APR 2018 / VOL 108 NO 4 US $7 CAN $9
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE
FIRST STEPS A plan to make slavery visible at Brazil’s Valongo Wharf
THE EDGES OF PARIS
Three new parks pull the city outward
MOSCOW IN THE OPEN The novel idea of public space
STEEP SLOPE PLANTING Details for big trees on sharp inclines
THE MAGAZINE OF THE AMERICAN SOCIETY OF LANDSCAPE ARCHITECTS
SAI N DO DO
TE M PO FRENTE AO DESAFIO DE HOMENAGEAR PESSOAS ESCRAVIZADAS NO CAIS DO VALONGO, SARA ZEWDE PROJETOU UM CAMINHO PARA MEMORIAIS AO REDOR DO MUNDO. POR JENNIFER REUT/IMAGENS DE SARA ZEWDE
138 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
PRAÇA DE IEMANJÁ
A proposta de praça marca o local onde o mar chegava ao Cais do Valongo. A praça reativaria o espaço para tradições afro-brasileiras associadas ao mar.
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 139
ACIMA
Sara Zewde conversa com um turista brasileiro no Sítio Arqueológico Cais do Valongo, no Rio. O pavimento original do cais foi assentado diretamente sobre a praia, e incluía uma rampa e degraus de acesso ao mar.
O diagrama é o resultado de uma das análises espaciais que Zewde fez sobre o samba, o estilo musical das ruas e praças da cidade tipicamente brasileiro e de raízes africanas. Ele ilustra uma roda de samba, um círculo informal de dança com músicos e espectadores que se tornam músicos. O samba tem índole triste e feliz ao mesmo tempo, um grito de alegria e lamento.
140 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
Em julho de 2017, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, foi nomeado Patrimônio Mundial da UNESCO. Zewde ajudou a elaborar a candidatura, e suas ideias estão entremeadas nas descrições. Reconhecido por seu “valor universal excepcional” devido à sua importância material, espiritual e cultural, o cais foi e continua sendo o elemento central de um cenário que moldou profundamente a história do hemisfério ocidental: o ambiente construído da escravidão. O Cais do Valongo era um porto escravagista de escala inconcebível. Segundo a UNESCO, “Quase um quarto de todos os africanos escravizados nas Américas chegaram pelo Rio de Janeiro, portanto a cidade pode ser considerada o local de desembarque do maior número de africanos escravizados e o maior porto es-
AP PHOTO/SILVIA IZQUIERDO
A
proposta de Sara Zewde para um memorial no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, tem várias imagens notáveis, mas a minha favorita é a que inclui a água. Nela, figuras fantasmagóricas vestidas de branco se desvanecem em um tapete de água sobre o mar. Acima das suas cabeças há um diagrama de pontos e linhas refletidas saindo de um denso aglomerado e triangulando o céu. A paleta é de azuis e cinzas suaves. A sensação é transcendental e sombria.
cravagista da História.” O porto funcionou de 1811 até o tráfico de escravos ser abolido no Brasil, em 1831 (mas não a escravatura, que continuou até 1888). Historiadores estimam que cerca de quatro milhões de africanos escravizados tenham chegado pelo Valongo. Pela primeira vez, a comunidade dos descendentes, afro-brasileiros e negros ou mestiços autoidentificados, forma a maioria da população brasileira. Essa mudança demográfica histórica significa que o porto de escravos do Brasil tem conexões diretas e tangíveis com cerca de 97 milhões de pessoas. Os vestígios arqueológicos são valiosos por seu número e riqueza. Reveladas em 2011 durante as obras de infraestrutura para as Olimpíadas do Rio, as pedras originais do cais de 1811 e a pavimentação que as cobriu em 1843 estavam surpreen-
dentemente intactas. Além disso, havia os bens pessoais, artefatos como contas e pequenas ferramentas, que com o tempo chegariam a milhares de objetos escavados do sítio. Zewde os viu pela primeira vez em 2011, no ano da descoberta. Ela estava no Rio quando o Cais foi encontrado, após haver terminado o mestrado em planejamento urbano no Massachusetts Institute of Technology (MIT) no ano anterior. Ela havia vindo ao Brasil como bolsista de transporte do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento para trabalhar em projetos de transporte sustentável na região do Porto Maravilha, que estava sendo revitalizado.
