Reposicionamentos da crítica

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REPOSICIONAMENTOS DA CRÍTICA levantamento, discussão e especulacionismo

clarissa diniz júnior pimenta & ana cecília soares lailana krinski roberto traplev

organização leonardo araujo



sumário introdução .............................................................................................................................. 07 levantamento ......................................................................................................................... 09 especulacionismo................................................................................................................... 17

à crítica especutativa leonardo araujo ..................................................................................... 19

da vontade de ação – experimentação, interlocução, criação clarissa diniz ........................................................................................... 27

discussão 0

discussão ................................................................................................................................. 45

o texto como obra e a obra como crítica ......................................................... 47

não entendi bem, você quer dizer que obra é crítica ou que crítica é obra? lailana krinski ......................................................................................... 49

novas atuações da crítica (maneiras de arte) ................................................ 51

fim do mundo, fim da crítica júnior pimenta & ana cecília soares .................................................. 53

caucular interesses / formulário 1 roberto traplev ....................................................................................... 57



introdução



o projeto Reposicionamentos da Crítica vem sendo realizado desde junho de 2012, logo após o convite de Fabio Morais, Regina Melim e Maíra Dietrich. Com a proposta de conceber uma mesa de publicações de crítica de arte para a feira de arte impressa itinerante TURNÊ, como foi inicialmente potencializado, iniciou-se, por conta própria, uma pesquisa que vem tentado suprir ou criar uma demanda relativa às discussões vigentes referentes à crítica na atualidade. A perspectiva até então alcançada vem a se materializar em um levantamento (quase mapeamento) de onde e como está sendo realizado um exercício da crítica de arte, a fim de tornar visíveis as possibilidades de pensar em como pode estar sendo construída a história da arte contemporânea no país. Não necessariamente escrita por historiadores, mas aqui pensada ou reclamada à crítica, a história pode vir a ser a maneira pela qual sentimos e percebemos nosso tempo junto ao o que pode nos ser proposto sua problematização, a arte. Diante dessa perspectiva mais abrangente e de intencionalidade do projeto de levantamento, a constituição da mesa de publicações para venda também sucedeu-se em uma necessidade: durante a passagem da feira pelas cidades esperadas (Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo), criou-se eventos para discutir a possibilidade da crítica de arte estar realmente condizente ao que vem sendo produzido na arte, junto, é claro, a seu direcionamento ao público. assim, a partir das três frentes pensadas para ocupar a TURNÊ com esse projeto – a mesa para venda com as revistas escolhidas, o levantamento da crítica e encontros para discussões – pensou-se em uma organização própria. Como uma das intensões da feira é mapear e fazer circular publicações “independentes” de artistas - e a compreensão do termo independente já diz muito sobre o direcionamento do projeto -, procurou-se selecionar publicações de crítica de arte que se criam e permanecem sem editora, com difícil circulação, sendo realizadas “na marra”. Mas antes disso, tratouse de perceber como o próprio projeto (aqui) percebe a crítica. o levantamento se subdivide em cinco partes: Crítica Acadêmica Impressa; Crítica Acadêmica Virtual; Crítica Especulativa Impressa; Crítica Especulativa Virtual; Crítica Jornalística Impressa e Virtual. Os encontros para discussão são: O Texto Como Obra e a Obra Como Crítica - Curitiba; Novas Atuações da Crítica (maneiras de arte) – Rio de Janeiro.

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levantamento



a crítica não pretende-se aqui fazer a reunião completa (ou simples mapeamento simbólico) do que se considera apenas crítica de arte, por um certo saber social dessa prática, mas sim demonstrar a percepção do avanço da crítica para além da obra de arte. Ou seja, assim como a própria produção da arte contemporânea vem demonstrando seu avanço para além de sua própria linguagem, a aparente crítica tem se esforçado a acompanhar essa diversidade de atuação. Portanto, tentou-se reunir aqui publicações que geram discussão e reflexão tanto sobre, quanto a partir da arte, que tangenciam vários meios e campos do conhecimento dentro da cultura.

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acadêmica publicações que são produzidas dentro do universo acadêmico a partir, costumeiramente, de linhas específicas de pesquisa, e que costumam se justificar principalmente pelo levantamento e/ou comparação de dados no contexto histórico. jornalística refere-se aqui pela aparente crítica produzida por revistas e jornais que são comercializados por editoras e afins. De modo geral são conhecidos por ter um caráter meramente apresentativo, os chamados release, por ter a intensão de qualificar os eventos de arte e por pretender abarcar um possível panorama geral da produção contemporânea das diversas áreas da arte na cultura (música, teatro, cinema, artes visuais e etc). especulativa na maioria dos casos, são publicações ditas “independentes” e que não se encontram atreladas a Universidade ou a selos e editoras. Distinguem-se por se justificarem a partir do contexto da experiência, realizando e apresentando pesquisas/investigações particulares que muitas vezes nascem a partir do olhar pela “prática” de produção de arte. Esse “termo”, especulativa, é usado aqui para referir-se a prática de valorização generalista do que é feito hoje, na crítica. Como, por exemplo, um sistema que qualifica uma produção a partir de campos de atuação hierárquicos, ou seja, quando tem-se a crítica relacionada à prática acadêmica, num saber quase totalmente social, a valoração nos parece maior. E, quando esta produção se encontra dirigida por um selo ou editora, alcança-se outra valoração, aquela da qual percebemos através de uma certa “mídia” que as representa, se assim é possível especular. Dessa maneira, a critica especulativa parece ser a mais afetada pela discussão, reflexão, dificuldades, encontros e desencontros, concordâncias e dissonâncias levantadas pela prática da produção de eventos na arte contemporânea. Ela especula por dentro de um contexto próprio, o da percepção mais próxima do fazer e é especulativa por ser “independente” e “independente” por que entende que é difícil. impressa publicações que recebem impressão com tiragem limitada e que são distribuídas gratuitamente ou vendidas. virtual publicações que acontecem na internet através de sites, com publicações pensadas para o seu próprio campo de atuação e que não determinam compromisso prévio com a impressão e distribuição de material físico.

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revistas

critica acadêmica impressa SP Marcelina - Pós Graduação da Faculdade Santa Marcelina ARS - Departamento de Artes Plásticas da USP RISCO - Professores e Alunos da ECA – USP RJ Arte & Ensaios - Pós Graduação da UFRJ GO Visualidades - Pós Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG crítica acadêmica virtual SP Anagramas - Grupo de Estudo de Graduação em Jornalismo da USP WAWRWT - Grupo Arte e Tecnologia / USP - Gilberto Pradro RJ Coicinnitas - Instituto de Artes da UERJ Contemporânea - Grupo Comunicação, Arte e Cidade da UERJ VISO - Cadernos de Estética Aplicada” – Pós Graduação de Filosofia/UFF RS Porto Arte - Revista da Pós Graduação de Artes Visuais da UFRGS crítica especulativa impressa SP DAZIBAO (editores: Roberto Winter, Deyson Gilbert, Gustavo Motta, Guilherme) RJ Elástica (editores Beatriz Lemos, Rafael Adorján e Thais de Medeiros) RECIBO (editor Roberto Traplev) PR LAB# (editor Lailana Krinski) PE TATUI (editor Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz) CE Reticências (editores: Júnior Pimenta e Ana Cecília Soares) crítica especulativa virtual SP MARÉ (editores: Thais Rivitti, Daniel Rubim, Leonardo Araujo, Isabela Rjeille, Marília Loureiro e Fernanda D`Agostino) RS Panorama Crítico (editores: Alexandre Nicolodi e Denis Nicola) PE TATUí (editores: Ana Luiza Lima e Clarissa Diniz) CE Reticências (editores: Júnior Pimenta e Ana Cecília Soares) crítica jornalística impressa e virtual SP Select (editores: Giselle Beiguelman, Juliana Monachesi e Paula Alzugaray) DasArtes (editores: Guilherme Bueno) BRAVO (editores: Roberto Civita) Bien’art (editores ... ) Arte! Brasileiros Ilutrada/Folha de São Paulo Caderno 2/Estadão RJ Papel das Artes (editores: ... )

sites

arquivo de textos SP http://www.canalcontemporaneo.art.br/ http://www.forumpermanente.org/

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blogs e sites de curadores e críticos RJ Bernardo Mosqueira - http://www.chezmrzigs.blogspot.com.br/ Daniela Labra - http://www.artesquema.com/ Daniela Name - http://daniname.wordpress.com/ SP Guy Amado - http://artonauta.wordpress.com/ Paula Borgui - http://eoutro.blogspot.com.br/ PE Ana Luisa Lima - http://analuisalima.wordpress.com/ SC Kamilla Nunes - http://liquidovermelho.blogspot.com/

instituições

SESC_VIDEO BRASIL - cadernos de cultura sesc_vídeo brasil V. 1. Performance – 2005 (editor Jose Algusto Ribeiro) V. 2. Arte Mobilidade Sustentabilidade – 2006 (editor Helio Hara) V. 3. Limite – 2007 (editor Paula Azugaray) V. 4. Ocupação do Espaço – 2008 (editor Marcelo Resende) V. 5. Clio, Pátria – 2009 (editor Lisette Lagnado) V. 6. Turista / Motorista – 2010 (editor Fernando Oliva) V. 7. A Revista – 2011 (editor Rodrigo Moura) FUNARTE - reunião de críticas - coleção pensamento crítico N˚ 1 - Paulo Sergio Duarte - a trilha da trama e outros textos sobre arte (org. Luiza Duarte) N˚ 2 - Frederico Moraes - (org. Silvana Selfrin) N˚ 3 - Iclea Cattani - (org. Aguinaldo Farias) N˚ 4 - Aline Figueiredo - (org. Laudenir Antonio Gonçalvez) N˚ 5 - Gilberto Freyre - (org. Clarissa Diniz e Gleyce Heitor) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas - (org. Glória Ferreira) Arte/Estado – Palestras e Debates - palestras de 2003 ABCA - coleção critica de arte Crítica e Modernidade - (org. Annateresa Frabiss e Lisbeth Rebollo Gonçalves) Arte, Crítica e Mundialização - (org. Mariza Bertoli e Verônica Stigger) Os Lugares da Crítica de Arte - (org. Lisbeth Rebollo Gonçalves e Annateresa Fabris) Arte Brasileira no Século XX - (org. Lisbeth Rebollo Gonçalves) Sergio Milliet 100 anos - (org. Lisbeth Rebollo Gonçalves) MARIA ANTÔNIA Centro Universitário - seminários Historicidade e Arte Contemporânea: ensaios e conversas (org. Sônia Salstein e João Bandeira)

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editais

FUNARTE - conexão artes visuais Reynaldo Roel Jr. - Crítica Reunida – MAM RJ Moacir dos Anjos Crítica - Coleção Arte Bra Crítica ed. Automática Investigação n˚ 11 - Revista - editores Guilherme Mautone e Leticia Bertagna Artistas Brasileiros: Monografia de Bolso / Emmanuel Nassar, Carlos Zílio, Hermelindo Fiaminghi e Wanda Pimentel - MAC Niterói Espaço Independentes - Ateliê 397 Artes Visuais Sergipe Conexões 2010 - Sociedade Semear FUNARTE - bolsa estimulo à produção crítica em arte visuais CE Milena de Lima Travassos - Cena e performance: a Reinvenção da Mise en Scène no Vídeo Contemporâneo DF Cinara Barbosa de Souza - O Pensamento do Curador MG Eduardo Jorge de Oliveira - Três ou Mais Usos do Corpo na Arte Brasileira Contemporânea RJ Luciano Trigo Teixeira - Estética das redes: As regras da arte contemporânea no Brasil RJ Roberto Moreira Junior - A Revista MALASARTES e o Circuito de Arte Brasileiro dos Anos 1970 RS Eduardo de Souza Xavier - Conversas com Lenora de Barros RS Gabriele Kremer Motta - O Desconhecido Como Pulsão e Parte da Obra em Nelson Félix e Nuno Ramos RS Michel Zózimo da Rocha - Estratégias Expansivas da Arte Contemporânea: Publicações de Artistas e Seus Espaços Moventes SC Marta Lúcia Pereira Martins – Narrativas Ficcionais de Tunga SP Carlos Eduardo Riccioppo Freitas – Cinco Artistas Diante da Cidade Contemporânea FUNDAJ - concurso mário pedrosa de ensaios sobre arte e cultura contemporâneas 1º / Tema : “A Representação do Nordeste na Produção Artística Contemporânea” Banca de Seleção: ... / Selecionados: ... 2º / Tema : “Arte e Mundo Após a Crise das Utopias” Banca de Seleção: Renato Janine Ribeiro, Miguel Chaia, Gloria Ferreira e Cristiana Tejo. / Selecionados: ... 3º / Tema : “Crítica de Arte: entre o contingente e o histórico” Banca de Seleção: Cristhiano Aguiar, Raul Antelo e Mariana Baltar Freire Marco André Feldan Schneider
– “A Dialética do gosto ou o estômago e a fantasia” Rainer Câmara Patriota
- “Hesse, Adorno e Harnoncourt: a consciência da música histórica no século XX” Caio de Oliveira Yurgel
- “Cenas da Urbe, da e do crítico – um documentário dirigido por W. Benjamin” 15


4º / Tema: “Educação e Arte: sinapses possíveis” Banca de Seleção: Márcio Doctors, Joana D´Arc de Souza Lima e Verônica Soares Fernandes José Roberto Shwafaty de Siqueira - “Por uma consciência dos meios: arte contemporânea, curadoria e mediação crítica” Maria Helena Bernardes – “Por uma pedagogia do passante Marina Marcondes Machado – “Fenomenologia de Merleau-Ponty e as relações entre educação, arte e vida na pequena infância: rumo a uma Abordagem Espiral no ensino da Arte” Menção Honrosa - Cayo Vinícius Honorato da Silva – “Sem dono ou destinação determinada: conjunções e disjunções entre arte e educação” Menção Honrosa - Maria Olívia Medeiros Mindêlo – “A arte também exclui. Público, arte contemporânea e os desafios da formação”

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especulacionismo



à crítica especulativa (ou à representação elevada a quarta potência) por leonardo araujo Reflexão um objeto de arte não nos diz nada. Na verdade, nenhum objeto nos diz alguma coisa . Os objetos do mundo não tem qualquer linguagem, e digo aqui sobre todos os objetos possíveis que o conceito do termo nos pode fazer apreender. O que nos diz algo é outra coisa, é justamente as referências expressas em nossa mente por experiências vividas, e não o objeto em si - pela qual podemos demandar atenção, preocupação ou entendimento - que nos diz alguma coisa. O que nos chega não é o que diz o objeto em si, já que ele não comunica nada além de sua própria existência (concreta ou não), mas as partes desse objeto, que nos apresentam referências de outras relações que tivemos com outros objetos, os quais, assim como esse agora em defronte de nós 1 , nos demanda (ou demandou) um debruçar-se ao seu entendimento e a possibilidade de conhecimento de função de sua existência.

discussão 0 clarissa diniz : leo, eu não li o Pascal, mas li um pouco de Wittgenstein que muito me atrai, apesar de ser difícil e de meu conhecimento a seu respeito ser altamente insuficiente. Assim, do que conheço de Wittgenstein, percebo uma diferença no modo como os argumentos acima foram construídos: em minha leitura wittgensteineana, o que me parece é que não haveria como criar instâncias primeiras/secundárias de pensamento/linguagem, visto que tudo estaria na linguagem (“não há nada errado na linguagem”) numa horizontalidade que, de tão planar, inviabilizaria ordens e, assim, sentidos originários/genuínos.

