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LEITURA E ESCRITA
A contação de histórias e o processo de
formação do leitor Aline Fernanda Camargo Sampaio
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LEITURA E ESCRITA
a
contação de histórias acompanha o homem no decorrer dos séculos. Desde os primórdios da civilização, a oralidade é o elemento fundamental das relações humanas. Durante séculos, a memória viva dos povos foi perpetuada pela ação de contar e ouvir histórias. Como herança remota da civilização, o conhecimento acumulado pelas gerações foi sendo transmitido através da linguagem oral, constituindo-se num verdadeiro legado da cultura popular, surgindo, assim, mitos, lendas e contos diversos. Na Grécia Antiga (1100 a.C. – 146 a.C.), havia uma forma de contar histórias diferente da de hoje, mas que exigia o mesmo esforço da memória; eram os rapsodos. Estes cantavam um grande número de poemas. Com o tempo, os contadores de histórias foram se espalhando pelos quatro cantos do mundo. Qualquer pessoa podia contar uma história. Não precisava ser alfabetizada, culta; bastava ter boa memória, criatividade e uma imaginação fértil. Estes, em sua maior parte, eram analfabetos, e vieram antes da escrita, daí valorizar-se a oralidade. De acordo com Cléo Busatto: A literatura oral sofreu alterações, como acréscimo de informações à época e aos valores da comunidade onde era narrada, à omissão de detalhes que para aquele narrador eram insignificantes. Não podemos esquecer que o contador de histórias sempre incluía elementos muito pessoais ao conto, e com isso o transformava em matéria viva adaptada às necessidades dos seus ouvintes. (BUSATTO, 2003, p. 22) No Brasil, os primeiros contadores de histórias conhecidos foram os negros africanos, conforme as palavras de Arroyo: Velhos negros e negras (...) não se atinham apenas ao processo narrativo em prosa. Recorriam também à poesia para dar, naturalmente, um tom mais dramático às suas histórias. E também as canções de berço, as cantigas de ninar portuguesas foram modificadas pela influência negra, que nelas alterou palavras, ‘adaptando-as às condições regionais, ligando-as às crenças dos índios e às suas.’ (ARROYO, 1968, p. 51) As amas de leite contavam histórias para os filhos dos senhores de engenho, antes da Lei Áurea. Senhoras analfabetas, com a cultura e os costumes do seu povo, tinham uma imaginação fértil. Foram elas as criadoras das mais brilhantes histórias que chegaram até os nossos dias. Através dessas mulheres, os clássicos da literatura infantil europeia e de outros países difundiram-se pelo Brasil, misturados ao nosso folclore. Muitas cantigas e poesias embaladas pelos negros nas suas histórias insistem em continuar na tradição, apesar de o mundo contemporâneo ter modificado quase tudo. Quem conta essas histórias parecidas é Monteiro Lobato, na sua
personagem Tia Nastácia, a negra cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo. O autor resgata as histórias contadas pelos negros em que eles sempre se colocavam dentro da história; lembrando que o negro era o contador de histórias de antigamente. Nesse sentido, vale ressaltar o papel da literatura infantil na formação de leitores, uma vez que sua função não é somente ensinar as crianças a ler, é também dar oportunidade de serem bons leitores. É com a literatura que a criança unirá o entretenimento ao prazer da leitura, construindo suas próprias ideias, agregando a arte das palavras e das imagens, e compreendendo a si mesma e ao mundo que a cerca. Sob essa perspectiva, parece óbvio ser de responsabilidade da família, da escola, da sociedade e das políticas públicas investir e incentivar a leitura. Nesse contexto, argumenta Colassanti: [...] Se uma criança pega um livro para se distrair, ou até mesmo para agradar alguém, e com esse tal livro se distrai, sim, mas sem maiores diálogos ou sobressaltos da alma [...] Nada nos garante que essa criança não se emocionou verdadeiramente ao ler, que não aprendeu com o livro nada sobre si, que não estabeleceu a relação inconsciente entre leitura e vivência, tenha se tornado leitora [...] (COLASSANTI, 2004, 61) Qualquer pessoa que sente o prazer da leitura sabe que não é simples o processo. Não basta que se tenha acesso aos livros ou que se saiba decodificar os sinais gráficos, é necessário respeito ao tempo e à história de cada leitor. Esse prazer de ler é descoberto na magia do ato de ouvir histórias. Na obra O prazer do texto (1996), o crítico francês Roland Barthes fala que o ato de contar histórias é uma espécie de jogo de sedução. A cadência de sons, gestos e expressões corporais busca o momento certo de envolver o leitor-criança. É por esse caminho de ouvir histórias que passa a formação de um leitor. Assim, os contos de fadas e os mitos constituem formas simbólicas pelas quais a psique se manifesta e contribuem para a formação harmoniosa da criança. Ao usarem a mesma linguagem que o inconsciente, esses textos falam diretamente com a criança, sem a mediação da razão ou sem a necessidade de explicações, conselhos ou sermões. Com o auxílio das fadas e de outros elementos mágicos, a criança adquire forças para vencer o que a assusta ou preocupa. Enquanto não soluciona o seu problema inconsciente, ela ouve ou lê histórias inúmeras vezes, até que o resolva. Na realidade, os contos de fadas e os mitos são manifestações psíquicas que refletem a natureza da alma. Enquanto a nossa língua se expressa por signos, os mitos, os contos de fadas e os sonhos utilizam a mesma linguagem que o inconsciente: o símbolo. É mister salientar, também, que os contos de fadas auxiliam as crianças no processo de construção de sua identidade e no desenvolvimento de suas habilidades sociais, culturais e educativas. É o que afirma Bettelheim: 3
LEITURA E ESCRITA (...) os contos de fadas têm um valor inigualável, conquan-
Ao contar histórias, o professor estabelece com o aluno um clima
to oferecem novas dimensões à imaginação da criança que
de cumplicidade. Se o ato de contar histórias é próprio do ser huma-
ela não poderia descobrir verdadeiramente por si só. Ajuda
no, o docente pode apropriar-se dessa característica e transformar a
mais importante: a forma e a estrutura dos contos de fadas
contação em um importantíssimo recurso para a formação do leitor.