ACIMA
A prefeitura deixou visíveis tanto as pedras mais irregulares do cais de 1811 quanto o pavimento mais refinado de 1843, mas a interpretação não vai muito além da sinalização.
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 141
to P a qu eatá
to
sl a v
e sh
ip a
r r iv
al t
op
or t
RIO DE JANEIRO — SOBREPOSIÇÃO HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA
slave-era deepwater anchor zone
skiff passage to wharf
Valongo Wharf Archaeological Site
N
142 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
at
l an
tic
oc
ea
n
PÁGINA AO LADO
Dezenas de lotes foram selecionados para revitalização dos dois lados da histórica faixa costeira, devido à pressão por causa das Olimpíadas de 2016 e da Copa do Mundo de 2014.
fill historic terra firma existing open plaza parcels slated for redevelopment under Port Zone/Olympics redevelopment plan new Light Rail Line currently under construction historic Valongo Wharf complex contemporary street network
Essa não era a primeira viagem de Zewde ao Rio; ela havia ido em 2007 por meio de um programa internacional de estudos avançados. “Aquilo me marcou muito”, disse Sara, que é de Nova Orleans. “O Rio de Janeiro me lembrou bastante Nova Orleans, por causa da forte influência africana.” Em ambos os lugares, ela percebeu uma intensa “negociação entre o espaço urbano e as práticas culturais”. No MIT, havia sido estudante de Anne Whiston Spirn, FASLA, e elaborado uma dissertação sobre a Clairborne Avenue de Nova Orleans. Zewde diz que Spirn a ajudou a combinar seu interesse em planejamento com design e cultura. Zewde logo concluiu que não queria apenas fazer planejamento, queria criar designs. No Rio, ela tentou despertar o interesse dos colegas no Valongo, mas não havia relação com transporte. Quando a bolsa chegava ao fim, Zewde foi admitida no curso de MLA de Harvard e voltou para os Estados Unidos. Ainda assim, continuava pensando no que havia visto e ouvido dos operários da obra e das pessoas que havia conhecido no local.
former primary slave port until end of 19th century
Apesar do progresso que aterrou, cobriu e expandiu o porto, há muito se sabia que a região do cais histórico estava associada ao tráfico escravista. Zewde diz que as pessoas sabiam que o cais estava lá, em algum lugar, mas sua presença era mais evidente na forma como se comportavam. “De fato, comecei a entender como as pessoas estavam ritualizando e eternizando o cais no dia a dia. Mesmo antes da escavação e da descoberta, era um lugar especial.” Sítios mais antigos já haviam sido documentados na área do cais, incluindo cemitérios, armazéns e áreas como o
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 143
samba na Pedra do Sal
quilombo e refúgio de africanos, conhecido como local de nascimento do samba
MARC FERREZ/REISS-SOHN.DE
venda
um dos muitos pontos de venda da área para a compra e venda de africanos
docas
concebidas por André Rebouças, um designer afro-brasileiro, em 1871
Depósito, utilizado para processar os africanos escravizados. Mas a descoberta do cais intacto foi um momento decisivo, que revelou o espaço físico do desembarque, um patamar que reuniu esses locais isolados em algo que pode ser considerado a maior e mais importante paisagem cultural da escravidão fora da África.
ACIMA
Essa vista do século XIX do porto do Rio a partir do bairro da Saúde ilustra a densidade do comércio no porto. PÁGINA AO LADO
O mapa reconstruído em perspectiva axonométrica por Zewde ilustra o período em que o Valongo era um porto escravagista ativo e demonstra a extensão do cenário industrial de escravidão no Rio.