hoje o objeto de arte não é algo inusitado, e principalmente após Duchamp, ele se torna uma espécie de editoração da relação e conhecimento da existência de outros objetos 2 . Assim, poder-seia dizer que o objeto de arte não é um objeto que demanda um juízo por um pensamento a priori 3, mas que ele nos delata uma experiência sensível outra, decorrente da experiência que tivemos com outro objeto. Ou seja, o objeto de arte é a coisa que nos diz algo a partir do empirismo com o mundo que nos cerca, em que é feito ou pelo o que foi feito. E só a partir disso, poderíamos discorrer que esse objeto nos demanda uma necessidade, a qual seria relativa a nossa necessidade de entendimento dele, ou do mundo, ou das coisas que no mundo ocorrem 4 , já que esse objeto, expresso em linguagem (representação), representa outra representação da realidade.

leonardo araujo: a ordem que digo aqui é completamente referida à cronologia, ao que nos acontece primeiramente quando estamos buscando entender qualquer objeto do mundo. Ou seja, quero dizer que o pensamento não consegue em nenhum instante se desvincular das linguagens que obtemos para comunicar algo, mas que ele é primeiro em ordem cronológica, mesmo que esteja submetido a linguagens sonora, visual e escrita. Isso não ficou claro? Posso tentar melhorar se for possível.

essa outra representação da realidade diz respeito ao pensamento. O pensamento é a primeira linguagem que podemos ter diretamente ligada aos objetos do mundo. Essa linguagem está diretamente relacionada à constituição de nossa linguagem escrita, verbal e visual, todas ao mesmo tempo e indistintamente. Cada palavra no mundo, ou cada imagem do mundo, ou cada som expresso, nos remete a uma imagem particular em nossa mente. “A luz, o ar, a água, a terra, os vegetais, os animais, a cujo grupo pertencemos, são uma estranha e antiga disponibilidade, limitada no tempo e no espaço, mas também limitada por suas propriedades respectivas. Todos são concebidos sem linguagem. Todos independem de razões, que são apenas consequentes na linguagem, e carecem de finalidade, que só pode ser atribuída pela linguagem” 5, Se as coisas são criadas sem linguagem, poder-se-ia dizer que o entendimento das imagens que obtemos em nossa mente, após a

cd : é que eu acho que também seria ilusório criar essa ordem cronológica, porque mesmo o primeiro contato com algum objeto não é uma “primeira percepção” (nem o primeiro pensamento), visto que já vem informada por muitas outras experiências... Então, no fundo, eleger uma cronologia seria um esquematismo, algo que poderia ter valor didático, mas que, como tal, é simplificador... Do mesmo modo que você aponta que por trás de uma essência há outra, 19


experiência que temos com os objetos do mundo é, no entanto, uma linguagem a posteriori, pois está diretamente relacionada à criação que obtemos a partir de uma experiência. Nosso entendimento, então, cria uma imagem a partir do entendimento da experiência e isso se dá diretamente na racionalização da experiência, ou seja, no pensamento, em nossa primeira linguagem que representa o mundo. A primeira metáfora seria o pensamento. Pois bem, quando exprimimos esse pensamento em outra imagem, em outro texto ou em outra verbalização, estamos exprimindo a segunda linguagem, ou melhor, a segunda representação, a representação do pensamento, que é representação da realidade, ou melhor, das experiências que obtemos com os objetos do mundo. se o que nos diz não é o objeto e sim as referências feitas por partes dele às nossas experiências, podemos dizer também que o objeto de arte é algo produzido a partir de diversas outras experiências com outros objetos, já que seu caráter é de representação e vem expresso a partir de uma vontade, desejo, intensão ou pesquisa de um produtor, não deixando de ser a representação da diversidade de experiência de um sujeito para com o seu tempo. Seja ocasional, proposital, reflexivo ou de referenciação de uma pesquisa, o objeto de arte não está agregado de valor, mesmo que ele seja pensado pelo produtor como algo que o retêm, pois quem inicialmente dá valor a ele é o seu produtor (artista). Segundo Wittgenstein, o que está no mundo não tem valor: “No mundo, tudo é como é e acontece como acontece: nele não há valor, e, se houvesse, o valor não teria valor” 6 . Valor é algo que foi criado por nós, a partir da necessidade frágil de conceber parâmetros para se ter uma vida coletiva e para classificação das ocorrências das coisas no mundo. A ética e a moral são claramente decorrentes de princípios de valoração desses parâmetros. O conceito de valor aqui se dirige em dotar os objetos do e no mundo a partir da linguagem que os significam. Se Wittgenstein afirma que no mundo não há nada que mantenha valor, mas que nós é que o conferimos às coisas, Kant, em seu prefácio do texto Crítica da Razão Pura, nos propõe que coloquemos valor nas coisas, principalmente ao creditar ao homem o poder de apenas reconhecer o que ele mesmo coloca no mundo, desde Deus às nossas fezes; o homem no centro do universo, uma ressignificação completa da tese de Copérnico em colocar o Sol como astro central do universo. a realidade então, a partir do levantamento de tais conceitos, não poderia ser senão apenas a necessidade que temos de nos reconhecer no mundo - já que no mundo as coisas não dizem nada, não têm valor e muito menos significação própria - mas o conhecimento seria de antemão a decodificação racional que podemos fazer a partir das experiências que temos com os objetos do mundo, ou melhor, da ocorrência desses objetos no mundo, junto, é claro, do pensamento que temos sobre com e sobre eles anteriormente. Se a linguagem é algo representacional da possibilidade da realidade, o conhecimento é algo representado pela linguagem. A linguagem, nesse caso, apenas seria uma 20

e assim infinitamente, também por trás de “uma” linguagem/ pensamento há outro, também infinitamente, de forma que me parece sobretudo esquemático fazer essa distinção... E, como seu texto tem uma inclinação mais epistemológica, acho que esse esquematismo tende a confundir mais do que ajudar... Mas tudo isso, claro, visto dentro da minha perspectiva que, como lhe disse, não acredita nas essências/verdades. cd : pela mesma razão pela qual não se poderia dizer que algo “é” alguma coisa, não se poderia dizer que alguma linguagem/ pensamento vem antes da outra: elas se imbricariam numa desordem hierárquica que, em última instância, revela complexidade. Assim, minha tendência (e me corrija se eu estiver errada, o que é bem possível) é, a partir do Investigações Filosóficas (precisamente no que ele contradiz o Tractatus), afirmar não que “as coisas são criadas sem linguagem” (o que já contém uma separação metafísica entre coisa e pensamento, algo que Wittgenstein tenta desconstruir), mas “que as coisas são criadas pela linguagem”. Esse trechinho citado do Pascal (que não conheço) me parece estar ainda vinculado ao vício metafísico que busca constituir um “terreno comum” (originário) que o II Wittgenstein tenta pôr abaixo.. la : clarissa, pelo o que eu venho estudando em Wittgenstein, a linguagem não cria algo do mundo, mas sim dá sentido a esse algo no mundo, pelo qual o seu significado se altera conforme o contexto em que é utilizado – por isso chamamos a mandioca de macaxera, ou a macaxera de mandioca, ou o aipim de mandioca e macaxera.


representação da representação das experiências com os objetos do mundo, apenas passíveis pela decodificação racional dessas por nossa mente, em primeira instância. método diante da discussão ainda vigente da possível eficiência da pesquisa acadêmica de arte, em contraponto à convenção da pesquisa cientifica, dispomos de algumas discussões que se diferenciam mutuamente perante seus posicionamentos. Frente a possibilidade de gerar o conhecimento, a pesquisa cientifica é quase incontestável, justamente por apresentar e dispor de um método geral entre os pesquisadores. Método esse já calcado e estabelecido por procedimentos um tanto convencionais, dentre comparações e experimentações. a ciência se divide em duas disciplinas. A ciência formal - que tem como parâmetros primeiros a Lógica e a Matemática - se estabelece dentre os materiais de pesquisa e estudo que não tem seus objetos em caráter de existência concreta, ou seja, por serem abstratos, que apenas representam abstrusamente o que ocorre no mundo; e a ciência empírica - que tem como parâmetro a predisposição para com a experiência - se estabelece por entre os objetos de estudo e pesquisa dos fenômenos naturais que ocorrem no mundo. para não arrefeçar a discussão iniciada, passemos para o entendimento humano do que é conhecimento. Saber, seu sinônimo, pode ser distinto entre três diferentes formas: primeiramente, quando permite ao homem a capacidade ou competência de conhecer algo; em segundo, quando nossa razão reconhece algo, a ponto de compreendermos que já tivemos uma experiência com esse objeto; e em último, justamente o qual pretende-se deter aqui, quando uma proposição posta nos coloca a fim de distinguir sua verdade ou falsidade, pois pode sê-la uma e outra ao mesmo tempo quando não justificada sua crença. E é nesse ponto em que é preciso termos um posicionamento, diante da possibilidade de justificar algo o qual estabelecemos relação de crença, que acreditamos. Os parâmetros do conhecimento estão dispostos, na filosofia, no campo da possibilidade de justificar em tom de verdade uma crença. a Epistemologia, ou a Teoria do Conhecimento, tem toda uma história a ser contada, pelas correntes e filósofos que se opõem entre Teorias das Ideias de Platão, Empirismo, Racionalismo e Ceticismo (que nega a possibilidade de conhecimento, mesmo aparentemente concluindo essa tese de maneira justificada), mas como foi requerido aqui, o posicionamento frente ao conhecimento é eficiente para o que é reclamado. dessa maneira, o filósofo Imannuel Kant me parece o único o qual posso referir-me ao conhecimento de maneira a não fazer distinção entre uma única possibilidade convencional de retê-

cd : então, acho que o ponto crucial é se haveria um mundo fora das redes de significação – quaisquer que sejam estas. Para nós, é uma espécie de encruzilhada do tipo “ovo ou a galinha”, porque mesmo que apostemos que haja, não conseguiríamos pressupô-lo, imaginá-lo, posto que apenas com a linguagem poderíamos fazê-lo – o que nos levaria de volta à ideia de que não há mundo fora da linguagem. E, como ficamos nos questionando ali na Bhering, há ainda o pensamento que defenderá que a linguagem (assim como a subjetividade) não é privilégio do homem-senhor-darazão. Em jogo, no fim das contas, está uma concepção moderna de racionalidade (que acredita que a essência pode ser logicamente dedutível), e outra, menos antropocêntrica, que privilegia pensar em termos de diferenças/ modulações e que, como tais, jamais se poderiam estancar/fixar numa identidade/essência/verdade e seu consequente regime de representação. la : justamente pelo fato do que você colocou aqui (de que a linguagem é que cria), é que me utilizo do Kant, em Crítica da Razão Pura, pois, ao defender sua tese, ele justifica que tudo o que há no mundo só existe por que nós humanos (racionais) damos significado. Ou seja, por acreditar que a crítica de arte deva se colocar também como um objeto de criação, mesmo que referenciada a outro objeto (de arte), penso que a manipulação desses conceitos que se contradizem possa dar voz a uma nova aceitação, aquela referida à desierarquização, entendendo a linguagem como uma representação da realidade, que almeja alcançar a verdade dos objetos, mesmo sabendo que para o 21


lo. Pois, se colocarmos a pesquisa em arte dentro de conceitos Empiristas, teremos uma analise diferente da do Racionalismo, que nem ao menos categorizaria essa pesquisa como um campo do conhecimento. Kant procurou determinar como é a constituição do conhecimento, concebendo que ele é determinado tanto pelos sentidos, das suas matérias expressas em racionalização, como em pensamento racional a priori, em que o material dos sentidos se submete à razão. Por isso, Kant se opõe tanto ao completo Empirismo como também à tradição Racionalista, e propõe uma relação quase paralela entre os dois entendimentos de conhecimento, mas ainda hierárquica pois uma deve se submeter a outra. pois bem, partindo desse posicionamento, cabe agora compreender se na pesquisa em arte os objetos de estudo podem ser justificáveis. Antes disso, se faz necessário justificar essa pesquisa. Ela é aqui relativa à produção artística que se demanda ser defendida academicamente, em forma de estabelecimento próprio de um método. O objeto de pesquisa desse artista, muitas vezes pode estar relacionado a sua própria proposição, que pode ser tanto alcançar um produto calcado no acaso, como estar relativo a uma pesquisa em outras instâncias do conhecimento. Mesmo assim, o fato de seu produto ser a representação da representação da realidade, sendo dotado do que não nos diz nada, sua linguagem (ou simples apresentação), seja ela escrita, visual, verbal ou seja ação, não o torna passível de ser um objeto justificável, muito menos por si mesmo. Esse produto, no contexto atual de sua dotação de sentido a partir do seu caráter de edição de outros produtos, imagens, objetos, não faz nada além de nos demandar atenção suficiente para ressignificá-lo, dar-lhe outra significação dentre das quais ele já se utilizou. Ou seja, Duchamp ao fixar um garfo junto a roda de bicicleta em cima de uma banco não ressignificou ou criou um novo objeto, mas nos apresentou algo com um outro sentido, a partir de outros objetos que demandam que nós os ressignifiquemos. Essa maneira, a única maneira de originalidade do trabalho de arte hoje, é o que me faz compreende-lo por não justificável, a não ser que a justificativa da crença que temos nele seja justamente nossa ressignificação, ou melhor, nossa geração de discurso, ou seja, mais uma representação da representação da realidade.

2o. Wittgenstein a linguagem é tão arbitrária que não é possível pensála como representação do mundo. cd : assim, nesse parágrafo, me pareceu haver contradições entre a radicalidade da crítica à lógica/ razão wittgensteineana, e um insistente resquício metafísico que aparece por entre hierarquizações, separações entre experiência e entendimento (que seriam, em última instância, a mesma coisa), representação e linguagem, etc. la : mas acredito que utilizo o Wittgenstein não para defender meu ponto vista e sim para apresentá-lo como instrumento de contradição. Não sei, mas acho que seria muito fácil se eu apenas me utilizasse do Kant para escrever todo esse posicionamento, você não acha? cd : aqui, por exemplo, eu tenderia a entender que são nossas experiências que elegem (ou melhor, organizam) nos objetos as partes as quais podem referir-se. la : justamente, não sei se nós temos algum poder sobre esse objeto, a ponto de eleger alguma coisa nele, acho o contrário, penso que a partir deles (dos objetos) nós elegemos coisas e, a partir disso, elegemos coisas sobre o mundo, e não “no” mundo. Por isso falo sobre referências, saca? Me corrija se eu não estiver sendo claro no texto, viu? Isso aqui que estamos fazendo é ótimo pra mim.

