessoa nessa ocasião, e é isso que o faz tão fabuloso. Apesar de haver um monte de indícios contra ele, Henrique terminou com o resultado esperado por ele. Como ele conseguiu esse êxito? Ele conseguiu focando no processo, em vez de focar nos resultados. Recentemente fiz uma sessão com as pessoas da Indian Railways, e depois alguns dos estudantes vieram correndo até mim para me dar lições de filosofia hindu. Aprendi que um discurso muito similar foi feito por Krishna no famoso Bhagavad Gita - a referência da filosofia hindu - aproximadamente 3.500 anos antes de Shakespeare escrever o discurso de Henrique. Então é uma coisa universal - o problema de se focar em processo ou em resultado. Sim, Henrique terminou ganhando, mas esse não era o ponto: o ponto era esse grupo de pessoas ficar ombro-a-ombro e tentar realizar algo imenso juntos; se eles vencessem, ótimo, se perdessem, não importava, porque a vitória estava no “como” fizeram.
Se você colocar isso no contexto dos negócios, a pergunta é: você foca no retorno total do acionista ou seu foco é proporcionar grandes produtos e serviços realmente eficientes com pessoas energizadas, mobilizadas? Se seu foco é este último ponto, o discurso é perfeito. Se você pensa que tudo se resume ao retorno total do acionista e que suas cotas têm de subir por esta ou aquela razão, bem, você sempre pode trapacear seu caminho rumo à grandeza, ou você pode ser sortudo, ou um concorrente pode fazer algo estúpido. Há muitas maneiras de as pessoas obterem a recompensa que desejam. Mas no que Henrique estava ligado aqui – e que é muito mais poderoso - é se você pode liderar um grupo de pessoas dizendo “vamos tentar fazer algo grande juntos; se funcionar, vai funcionar, se não, não”.
O verdadeiro desafio da liderança é reunir um bando de gente para fazer um grande trabalho, engajando as pessoas de forma dinâmica, produtiva e que leve ao aperfeiçoamento. Eu vi Michael Phelps - o maior nadador olímpico – no 60 Minutes recentemente. Ele ganhou oito medalhas de ouro no verão passado, mas reconhece que teve sorte; houve duas ocasiões em que seu oponente cometeu um pequeno deslize e ele ganhou. Claro que ele está feliz com o resultado geral, mas veja com o que ele não estava feliz: ele não alcançou seu tempo em três disputas. Ele estava um segundo mais lento do que queria. Seu foco estava no processo: o que ele queria fazer era atingir aquela água por todas as suas outras disputas e nadar em sua capacidade máxima. Para ele, isso o faria um atleta olímpico perfeito, quer ele tivesse ganhado oito medalhas,
quer não, porque ele sabe que há muita sorte envolvida na vitória, mas há uma enorme satisfação pessoal em estabelecer para você mesmo um objetivo realmente desafiador e fazer o melhor de si para tentar alcançá-lo. Se você fizer isso, sempre será um vencedor. Então, o ponto-chave do discurso é o foco em reunir um bando de gente para fazer um grande trabalho, realmente engajandoos de forma dinâmica, produtiva e que leve ao aperfeiçoamento. Esse é o verdadeiro desafio da liderança, e é meio disso que se trata a vida. Basicamente, o que Henrique diz é “se você não quer estar aqui, saia agora”. Há um forte sentido da escolha envolvido em se manter no time. Como isso pode ser transferido à liderança moderna de hoje? Este é um dos momentos mais profundos no discurso. Bem no início, Henrique diz “aquele que não tiver estômago para esta luta, deixe-o partir, seu passaporte será confeccionado e moedas de transporte serão colocadas em sua bolsa”. Ele basicamente abre mão da sua autoridade (o passaporte) e do incentivo monetário (moedas para o transporte) e diz “faça como quiser”. Na verdade, ele não quer realmente que ninguém vá, mas ao mesmo tempo ele só quer que eles permaneçam se seus corações estiverem lá. “Nós não morreríamos na companhia de nenhum homem que teme que seu companheirismo morra conosco”. Qualquer pessoa com algum tipo de responsabilidade de liderança deve entrar no escritório todos os dias e olhar para todos os rostos e reconhecer que cada uma daquelas pessoas é um voluntário. Com sua autoridade e dinheiro, tudo o que você pode fazer é conseguir que as pessoas façam o mínimo necessário para manter seu trabalho; tudo o que eles dão a você acima e além do mínimo é feito voluntariamente - cada partícula. E eles só vão servir voluntariamente se acreditarem nos valores do lugar, em seus colegas e em seus chefes. Se acreditarem nessas coisas, eles farão tudo para você; se não acreditarem, não vão fazer. Eles encontrarão uma maneira de boicotar o sistema, ou vão estar sempre doentes para folgar o máximo de dias. Seu trabalho como líder é fazê-los se voluntariarem todos os dias, vir trabalhar e trazer seus