O reconhecimento foi rápido. Em apenas seis anos, o Cais do Valongo havia entrado para o cânone da lista de Patrimônio Mundial da UNESCO, graças principalmente aos esforços do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em conjunto com a cidade do Rio de Janeiro. A inscrição no Patrimônio Mundial adotou as recomendações do IPHAN e reconheceu o significado cultural do Cais do Valongo e seu status como “sítio de memória e consciência”. Ao descrever essa área como “o mais contundente lugar de memória da diáspora africana fora do continente africano”, o relatório deixou em aberto a questão de como interpretar esse memorial, embora tenha destacado a importância do patrimônio imaterial. Enquanto isso, o sítio arqueológico continuava aberto à visitação, e moradores e turistas podiam observar o buraco onde as pedras do cais haviam sido reveladas e deixadas a céu aberto. O cais exposto se tornou centro de intensa atividade espiritual dos brasileiros, que haviam começado a criar suas próprias interpretações do local, fazendo rituais como a Lavagem do Cais. Os planos e discussões sobre o sítio atraíram a atenção de ativistas locais e membros da comunidade, que começaram a fazer uma campanha para que algum tipo de comemoração fosse feito no local. O governo da cidade pensava em um memorial, mas não estava muito claro qual seria a solução certa.
144 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
transferência
os africanos eram transferidos para botes quando o Cais do Valongo estava próximo
jornada
os navios chegavam através da embocadura da Baía de Guanabara após 3 ou 4 meses em alto mar
depósito
os africanos ficavam retidos por 2 a 4 semanas para ganharem peso e serem “amansados”
armazéns
em sua maioria os prédios do circuito abrigavam os africanos e os suprimentos relacionados
cemitério a céu aberto um cemitério para os africanos que chegavam mortos ou que morriam durante o período de “amansamento”
hospital escravo
lazareto onde os africanos que haviam ficado doentes antes de serem comprados eram tratados
casas comerciais escravistas
lojas de suprimentos para lidar com escravos apinhavam a área dos depósitos
Cais do Valongo local de desembarque de milhões de africanos
Zona de ancoragem em águas profundas
O HISTÓRICO COMPLEXO ESCRAVISTA CAIS DO VALONGO
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 145
CENAS DO CIRCUITO DA HERANÇA AFRICANA
À ESQUERDA
Os membros do Centro Cultural Pequena África se reúnem perto do Largo de São Francisco da Prainha, uma praça não identificada que era local de leilões e açoite. À DIREITA
Rua próxima ao Quilombo Pedra do Sal.
Em Harvard, Zewde havia escrito um projeto para analisar o sítio e fazer entrevistas. Ao final do primeiro semestre, conseguiu financiamento para voltar ao Rio e começar a entrevistar ativistas e moradores; ela tinha seis semanas. Havia conseguido o contato de Washington Fajardo, um arquiteto que na época era o secretário de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design da cidade, e começou a desenvolver ideias sobre as práticas culturais relacionadas ao local. Zewde descreve seu envolvimento recorrente com a comunidade de ativistas brasileiros em termos intensos, ainda que contemplativos. “Essas conversas seriam delicadas no seu próprio país, no seu próprio idioma”, diz ela, que havia aprendido português sozinha em alguns meses para ser aprovada nos exames de idioma necessários para sua bolsa de estudos em transporte. “Então você pode imaginar que eu tentei ser o mais cautelosa possível nessas conversas, mas antes de mais nada ouvia com atenção.” Os ativistas eram uma mistura de acadêmicos, líderes religiosos e espirituais, profissionais e outras pessoas com conexões diretas ao que segundo ela equivale mais ou menos ao “movimento negro” do Brasil, e adotaram o Valongo como uma causa importante. Zewde começou a se reunir e conversar com várias pessoas, inclusive Giovanni Harvey, ativista local de longa data pela justiça racial no Brasil, que estava bastante envolvido não apenas com o Valongo, mas também com a luta nacional pela justiça racial. “Fizemos uma reunião, e eles foram muito fervorosos e eloquentes sobre o que