mesmo assim, há outra ocorrência dentro da arte: a pesquisa de arte. Diferente por estar relacionada a uma pesquisa junto à História da Arte, à Estética e à Filosofia da Arte, ela também pode vir assim questionada de sua possibilidade de geração de conhecimento, pois cd : sim, eu acho que essa eleição já podemos dizer que seus problemas e objetos de pesquisa podem estar apenas relativos às questões empíricas, das coisas que ocorrem vem informada pelo “objeto”, mas na mesma medida em que constrói no mundo a partir das consequências sociais dos fatos históricos da esse mesmo objeto, de modo que humanidade, de sua produção e de suas próprias causalidades. posso assim dizer que tanto a pesquisa em arte como a pesquisa de arte são necessariamente passíveis de não geração de conhecimento. Pensa-se, dessa maneira, que as duas composições 22

fica difícil imaginá-lo antes/para além de nossa percepção dele... Ao mesmo tempo, não podemos reduzi-lo a nós, o que não significa,


de estudo se estabelecem dentre objetos que não são facilmente passíveis de justificação racional e sensível ao mesmo tempo, racional em primeira instância (a priori) e sensível em segundo momento (a posteriori). proposição atualmente a crítica se encontra desacreditada, tanto para os que a fazem quanto para os que a recebem. Esse fato vem de encontro a história da crítica de arte no ocidente, a qual foi escrita sendo creditada por ser um possível discurso da verdade sobre o objeto artístico. Porém, hoje, sua veiculação não é mais a mesma, foi destituída dos jornais, das revistas de grande circulação e dos debates públicos. Assim, a crítica tem sido feita em outras instâncias de atuação do sistema de arte, dentre revistas sem selo editorial, as quais posso citar as ditas “independentes”: Maré (SP); Tatuí (PE); Reticências (RS); Elástica (RJ); Lab# (PR); Dazibao (SP); Panorama Crítico (RS) e possivelmente outras que ainda desconheço. Mesmo assim, com a vigência não muito diferente das “independentes”, existem revistas relacionadas às universidades que exercem uma relação maior com a pesquisa de arte e com a pesquisa em arte, e não tanto com o exercício crítico, como a Ars (USP), a Concinnitas (UFRJ), Marcelina (Santa Marcelina), Arte & Ensaios (UFRJ), Visualidades (UFG), Contemporânea (UERJ), Viso (UFF), Porto Arte (UFRGS), entre outras. essa reverberação da crítica me parece muito clara, e me parece mais transparente ainda a possibilidade desta ser feita livre de convenções. Para alguns críticos a atuação da crítica é necessária para fazer uma aproximação maior entre público e objeto de arte; para outros, a crítica deve se preocupar primordialmente a ir ao encontro com o objeto de arte e, se caso for, responder ao público uma “significação” deste. Mas, em minha opinião, nenhuma destas duas visões tem o princípio primeiro de reclamar sua própria natureza, mesmo que estejam percebendo esse desacreditar da eficiência de suas atuações na atualidade. Seria necessário, nesse momento, pensar a crítica em um outro lugar, para alcançar um outro objetivo: o de colocar-se em evidência junto ao objeto de arte. Para que isso aconteça, proporia um exercício crítico da crítica de arte - não a crítica da crítica de arte -, mas a crítica experimentando a si mesma. se o campo de atuação da crítica de arte é o texto, e o texto aqui é visto como uma linguagem, que representa um pensamento (linguagem primeira), que por sua vez representa a realidade, a crítica deveria rever seu próprio lugar de acontecimento. Não digo que a crítica deva abandonar seu lugar (o texto), mas exercitá-lo a ponto de alcançar seu completo uso, a partir de possibilidades de atuações experimentais de sua linguagem. Se a arte foi tão experimentada a ponto de hoje não conseguirmos mais distingui-la entre linguagens, descolando-se de sua própria linguagem visual mas sempre referindo-se a ela por essência -, a crítica deveria fazer

contudo, que ele tenha essência. É por não podermos reduzi-los (os objetos) a nenhuma percepção/ pensamento/linguagem – e a nenhuma identidade, seja nossa seja dele – que pressupomos não que ele tenha uma essência/ verdade fugidia, mas que não tenha nenhuma, sendo algo que extrapola a linguagem, em excesso, ou seja, numa polissemia que é, penso, poliessencial. É um eterno jogo de linguagem. cd : “o conceito de valor aqui se dirige em dotar os objetos do e no mundo a partir da linguagem que os [proponho] auto-co-retrosignificam”, para evitar o risco de parecer que a linguagem está descolada do mundo. la : utilizei apenas o RE, vê se ficou melhor. cd : como “decodificar” pressupõe um código anterior, eu tendo a achar que a questão do conhecimento não é de decodificação, mas sobre codificação/recodificação, visto que decodificação mantém o gérmen metafísico da discussão. la : então, decodificação sim, pois existe um código anterior, como você mesmo observou, e esse código é a essência do objeto, sua real causa, sua verdade, coisa que nós conseguimos alcançar pela razão, visto que cada causa tem uma causa anterior, assim infinitamente. Decodificação pois já vejo o pensamento como representação, distante da realidade. cd : mas qual é a real causa do mundo, Leo? (O nome disso, historicamente, é Deus... Ou, na modernidade, Razão, numa versão alternativa do mesmo tipo de 23


o mesmo com a linguagem escrita, para assim se localizar em um mesmo lugar do objeto de arte, num horizonte indiscriminado.

lógica/cognição. Acho que o que Wittgenstein tentou fazer foi alterar essa cognição, instaurar mesmo outro tipo de lógica, que pressupõe abrir mão dessa racionalidade metafísica, seja colocando Deus lá no topo, seja colocando a Razão...)

se a crítica de arte produz discurso a partir de um ângulo externo ao do objeto de arte, o artista produz discurso de dentro dele, já que é ele mesmo que o produz. Estes dois discursos dotam o objeto de dois ressignificados – que podem se completar ou se contradizerem – e também empreendem duas criações de valores diferentes para cd : (isso é o mito da caverna de esse objeto que nada nos diz. A partir do posicionamento com Platão). relação ao conhecimento e com o caráter atual de ressignificação do objeto artístico, as gerações de discursos, tanto do artista la : não sei mesmo, mas tenho como do crítico, são percebidas aqui como representações da achado que vem ao encontro do representação da realidade do objeto de arte 7 . Estes discursos, mundo das ideias, mesmo que faça por sua vez, não justificáveis, não são passíveis de conhecimento e nem de significado próprio. Poder-se-ia dizer que nenhum dos dois referências às coisas não abstratas e aos objetos do mundo. discursos estão mais próximos da verdade desse objeto. No mínimo, o que eles fazem é constatar sua existência. Isso os colocam em um cd : (então, isso é bem Platão, né?: mesmo patamar de atuação, sem nenhuma hierarquia. Nenhum “mundo das ideias”, “coisas do deles pode ser a verdade do objeto e muito menos o significado próprio e único dele. Mesmo que um discurso se encontre realizado mundo”... essa separação primordial é platônica) de dentro da constituição do objeto e outro externamente a ela, esta imagem de distância entre eles não os retiram de seu caráter cd : leo, posso estar errada de representação da representação, ao contrário, os afirmam junto a afirmando isso, dada minha pouca sua ressignificação. a desierarquização aqui proposta não é vista como dispositivo de retomada da crítica de arte, muito pelo contrário, vem a fim de horizontalizar a criação de diferentes discursos para retirar a valoração pré-concebida dos discursos dos agentes ressignificadores desse objeto de arte. Ou seja, a proposta seria a de tornar o objeto do crítico de arte potente na mesma medida de um objeto de arte, já que os dois são representações do mesmo modo, mesmo um representando o pensamento da leitura que fez do objeto artístico e o outro representando o pensamento das experiências que teve com outros objetos 8 . hoje é possível ao menos cogitar a falta de uma crítica de arte vigente passível a escrever uma história da arte contemporânea, e para isso teríamos, também, de constatar o distanciamento cada vez maior da crítica com o público (possível leitor) e com o objeto de arte. Não sei se pelo advento da enorme globalização que nos coloca informações cada vez mais “mastigadas” a serem consumidas, ou se pelo possível distanciamento da própria arte contemporânea com o público, mas podemos dizer que a escrita até então convencional da crítica não tem alcançado eficazmente seus propósitos. Isso porque não percebeu a necessidade de sua mudança. A crítica talvez possa estar nesse lugar melancólico, pois ainda não reteve a percepção de seu próprio convencionalismo, o qual, em minha opinião, faz-se limitar ao entendimento que ela mesma necessita de experimentação, de exercício constante, ou seja, de um novo modus operandi. Levantar novas possibilidades de atuação da crítica de arte, que já estão sendo produzidas ou que 24

experiência em Wittgenstein, mas eu arriscaria dizer que o Investigações Filosóficas é a tentativa de desdizer a lógica do que está aí em verde, algo que estava afirmado pelo Tractatus, mas que o próprio autor vai corrigir depois. Isso porque a linguagem não seria a representação da possibilidade da realidade, mas a própria realidade (não conheceríamos uma realidade fora da linguagem, qualquer que seja a linguagem). Nesse sentido, e aqui é onde eu acho que o texto poderia ficar mais complexo, acho que seria mais justo não tratar a arte como “objeto”, como coisa dada (como o Pascal faz em relação animais e vegetais), mas como linguagem. Sob o risco de incorrer numa ideia metafísica de arte, como um “acontecimento dado a priori” pois, mesmo que eventualmente estabeleça essa relação no âmbito da recepção (do público que vê uma obra pela primeira vez), sabemos que, no campo da produção, não se


podem vir a ser realizadas, pensar em iniciar uma demanda sem precedente de contexto de atuação, ou melhor, fazer crítica como se faz um trabalho de arte, é o interesse. Entendendo nesse momento que os dois são criações. diante disso, junto a uma conversa que obtive, Regina Melin levantou-me uma questão: “a inserção da denominação ‘crítica de arte’ - e todas as distinções, peso, tradição, etc. - pode nos nublar de tal forma que quando nos damos conta estamos a desconsiderar um número, cada vez mais expressivo, de proposições artísticas textuais que são considerados trabalhos de arte, mas acabamos por inseri-los dentro de um território (somente) da crítica (e teoria) de arte”. O fato de a inserção dessa denominação ser algo constatável, não diz respeito ao que a crítica não costuma aceitar, como as quebras de convenções dentro dela mesma, já que se torna mais difícil aceitar que uma proposição, como a que Melin se refere, possa ser um objeto artístico também. Como se a crítica obscurecesse seu lugar comum, o do texto, pois fica mais frágil à crítica levantar discurso e ressignificado a um objeto de arte que está em sua mesma linguagem e que também é em si um discurso. Ou seja, se o costume da apresentação de visualidades mastigadas, através do advento da globalização pode ter distanciado a produção da arte contemporânea do público – a estética artística atual da estética social -, como fazer com que a crítica responda a essa distância? Acredito eu, experimentando novas maneiras de fazê-la, que apenas será possível quando a crítica também entender seu lugar, aquele desierarquizado. pensando o uso experimental da linguagem escrita, meus últimos 3 trabalhos se deram em exercícios textuais, tanto enquanto imagem como quanto linguagem. A abordagem da construção criativa desses projetos se estabelece a partir de experimentações que entendem o “texto” como objeto manipulável, tanto pelo sujeito que o constrói quanto pelo contexto em que se é criado, como pelo leitor. Proponho desde cruzamentos entre textos, Retrato x ou + Paisagem, como um exercício de estilo para condensar 3 textos em 1 só, Entardecer 9 , até a possibilidade de perceber um texto literário como imagem - não enquanto forma de linhas e palavras e nem como ilustrações de seu conteúdo, mas como o método de análise de sua forma e conteúdo ao mesmo tempo -, A Imagem do Texto no Texto da Imagem 10 . Esses exercícios de linguagem se fazem necessários diante do interesse de imergir numa pesquisa da escrita que pode se dar em diversas instâncias. portanto, deve-se reunir investigações e experimentos a fim de alcançar o trânsito de linguagem, almejando uma desfronteirização da escrita criativa, para futuramente podermos nos voltar a crítica de arte. Para assim, a crítica poder ser feita com complacência a sua demanda na atualidade, a de ser relativa à reflexão crítica dela mesma ao mesmo tempo que do seu objeto (a obra).

dá assim. Se dá como linguagem, sendo a linguagem a possibilidade de criação do real, o espaço mesmo onde o real é constituído; assim, arte = realidade = linguagem (“o significado de uma palavra é seu uso na linguagem”: o significado da arte tb). Wittgenstein II também fala muito que não há uma regra de uso da língua e sua subsequente aplicação, há somente a ação de falar, por isso surgem os jogos de linguagem, cujas regras são criadas a posteriori (como também a gramática), e não como estruturas elementares (o que inviabilizaria o jogo). la : concordo com você em gênero, número e grau, principalmente quando você fala que a linguagem se estabelece por seu uso e o próprio significado de linguagem já é o seu próprio uso, o que a aproximaria diretamente da realidade, se não fosse a mesma coisa. Mas, há em mim uma discussão: e se nós não fôssemos racionais? O mundo permaneceria sem linguagem e, por conseguinte, sem realidade; ou realidade é só o significado que criamos para dar sentido e limite às coisas que experienciamos no mundo? Sem linguagem, o mundo não existiria? Acho que a arte também é objeto, pois ela é produto no mundo, que nós mesmo criamos, se arte fosse a realidade, todas os outros objetos que nós criamos (funcionais ou não) seriam também a realidade, dada por nossa linguagem. Não estou te questionando, estou questionando o próprio conceito de linguagem = realidade de Wittgeinstein. cd : acho que o que você está questionando é o conceito de racionalidade. Há muitas racionalidades... A razão lógica é apenas uma delas... A racionalidade que seu texto explora, me parece, 25


notas: 1 esse objeto é também o texto em que agora nos debruçamos. Pode sê-lo, acredito eu, constituído na indistinção entre um objeto de arte e um objeto crítico. Talvez seja simplesmente essa relação entre que esse objeto de aqui e agora reclama. Nem um e nem outro, ao mesmo tempo em que os dois ao mesmo tempo. 2 ROUILLE, André. A Fotografia – entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009.

é a moderna, genealogicamente filiada a Descartes... Por isso a aposta na relação entre linguagem e representação. Mas, mas... Há muitas racionalidades. E há racionalidades que não são pautadas pela razão lógica, o que destitui o lugar de poder da representação para tratar as coisas em outros termos, de experiência, intensidade...

3 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultura, 1996. 4 WITTGENSTEIN, Ludwing. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001. 5 QUIGNARD, Pascal. Marco Cornélio Frontão – Primeiro tratado da retórica especulativa. São Paulo: Hedra, 2012 – coleção Bienal. 6 WITTGENSTEIN, Ludwing. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2001. 7 sabendo de antemão que o objeto de arte já é uma representação da representação da realidade do e no mundo. 8 a crítica de arte é a representação da representação do ‘objeto de arte’, que é a representação da representação da ‘realidade’ 9 exercício realizado conjuntamente com a crítica de arte Ana Luisa Lima 10 exercício realizado conjuntamente com o dramaturgo Gustavo Colombini.

cd : acho que Wittgenstein abre ainda mais isso, dá mais conta da complexidade que Kant tratou em termos de razão e verdade. cd : (wittgenstein desconstruiria essas duas instâncias, penso eu..., demonstrando que são aparentemente duas faces de um mesmo processo: o de criação de sentido/linguagem). la : concordo contigo, ele realmente faria, mas acho que só no seu segundo momento, pois nesse posicionamento tento me apoiar no primeiro Wittgenstein, por isso tento não citar em nenhum momento o Investigações Filosóficas, e por isso tive de fazer uma escolha, pelo Kant. E, sinceramente, tô começando a mudar de ideia, auhsuahsahsuahs. cd : bem, aí eu realmente não saberia te ajudar, porque acho que é válido se apoiar em qualquer autor que seja, mas ao mesmo tempo é preciso incorporar as correções/ transformações que os autores vivenciaram posteriormente... Difícil é a missão de interpretar um mundo complexo à luz de um pensamento anterior, notadamente mais esquemático/simplista. Isso é sim possível, mas é preciso ter segurança e saber o que se pretende com isso... cd : (Wittgenstein desconstrói