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cérebros, sua energia, seu compromisso, sua criatividade. Considero essa ideia extremamente profunda. Henrique desiste do seu direito “como chefe”- ele oferece até mesmo passe livre para que eles partam. Por que essa abordagem maluca funciona? Há momentos em que você pode ter a ilusão de que é “o chefe”. Então, se você fosse Henrique, você poderia ordenar seus homens a ficar em pé num determinado lugar segurando um arco, uma espada ou uma lança. Então..., aí estão eles, parados em pé na chuva intensa, com o exército francês no outro lado. Quando o primeiro ataque vem da cavalaria montada (o grupo mais temido do exército francês), imagine só o som de dois mil cavalos investindo campo abaixo. Henrique escolheu fazer isso em um campo enorme - o campo em Agincourt tem quase um quilômetro de largura. Assim seus homens
estariam em pé lá e veriam o inimigo chegando até eles. Se alguma vez você ficou ao lado de uma pista de corrida e ouviu, sentindo em seus ossos, o som de doze cavalos correndo, multiplique isso por mil: aí vêm eles. Nesse momento, o líder não tinha absolutamente nenhuma autoridade. Cada um daqueles homens tem uma escolha: ele pode correr – é o que cada impulso do seu corpo lhe diz para fazer; ele pode se render; ou pode ficar e lutar. Henrique não tem nenhum controle deles nesse momento. Então, se ele não tivesse feito com que eles se sentissem voluntários para estar lá, seria inútil dar ordens. Avançando rapidamente para os tempos modernos, é fácil dizer às pessoas: “o trabalho começa às nove horas”. Você pode até mesmo mandar as pessoas bater cartão, mas isso significa que o trabalho realmente começa às nove? Talvez sim, talvez não; vai depender de as pessoas
Literatura amplia visão sobre a liderança Na Harvard Business School, o professor Joseph L. Badaracco Jr. discute os desafios da liderança por meio de personagens da literatura. Seu livro Uma Questão de Caráter analisa histórias de autores como Joseph Conrad, F. Scott Fitzgerald, Arthur Miller, em que os protagonistas precisam lidar com situações complexas, similares às enfrentadas por um líder na vida real. Para Badaracco, a literatura ajuda a compreender a liderança porque oferece uma visão interna única, uma visão do lado de dentro. “Podemos observar as atitudes dos líderes em situações específicas e ver o que pensam e sentem quando têm de assumir responsabilidades – essa é uma faceta raramente vista no dia a dia”, diz.
quererem. Então, o que elas fazem às nove horas? Elas podem chegar, papear e perambular ociosamente, mas quando realmente sentam para trabalhar depende inteiramente delas. Mesmo em uma fábrica, onde os trabalhadores batem cartão e chegam a seus postos de trabalho na hora, eles têm um controle pessoal enorme para escolher quão intenso e inteligente será seu trabalho. Henrique (e consequentemente Shakespeare) é um pensador integrativo? Certamente. A essência de pensadores integrativos está no fato de serem construtores de modelos – reúnem um monte de idéias diferentes e criam um modelo original inteiramente apropriado à situação. “Henrique V” é sobre o pensamento integrativo da liderança. Há três ocasiões muito distintas em que Henrique tem de liderar e, em cada
A literatura brasileira também oferece personagens e situações ricas para ampliar a visão sobre a liderança. No Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, por exemplo, cinco chefes decidem sobre a vida de um rival que foi capturado. Durante o julgamento na Fazenda Sempre-Verde, pelo olhar do narrador Riobaldo, descortinamos as hesitações, reflexões, esperas e decisões dos grandes chefes naquelas circunstâncias: “Estudei foi os chefes – uns descombinavam dos outros, no sutil. Eles pensavam. Conforme vi”. O caráter do grande líder Joca Ramiro - “astuto natural, era lorde, homem acreditado pelo seu valor” - se revela em suas respostas aos atrevimentos do rival prisioneiro, em sua habilidade de “represar os excessos” evitando conflitos, no respeito ao oponente, em sua decisão final acatada por todos. Exemplos como este demonstram como é possível discutir, de forma inovadora, questões que testam o caráter de um líder, compartilhando suas experiências de forma integral. Isadora Marques - LAB SSJ
Grande Sertão: Veredas Histórias que ajudam a examinar os desafios enfrentados por líderes.