146 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
esse lugar poderia ser, deveria ser, para a história do Brasil. Quer dizer, foi um momento muito poderoso, muito poderoso.” Essas conversas foram um ponto de virada. “Minha abordagem estava orientada pela pesquisa, mas quando eles começaram a falar de forma tão intensa sobre os próximos passos, e a dizer coisas como ‘Precisamos que você se envolva’, essa foi a primeira vez em que isso passou pela minha cabeça, que eu poderia ter um papel que fosse além de escrever um relatório ou fazer um desenho.” Segundo Harvey, a identidade de Zewde como estrangeira não era um problema para a comunidade local conectada ao sítio. “A nacionalidade de Sara Zewde não representou, para os ativistas do movimento negro brasileiro, um desafio a ser superado.” disse Harvey por e-mail. “O principal obstáculo foi, sob o meu ponto de vista, o reconhecimento da sua habilitação profissional (como arquiteta e/ou urbanista) pelas pessoas brancas que estavam à frente dos órgãos públicos e das instituições técnicas que acompanhavam o processo.” Ele disse que o valor humano do Cais do Valongo era global, e não apenas brasileiro. “O fato de Sara Zewde ser uma cidadã da ‘diáspora’ foi, e continua a ser, percebido como um ponto positivo e não como um ponto negativo.” Tradicionalmente, a linguagem arquitetônica dos memoriais de trauma, perda e luto derivam das tradições arquitetônicas ocidentais, que destilam as experiências coletivas em representações individuais (estátuas equestres, relevos de bronze) ou se originam de tradições funerárias enraizadas em expressões judaico-cristãs (obeliscos, placas de granito com nomes inscritos). Eles marcam o tempo de tal modo que o evento se mantém firmemente no passado. Os esforços para construir um memorial causaram uma certa frustração na comunidade local, que percebia uma lacuna não resolvida entre a arquitetura e a expressão da cultura africana e afro-brasileira. Zewde disse para eles: “Sei como é. Me identifico. Vejo isso na arquitetura. É verdade; o que vocês estão descrevendo é verdade.” ↘
NO SENTIDO HORÁRIO, DE CIMA
O edifício das Docas D. Pedro II é um grande armazém de tijolo projetado por André Rebouças, um brasileiro negro, em 1871; fragmentos preservados do cais de 1843, recoberto para se tornar mais atraente para a recém-chegada princesa de Bourbon; o edifício abandonado do Afoxé Filhos de Gandhi, antigo bloco carnavalesco.
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 147
SOLOS, PLANTAS E CULTURA
trans-Atlantic slave routes
Umbanda
warm ocean currents
Candomblé
cooler ocean currents water bodies traveled by slave traders selling Africans to Rio de Janeiro latosolic tropical red soils
Maria Lionza Hoodoo Other
the Valongo Wharf site, over 300 million years
Ficus leprieurii Figueira triangular
Ipomoea pres capre Beach Morning Glory
Terminalia cattapa Colônia
ACIMA
A pesquisa sobre a migração de solos e plantas desde o período em que os continentes africano e sul-americano estavam unidos contribuiu para a paleta de materiais do projeto.
148 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
300 million years ago
150 million years ago
“ QUANDO SE CONCEBE UM ESPAÇO SOBRE MEMÓRIA, OU UM MEMORIAL, É PRECISO TER UMA POSTURA QUANTO AO TEMPO.” —SARA ZEWDE
Valongo Wharf 150 years ago LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 149
Samba de Roda
→ Finalmente, um dia antes do seu voo de volta para
os Estados Unidos, a reunião com Fajardo foi marcada. Esse foi outro momento crítico, diz Zewde, que confirmou o que estava pensando e o que havia escutado. Os paradigmas tradicionais de memorial da arquitetura ocidental não funcionariam nesse contexto. Era a linguagem errada, a expressão errada, para um lugar como o Cais do Valongo.