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da vontade de ação – experimentação, interlocução, criação. por clarissa diniz , editora da revista Tatuí lições de espaço é ainda comum, ao falar-se em crítica de arte, vir à memória a ideia de um juízo periódico acerca das obras produzidas num determinado contexto, lembrança recente da crítica que se fazia nas colunas de jornal (ou outros meios de comunicação de grande alcance) e da qual, na maior parte das vezes, se esperava a constituição de padrões de valoração da arte. Hoje, quando alguém se apresenta socialmente como “crítico de arte”, não raras vezes é indagado com um “para qual jornal você escreve?”, questão que parece em certa medida análoga ao o “qual o significado disso?” tantas vezes proclamado pelo público diante de um trabalho de arte. Genericamente, persiste a leitura de que parte da valoração/legitimação social de um crítico vem em consonância com o espaço por ele ocupado na mídia (o meio), como a da arte viria através de sua mensagem. Ambas as leituras se vinculam a concepções estruturalistas de espaço e sentido, e passam ao largo da complexidade do espaço social e da percepção, bem como dos esforços de construção de outras concepções de espaço e de sentido que perpetraram alguns artistas brasileiros, a partir dos quais se concretiza um desejo por experiências que, por sua vez, demandam uma capacidade de “flutuação” – exercício de liberdade que pede desapego às “bases”. Nesse sentido, pensar o espaço ao prescindir do plano é como pensar a linguagem à revelia do monopólio da significação. com Lygia Clark, a arte brasileira já sabia que “o plano é um conceito criado pelo homem com um objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio” 1 . Com Hélio Oiticica, também sabia que a obra deveria fugir “à busca da interpretação. Todas essas são coisas velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas significantes, todas essas coisas são coisas superadas (...).” 2 Abster-se de ancoragem – seja plano, seja significado – é exercício de libertação e, ao mesmo tempo, de coragem, pois há sempre algum tipo de gravidade que tende a tudo sedimentar: havendo tanto magnetismo ao centro, o impulso para as bordas é sempre um ato de força. a constituição de outro espaço social e de percepção para a crítica de arte, distinto de suas concepções mais tradicionais, pede força – de verbo (discurso), mas sobretudo de ação (pensamento e prática). É que, do princípio verbal bíblico (“no princípio, era o verbo”) ao princípio de ação proposto na literatura de Goethe (“no princípio, era o ato”), não teríamos apenas uma questão de tradução (verbo = ação), mas uma demarcação de diferença (verbo x ação). O agir se dá, portanto, para além da teia de sentidos da linguagem: o ato

essa hierarquização em seu pragmatismo... Particularmente, acho mais rico pra pensar nosso “objeto-arte-crítica”... Por que você resolveu abandonar Wittgenstein bem agora, na parte do texto em que ele seria mais útil? la : rsrsrrs, ahusuhauhsauhus, não sei, questão de tentar me posicionar de fato. cd : wittgenstein separa “compreensão” (saber) de “interpretação” (saber dizer). Para ele, só se pode interpretar (criar sentido para ou, como você usou, “justificar”) quando se compreende (quando se aceitam as regras do jogo que permitem a criação de significados); todavia, não é preciso interpretar para compreender) la : estou cada vez mais empolgado por aqui, acho mesmo que devemos fazer aquele grupo que você comentou. cd : (ou seja, compreender sem interpretar, certo?). la : não sei, mas acho que seria, apreendê-lo antes sem ter a necessidade de justifica-lo, já que partes dele já são “reconhecida” por nós, pois já obtivemos experiência tanto com a bicicleta quanto com o banco. cd : (em maiúsculas?). la : acho que não. Você acha melhor retirar e colocar em minúsculas? cd : acho que sim, fica mais horizontal. cd : leo, minha dúvida aqui é para onde esse raciocínio nos levará... Quais as consequências de afirmar isso? Que ideia de conhecimento utilizada é essa que justificaria 27


instaura um espaço-tempo próprio – inarrável –, que o verbo anseia restaurar. Também para Lygia, “o instante do ato não se renova. Existe por si mesmo: repeti-lo é dar-lhe um novo significado” 3 . Há, na ação, uma possibilidade de existência e de contentamento: a instauração é um horizonte da utopia. Talvez, também, a ação seja um horizonte possível para uma (co)existência produtiva em meio à crise – de espaço e de linguagem – da crítica de arte 4 : “se a arte tem mudado radicalmente, desde pelo menos a década de 1960, seja do ponto de vista dos procedimentos, seja das expectativas de recepção, é fundamental que a crítica também se ponha em questão, redefina seus métodos, interesses e formas de disseminação pública” 5 .

dizer que arte não produz conhecimento? Ou, ainda, o que no mundo não produz conhecimento? Particularmente, acho que tudo não só produz, como já o é conhecimento... la : essa ideia de conhecimento está relacionada a um movimento quase cético de que nós apenas geramos discurso e conteúdo sobre algo e que nada disso é passível de se conhecer no mundo, pois de nenhum modo conseguimos reter a causa de cada coisa, lembrando que a causa é claramente o que diz respeito a parte essencial de cada objeto no mundo, ou seja, podemos conhecer suas partes mais não sua verdade

tal ação da crítica, ato que se dá na e pela linguagem, precisa dobrar o plano da significação e agir no espaço do entre (pensamento e ação, fala e escrita, crítica e criação, testemunho e ficção etc), como desde 1954 nos chama a atenção Lygia Clark com sua Linha Orgânica ao encaminhar a percepção do centro à borda e revelar as fissuras do encaixe, liberando-nos no “vazio-pleno” (aberto à experiência da dissonância e do recomeço) e, mais tarde, com Caminhando (1963), que expande a potência e o espaço da ação temporalmente, chamando à experiência, ao processo, ao gerúndio. cd : (isso é Platão, a coisa da cópia e do original...). “O “vazio-pleno” contém todas as potencialidades. É o ato que lhe dá sentido” 6 , entende a artista. e a história da ação na recente arte brasileira, em sua experimentação do espaço-tempo e da linguagem, tem sido das mais fecundas desde o século XX, talvez razão central pelo que a produção artística do País interessa globalmente: “do meu ponto de vista a única postura realmente inventiva e completamente criativa (o que significa: inteligente, não colonizado) é experimental” 7 . se, já com o crítico de então, Mário Pedrosa, a arte era “o exercício experimental da liberdade” 8 , experimentemos, pois, a liberdade da crítica, numa crítica de arte experimental, hoje. situação

la : como eu tinha te dito, isso é um posicionamento, não quer dizer que acredito piamente, ou que não possa mudar de ideia. Na verdade discorrer sobre o conhecimento e negá-lo ao mesmo tempo diz respeito a propor a desierarquização, frente a se reconhecer (critica) como instrumento de especulação sobre a verdade do objeto de arte, sendo ele realidade ou representação. cd : então, eu acho que tanto

arte quanto crítica são formas de é notório o processo de institucionalização que tem vivido o invenção. Consequentemente, campo da arte do Brasil nas últimas décadas, por sua vez acelerado modos de invenção de significações com os anos 1990. Se Hélio Oiticica e Lygia Clark vivenciaram um e mundos, de sensibilidades e Brasil – mais ampliadamente, um mundo – e um meio da arte objetos, de corpos e subjetividades, mais espacializado, com muitos “vazios-plenos” – atualmente de ideologias, de tudo e qualquer negativamente lidos como “vácuos” (institucionais, de mercado etc) coisa. E, do mesmo como que são –, a situação recente é enfaticamente diversa. Com o adensamento formas de invenção, são também e profissionalização de um campo para a arte, seu espaço social se inventadas. Inventam na mesma estratifica, e o hipotético vazio é continuamente atravessado – e, medida em que são fruto de um portanto, com tal preenchimento, paradoxalmente esvaziado – por processo pré-estabelecido de planos, linhas e forças várias. Fatiado, esse espaço se compartimenta invenção. Todavia, nisso que poderia e, com seus planos, amplia a dificuldade de propagação de ecos levar a um ceticismo (ou niilismo e outras reverberações – sensação de impotência face ao “todo” frustrado, desacreditado), penso à qual cultura ocidental respondeu, em parte, através da ideia de 28


“especialização”. Desse modo, a potencialização do vazio através do ato, de que fala Lygia, se torna rarefeita: “a profissionalização e consequente atomização cada vez maiores da atuação do crítico, e também a ascendência crescente das grandes instituições e do mercado no agenciamento do espaço público da arte certamente terão reduzido (ou no mínimo deslocado) o campo de intervenção da crítica” 9 . nesse cenário, a crítica de arte se desloca na direção do estabelecimento de relações bastante peculiares com esse campo e, em especial, com o mercado e as instituições de arte, as quais passam a “estruturar” (de forma consultiva e deliberativa) a partir do argumento de especialização, que funde o papel do crítico com o do gestor, muitas vezes sintetizado na função do curador: “(...) é na perfeita assimilação do trabalho desse curador à dinâmica das instituições que a atuação da crítica se cumpriria de modo absolutamente imanente à instituição” 10 . tal acoplamento – crítica e campo –, cuja interdependência de outrora se converte numa espécie de “cumplicidade sistêmica”, pode ser compreendido de várias maneiras. Como argumenta Sônia Salzstein, pode-se entender que nesse processo “a figura do curador teria finalmente realizado a totalidade projetada pela Razão moderna, consumado uma racionalidade imanente, uma vez que sua prática se alojaria agora no interior da própria produção artística, desenvolvendo-se no mesmo tempo e espaço que ela, e doravante avocando a si a tarefa total do teórico, do historiador, do crítico, do “animador cultural” e do artista” 11 . O discurso que legitima tal acoplamento – valendo-se, por exemplo, de supostas acepções pós-modernas de fluidez e multiplicidade – e que, muitas vezes de modo perverso (pois a serviço de um poder instituído e normativo), diz espelhar, no campo da crítica, o equivalente à ideia de “artista-etc” 12 do âmbito da produção de arte, obscurece o violento condicionamento da atividade crítica (pensamento e criação) que pode se dar com as institucionalização, como testemunha Guy Amado acerca do contexto da “jovem crítica” brasileira, surgida após os anos 2000:

“configurou-se, assim, a emergência de uma cena em que “jovens críticos” têm sua atividade primordialmente associada a instituições de arte. E não se pode desconsiderar que este fator guarda certa singularidade: é bastante peculiar que indivíduos que passam a ser designados como novos representantes da escrita de arte contemporânea – e eu próprio me vejo incluído nesta condição – sejam assim identificados a partir de uma prática que pressupõe um vínculo [ou um “serviço”] para com uma instituição, e consequentemente uma dinâmica de abordagem predeterminada. Afinal, os textos confeccionados para mostras nesses locais deverão constituir-se como pouco mais que breves apresentações das obras e artistas ali expostos; e se pode haver algum teor de fato “crítico” possível neste formato, será inevitavelmente de natureza laudatória. Essa prática se mostra portanto comprometida com uma lógica previamente estabelecida; e

que podemos encontrar/criar/ buscar singularidades, pequenas modulações na ordem geral das coisas que nos tira daquela tábula rasa de que “tudo é igual” ou de que “tudo é nada”. Não é porque tudo é linguagem que não podemos/devemos perceber as diferenças/singularidades por entre a linguagem; na verdade, é bem o oposto: justamente por tudo ser linguagem, ou por tudo ser subjetividade, que devemos nos ater às sutilezas e complexidades das variações de linguagem/ subjetividade, vendo aí forças para promover mudanças. Essa seria minha opção “ético-estética”, digamos. Acho que ela me parece mais bacana do que buscar reimpor uma ordem ao que havia perdido sua ordem; donde minha discordância do seu texto. Não acredito que nos ajude a lidar com o problema da “representação” na relação arte-crítica estabelecer novas ordens para essa presentação (em alguma medida, hierarquizálas). Acho preferível não optar por um “retorno a ordem” (Kant? Platão? Wittgenstein I?), e lançar-se mesmo à criar a partir da zona que posta a partir de Wittgenstein II... cd : será?? isso seria possível?. la : sim, na minha opinião quando se quebra uma convenção, em algum momento a convenção fica nebulosa, para assim, depois da quebra, a própria quebra se tornar convenção de novo. Mas é preciso ter uma convenção para se apoiar sempre que se quer quebrá-la. cd : aqui melhorou, porque você qualificou a descrença em efetividade. la : achou que eu só tava reclamando, né? rs 29


embora gratificante, prazerosa e mesmo essencial para a iniciação e aprimoramento no exercício da escrita de arte, sustento que não será ali que uma crítica isenta de comprometimentos poderá se desenvolver livremente” 13 .

por outro lado, o que no começo dos anos 2000 poderia parecer prioritariamente – para os “jovens críticos” de então – um problema da ordem de uma “crítica isenta de comprometimentos” (o que, por sua vez, faz ver uma concepção crítica calcada numa espécie de imparcialidade, ou objetividade), com a passagem da década se revela como uma questão dramaticamente mais micropolítica, atuando numa instância ainda mais subjetiva. É que a institucionalização quase absoluta da recente geração de artistas, críticos, curadores etc, além de ter, através da instituição e do mercado, demandas/motivações de trabalho, tem, ademais, na mediação institucional, o modo privilegiado de aproximação entre o pensamento sobre arte e sua produção, indicando um movimento de distanciamento entre artista e crítico que acarreta sérias conseqüências e que, em última instância, leva a uma institucionalização (entendida como normatização) do próprio processo criativo, à internalização dessa lógica no centro da própria produção de subjetividade.

cd : (isso, Wittgenstein (e outros) desconstruiria, dizendo que não há interioridade ou exterioridade; tudo é exterioridade, “eu é o outro”/je est un autre... Talvez isso pudesse ser mais um ponto de partida do que uma conclusão, não?). la : agora você me pegou. Mas você não acha que o discurso do artista pelo menos entende o processo de construção do trabalho, pois ele o criou e o acompanhou, e o crítico quando refere-se ao objeto, mesmo que tenha estado próximo a constituição do trabalho, ele ainda se encontra mais próximo a finalização? E o crítico vai estar mais próximo do processo de construção do seu texto sobre o objeto de arte do que o artista? Talvez o erro aqui, é ter utilizado as expressões interno e externo, não sei. Você pode sugerir alguma coisa?

se o campo da arte se desenvolveu de forma a racionalizar a produção artística, exigindo dos artistas, sobretudo por meio cd : aqui tem aquela visão de seus mecanismos de seleção (como portfolios, editais e metafísica de pressupor o objeto projetos diversos), uma clareza cada vez maior acerca de seus como uma realidade em si, procedimentos, soluções e problemas – quando não implicitamente autônoma. demandando lógica e coerência em sua produção –, é preciso agir na direção contrária, diferindo do “confortável” caminho da la : acho que não a realidade em si, mediação institucional. É urgente que a crítica se posicione ética mas a verdade. e politicamente no seio do aparato institucional que tende a transformá-la numa massa intelectual interpretante que, regada a poltronas, ar condicionado e cafezinhos, recebe em mãos portfolios cd : mas existiria verdade do objeto? com a reprodução de obras quase que totalmente “decodificadas” la : acredito que sim, pois em em textos por seus próprios autores, restando-lhe, portanto, um minha concepção, a verdade está cada vez mais tendente ao zero espaço para a experiência estética, diretamente ligada a essência da dúvida, incerteza, surpresa, entropia, e assim por diante. Se coisa, do objeto em discussão, e concordamos que, como sintetizou Nelson Goodman 14 , devemos sua essência seria aquele mais deixar de nos perguntar “o que é arte” para nos indagar “quando é arte” – partindo, portanto, para uma concepção mais contingente da próxima do que podemos chagar de sua possível causa. Mas, conforme mesma – como esperamos fazê-lo estando restritos às instituições, alguns céticos, como Hume, enquanto o “quando arte” só é possível de ser percebido no espaçoafirmam, a causa de algo no e do tempo da vida, em plena deriva existencial, pela experiência? cognitariado evidentemente, a transformação do espaço e das intencionalidades da crítica de arte (aqui compreendida também em suas formas curatoriais, ou voltadas à gestão – pública ou privada) integra o processo generalizado de transformação do trabalho no estágio recente do capitalismo, apontado como “cultural” ou “cognitivo” 30

mundo sempre está ligada a outra causa que não podemos alcançar, e assim infinitamente. Não sei, o que você acha? cd : wittgenstein II não aceitaria essa distinção tão clara... Ele é uma arma poderosa para que você lute


por autores diversos. Dentre os desdobramentos dessas concepções de capitalismo está a ideia de um “cognitariado”, termo cunhado pelo teórico e ativista Franco Berardi (Bifo) em 2003, e que aponta para a necessidade de falar também em termos corpóreos e sociais (ou seja, corporeidade social) da “classe virtual” cujo “trabalho mentalizado” produz semiocapital (capital semiótico) 15 . para Bifo, a fusão da ideia de trabalho cognitivo à ideia de proletariado (o cognitariado) traz à luz a “carnalidade eliminada e a sociabilidade iludida do trabalho mentalizado que atua na produção de semiocapital” 16 , ampliando a existência social do trabalho cognitivo e pensando-o em termos mais concretos – porque sociais –, na intenção de concentrar (conscientizar) seu caráter aparentemente difuso e abstrato e, assim, potencializá-lo enquanto força de transformação social. É que, para Bifo,

teoricamente pela desierarquização, pela radicalidade de sua crítica à lógica e à razão pura. la : nossa Clarissa, sinceramente a troca que está rolando aqui contigo ultrapassou minhas expectativas. Muito obrigado mesmo. Agora, acho que talvez tenha errado em ter me apoiado apenas no I Wittgenstein, talvez teria de apenas trabalhar com o Kant, ou simplesmente ter dotado a realidade pelo uso da linguagem e ter assumido isso de ante mão, e assim trabalharia apenas o II Wittgenstein.

