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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE MARÇO DE 2012

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isto é bossa nova

Pensar

por CARIÊ LINDENBERG

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE MARÇO DE 2012

A ALMA LÍRICA E AS CANÇÕES DE “MENDAS”, UM GÊNIO DE RESPEITO Cariê Lindenberg faz uma viagem no tempo até o final dos anos 50 e relembra sua amizade com Newton Mendonça, parceiro de Tom Jobim em “Desafinado” e “Samba de uma nota só”

À

primeira vista, a fisionomia do inspirado poeta e compositor Newton Mendonça (o “Mendas”, conforme lhe apelidara Vinicius de Moraes) aparentava (sobrancelhas cerradas) ser a de uma pessoa carrancuda e de poucos amigos. Na intimidade, contudo, ele era um tremendo sentimental, uma eterna alma de poeta lírico, um amigo em que todos confiavam, porque esbanjava segurança e bondade em seu comportamento. Espírito crítico (sempre atento ao que se passava em qualquer parte do Brasil e do mundo), era um homem de convicções políticas sólidas e definidas, atributos que absorveu do pai (militar proscrito por força de perseguições e intransponíveis divergências políticas, fato que o fez deixar a família como que órfã de pai vivo, abandonada à própria sorte). Talvez por isso mesmo tenha guardado para si, sem alardes, as suas convicções ideológicas, não as confundindo nunca com o seu trabalho, suas amizades ou, menos ainda, com suas grandes paixões: o piano e a música. Eu o conheci em uma aconchegante boate em Copacabana chamada Carroussel (a última onde ele trabalhou), local em que algumas garotas, digamos que livres e resolutas, frequentavam o recinto para se divertir à caça das alegrias que a noite oferece aos experientes e, quem sabe, visando também a capturar, numa boa, parceiro para alguma empolgante realização de seus programas prediletos, nem sempre necessariamente remunerados, convém deixar isto logo bem claro. Espero que esta sucinta apresentação que faço daquele alegre ambiente não desvirtue e confunda os desavisados, sugerindo que não se tratava de uma casa de respeito. Afinal, creiam-me, diriam os baianos, praticava-se ali um furdúncio consuetudinário, respeitadas sempre as regras da época e do estabelecimento. Pois era mesmo uma casa de respeito. Juro. E mais, poucos ficavam à deriva. O expediente ia das 21 horas até as 4 da manhã. No piano, à disposição dos visitantes, revezavam-se por 20 minutos o pianista Gaúcho, e por 40 o homem sisudo (que, sabia-se, evoluíra da gaita para o piano) e que eu não conhecia, mantendo um certo receio em abordá-lo para pedir

REPRODUÇÃO DO LIVRO “CHEGA DE SAUDADE”, DE RUY CASTRO

REPRODUÇÃO DO LIVRO “CHEGA DE SAUDADE”

dos. Precisavam de algo mais amplo, mas que coubesse no seu modestíssimo orçamento. Foi assim que deixaram para trás o bairro e os amigos de Ipanema que tanto amavam e no qual tinham seu círculo de relações desde crianças e foram para a distante Vila Isabel, do outro lado da cidade, indo como que para um verdadeiro exílio para quem não era de lá. Mantivemos a prática, Tom e eu, de irmos lá com relativa frequência, no meu fusquinha, sempre aos sábados (já que não dispúnhamos mais do apartamento de Newton).

Relíquia

O músico (terceiro de pé, a partir da direita) com Waldemar e sua orquestra: canções de plena sincronia harmônica

Newton Mendonça (1927-1960), o último à direita, foi um dos nomes fundamentais do nascedouro da bossa nova

para cantar, o que, paradoxalmente, fazia sem inibições ou constrangimentos no turno do simpático Gaúcho. Àquela altura, depois de alguns conhaques, eu, irresponsável, já me sentia, muito precipitadamente, reconheço hoje, como um cantor profissional (graças ao trabalho e ao pistolão da amiga Sylvinha Telles, a primeira e grande musa da Bossa Nova), embora nessa carreira eu não tivesse ainda ido além do exercício de um teste rudimentar de resultado positivo feito na casa dela para Aloísio de Oliveira, seu marido, dono da Elenco, a mais importante gravadora da época no Brasil. Já que éramos capixabas, estrearíamos juntos gravando um LP: Nara Leão, uma desconhecida, de um lado; e eu, mais ainda, do outro lado do disco, sentenciou Aloísio. A aprovação no teste rudimentar me inflou da coragem de que dias