ACIMA E NA PÁGINA AO LADO
Diagramas espaciais de práticas culturais que misturam sons, movimentos e cosmologia serviram de base para o projeto de design de Zewde.
Zewde voltou para Harvard para escrever a dissertação de MLA com a ajuda de Anita Berrizbeitia, ASLA, ao mesmo tempo em que buscava financiamento para trabalhar no sítio do Valongo, uma experiência descrita por ela como “muito intensa”. Ela atribui a Berrizbeitia o incentivo para expandir o projeto além dos limites do sítio, de um único espaço público para a escala da cidade. “A escravidão era essa indústria que incitava, encorajava e exigia que a cidade fosse construída para sustentá-la, porque milhões de pessoas precisavam ser alojadas, transportadas e armazenadas, até que se tornasse necessário uma cidade”, diz ela. Berrizbeitia, chefe de arquitetura paisagística da Escola de Pós-Graduação em Design de Harvard, diz que Zewde tinha ideias bem específicas sobre o que incluir e o que deixar de fora. A transição de um projeto com um único objeto para outro que
150 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
Cosmology
era “espalhado e didático e que teria uma dimensão de memória e espaço social” foi um grande desafio. “Ela não queria um monumento que falasse apenas dos horrores da escravidão. Queria incluir isso, e ao mesmo tempo falar dos passos futuros”, diz Berrizbeitia. A jornada para encontrar a linguagem, encontrar a expressão certa, foi difícil. “Quando ela descobriu os paralelos com o samba, essa dualidade de muita energia e alegria e, ao mesmo tempo, um sentimento de saudade, um sentimento de tristeza, isso foi muito produtivo para ela.” Zewde continuou a buscar financiamento para voltar ao Rio e desenvolver um projeto de design. Isso não aconteceu rapidamente. “Quase toda a história é sobre e-mails não respondidos”, diz ela. Desanimada, quase desistiu, mas finalmente, em 2014, recebeu uma bolsa de pesquisa Olmsted da Landscape Architecture Foundation. Ela voltou em junho para desenvolver um projeto de design. Dois anos haviam se passado. O governo da cidade já havia começado a planejar o Circuito da Herança Africana, em sequência à redescoberta do Cais do Valongo. O Circuito era um projeto do governo municipal do Rio e do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), e as propostas foram desenvolvidas em colaboração com um grupo de trabalho que incluía ativistas, líderes espirituais, outros membros da comunidade e, mais tarde, Zewde. Nos meses seguintes, Zewde trabalhou em um escritório do governo municipal junto com Fajardo e Aline Xavier, uma arquiteta da agência que estava implementando o projeto, e se reuniu com o grupo de trabalho para elaborar um projeto para o Circuito.
Roda de Samba
O Circuito da Herança Africana reúne 20 pontos da zona do porto. Alguns são anteriores à renovação do porto e à descoberta das ruínas do cais, como o Instituto dos Pretos Novos, uma casa convertida em museu após uma renovação ter revelado um cemitério embaixo da casa que continha restos mortais de africanos escravizados. Outros, como o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana, que permite ao público ver os artefatos e a pesquisa arqueológica em andamento no Valongo, foram criados após as descobertas arquitetônicas durante a revitalização do porto. Outros ainda são de uso cotidiano pelos descendentes, como a Central do Brasil e o Morro da Providência, a favela mais antiga do Rio. Esses pontos estavam interligados por sua conexão com a comunidade de escravos e descendentes.
Capoeira
estavam conectados, há 300 milhões de anos; alguns teriam sido reconhecidos pelos africanos que desembarcavam no Valongo. Esses solos, sementes e plantas compartilhados se tornaram a paleta de materiais do design.