sugerem imagens à criança com as quais ela pode estrutu-
(PENNAC, 1993)
rar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida. (BETTELHEIM, 1980, p. 16)
Talvez as palavras de Drummond (1996) possam, de modo sensível, contribuir para essa discussão: Nas histórias que ele nos contava, quando meninos, o que me
Com isso, pode-se dizer que os contos de fadas e os mitos são
prendia a atenção a ponto de fascinar-me não era o enredo, o
importantes para a formação da personalidade da criança e para o
desfecho, a moralidade, e sim, um aspecto particular da narrati-
seu desenvolvimento no processo de socialização. Por meio desses
va, a resposta de um personagem, o mistério de um incidente, a
textos, os pequenos ouvintes podem perceber outras dimensões, usar
cor de um chapéu...
a imaginação e principalmente se descobrir, se reconhecer como parte integrante daquela história que lhes foi contada, criando, assim, interesse pela leitura.
É essa liberdade de interagir com o texto que deve se constituir na mais importante contribuição do educador para a formação de
As questões relativas à leitura são questões para serem desenvol-
novos leitores. Cada indivíduo, ao seu tempo e à sua maneira, poderá
vidas a vida inteira, em todos os tempos, em todos os lugares e por
se construir como leitor plural se houver de um lado alguém que pro-
todos –família, escola, sociedade.
mova essa liberdade para o ato de ler e de outro alguém que possa
Nos Serões de D. Benta, por exemplo, Monteiro Lobato dá voz ao narrador que pontua a perspicácia de Dona Benta quanto aos inte-
expressar, discutir e debater suas impressões, suas angústias e seus prazeres sobre aquilo que se leu.
resses dos netos em relação às ciências. Sob o título de “Comichões Científicas”, o narrador diz: Dona Benta havia notado uma mudança nos meninos depois da abertura do Caraminguá nº 1, o primeiro poço de petróleo no Brasil (O Poço do Visconde, do mesmo autor). Aprenderam um pingo de geologia e ficaram ansiosos por mais ciência. — Sinto uma comichão no cérebro, disse Pedrinho. Quero saber coisas. Quero saber tudo quanto há no mundo... —Muito fácil, meu filho — respondeu Dona Benta. — A ciência está nos livros. Basta que os leia. — Não é assim, vovó. — protestou o menino. — Em geral os livros de ciências falam como se o leitor já soubesse a matéria de que tratam, de maneira que a gente lê e fica na mesma. Tentei ler uma biologia que a senhora tem na estante, mas desanimei. A ciência de que gosto é a falada, a contada pela senhora, clarinha
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. Rio de Janeiro: Record, 1996. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para sua história e suas fontes. São Paulo: Melhoramentos, 1968. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1996. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. BUSATTO, Cléo. Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. COLASSANTI, Marina. Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Recorde, 2004. p. 161 LOBATO, Monteiro. Serões de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1994. PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
como água de pote, com explicações de tudo quanto a gente não
É imprescindível que as Donas Bentas sejam reeditadas e ressignificadas por constituidores de sujeitos – pais, avós, tios, professores, bibliotecários, contadores de histórias; aí, reside a responsabilidade e a satisfação em realizar esta constante ação de ler. Em contrapartida, não se pode perder de vista que a prática de contar histórias também pode ser desenvolvida junto à nova cultura tecnológica, o ciberespaço, que permite a formação de comunidades virtuais, possibilitando uma experiência diferente para a criança, não menos interativa que os outros meios. 4
Acervo Pessoal
sabe [...] (LOBATO, 1994, p. 7) Aline Fernanda Camargo Sampaio é Mestra em Educação e Linguagem pela USP, Especialista em Docência no Ensino Superior, Graduada e Licenciada em Letras/Português pela USP, Pesquisadora do Grupo DiCLiME-USP (Diversidade Cultural, Linguagem, Mídia e Educação) e Professora Universitária. E-mail: alinefcsampaio@gmail.com