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situação, ele constrói um modelo diferente de liderança. Primeiro, bem no princípio quando ele inspira as pessoas a ir para a França e, antes de mais nada, a começar a campanha, seu modelo é “vamos saquear, rapazes – vejam como vamos ficar ricos”. Ele cria um modelo que motiva um
Você pode ter os melhores planos do mundo e estar totalmente certo a respeito de sua estratégia, mas se você não engajar e motivar as pessoas a cumpri-los, você vai falhar. bando de gente a ir com ele. Seu grande momento seguinte vem quando fazem um cerco em uma cidade chamada Honfleur. Eles atacam a cidade, e é quando ele diz, “uma vez mais assolados, meus amigos, de novo até esta frente de combate detivemos com ingleses mortos, por Deus, por Henrique e São Jorge.” Assim, ele cria outro modelo para “por que estamos fazendo isso?” Dessa vez é para conquistar - por Deus e glória. Finalmente, chegamos ao ponto onde não há nenhum saque a ser feito, nenhuma conquista, nenhuma vitória à vista. Ele não pode dizer com credibilidade a seu exército que vão ganhar, porque estão em desvantagem de cinco para um, estão
Av. Cardoso de Melo, 1.491 Vila Olímpia - São Paulo - SP Praia de Botafogo, 228 Torre B - 9º andar / 908 Botafogo - Rio de Janeiro - RJ
morrendo de fome e doentes. Assim, ele tem de criar um novo modelo. O modelo que ele inventa contém muitos elementos do pensamento integrativo. Em primeiro lugar, ele usa a lógica abdutiva. Se ele pensasse sobre a situação usando a lógica dedutiva, eles seriam destruídos, e se usasse a lógica indutiva, aconteceria o mesmo. Então ele diz “ok, vamos imaginar algo incrível que talvez possamos conseguir: talvez escrevam sobre nós por séculos - este exército inglês, amplamente desfalcado, doente, faminto, que aguentou uma luta infernal”. Se isso era o máximo que podiam ter - que eu penso que era o que ele realmente acreditava - como ele poderia fazer isso acontecer? Bem, o que ele planejava era isto: em vez de se posicionar na defensiva, circulando feito um bando de covardes, eles iam diretamente para o centro do campo, simplesmente enfrentar os franceses. Então, ele motivou seus homens a ver que ele estava lhes dando uma oportunidade de glória. O ponto-chave aqui é que você não pode ser um herói se recebeu ordens para comparecer; você não consegue ser imortal a menos que escolha estar lá, vá e faça sua parte. O que sobressai é ele levar em consideração todo tipo de coisa que a maioria deixa escapar. Seu plano de batalha foi baseado na premissa de que os franceses eram cabeças-quentes e investiam de uma maneira mal disciplinada – que eles ficariam assim depois da pilhagem, que foi o que de fato aconteceu. A tecnologia que ele usou era um longo arco com um novo tipo de seta que nunca havia sido usada antes. Ele não podia dizer aos homens “ei, rapazes, eu consegui essa arma que ninguém nunca viu antes. São essas setas de pinho espanholas
com uma ponta de aço especial, e nós vamos lançá-las com longos arcos”. Antes disso, os arcos não tinham funcionado - as setas não eram suficientemente fortes e se quebravam. “Arco e flexas?”, os homens diriam, “você sabe o tipo de arma que aqueles caras têm?” E ainda assim tudo funcionou - melhor do que ele havia sonhado. As pessoas me dizem que se eles tivessem perdido não haveria nenhuma lição de liderança aqui, certo? Eu discordo: o que eu digo é que você não pode garantir sucesso na vida, mas pode garantir o fracasso, e uma das maneiras de garantir o fracasso é sendo um líder ineficaz. Você pode ter os melhores planos do mundo e estar totalmente certo a respeito de sua estratégia, mas se você não engajar e motivar as pessoas a cumpri-los, você vai falhar. O que Henrique fez com esse discurso e esse plano de batalha foi: ele deu a ele mesmo e a seus homens uma chance de luta. E esse é o padrão mínimo que os líderes devem estabelecer para si: dê ao seu grupo, à sua organização e à sua equipe uma chance de ter êxito. Tenha um plano, dê às pessoas um propósito e encontre uma maneira de engajar todo mundo. Jim Fisher é vice-reitor de programas de MBA, possui a cadeira CCMF em Empreendedorismo e é professor de Gestão Estratégica na Rotman School of Management. Participa de uma série de Conselhos, incluindo o da Trimark Financial e da Canadian Tire.
This article originally appeared in Rotman magazine, published by the University of Toronto’s Rotman School of Management.
Tradução: Isadora Marques, 2009
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