Análises espaciais das práticas culturais, como a roda de samba, além da dança e das práticas espirituais e sociais que Zewde observou na região do porto, modelaram a arquitetura formal de movimento do circuito e se tornaram uma forma de entender como o passado e o presente ocorrem ao mesmo tempo. “As pessoas têm percepções diferentes de tempo, e quando se concebe um es“Eles já estavam desenvolvendo essa ideia do Circuito da He- paço sobre memória, ou um memorial, é preciso rança Africana quando me juntei a eles”, diz Zewde. “A ideia era ter uma postura quanto ao tempo”, diz Zewde. fazer um memorial no circuito.” Ao invés disso, a contribuição de Zewde foi redefinir completamente o conceito por trás do Zewde propôs intervenções de design que incorcircuito, que deixou de ser uma sequência de pontos heterogê- poravam práticas culturais, plantas e formas que neos conectados pela experiência africana no Brasil para se seriam reconhecidas tanto pelos escravos quanto tornar um conceito de paisagem cultural viva, pontuada pelo por seus descendentes, iluminando e dissolvendo que ela chama de “constelação de lugares”. Era uma inversão da as barreiras entre o passado e o presente, em sete relação figura-fundo, mas na escala da rede humana. “Em vez pontos ao longo do circuito. Em cada intervenção, de um memorial no circuito, o circuito é o memorial”, diz ela. a lógica do design é clara, e as conexões são inteligíveis para os descendentes que vivem dentro, O conceito de design de Zewde conectou a África ocidental acima e perto desses lugares. Embora inclua oporao Brasil por meio de um campo expandido de movimento, tunidades de interpretação e sinalização narrativa, tempo e material. Ela pesquisou e identificou solos e plantas da o conceito de design não se baseia na necessidade África que eram nativos do Brasil quando os dois continentes de contar a história para pessoas de fora. Ele
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 151
UMA CONSTELAÇÃO DE LUGARES
Praça da Harmonia
new
tr l igh
a il
l in
LT e (V
Valongo Pier Archaeological Site
Largo do Depósito
)
Afoxé Filhos de Gandhy
new
l igh
Escararia do Quilombo da Pedra do Sal
A Praça de Iemanjá t rai
l l in
e (V
LT)
Praça da Harmonia Centro Cultural José Bonifácio
Instituto dos Pretos Novos
e (V LT new light rail lin
Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana
Valongo Wharf
)
Docas Dom Pedro II, Future Cultural Center
Rua Sacadura Cabral
Teleférico Station
Observatório do Valongo
Morro da Providência Jardim Suspenso do Valongo
Afoxé Filhos
Teleférico Station
Largo do Depósito
Teleférico and ‘Central do Brasil’ Regional Train Station
152 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
de Gandhy
Rua Sacadura Cabral
A Praça de Iemanjá
PÁGINA AO LADO
O projeto de Zewde para o Circuito da Herança Africana inclui designs para sete dos 20 pontos.
provoca perguntas, mas não promete respostas. “Certamente me questionaram, especialmente nas primeiras apresentações”, relembra Zewde. “As pessoas diziam, ‘E o memorial, onde fica?’”