“o cognitariado é a área produtiva dos que elaboram, criam e fazem circular as interfaces tecnolinguísticas, tecnofinanceiras, tecnosociais, tecnomédicas etc, que enervam cada mais profundamente a sociedade contemporânea. (...) A sociedade está feita de corpos, de pessoas que atuam, comunicam, sofrem e se rebelam. Mas a rede de vínculos, restrições e automatismos produzidos pelo desenvolvimento do capital faz com que esses corpos sejam cada vez mais dependentes (...) do funcionamento da rede global. Como fazer para atuar em uma situação como essa, na qual os automatismos tecnolingüísticos se enervam em todos os nexos da relação social, fazendo impossível ou ineficiente qualquer desvio do procedimento? Somente os que desenvolvem o trabalho de construção dos automatismos podem desconstruí-los e reorientá-los.” 17 ao passo que, por exemplo, a produção tecnocientífica parece não oferecer saídas para mecanização da subjetividade nas sociedades contemporâneas, é “no terreno cultural que se está criando as condições para a formação de uma consciência social do cognitariado. Este poderá ser o fenômeno mais importante dos próximos tempo e a única alternativa ao desastre”. 18 nesse sentido, à crítica de arte (e à arte), como participante do cognitariado, cabe uma urgente conscientização de sua própria condição de “corporalidade eliminada”, uma conscientização de seu papel fundamental na criação de pensamentos e ações que são, em si mesmas, fortes responsáveis pela constituição de terrenos férteis à libertária produção de subjetividade. Em sua atuação expandida – textos, curadorias, políticas públicas, palestras, cursos, “orientações” etc –, ao crítico de arte cabe o engajamento não com o “mapa das representações vigentes” 19 (no caso, por exemplo, de uma concepção de crítica como imanente à instituição), mas, inversamente, como tem apontado Suely Rolnik, com os processos de reterritorialização, de invenção de novas cartografias, pelo que passa, necessariamente, um potencial de desorientação, força que se dá num campo micropolítico, no âmbito do sensível, na 31


experiência. Ou, como radicaliza Hélio Oiticica:

“(...) toda essa gente implicada em “programas culturais” nada significam para o que tem mesmo algum significado grande e duradouro: tudo o que faço e virei a fazer nada tem a ver com qualquer tipo de programa cultural: nada!: pelo contrário é a tentativa mais concreta de demolir e tornar impossível qualquer significação real a tudo o que seja demagogia cultural ou programa para tal demagogia: todo esse corta barato que quer dizer o que “tem que fazer o artista” ou de como “deva proceder” ou que “caminho tomar”: não há “caminho” ou “direção” para a criação: não há “obrigações” para o artista: quem pensa poder fazer o que quer ao mesmo tempo que assume compromissos que nada têm a ver com a atividade que têm cometem um erro fatal: e como consequência deste erro tornam-se demagogos e um poço de equívocos: tornam-se maus: maus artistas: mau caráter: e acaba com que o compromisso assumido passe a ser o único interesse afogando a criatividade e a capacidade de invenção que são na verdade as únicas que deveriam prevalecer acima de qualquer eventual compromisso”. 20

experiência e afecção a invenção moderna da crítica, conceituada e vivenciada por Baudelaire, se dá na experiência. Através dos escritos do crítico e poeta, a subjetividade se torna legítima no processo de criação (seja da arte, seja da crítica). Ao transformar a ideia de tempo e história, Baudelaire torna a crítica um ato de presença, que se dá num agora que lhe é sempre eterno. Nesse sentido, a experiência assume papel central na existência, na forma de estar no mundo, e toda a existência – como, daí, toda a criação – se torna necessariamente parcial (pontual), imbricada em seu espaço-tempo, em sua posição e suas especificidades perceptivas. é com Baudelaire que a criação se vincula – em todos os âmbitos: estético, ético, cultural, político etc – à sua contemporaneidade, a ela respondendo e questionando. Nessa experiência do presente, inaugura-se uma leitura positiva da incompletude, da ausência, que se tornam forças motrizes do movimento por sua capacidade de imaginação e desejo de metamorfose, o que lança, sobre a crítica, uma condição processual que a libera dos modelos platônicos de pensamento ideal para lançá-la diante das possibilidades da diferença e da invenção. A concepção de uma crítica parcial, “faite a un point de vue exclusif, mais qui ouvre le plus d’horizons” 21 , é o passo fundante para a crítica entendida como criação, construção que se complexifica ao longo do século XX em diálogo com a ciência, a filosofia, a arte, que repensam radicalmente a relação sujeito-objeto. dentre as muitas contribuições para a constituição de um espaço legítimo para a experiência (na cultura, na economia, na política etc), a da fenomenologia é decerto fundamental. A partir de Husserl e da gestalt, a percepção demonstra seu protagonismo nos processos de construção do conhecimento e, opondo-se ao empirismo e ao intelectualismo, faz ver a inextrincável relação de interdependência e retroatividade entre “sujeitos” e “objetos”, que se dá no contexto (espaço-tempo) em que a relação é constituída. Com a fenomenologia, percepção (e, portanto, experiência) e conhecimento se reconhecem em suas parcialidades recíprocas, e a consciência do “lugar” a partir do qual se vive – se sente, se vê, se pensa, se age, etc (donde vêm as diferentes “perspectivas”) – reposiciona o lugar do ser no mundo, e vice-versa. É nesse sentido que, segundo Merleau-Ponty, “a verdadeira filosofia” seria, então, “reaprender a ver o mundo” 22 , como, para Gilles Deleuze, ela seria “a criação de conceitos” 23 – ideias que demandam, na crítica, a criação. em seu livro inacabado, O visível e o invisível (1964), Merleau-Ponty afirma que “o Ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”, e que “filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas contato com o Ser justamente enquanto criações”. Nesse sentido, a criação é a experiência de ser, de existência. Por sua vez, a crítica, para dar conta da experiência da criação, precisa ser também criativa – precisa ser, ela própria, uma experiência de existência. Assim, numa perspectiva fenomenológica, não se pode restringir a crítica de arte ao campo 32


das significações (interpretando sentidos ou tecendo simbolismos das obras, por exemplo), mas devese considerá-la em relação ao “mundo vivido” que se dá à revelia do significado, numa concepção de sentido que não pressupõe o senso (necessariamente, comum), mas a sensação. já no século XVII, Spinoza percebia que a ideia está conectada não ao que está fora do ser (como o queria Descartes, que acreditava poder, então, captá-la em si), mas corporalmente relacionada ao indivíduo, ao longo da variação de suas afecções. Descumprindo o cartesianismo, Spinoza religa alma e corpo interna e sistemicamente, afirmando “que nós não podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem sobre o nosso. (...) Eu só conheço as misturas de corpos, e só a conheço a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas.” 24 Desse modo, dá ao outro um lugar privilegiado no eu, tal qual o esclareceria, mais tarde, em termos fenomenológicos, Merleau-Ponty: o ser é “o sentido que transparece na interseção de minhas experiências com as do outro, pela engrenagem de umas sobre as outras; ele é, pois, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade, que faz sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.” 25 a crítica precisa, para dar conta da criação, ser afeccionável. O flâneur de Baudelaire saía às ruas para afeccionar-se, tal qual o fazia Spinoza. O caminho por eles percorrido não poderia ser previamente cartografável, mas se fazia no gerúndio – na experiência – tal qual o Caminhando de Lygia Clark, fugindo aos planos pré-estabelecidos na intenção de abrir-se ao “vazio-pleno”, onde os atos podem adquirir outros sentidos: “é à experiência que nos dirigimos para que nos abra ao que não é nós”. 26 a questão premente para alguns, diante de tal genealogia, é: “a crítica que fazemos hoje ainda é portadora de algum teor de experiência (ao menos no sentido de não ser meramente mimética em face do sistema da arte, de revelar alguma possibilidade cognitiva)?.” 27 . Não estaria a crítica, por sua condição cada vez maior – e mediada – de distanciamento em relação à criação, ao privar-se da experiência de ser ao estar (da contingência), cultivando uma espécie de invulnerabilidade 28 que se revela também na constituição das cada vez mais evidentes hierarquias do campo da arte? vulnerabilização se o que está em questão é a relação entre a crítica e a criação, parece fundamental compreendermos a situação de interdependência que se coloca, diante da qual pretensões de autonomia (como invulnerabilidade) soam cínicas. Todavia, o contexto de interdependência entre arte e crítica de arte amedronta a muitos pelas mais variadas razões, dentre as quais o já tão apontado temor de uma crítica que não goze de “autonomia ideológica” – medo recorrente naqueles que enxergam a proximidade entre o crítico e o artista de forma apocalíptica, como espécie de desvirtuação da função da crítica. Há outros horizontes possíveis, entretanto. É possível atuar criticamente no seio da interdependência – a autonomia não demanda invulnerabilidade 29 . Edgar Morin, numa reflexão sobre ética 30 , enuncia enfaticamente que “é preciso ser dependente para ser autônomo”. Complexificando a ideia de autonomia, faz ver que, se a dependência tem a ver com a instauração de relações, a autonomia também o tem. A independência, completaria o artista e crítico Mark Hutchinson 31 , tem a ver, portanto, com um projeto colaborativo. Se, como é amplamente difundido no campo da arte, não é possível nela atuar senão de dentro de seu sistema social – ou seja, se não é possível ser artista, por exemplo, estando fora do sistema da arte – parece ser imprescindível que, para atuar de forma “independente” (mantendo “autonomia ideológica” e crítica), seja preciso agir de maneira colaborativa, numa ação que configure, no seio do sistema da arte, um subsistema próprio, pautado em práticas e pressupostos de relativa independência. E não seria essa colaboração um possível encontro existencial entre a criação e a crítica, a experiência vivida entre o crítico e o artista na interlocução? 33


não se trata de atribuir à crítica o caráter autoral que é tradicionalmente entendido como próprio da arte. Não interessa assumir, para a crítica, uma ideia de autoria já “sepultada” pela filosofia e pela própria arte. A colaboração não tem a ver, portanto, com a ideia de um crítico coautor da obra, mas com a de um crítico que prescinde, entretanto, de uma posição social de distinção – posição esta que comumente se apóia na ideia de “especialista”. Tal colaboração (interlocução) supõe um crítico que se permite vulnerabilizar, que se dispõe à experiência da arte, da criação, do artista. tomemos de empréstimo a reflexão sobre especialização e experts elaborada pelo psicanalista Adam Phillips, e que foi por sua vez problematizada, para o campo da curadoria, por Mark Hutchinson 32 . Em seu livro Terrors and Experts (1996), o psicanalista relativiza a necessidade humana de especialização ao analisar os danos que a função social do expert (perito) pode trazer. Para evidenciar também a camada inconsciente do expert e, portanto, sua incapacidade de deter pleno conhecimento sobre sua especialidade, o autor se baseia na figura do psicanalista e chama atenção para dois momentos das teorias freudianas. num primeiro momento, teríamos o Freud iluminista, aquele que se esforçava por tornar a psicanálise cientificamente reconhecida, vestindo-a em corpetes objetivantes que vislumbravam corroborá-la como o conhecimento especializado acerca dos processos da mente e, em especial, do inconsciente. Tal concepção previa o psicanalista como aquele que, detendo o conhecimento, deteria também as soluções para os problemas psíquicos postos em questão – tratava-se, portanto, de uma ideia empoderada do especialista, tratado como autoridade. Num segundo momento, continua Phillips, Freud ironizaria seu projeto iluminista da psicanálise, assumindo os limites do conhecimento e do autoconhecimento, e fazendo ver a impossibilidade da especialização plena, a utopia da constituição do expert. Para esse segundo Freud, o psicanalista não mais curaria o paciente com seu conhecimento, mas, sabendo de sua incapacidade de saber, bem como da impossibilidade do paciente saber (dominar plenamente os meandros de suas circunstâncias psíquicas), esforçar-se-ia por constituir um momento de diálogo, uma conversa sobre aquilo que não pode ser solucionado por meio do conhecimento enquanto experiência de observação e normatização dos fenômenos. substituindo, no pensamento de Phillips, o termo “psicanalista” por “crítico de arte”, chegaríamos à interessante situação em que o crítico seria aquele que, cônscio de sua impossibilidade de conhecer em totalidade (ou seja, de ser um expert da arte), teria consciência também da incapacidade do artista de saber plenamente sobre o que faz. Problematizando a ideia de especialização no contexto da arte, esse crítico seria não mais aquele que se definiria como sendo portador de grande conhecimento sobre arte, mas aquele que instauraria, com o artista, uma conversa acerca daquilo que nenhum dos dois domina e conhece em inteireza, arte. Dessa forma, destituiria a – inclusive pública – função social do crítico como uma autoridade para tornar a crítica um estado, um espaçotempo analítico e investigativo que, em projeto colaborativo com os artistas (e com o público), se empenharia na função de pôr-se a conhecer aquilo que lhes escapa ao entendimento. Interlocução. esse raciocínio levaria, em última instância, a um curioso projeto de, digamos, indistinção social entre a crítica de arte e a produção artística. Se a crítica, por ser uma instância a posteriori da arte (condição indicada em sua própria denominação através da preposição de), de várias formas precisou constituir um campo que a legitimasse por meio da configuração de circunstâncias de trabalho que a demandassem e, a partir daí, buscou tornar-se autônoma diante da produção artística através de estratégias de “afirmação existencial” mediante “distinção social”, pensar num movimento de indistinção social significaria, em certo sentido, repensar tal autonomia em seu modo de operação e, sobretudo, em suas motivações existenciais. 33 é que a crítica, em sua acepção moderna tal qual fundada por Baudelaire, define-se não por uma lógica de autonomia, mas de relação. Assim como é difícil conceber uma crítica de arte sem arte ou um autor sem obra, a lógica da afecção nos mostra que não é preciso temer a contaminação 34


do “sujeito” pelo “objeto”, pois tais categorias são constructos ideais que, em termos sensíveis, inexistem. A contaminação é criação. Desse modo, a crítica de arte, para potencializar-se, deve gozar da experiência da relação – da interlocução –, uma vez que é na criação – e não antes dela – que a crítica se constituirá existencialmente tal qual, em relação ao texto e ao autor, aponta Roland Barthes:

“o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora. É que (...) escrever já não pode designer uma operação de registro, de verificação, de “pintura” (como diziam os Clássicos), mas sim aquilo a que os lingüistas (...) chamam um performativo (...)”. 34

experimentar a crítica em texto panorâmico sobre crítica de arte no Brasil, Glória Ferreira assim inicia seu percurso analítico

“começo por um trabalho crítico que acompanhei recentemente na Semana [de Artes Visuais do] Recife, chamado Crítica de Imersão. Trata-se de um grupo de jovens ainda indecisos entre exercer uma atividade artística ou crítica (...). Eles desenvolvem um tipo de crítica que, dizem, faz apelo ao corpo, para ver se, “esgotando-o, chegaríamos perto de esgotar também nossas prévias formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais verdadeiro e autêntico”. Como metáfora do próprio trabalho, o título do fanzine por eles lançado no encerramento do SPA é Tatuí ─ pequeno crustáceo que sobrevive à custa de bolhas de ar que faz ao remover a terra. Fazem parte de um grupo chamado Branco do Olho, com cerca de 15 participantes desenvolvendo atividades variadas. Na ocasião, fiquei imaginando o significado desse “branco do olho”, que é a designação popular da esclerótica... Segundo eles, remete a única coisa que têm em comum. Isso, aliás, é um provérbio (um amigo meu, o artista Ronald Duarte, contou-me que sua avó sempre dizia: “ah, meu filho, a única coisa que temos em comum é a esclerótica”). Ressalto que o fato de se chamar “branco do olho” indica uma das condições da arte atual e, talvez, também do debate crítico”,

encerrando-o ao sugerir a hipótese de que a

“(...) crítica mais genuína – e não aquela de apresentação, a serviço do sistema e condicionada – poderia ser pensada como um dos conceitos estourados da própria obra e se conjuga, nesse campo ampliado, ao saber cada vez maior detido pelo artista. Talvez possamos pensar, enfim, que o debate crítico se desloca e reconhece a impossibilidade dos grandes sistemas, de modo que restam tentativas de aproximação, nas quais a relação com a teoria da arte parece estar muito mais presente, enfatizada. Define-se até mesmo em relação ao corpo – voltando aos jovens críticos do Branco do Olho ─, sem perder, contudo, a pretensão à universalidade – universalidade, no entanto, que se dá em um contexto de fragmentação do sujeito, de surgimento de novos mapas simbólicos da arte... e da inerente multiplicidade de acessos oferecidos pela obra de arte, como lembrou Valéry”. 35

o esforço perpetrado por Glória Ferreira em pensar os desdobramentos da crítica de arte no Brasil ao levar em consideração suas mais recentes incursões, fez com que esta se dispusesse a comentar um acontecimento que acabara de experienciar – o então recente surgimento da revista Tatuí 36 –, alusão a qual, em seu texto, se dá como testemunho e “pretexto” para, partindo da experiência do presente, pensar em termos históricos. Ao fazê-lo, Glória explorava uma dimensão perceptiva – vinculada à presencialidade de um determinado espaço-tempo – da crítica de arte para sua própria “metacrítica”, inclinação vizinha àquela que motivou a criação da Tatuí que, para além de ser um meio de veiculação do pensamento de seus integrantes, intencionava ser sobretudo um experimento de crítica de arte. dispostos a constituir um pensamento crítico num vínculo enfaticamente mais estreito com a arte e com os artistas – evitando buscar na mediação institucional um pretexto de aproximação – alguns 35


dos “jovens críticos” 37 do Recife criam, em 2006, a Tatuí como espaço de experimentação coletiva do que foi chamado de crítica de imersão, título cujo objetivo, mais do que identificar um conceito ou modalidade específica de crítica de arte, foi o de sublinhar as condições peculiares nas quais os textos que viriam a escrever surgiriam. É que, naquele ano, no contexto da Semana de Artes Visuais do Recife – SPA 38 , propuseram-se a acompanhar os trabalhos desenvolvidos ao longo do evento, sobre eles pensando e escrevendo para, no último dia, lançar um fanzine com os textos produzidos. Assim, em seis dias de SPA, assistiram/participaram – experimentaram – vários trabalhos apresentados por todo o Recife, sobre eles debateram e escreveram, desenvolveram a identidade visual da revista, imprimiram e fizeram seu lançamento. O SPA foi especialmente escolhido por sua profusão de atividades e seu caráter informal e entusiástico, constituindo-se num momento propício à realização do experimento que então as animava: tomar contato direto, presencial e íntimo com a produção artística, forçar o corpo à exaustão e, nessas condições físicas e mentais específicas, produzir uma crítica de arte que, esperavam, carregasse características estreitamente relacionadas àquele contexto, cumprindo, assim, função “arejadora” em sua formação de críticas de arte, como informava o editorial daquela primeira Tatuí, intitulado glub, glub, glub:

“(...) almejando dar uma sacudida em nossa afoita e ainda imatura pulsão crítica é que fazemos este fanzine, apelando para o nosso corpo para ver se, esgotando-o, esgotamos também nossas prévias formatações de pensamento, abrindo espaço para um discurso mais verdadeiro e autêntico. Para concretizar esse esforço (físico, mental e espiritual), nada melhor do que o SPA. (...) Os textos que aqui estão são, portanto, textos cujo distanciamento crítico em relação ao suposto “objeto de análise” tende ao zero, palavras escritas no correr da Semana – algumas ainda durante a realização dos trabalhos. Enfim, uma pretensa crítica de imersão. (...) Perdoem-nos a esquisitice do nosso nome – Tatuí – apelido daquele bichinho que vive imerso no solo, escavacando o que encontra pela frente e sobrevivendo às custas das bolhas de ar derivadas de sua ação de revolver a terra. É na ânsia de revolver a nós mesmos que aqui nos colocamos. Esperamos conseguir, sinceramente, produzir as tais bolhas de ar...”. 39

a crítica de imersão – experimento e estratégia de construção crítica que seria a repetido no ano seguinte, também no contexto do SPA – estava animada, ademais, pelas idiossincrasias da posição de suas fundadoras diante do campo artístico do Recife: em especial, a graduação em arte, a relação informal e consideravelmente íntima com os artistas de sua geração e de gerações próximas e, em particular, no caso de algumas delas, uma “prática artística” voltada a performances de longa duração, baseadas na concepção de exaustão física e simbólica. O protagonismo do corpo e a busca pelo contato íntimo entre entes diferentes nortearam, então, aqueles instintos críticos, dispondose a perseguir as ações dos artistas participantes do SPA, vivenciando suas propostas e a pulsação da cidade, buscando incorporar no pensamento crítico as experiências (sensoriais, subjetivas) das relações estabelecidas, dando vazão a considerações surgidas a partir da “cumplicidade” travada na vivência da obra que, de outra maneira – como através de uma mediação institucional – parecia a elas impossível de ocorrer em maior plenitude. Correr atrás dos artistas – simbólica e literalmente – tinha, para a Tatuí, caráter ético e político:

“ao nos desfazermos da obrigatoriedade do distanciamento crítico que, apesar de nos ter sido ensinado como eficaz metodologia para a crítica de arte, parecia impossível diante de nossa inexperiência e falta de repertório e, mais, bastante deslocada diante do campo da arte de Recife – profundamente informal, marcado por relações pessoais e por um instinto de cooperação que tem congregado artistas sobretudo ao longo das últimas seis décadas –, optamos por ousar desenvolver um pensamento crítico que não se apoiasse no distanciamento, mas na imersão e na aproximação à produção que analisávamos, colocando em jogo, inclusive, nosso próprio corpo.” 40

o exercício proposto com a crítica de imersão de algum modo potencializa a experiência estética nos termos de Kant que, como elucida Luiz Camillo Osório, compreende-a como “abertura singular do sujeito ao mundo e aos outros (...), como se os fenômenos surgissem diante de nós sem que fossem 36


determinados, em sua maneira de ser, por uma expectativa do entendimento, ou seja, eles nos surpreendem e nos fazem falar” 41 . Camillo continua:

“a vontade de falar ou de escrever depois do impacto de uma obra é uma forma natural de responder à experiência estética e, uma vez que o entendimento não é aí determinante, nossa imaginação vai atuar de modo mais livre e produtivo. Essa vontade originária de falar, de querer que o outro sinta como nós e compartilhe o nosso sentimento, que é tão própria à existência, vai qualificá-la como solo de nossa comunicabilidade”. 42

na crítica de imersão, o tipo de linguagem implicada no desejo de “comunicabilidade” está, por sua vez, amplamente vinculada à experiência estética e, diferentemente da distinção kantiana entre o conhecer (próprio aos fenômenos) e o pensar (próprio às “coisas em si”), se faz a um só tempo como meio de percepção, pensamento e conhecimento. A linguagem é experiência e, como tal, deve flexibilizar-se (pela sua própria (re)invenção) no sentido de distanciar-se o mínimo possível da percepção, da experiência sensível que antecede as representações. Vale ressaltar que, antes de ser vinculada à arte (e, portanto, instaurar-se numa trama de convenções sociais), a estética é um “discurso do corpo” 43 – como no grego aisthisis, “experiência sensorial da percepção” – e, como tal, não deve perdê-lo de vista, pelo que se tornaria estritamente uma “filosofia da arte”. por sua vez, parte da história da lingüística – como com Wittgenstein e Garfinkel – nos mostra o quanto “a língua é inseparável do controle da variedade de contextos em que é utilizada” 44 , e o quanto a linguagem está retroativamente relacionada ao conjunto de recursos metodológicos que a constroem e reconstroem na vida social. Desse modo, tal qual concebida por Wittgenstein, a linguagem não é uma estrutura que genericamente dá sentido e normatiza a existência, mas um jogo, um agenciamento em que os agentes – os indivíduos em seus contextos – possuem função central. A linguagem é menos uma questão de passividade e mais possibilidade de ação: também ela se dá – sempre retroativamente – nas dinâmicas das afecções de que fala Spinoza. A experiência estética é capaz, portanto, de afeccionar o pensamento e a linguagem da crítica por meio do corpo do crítico de arte. Tal experiência pode se dar na relação obra-indivíduo como, também, indivíduoindivíduo, instância que, em sua nona 45 e décima 46 edições, a revista Tatuí desejou explorar mais intensamente. experimentar a experiência um estado espaço-temporal de interlocução; uma experiência-de-si-do-outro-do-contexto; uma situação de colaboração; um exercício de criação coletiva; um experimento de linguagem; um experimento de crítica de arte: essas são algumas das definições possíveis para as “residências editoriais” que, ao longo de 2010, foram realizadas pela Tatuí. constituindo-se no convite a um grupo de indivíduos atuantes no campo da arte em âmbitos variados (artistas, críticos, curadores, ativistas, gestores, editores, designers, cineastas, dramaturgos, escritores) para um processo de convivência – residência – donde deveria surgir uma nova edição da Tatuí (integralmente concebida, coletivamente, ao longo do período de residência), as chamadas “experimentações editoriais em estado de imersão coletiva” realizam, na experiência proposta, várias das ideias que nortearam o projeto editorial da revista até o momento (como elucidadas ao longo deste texto), como também trazem à tona outros elementos, dando continuidade ao caráter processual e experimental que marca a história da Tatuí. de modo geral, os estados de residência visam à constituição de um espaço-tempo cujas políticas de convivência possam ser negociadas/inventadas de modo mais livre, visto que podem se dar como um “subespaço” de relativa autonomia diante do espaço social geral. No contexto do campo da arte, as residências coletivas podem se tornar momento privilegiado de produção de 37


subjetividade ao, habitualmente, se darem para além das formas institucionais de mediação. Nas residências editoriais da Tatuí, as metodologias e políticas de convivência e trabalho são criadas pelos integrantes do processo de modo ativo, não havendo orientações pré-estabelecidas senão a intenção – genericamente colocada – de produzir uma revista: é na experiência, no presente vivenciado na coletividade, que são tecidas as estratégias de criação que, portanto, respondem aos desejos e intencionalidades daquele grupo específico de editores, naquele momento em particular. em ambas as residências promovidas, o corpo esteve diretamente imbricado com a constituição do pensamento crítico. Além da convivência – que, por sua vez, já é distinta daquela a que estamos cotidianamente acostumados –, outras práticas corporais se deram na intenção de colocar o corpo mais claramente no cerne do jogo da linguagem. Tais práticas – que se vinculam diretamente às experiências perpetradas por Lygia Clark e Hélio Oiticica – ocorreram entre indivíduos como também em relação direta com o espaço-tempo. Essas afecções – efeito de um corpo sobre outro pelo toque e além dele – reverberam, como teoriza Spinoza, sobre as ideias. Compreendendo que, nas residências da Tatuí, se afeccionam corpos que, de várias maneiras, presentificam distintas experiências de arte e de crítica – ainda que minimamente comuns –, podemos vislumbrar que, no seio dessa vivência coletiva, podem constituir-se relevantes percepções – por seu potencial de ruptura com os métodos instituídos do cognitariado – da arte e da crítica de nosso espaço-tempo. tais percepções se colocam na linguagem de formas diversas – notadamente, através da conversa e do texto. Num primeiro momento, conversa-se infinitamente 47 : “a conversa, que ocorre em contextos cotidianos de atividade, é o “veículo” fundamental da significação porque opera em contextos comportamentais e conceituais saturados. (...) A constituição da significação, nessa conversa, condiciona além disso as propriedades significativas da escrita e dos textos” 48 . Os textos, por sua vez, constituem mais do que as representações das significações construídas pela conversa: “se atentarmos para a linguagem como linguagem e não meramente como um meio de representação, e procurarmos seguir o jogo complexo de traços significantes que tecem, através da linguagem, as pressuposições filosóficas e políticas da instituição, então podemos vir a entender como uma identidade é produzida por nós e como participamos ativamente na moldagem de nossas identidades institucionais” 49 . As Tatuí que derivam de residências são, por sua estrutura de linguagem, fazendo uso do pensamento de Derrida, mais performativas do que assertivas. Visando cumprir sua função de problematizadora da linguagem, a crítica de arte precisa encarar a linguagem como ato em si: a “(...) ‘boa’ crítica literária, o único tipo de vale a pena, implica um ato, uma assinatura ou contra-assinatura literária, uma experiência inventiva da linguagem, na linguagem, uma inscrição do ato de ler no campo do texto que é lido” 50 . E, nessa intenção, cada um dos projetos editoriais instaurou estratégias específicas. 00 com Foucault, entendemos que saber e poder não se separam – analisando os vínculos entre escrita, oralidade e poder, o filósofo conclui que registros escritos são elementos imprescindíveis das sociedades disciplinares, das formas de organização do poder. Nesse sentido, ainda que o processo de criação coletiva de uma revista pressuponha, por meio de uma residência editorial, um jogo de forças que se dá de forma não exclusivamente hierárquica, sua personificação num produto (revista) inevitavelmente constitui um espaço de poder que se impõe de diversas maneiras, inclusive no constructo social da “crítica de arte”. como parte das estratégias críticas de nosso tempo, a autocrítica – a partir da autoanálise – se torna estratégia possível para trazer à luz as implicações – de poder, dentre outras – envolvidas na atividade criadora. Todavia, como evidenciam Deyson Gilbert e Gustavo Motta em texto publicado em edição anterior da Tatuí 51 , 38