REPRODUÇÃO DO LIVRO “CHEGA DE SAUDADE”

Gravação de “Desafinado”: compositor teve seu nome grafado erradamente como Milton Mendonça

antes carecia para enfrentar o pianista mal-encarado. Então, agora faceiro, enchi o peito de ar e balbuciei resoluto no ouvido do carrancudo: – Posso dar uma canjinha? – O que você vai cantar? – ele perguntou, sem qualquer expressão de simpatia, além da imagem seca do profissional. – “Você morreu pra mim” – respondi. Aí, então, ele me experimentou e complicou: – Qual é o tom? Como não soubesse aquilo que os cantores sempre devem saber na ponta da língua, para quebrar o galho comecei logo a balbuciar a música no seu ouvido. Ele, profissional competente, rapidamente encontrou o ré maior. Quando terminei ele me perguntou: – Você sabe de quem é essa música? Respondi que era de Newton

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Mendonça e Fernando Lobo. Ele me estendeu a mão e soltou uma brincadeira muito a seu gosto: – Muito prazer, eu sou Newton Mendonça, você nasceu pra mim... (foi desta forma simplória e fruto de pura coincidência que ganhei um amigo e compadre cuja morte prematura, aos trinta e poucos anos, foi duramente sentida por uma legião de parceiros e admiradores, fãs e amigos, dentre os quais, especialmente, o maior deles, Tom Jobim, seu primeiro parceiro e amigo inseparável). Não demorou nada e logo já parecíamos dois irmãos, como se nos conhecêssemos há longo tempo, desde a vida toda. Como já morava em Vitória, nossa correspondência era quase diária. No Rio, os melhores momentos gastávamos ao piano no próprio Carroussel ou, aos sábados, em seu diminuto apartamento, na Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, sempre en-

riquecidos pela presença de Tom Jobim (ou na própria casa deste, na Rua Nascimento Silva, quando aproveitavam os momentos de descanso para tranquilos, sem circunstantes, comporem livres de interrupções). Ao contrário do que se supõe, eles faziam letra e música a quatro mãos. As suas produções, numa constante simbiose entre a melodia e os versos, feitas em plena e permanente sincronia harmônica, resultaram em ricas canções de beleza extraordinárias, como “Teu castigo”, “Só saudade”, “Foi a noite”, “Discussão”, “Samba de uma nota só”, “Desafinado”, “Meditação”, “Domingo azul do mar”, “Caminhos cruzados” e uma infinidade de outras canções, todas maravilhosas, ao todo 46, sendo 28 sucessos exclusivos. Com o nascimento de Fernando, ele e sua mulher, Cirene, resolveram partir para um apartamento maior. Era impossível continuar como que confina-

O ambiente era sempre de galhofa: numa tarde, os três, aborrecidos e galhofando, ameaçamos empurrar Cirene, a dona da casa, geladeira adentro, local onde ela havia escondido nosso precioso litro de Old Parr, para nos sonegar a preciosa bebida. Morando em Vitória cedo recebi uma carta muito sentimental do Mendonça, hoje guardada como uma relíquia, assim como tantas outras, me comunicando a chegada de seu filho Fernando e me convidando para ser seu padrinho. Em nossa ronda habitual, ao sair pela madrugada do Carroussel, depois de bater o ponto no popular botequim “Pinto Sujo”, ou no Ao Caldo Verde, onde a galera da música se mantinha enturmada de plantão, bebendo, conversando ou curando a ressaca, dávamos uma passada pela casa do Tom para assuntar se havia algum movimento por lá. Aí, dependendo das circunstâncias e do volume, já eventualmente convivido com o conhaque nacional Georges Aubert (o único que cabia em nossos bolsos) durante o tempo livre nos turnos do Gaúcho, o Mendonça entrava sem cerimônias na primeira farmácia aberta e gritava alto, lá para dentro, como faria em um supermercado qualquer: “Solta uma necroton aí, oh meu” e automaticamente levantava a manga comprida da camisa e esticava o braço virado para cima sobre o balcão e ficava olhando para rua, no sentido contrário ao dos acontecimentos. Ele detestava ressaca e também ver a fisgada da agulha... “Maldito Pinto Sujo”, bradava ele em um compreensível lamento.


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