Museu de Arte do Rio Praça Mauá Rua Sacadura Cabral Largo de São Francisco da Prainha
l dis n cia fina < to
Morro da Conceição
t r ict
Quilombo Pedra do Sal
Igreja de Santa Rita de Cássia
Uma das coisas que fazem com que a abordagem de Zewde no Valongo seja instrutiva é que seu vocabulário visual, físico e auditivo vem da perspectiva dos escravos e é relativamente independente das preocupações da sociedade branca que se alimentou da sua economia e do seu capital humano. Isso é simplesmente ignorado. Embora a lógica por trás dessa elisão possa parecer evidente, há muito poucos monumentos desse tipo para escravos ou comemorações das conquistas ou sacrifícios dos escravos nos Estados Unidos; uma exceção é o Whitney Plantation Museum, em Louisiana. Em vez disso, temos um cenário comemorativo da posse de escravos. Até agora, havia uma má vontade generalizada de contar a história dos afro-americanos como algo distinto das suas relações com os brancos. Até certo ponto, essa cegueira existia em parte porque não havíamos feito o esforço. A arqueologia, impulsionada por muitas tecnologias novas, se expandiu tanto em escopo quanto no compromisso com atores históricos não brancos. Em locais como o Monticello de Thomas Jefferson, historiadores têm usado novas ferramentas para começar a interpretar as vidas dos escravos que moravam e trabalhavam no Mulberry Row. As plantações e fazendas de cavalheiros são os lugares onde a interpretação dos cenários escravistas é mais profunda e abrangente, mas continuam a ser concebidas em relação às famílias brancas
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 153
CONCEITO PARA O SÍTIO ARQUEOLÓGICO CAIS DO VALONGO
No Valongo, Zewde propôs transferir um prédio para aumentar o acesso e o espaço público e conectá-lo à favela da Providência. A plataforma curva que o contorna é inspirada pela prática afrobrasileira de enrolar um pano branco na base de uma figueira para marcar o local de encontro dos antepassados. Praças circulares estimulam a capoeira e outras expressões culturais.
que lá moravam. Estações do Underground Railroad, cemitérios de escravos e sítios históricos de mercados de escravos estão preservados em alguns lugares, mas de modo geral são locais pontuais que descrevem momentos isolados em que vidas foram salvas ou destruídas; marcos, e não narrativas. O projeto de Zewde para o Rio tem correspondentes conceituais e práticos para os memoriais de escravos dos Estados Unidos, onde a escravidão foi em grande parte apagada
154 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
do ambiente construído, e especialmente para memoriais fortemente conectados a lugar. Um desses lugares é Shockoe Bottom, em Richmond, Virginia. Local do maior mercado de escravos dos Estados Unidos depois de Nova Orleans, a orla marítima de Shockoe Bottom está cada vez mais atraente para investidores e é alvo de grande pressão desenvolvimentista. Atualmente, o governo da cidade se ofereceu para preservar e interpretar o Lumpkin’s Jail (Prisão de Lumpkin), usando o nome do dono
heaven
center of the universe
ojá
earth
branco em vez do nome Devil’s Half Acre (Meio Acre do Diabo), como era conhecido entre os afro-americanos da região. Em contraste, membros da comunidade e ativistas queriam formar um parque memorial de 3,6 hectares chamado Shockoe Bottom, incluindo vários pontos. Em março de 2017 Rob Nieweg, diretor sênior de campo e advogado do National Trust for Historic Preservation, viu uma apresentação de Zewde sobre o projeto em Charlottesville, poucos meses antes de um protesto nacionalista branco contra a remoção de uma estátua de Robert E. Lee terminar em violência e morte. Nieweg diz que existem paralelos diretos entre o Cais do Valongo e lugares dos Estados Unidos como o Shockoe, “em termos de história enterrada, história difícil, que por um lado foi esquecida e por outro é essencial para realmente entender o local e a cultura”. Embora a maior parte do sítio Shockoe esteja coberta por um estacionamento, “os arqueólogos conseguiram encontrar recursos bastante extraordinários, que nos levam a pensar que, se houvesse mais investigações e escavações, contaríamos uma história ainda mais profunda e rica”.
Segundo Nieweg, parte do que a comunidade de Richmond está pedindo é uma interpretação que vá além da arqueologia, integrando temas atuais e práticas culturais. O parque poderia, por exemplo, incorporar alguns dos rituais de homenagem a antepassados que ocorrem espontaneamente no Slave Trail (Trilha dos Escravos) atual de Richmond. Nieweg diz que a responsabilidade dos brancos, com seus instrumentos de uso da terra, é ceder o espaço sem determinar a interpretação desses locais. “Se há algo que a preservação histórica faz corretamente, é preservar, conservar e reter o lugar autêntico. Assim, com o passar do tempo, há espaço, é possível mudar a interpretação”, diz Nieweg.