“o que se observa é a gritante capacidade de um sistema econômico, político e cultural se afirmar mediante a crítica (distorcida, cínica, irônica, deslocada, parcial – não importa) de seus postulados anteriores. Cabe aqui a lembrança do diagnóstico de Adorno a respeito da redefinição da idéia de ideologia no mundo do pós-guerra, ou seja, no mundo onde reina a indústria cultural. Para o filósofo, as relações de poder se caracterizariam então menos pelo recalque típico – necessário ao funcionamento da ideologia enquanto “falsa consciência”, ou seja, enquanto instância de ocultamento das contradições existentes em um processo de legitimação da efetividade por um discurso dominante – do que, ao contrário, pela exposição e afirmação nua e crua dessa relação enquanto tal, ou seja, da ideologia enquanto movimento insuficiente de legitimação da realidade. “A ideologia”, escreve Adorno, “em sentido estrito se dá lá onde o que rege são as relações de poder não transparentes em si mesmas, mediadas e, nesse sentido, até atenuadas. Hoje, a sociedade, injustamente censurada por sua complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente” 52 ,

tal esforço autocrítico surge, em certo sentido, natimorto. Assim, não basta afirmar – por exemplo, no texto – os problemas do pensamento crítico. Para “efetivamente” potencializar criticamente o pensamento, é preciso torná-lo um problema em si. Agir sobre o espaço da escritura e, a um só tempo, na leitura, é uma dessas possibilidades: “eviscerá-las e remontá-las na diferença, interrompe[ndo] os programas de percepção, interpretação e experiência recebidos – e no processo de alterar esse passado (...) manter aberto o espaço para a chegada do evento sem precedente de um “futuro” virtual ou alternativo para aqueles [que são] programaticamente previsíveis” 53 . nesse sentido, a Tatuí 00 (ver anexo 1) abriu seu projeto editorial para uma força alheia ao processo de residência que a elaborou: ao convidar o artista Wolder Wallace para ler a Tatuí de forma que sua leitura fosse, efetivamente, mais um texto da revista – um sobre-contra-texto – (método de leitura já habitual ao artista, mas sempre restrito ao âmbito privado ), a revista submete-se a um jogo de forças que se evidencia – enunciando-se gráfica e verbalmente – ao longo de suas páginas, tornando a leitura e, portanto, o pensamento, um campo de batalha. A contra-leitura que se instaura ativa um potencial dialógico que não almeja uma síntese, mas que se constitui no contínuo processo da construção e desconstrução dos sentidos, dos argumentos. Como observa um dos editores da Tatuí 00, Gustavo Motta,

“o ponto é que a estratégia gráfica (...) é a enunciação, não de um conteúdo (os diversos comentários que cada um poderia fazer em cima de um texto), mas sim, de um método: uma camada de discurso só se dará contra a outra (o que é mais do que o agrupamento de nossos textos sob um mesmo teto identitário) (...). Se eu tivesse que dar um título ao projeto gráfico do nosso número, seria como o título do filme do Straub: Não reconciliados, ou, só a violência ajuda onde reina a violência.” 55

a décima ao longo de mais de vinte dias de convivência e conversas, as questões da linguagem da crítica se tornaram preocupação central da experiência de criação da décima edição da Tatuí (ver anexo 2). Se, na edição 00, anterior, o problema da linguagem surgia mais como questão de método (forma) do que propriamente de conteúdo, na Tatuí 10 ele surge em todas as instâncias, como, por exemplo, nos vários textos que pensam sobre o lugar da fala, do silêncio e do pensamento nas relações sociais e na arte (como na imagem, na crítica de arte e na história). Permeando questões como essas, esteve, como horizonte metodológico de parte da Tatuí 10, a liberdade em apropriar-se (das mais variadas formas) de pensamentos de outros indivíduos, coletivizando a autoria tanto internamente – entre o grupo de residentes-editores – como socialmente, a partir do empréstimo e da releitura da obra de autores como Hélio Oiticica, Haroldo de Campos ou Ulises Carrión, processo compositivo indicado no sumário da revista. também graficamente a Tatuí 10 incorporou as discussões que permeiam seus textos/poemas/ficções 39


etc, constituindo-se a partir de apropriações/traduções de identidades visuais genéricas (como livros de romance ou cartas datilografadas) e de imagens, colecionadas ao longo do período da residência editorial e identificadas aos conteúdos abordados na revista. tal como menciona Kátia Muricy 56 , a Tatuí 10 parece situar-se no território daquilo que Foucault entendia, na década de 1960, como a experiência filosófica eminentemente contemporânea: o diálogo entre a pergunta nietzscheana sobre “quem fala” e a resposta de Mallarmé de que “a palavra fala”, não importando unicamente o que se diz – como argumenta Wittgenstein –, mas o uso que se faz do que é dito. Se, segundo Derrida, “a escritura sem citação é impossível”, devemos expandir os holofotes da criação do autor para lançá-los também à criação: “o texto gera seu próprio livre jogo de significantes, constantemente acessíveis à apropriação e reapropriação por sucessivas gerações de leitores” 57 . A linguagem – o texto, a criação etc – é também subjetividade mas, antes de sê-lo, é agência: na “produção de subjetividade”, primeiro temos a produção, a ação. Por sua vez, vale lembrar, a ação nunca estaciona: qualquer identidade ou ontologia é sempre um vir-a-ser. crítica sendo: o gerúndio da experiência, criação, experimento com indignação, Hélio Oiticica escreve a Lygia Clark, em carta de 11 de julho de 1974, que

“quem relata e quem critica ou é artista ou nada é; é inadmissível essa merda de crítico numa posição de espectador: volta tudo ao antigo e não há quem possa; principalmente quando se refere a experiências que têm que ver com o comportamento e a ação deste; esse pessoal todo ainda dava certo até o Bicho, mas agora quando você chega a essa dilatação aguda e impressionante de todos os começos (corpo, sensorialidade, etc.) e já está muito além do que se poderia pensar, essa gente falha; essa relação de cada participador com a força da baba é algo grande demais; não pode ser descrito factualmente...”.

sua revolta contra uma crítica de arte que não se entrega à experiência parece ampliar-se quando, mais de quarenta anos depois, diagnosticamos o mesmo tipo de prática por parte da crítica. Talvez possamos perceber uma invulnerabilidade ainda maior, determinada pelo processo de institucionalização do campo da arte, enquanto as práticas artísticas, por sua vez, continuam a explorar o âmbito da experiência, como aponta a proliferação de teorias como a “estética relacional” (Nicolas Bourriaud) e afins, em que a participação é fundante. no Brasil, são ainda poucos e tímidos os esforços de reinvenção da crítica. Ironicamente, parece que esta não deu ouvidos aos clamores da arte de seu próprio País, que há tanto tempo esperneia diante do distanciamento da crítica em relação à criação, diante de sua cegueira perante as pistas que, inerentes à prática artística, estão o tempo todo sendo dadas no sentido da experimentação da crítica de arte. que a crítica encoraje-se com as investigações da arte e se lance num espaço de interlocução que prescinda de ancoragens e que, portanto, esteja aberto ao “vazio-pleno” de possibilidades é o que se demanda. Urge repensar sua “identidade”, lançando-se à produção de outras políticas de subjetivação na relação com o mundo, com o outro, com o espaço-tempo, com a linguagem, com a arte. Repensar, sobretudo, o tradicional protagonismo do verbo face à ação. É que, como deixou implícito Wittgenstein, “o que não pode ser dito” pode ser, contudo, feito. No princípio, era o ato.

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notas: 1 lygia Clark no texto A morte do plano (1960). Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT. asp?idarquivo=14. 2 hélio Oiticica em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, para o filme HO. COHN, Sérgio; FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 3 lygia Clark no texto A propósito do instante (1965). Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT. asp?idarquivo=19. 4 crise que não é só da crítica de arte, como das políticas de subjetivação, da relação com o outro e da criação cultural, como indica Suely Rolnik no texto Geopolítica da Cafetinagem, disponível em: http://www4.pucsp.br/ nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf. 5 OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 6 lygia Clark no texto Do Ato (1965). Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=18. 7 OITICICA, Hélio. Entrevista para Journal. COHN, Sérgio; FILHO, César Oiticica; VIEIRA, Ingrid (org). Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 8 mário Pedrosa em conversa com Antonio Manuel em maio de 1970. In: Antonio Manuel. Antonio Manuel. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1984, p. 16. 9 SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 BASBAUM, Ricardo. O artista como curador. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. 13 AMADO, Guy. Notas sobre a jovem crítica de arte. Disponível em: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/ portal/.rede/numero/rev-numero5/cincotextoguy. 14 GOODMAN apud OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 15 “semiocapital é o capital-fluxo que se coagula em artefatos semióticos sem materializar-se”. BERARDI, Franco. Schizo-economy. SubStance #112, Vol. 36, no. 1, 2007. Disponível em: http:// korotonomedya2.googlepages.com/ FrancoBerardi-Schizo-Economy-SubStan.pdf. 16 BERARDI, Franco. La fabrica de La infelicidad. Madri: Traficantes de Sueños, 2003. 17 Ibid. [Tradução livre] 18 Ibid. 19 ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em: http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/ SUELY/Geopolitica.pdf. 20 hélio Oiticica em entrevista, publicada em HOLLANDA, Heloísa Buarque; PEREIRA, Carlos Alberto M (org). Patrulhas ideológicas. São Paulo: Brasiliense, 1980. 41


21 BAUDELAIRE, Charles. Critique d’art suivi de critique musicale. Paris: Gallimard, 1976. 22 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984. 23 DELEUZE, Gilles. O que é filosofia? (Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. 24 DELEUZE, Gilles. Spinoza. (Tradução Francisco Traverso Fuchs) Cours Vincennes, 24 de janeiro de 1978. Disponível em http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5. 25 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984. 26 Ibid. 27 SALZSTEIN, Sônia. Transformações na esfera da crítica. In: FERREIRA, Glória (org). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006 28 “é que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de imagens préestabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade.” ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em: http:// www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf. 29 “não há independência possível. Mas há graus variados de dependência e interdependência. E há a autonomia: a dependência que, espalhada por entre múltiplos centros, pode abdicar de alguns deles quando necessário e desejável. A autonomia é a dependência que conhece a vida do lado de lá da borda. É a dependência que sabe dizer não. Que constrói espaços e estratégias para a recusa das responsabilidades sistêmicas: ética da convicção (...). A autonomia é a dependência que sabe chantagear a parte do sistema que lhe cabe. A autonomia é a dependência que sabe argumentar consigo mesma”. DINIZ, Clarissa. Escrevendo como nós, mas falando por mim. Revista Tatuí 00. Recife, 2010. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-00/. 30 morin, Edgar. O método 6: ética. 2ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. 31 BEECH, Dave; HUTCHINSON, Mark. Inconsequential bayonets? A correspondence on curation, independence and collaboration. In: O’NEIL, Paul (org). Curating Subjects. Amsterdã e Londres: De Appel Foundation e Open Editions, 2007. 32 HUTCHINSON, Mark. On expertise, curation & the possibility of the public. Disponível em: http://www.slashseconds. org/issues/001/003/articles/mhutchinsondbeech/index.php. 33 algo similar pode ser dito em relação ao processo de distinção social na história da curadoria, cujas estratégias de legitimação muito recentes no Brasil, por exemplo, têm se articulado de tal modo a reconfigurar o sistema social da arte em nível nacional, reformulando-o com base numa lógica licitatória em que grande parte das decisões finais passam a caber a curadores que, assim, retroativamente alimentam o sistema com necessidades que acabam por tornar tais profissionais ainda mais demandados com base em argumentos de especialização (sejam técnicos ou conceituais). Mas, afinal, quais seriam as especialidades de um crítico e, sobretudo, de um curador, que os tornariam experts da arte a ponto de justificar sua plena distinção social dos artistas e, consequentemente, a ocupação/ construção de “posições” de poder mediante a paulatina “retirada” dos artistas de tais “posições”, que outrora, ainda que diferentemente, ocuparam? O discurso da especialização seria de fato pertinente? Em que exatamente, senão um especialista das redes de relações do próprio sistema social da arte, um crítico ou curador é expert de modo que o artista não possa sê-lo? Será que, para uma crítica ao campo social da arte por meio de uma crítica à crítica de arte (e à curadoria), não caberiam as reflexões acerca da idéia do expert tal como anteriormente referidas? 34 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 42


35 FERREIRA, Glória. Debate crítico?!. Conferência proferida no dia 15 de dezembro de 2006, durante o seminário Pensar a arte hoje: perspectivas críticas, realizado no Centro Universitário Mariantônia (São Paulo). 36 a Tatuí é uma revista independente de crítica de arte – editada por Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz –, com versões online (www.revistatatui.com) e impressa, e que atualmente tem 10 números publicados, com tiragem média de 1500 exemplares. Todo o conteúdo produzido pela revista encontra-se disponível em seu website. 37 ana Luisa Lima, Clarissa Diniz, Renata Nóbrega e Silvia Paes Barreto. 38 evento organizado pela Prefeitura Municipal da Cidade do Recife, congregador dos artistas da cidade e de outras localidades, quando ocorrem dezenas de exposições, performances, intervenções urbanas, oficinas, debates, festas, etc. em intensidade frenética e considerável dispersão geográfica. 39 editorial da primeira edição da revista Tatuí. Recife, 2006. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/ tatui-1/. 40 DINIZ, Clarissa. Ordem do Dia. In: Tatuí 6. Recife, 2009. Disponível em: http://revistatatui.com/secao/revista/ tatui-6/. 41 OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 42 Ibid. 43 EAGLETON, Terry. Ideology of the aesthetic. Oxford: Blackwell Publishers, 1990. 44GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999. 45 intitulada Tatuí 00, a nona edição da revista foi elaborada em processo de residência editorial ocorrida em Recife entre 18 e 23 fevereiro de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, também os editores convidados Gustavo Motta (SP), Jonathas de Andrade (AL/PE), Maicyra Leão (SE/DF), Newton Goto (PR) e Yuri Firmeza (CE/SP). 46 a Tatuí 10 foi elaborada em processo de residência editorial ocorrida em Olinda entre 25 de julho e 16 de agosto de 2010, da qual participaram, além das editoras Ana Luisa Lima e Clarissa Diniz, também os editores convidados Cristhiano Aguiar (PB/PE), Daniela Castro (SP), Deyson Gilbert (PE/SP), Kamilla Nunes (SC), Pablo Lobato (MG) e Vitor Cesar (CE/SP). 47 o processo de residência é permeado por uma contínua conversação, que ocorre ora com todos os participantes, ora em subgrupos. Através da conversa, o trabalho desenvolvido individualmente por cada um dos residentes é apresentado, são realizados debates diversos e, ao longo do processo de edição da Tatuí, é discutido o projeto editorial – o que inclui um debate acerca da metodologia adotada, dos textos produzidos e do projeto gráfico da revista. 48 GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999. 49 WOLFREYS, Julian. Compreende Derrida. (Tradução de Caesar Souza) Petrópolis: Vozes, 2009. 50 DERRIDA, Jacques. This strange institution called literature: an interview with Jacques Derrida. In: ATTRIDGE, D. (org). Acts of literature. Londres: Routledge, 1992. 51 GILBERT, Deyson; MOTTA, Gustavo. Arte, política e a crítica como fetiche. Revista Tatuí 6. Recife, 2009. Disponível 43


em: http://revistatatui.com/secao/revista/tatui-6/. 52 ADORNO, Theodor. Sociologische Schriften I, Frankfurt, Suhrkamp, 1980. In: SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. p.93. 53 COHEN, T. Introduction: Derrida and the future of.... In: COHEN, T. (org). Jacques Derrida and the humanities: a critical reader. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 54 “(...) cabia a mim fazer o que sempre fiz quando leio um livro: sublinhar, comentar, destacar, desenhar, rabiscar, correlacionar, anotar pensamentos meus e de outrens, não somente à margem como dentro do corpo textual. Não recebi nenhuma orientação específica do que fazer. Aliás, coube a mim ser como sou intimamente, ou, conforme as palavras de Clarissa Diniz, “nem mais nem menos”.” Trecho do texto inédito Infiltração Dimensional IV, de Wolder Wallace. 55 trecho de e-mail de Gustavo Motta, datado de 30 de junho de 2010. 56 MURICY, Kátia. O poeta da vida moderna. Alea: Estudos Neolatinos, volume 9, número 1. Janeiro-junho. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/330/33090104. pdf. 57 GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, pós-estruturalismo e produção da cultura. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (org). Teoria social hoje. São Paulo: Unesp, 1999.

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discuss達o



o texto como obra e a obra como crítica o interesse a ser discutido nesse encontro, entre críticos atuantes de Curitiba para uma feira de arte impressa, é justamente a efetivação da escrita criativa atual como obra de arte em contraponto, ou no mesmo vetor, à trabalhos de arte que podem tangenciar aspectos da crítica, ou melhor, que não somente apresentem - num caráter estético e discursivo - certa crítica direcionada a algo, como a politica ou a sociedade, mas obras que possam ser tratadas como crítica de arte, também. E por quê não? Ou seja, circunda-se aqui criar relações possíveis entre estes dois tipos de produção na arte, além de tentar constatar a emergência ou não da relação desta produção para a contemporaneidade. Como isto é possível? Se está sendo feito, onde, por quem e como? Para onde isso vai? Será que podemos ao menos especular?

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não entendi bem, você quer dizer que obra é crítica ou que crítica é obra? por lailana krinski, editora da revista LAB# pois é. Partir desta pergunta pode nos levar a diferentes respostas. Uma hipótese, que pode parecer muito lógica, é a de colocar esses termos em oposição ou caracteriza-los em suas semelhanças. Para isso, como autora do texto, eu deveria definir previamente o que vem a ser a crítica e o que vem a ser uma obra de arte. Afinal, como lidar com essa pré-concebida disparidade sem descrever e caracterizar meus objetos de definição? se eu não houvesse tomado uma baila de Hegel esse ano, na melhor das hipóteses eu estaria fazendo um texto a la Derrida, quando fala sobre o amor. Teria de construir e desconstruir todos os conceitos destes termos para perceber ao fim que o amor há, que a crítica obra há e que a obra crítica também há. E que esse amor é eu que sinto e que talvez não haja uma maneira epistemológica de explicar isso para o outro. Acabo por fazer arte, e justo hoje, que resolvi escrever... não quero partir de nada lógico. Quero partir de você, você que está aí a ler esse texto, que presumo ter algum tipo de proximidade com obra e crítica. Se eu der sorte peguei um artista. Ei você, o que você sente quando após ler um texto “crítico” você “entende/sente” o trabalho? Ei você, o que você sente quando em pesquisa vê uma imagem e entende aquele conceito que era tão difícil de entender? Não, não vou definir uma resposta sequer sobre o que você quer que eu diga. Estou tentando captar o que nos escapa sem usar o chato caminho da desconstrução. Desconstruir o quê? O que temos definido como arte? O que temos definido como crítica de arte?... Aposto que você pegou esse livro porque também quer saber o que é! não há coisa mais moderna do que partir de um algo já estabelecido, mesmo que seja para desconstrui-lo. Neste ponto gosto de pensar que apesar de todas as tentativas de definição, aquilo pode escapar, e o que resta é que esse algo há. O amor há, a obra e a crítica também. E há também o interesse em definir esses termos para nós mesmos, principalmente quando nos vemos aflitos. Interesse que prefiro não pensar como um desejo, mas como um agenciamento, agenciamento que não ocorre pelo acaso, mas por influência de todos os agenciamentos que estão por aí no mundo e também na história da arte. certa vez ocorreu um agenciamento aos artistas de uma exposição no século XVII de apresentar junto das suas obras textos explicativos. Esses textos eram agrupados em um “livret” e distribuídos ao público durante a abertura. Dali por diante aquilo virou moda, frutificou outros agenciamentos, e o público começou a escrever, pessoas com leituras de obras e textos começaram a escrever, a imprensa começou a escrever, e logo a discussão culminou na discrepância dos valores artísticos que até então era dominada pelo agenciamento clássico. Uma jogada de xadrez muito antes de Duchamp que praticamente desbancou qualquer hegelianismo de definir alguma coisa. baudelaire, meu amado homem do mundo, que segundo fonte de nosso amigo Venturi havia acabado de ler o constructo de Hegel, nos tira logo desse agenciamento duvidoso da definição ao dizer: - “ Mais de uma vez, como todos meus amigos, tentei incluir-me num sistema para aí perorar a minha vontade. Mas um sistema é uma espécie de danação que nos força à abjuração perpétua; é sempre necessário inventar um outro e esse esforço é um castigo cruel. Sem cessar, condenado à humilhação de uma nova conversão, tomei uma grande decisão. Para escapar ao horror destas apostasias filosóficas resignei-me orgulhosamente à modéstia: contento-me em sentir; voltei a procurar asilo na impecável simplicidade”. ok Baudelaire, mas não me sinto tão homem do mundo assim, tenho meus defeitos, e quem não 49


tem? Sei também que você morreu em 1867, e já se passaram tantos anos... E o que dissera Panófsky depois? Que segundo sei tentou voltar a aplicar a epistemologia depois de tudo isso que você disse sobre a efemeridade da epistemologia? E aquelas tão ricas reflexões sobre pintura de Greemberg? (Tudo bem que segundo consta naquele livro do Modernismo em disputa ele era de um tipo de mensalão do novo plano econômico dos Estados Unidos, mas e daí? Vou ver o que tiro de melhor pra mim). Sei que ainda me falta tanta leitura, e o pior é que não sei se vai dar tempo, gosto de fumar. enfim. Olhe quanto caminho a gente percorreu a partir daquele primeiro agenciamento que aqueles artistas tiveram o de unir a obra ao texto. Uma coisa me parece clara. No dia que interligaram esses termos a arte começou a criar história. E não sei se quero dizer que crítica é obra ou se obra é crítica, acho que os artistas são críticos e os críticos são artistas sem saber ao certo o que é cada coisa. Mas uma coisa é certa, as obras são feitas e a crítica é feita, e desde o início da história da arte inventada elas caminham juntas. Uma criando agenciamentos à outra, em um eterno ritornelo. Hora num tom melódico que nos agrada, ora num tom melódico que nos desaponta. Me nego a responder essa questão. Quero deitar na cama depois de pensar em um trabalho meu, ou do outro, e não pensar se o que falo ali na cama é crítica ou se é uma ativação da obra acontecendo. Quero escrever um texto crítico sem precisar falar diretamente sobre arte. Pois se assim eu pensasse não conseguiria captar o que daquilo me interessa e o que daquilo não me interessa. O que daquilo agencia minha arte ou minha crítica, e o que daquilo não me agencia. Gosto desses dois termos dentro de um saco dadaísta de palavra viva. Porque conduz ao movimento e não ao manifesto. um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão, mas não me deram a chave de nenhuma prisão. A distância ou a proximidade demasiada desfoca meu olho. A crítica bem como a arte não possui apenas uma linguagem. Para quem acha a pintura de Daniel Buren um saco e nunca leu o seu texto só por conta disso, vale a pena saber de antemão que ele disse que continuará fazendo isso até a morte, se necessário.

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novas atuações da crítica (maneiras de arte) um encontro que almeja levantar novas possibilidades de atuação da crítica de arte, que já estão sendo produzidas ou que podem vir a ser realizada. Pensar em iniciar uma demanda sem precedente de contexto de atuação, ou melhor, fazer crítica como se faz um trabalho de arte sem contexto específico. Conforme conversa com Regina Melin, levantou-se uma questão: “a inserção da denominação ‘crítica de arte’ - e todas as distinções, peso, tradição, etc. - pode nos nublar de tal forma que, quando nos damos conta estamos a desconsiderar um número, cada vez mais expressivo, de proposições artísticas textuais que são trabalhos de arte e acabamos por inseri-los dentro de um território (somente) da crítica (teoria) de arte”. Porém a inserção dessa denominação pela crítica é algo constatável, mas ela não é algo que costuma aceitar muitas quebras de convenções, mesmo que exija referenciais já dado, é algo que fica cada vez mais distante de uma possível experimentação crítica da crítica de arte. Pensemos em subversão e adequação, assim como pensam alguns artistas. Porquê fazê-la?

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fim do mundo, fim da crítica¹ por ana cecília soares e júnior pimenta² 21 de dezembro de 2012 marca o fim do atual ciclo Baktun da longa contagem mesoamericana, usada na América Central antes da chegada dos europeus. Embora, provavelmente, tenha sido inventada pelos Olmecas, a contagem ficou relacionada à civilização Maia, cujo período clássico durou entre 250 e 900 d. C. alguns povos acreditam que, o término do Baktun, será o fim do mundo. Dentre os cenários sugeridos para esta catástrofe humana, estão: o choque da Terra com um objeto semelhante a um buraco negro, um asteroide ou, ainda, a um planeta chamado Nibiru. Porém, a interpretação do calendário Maia pode ser compreendida de outra forma, como o início de uma nova era, e que a Terra e seus habitantes podem sofrer uma transformação espiritual ou física positiva. A data seria o começo de um novo tempo. para quem preferir acreditar na primeira opção, é preciso dizer que estudiosos de várias áreas têm rejeitado a ideia de eventos cataclísmicos para este ano. Então, o certo é ficar tranquilo e continuar lendo este texto... Mas, o que isso tem a ver com crítica de arte? A diante você irá perceber algumas aproximações... para onde vai à crítica de arte? Para que serve à crítica de arte? Essas perguntas já eram feitas por Charles Baudelaire no século XIX. E estas inquietações não tem prazo de validade, mas parece emergir com mais força em momentos de crise, como por exemplo, agora. Segundo a pesquisadora Lisbeth Gonçalves, no livro Os lugares da crítica de arte (2005), após ter exercido várias funções ao longo do século XX, a crítica atual tem sido contrariada em termos de função e legitimidade. A par dessa crise de legitimidade, as transformações profundas pelas quais passou a arte nas últimas décadas obrigaram o crítico a rever os próprios conceitos, instrumentos teóricos e linguísticos utilizados. a ideia de crise no exercício crítico está nos cercando há algum tempo. Em uma palestra realizada pela pesquisadora Anne Cauquelin, em Fortaleza, no ano de 2011, ela comentou sobre essa circunstância. Ressaltando sobre a falta de necessidade da crítica hoje, e de seu suposto fim. Contudo, acreditamos que a fala de Cauquelin implica no término de um modelo que não está funcionando, sendo preciso buscar novas formas de atuação, para uma nova arte, uma nova crítica. E não a finitude de tudo. de acordo com a pesquisadora, em Arte Contemporânea, uma introdução (2005), não podemos analisar as manifestações artísticas atuais sob as seguintes concepções modernas: continuidade marcada pela inovação; progressão histórica e tecnológica; arte em ruptura com suas formas instituídas; compreensão de que o valor de uma obra esteja contido nela própria; autonomia da arte, arte desinteressada e idealista; comunicabilidade universal das obras, baseada na intuição sensível (juízo de gosto); ideia do “sentido”, através da qual o artista expõe a verdadeira natureza das coisas. Igualmente, não devemos nos deter a modelos estabelecidos no passado, para pensar e refletir o mundo atual. de mesma opinião que Caquelin, o crítico Fernando Cocchiarale nos traz no seu texto Crítica: a palavra em crise, colocações sobre a não possibilidade de pensar a arte contemporânea com modelos modernos ligados aos ismos. Ele também reflete sobre a ausência de identidades fixas na arte, que funciona como obstáculo para o posicionamento crítico em face das novas circunstâncias que emergiram dessa crise. a crítica deixa de ser tomada no sentido normatizador que determinava o modo de ser das obras, e passa a ser um esforço reflexivo. Buscando qualificar uma experiência singular do mundo, em que 53


pesa o desejo de desconstrução de significados e de construção de resignificações. Luiz Camillo Osório, em Razões da crítica (2005), ressalta que através de Duchamp, os conceitos de arte e artista foram colocados em discussão, provocando uma crise nos modelos críticos. respondendo uma das perguntas citadas no começo do texto, para que serve a crítica? A crítica é fundamental para a arte se oxigenar. Os artistas necessitam do embate com a crítica para, dentre outros aspectos, questionarem sobre o que estão produzindo. Ela nos serve, portanto, como uma guia na medida em que reflete sobre a arte e o mundo. diante desse contexto e das questões levantadas, observamos que nossa prática como editores da revista Reticências... crítica de arte, tem como objetivo ser um lugar de reflexão sobre arte contemporânea, e que tem como posicionamento evitar o distanciamento crítico, uma das normas apregoadas pela crítica em períodos remotos. desde o inicio, pensamos de forma horizontal, onde os três pontos estão no mesmo patamar e em possibilidade de contatos entre: arte, público e crítica. Uma prática que tem na contaminação uma forma de deslocamento para pensar a arte atual. A crítica em meio à crise está livre como a arte, como disse Mario Pedrosa: o exercício experimental de liberdade. pensando praticas de deslocamentos citamos uma de 1979, denominada de Cildo Meireles, idealizada pelo crítico de arte Wilson Coutinho. Esse trabalho crítico em audiovisual é uma experiência que se aproxima da prática artística, promove, inclusive, apropriações de um filme de faroeste, onde um cowboy norte-americano fala como se estivesse em uma conferencia sobre o artista Cildo Meireles. já o crítico Frederico Morais, desenvolveu vários vídeos entre 1970 e 1973, o projeto era denominado de audiovisuais. E alguns deles com objetivo crítico, como comenta Mario Schenberg, no texto Frederico Morais: Audiovisuais. Mesmo nos audiovisuais com objetivo crítico, Frederico Morais penetra na obra de outros artistas, sobretudo, através da sua aguda sensibilidade e da sua capacidade de vibração lírica, compondo na verdade outras obras de arte, inspiradas por aquelas. Substitui o processo analítico da crítica por uma nova síntese, fruto de uma ressonância lírica e intuitiva. podemos pensar a partir desses dois exemplos, ainda dos anos 70, a ideia de deslocamentos expandindo a reflexão tramada pela própria obra, e assumindo, então, o desafio de fazê-lo com os próprios meios da obra. O que na nossa percepção, a ideia de deslocamento não exclui a utilização da palavra nesse espaço de reflexão e criação. Algo que poderia ser definido com o conceito criado pelo artista-etc Ricardo Basbaum, o de crítico-etc. no entanto, apesar de toda a problemática que lhe envolve, a crítica de arte vem ganhando novas formas de articulações e espaços, vivenciando um momento de renovação. Por isso, pensamos que não se trata de um fim, mas de uma nova era para a crítica. Para os conservadores, será esses deslocamentos, ainda, considerados crítica de arte? Uma vez que essa nomenclatura carrega consigo um peso e uma tradição, teríamos que jogar o peso para fora do barco, sem renegar sua importância e seguir a navegação de forma mais leve, porém sem perder a força reflexiva e o desejo de fortalecer o debate crítico.

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notas ¹ texto escrito a quatro mãos. ²Ana Cecília Soares é jornalista e crítica de arte, Júnior Pimenta é artista visual e juntos editam a revista e site Reticências... crítica de arte (www.reticenciascritica.com ).

referências bibliográficas: CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea, uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (org.) Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2006. (Col. Pensamento Crítico). FABRIS, Annateresa; GONÇALVES, Lisbeth R. (orgs.). Os lugares da crítica de arte. São Paulo: ABCA – Imprensa Oficial do Estado, 2005. OSÓRIO, Luis C. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. SCHENBERG, Mario. Frederico Morais: audiovisual. Pesquisado em Centro Mario Schenberg de documentação da pesquisa em artes da ECA/USP –www.eca.usp.br/nucleos/cms/index.php

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por roberto traplev, editor da revista Recibo

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2012


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