TOPO DA PÁGINA
A figueira representa um limiar entre o passado e o presente. ACIMA
O contorno forma a base de um banco e uma plantadeira para a Praça da Harmonia. À ESQUERDA
Um modelo de gesso do contorno que aparece em muitas das intervenções de Zewde.
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 155
Em 2015, Zewde voltou ao Rio para apresentar o projeto no Dia da Consciência Negra. Nesse mesmo ano ela começou a trabalhar na GGN, em Seattle, em projetos para espaços públicos. O compromisso do seu projeto com o imaterial, em vez do formal, garante um diálogo contínuo enquanto contribui para o avanço do projeto com governos, organizações sem fins lucrativos, ativistas e moradores. Em 2016, Fajardo, que após sair do cargo municipal passou a ser consultor, foi o curador do pavilhão brasileiro na Bienal de Viena, e incluiu o projeto de Zewde. Recentemente, a prefeitura plantou árvores de baobá (Adansonia digitata) perto do Cais do Valongo, embora seja uma espécie não nativa que normalmente não seria aprovada para o plantio. Segundo Zewde, na cultura afro-brasileira dizem que o baobá é uma árvore cujas raízes se estendem por baixo do oceano, e cujo tronco contém toda a história. Zewde diz que a prefeitura abriu uma exceção por reconhecer o significado histórico e cultural dessa árvore, documentado por mapas e outros elementos do seu projeto. A nomeação do Cais do Valongo para a lista de Patrimônio Mundial significa que o local verá um influxo de turistas, além de receber algumas proteções contra o desenvolvimento voraz da área. A ideia de que a experiência vivida possa oferecer um modelo interpretativo, de que o passado e o presente possam ser integrados simultaneamente pelo design, ou de que as práticas culturais
156 / LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018
À ESQUERDA
O design de sinalização da rua Sacadura Cabral, na antiga faixa costeira, removeria o tráfego do lado norte da rua e criaria mais espaço para pedestres; elementos gráficos, árvores e pavimento representam a separação e junção dos continentes. PÁGINA AO LADO
Detalhe da maquete mostrando a intervenção na faixa costeira.
possam ser vistas como o foco do processo de design é instigante, mas não é algo que possa ser incluído facilmente em regras de design ou solicitações de propostas. O tipo de envolvimento de Zewde com o Valongo também não se encaixa nos modelos normais de desenvolvimento, e o tempo e comprometimento necessários para desenvolver um projeto tão sutil e dinâmico como o do Cais do Valongo vai além da tenacidade, é mais parecido com ardor. Nas suas oito viagens (e outras que ainda estão por vir), Zewde gastou um tempo considerável ao longo dos anos refletindo sobre a natureza dos memoriais, a comemoração do sofrimento, e os problemas de enfatizar “o trauma da escravidão como tema dominante da memória negra” em detrimento de outros modos e narrativas da vida negra. Nas paisagens memoriais dos Estados Unidos, como destacou Berrizbeitia, a indagação do Rio é mesma que a de lugares como Shockoe Bottom nos Estados Unidos. “Quem pode decidir? Quem pode falar? Qual é a voz que vai ser escutada?” Quando perguntei a ela, recentemente, sobre o status atual do projeto, Zewde descreveu a complexidade da política brasileira e as pautas e alianças inconstantes que sempre ameaçam desmantelar o projeto. Mas ela não parece temer o desafio, e já tem ideias grandes e pequenas para levar o projeto adiante, ainda que o ambiente atual não seja propício. “Esse projeto vai ser sempre sobre a visão a longo prazo.”
LANDSCAPE ARCHITECTURE MAGAZINE APR 2018 / 157