PensarCompleto250812

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Entrelinhas

PESQUISADOR COMENTA A FORTUNA CRÍTICA DE RAUL POMPEIA, AUTOR DE “O ATENEU”.

LUGAR DE CULTURA, MEMÓRIA E AFETO

Pensar

Antropóloga relata valor histórico da Vila de Santa Cruz. Páginas 10 e 11

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VITÓRIA, SÁBADO, 25 DE AGOSTO DE 2012

www.agazeta.com.br

Audiovisual

FILME SOBRE O ESPÍRITO SANTO FUTEBOL CLUBE REÚNE RAZÃO E EMOÇÃO. Página 4

Heavy metal ESCRITOR DESTACA OS 30 ANOS DE ÁLBUM CLÁSSICO DO IRON MAIDEN. Página 5

História

LIVRO REVELA BASTIDORES DO CASAMENTO DAS PRINCESAS ISABEL E LEOPOLDINA. Página 8

Feitiço do malandro ESPECIALISTA ANALISA O DISCURSO DA MALANDRAGEM NO SAMBA DE NOEL ROSA

Págs. 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 25 DE AGOSTO DE 2012

quem pensa

Gilberto Araújo épesquisadoreredatordaAcademiaBrasileirade LetraseprofessordeLiteraturaBrasileiranaUFRJ. Ériton Bernardes Berçaco émestreemEstudosLiteráriospelaUfes,professor erealizadoraudiovisual. eritonb@yahoo.com.br Anaximandro Amorim é advogado, professor e escritor. www.anaximandroamorim.com.br

Turi Collura é musicólogo, pianista e compositor. É mestre em letras pela Ufes. www.turicollura.com Julio Bentivoglio é professor do Departamento de História da Ufes. juliobentivoglio@gmail.com Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br Jorge Elias Neto é médico e poeta e escreve no blog www.jeliasneto.blogspot.com

Silvana Sampaio é professora de arte, escritora e membro da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras. silvanasoaressampaio@hotmail.com Geovana Tabachi Silva é antropóloga e professora do curso de Ciências Sociais da UFF. tabachi@uol.com.br João Amorim Coutinho é poeta, escritor e jornalista. jamorimc@bol.com.br

Eduardo Selga da Silva é graduado em Letras-Português pela Ufes, professor e escritor. eduardoselga@gmail.com Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam.

marque na agenda prateleira Biblioteca Pública Estadual Roda de leitura sobre Rubem Braga

O professor Santinho Ferreira de Souza participa do projeto Roda de Leitura na próxima quarta-feira, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual, com a crônica “Eu e bebu na hora neutra da madrugada”, de Rubem Braga.

Campus Palestra sobre biblioteca virtual na Ufes

A diretora geral de Recursos de Informação na Embaixada dos EUA em Brasília, Karol Brey-Casiano, fala sobre o tema “Apresentação da Biblioteca Virtual e-library USA”, na próxima terça-feira, às 19h, no Auditório Manoel Vereza (CCJE da Ufes).

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de agosto

A Evolução de Deus Robert Wright Com base em conceitos da arqueologia, teologia, história e psicologia evolucionista, o autor revela como as doutrinas religiosas mudaram com a evolução do homem e aponta caminhos para uma união entre todas as crenças, a teologia moderna e a pesquisa científica. 700 páginas. Record. R$ 69,90

Evolução Política do Brasil – E Outros Estudos Caio Prado Jr. O estudo de Caio Prado Jr. integra os grandes ensaios de interpretação da nação da década de 1930, especulando sobre o futuro da sociedade brasileira num período em que o país passava por um processo de modernização. 328 páginas. Companhia das Letras. R$ 44

Luiz Buaiz ganha biografia

O livro “Luiz Buaiz – Biografia de um homem incomum”, de Sandra Medeiros, será lançado na próxima qu arta-feira, às 19h, no Salão São Tiago do Palácio Anch ieta. A obra registra a trajetória de um dos mais conheci dos e respeitados profis sionais da medicina no Espírit o Santo. Distribuição gratuita.

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Os Mistérios da Coroa Nancy Bilyeau Ambientado no século XVI, o primeiro romance da autora americana mescla suspense com fatos históricos, tendo como cenário o momento em que o rei Henrique VIII rompe com o Vaticano e funda a Igreja da Inglaterra, dando origem a uma série de conflitos religiosos. 384 páginas. Arqueiro. R$ 29,90

de agosto

Sarau du Jardim no clima “on the road”

A terceira edição do projeto cultural vai acontecer na próxima sexta-feira, das 20h às 23h30, com o tema “On the road”. Na programação, exposição de Harley-Davidsons e capacetes estilizados de Léo Dalla e performances literárias de Elton Pinheiro, Fernando Marques, Gabriel Ramos, Cida Ramaldes e Milson Henriques. Rua Moacir Avidos, 47, Praia do Canto, Vitória.

Poemas Clássicos Chineses Li Bai, Du Fu e Wang Wei Edição pocket reúne as mais importantes vozes da poesia clássica chinesa em 95 poemas que desvendam ao leitor toda a delicadeza de sua lírica milenar. 240 páginas. L&PM. R$ 18

coletivo.peixaria@gmail.com

A ALMA DO SAMBISTA

José Roberto Santos Neves

No livro “A Canção no Tempo”, os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello contam que Noel Rosa (1910-1937) compôs “Fita Amarela” a partir de uma batucada, conhecida nas rodas de samba, atribuída a um bamba do Estácio chamado Mano Edgar. Noel aproveitou a ideia da morte sob o olhar do sambista para escrever o samba espirituoso que se baseia na dualidade vida/morte, catolicismo/candomblé, branco/preto, conforme observa o pianista e compositor Turi Collura nas páginas centrais desta edição. Italiano radicado há 10 anos no Estado, Turi en-

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cantou-se pelo estilo único de Noel Rosa, tanto no aspecto lírico quanto melódico, a ponto de inspirar-se nas composições do Poeta da Vila para sua dissertação de mestrado. Neste ensaio exclusivo, o músico se detém na criatividade e na ironia fina da letra de “Fita Amarela”, identificando no discurso da canção uma exaltação à malandragem típica de Noel, que, em seu curto tempo de vida, transitou com habilidade entre a classe média e os sambistas do morro, produzindo uma obra que atravessa gerações como uma das mais sólidas e inventivas da nossa música popular. Bom sábado, boa leitura, bom Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Gravações raras de Noel Rosa, trailer do documentário “Espírito Santo Futebol Clube”, vídeos do Iron Maiden e trecho do livro “O Ateneu”, de Raul Pompeia, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por GILBERTO ARAÚJO

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 25 DE AGOSTO DE 2012

AS RUÍNAS E AS VÁRIAS FACES DE RAUL POMPEIA

R

aul Pompeia não é um autor esquecido, mas a fortuna crítica concentrada em “O Ateneu” minimizou a riqueza de sua obra, reduzindo-o à equivocada condição de “autor de um livro só”. A rigor, ele produziu muito mais fora do gênero romanesco: crônicas, contos, novelas, ensaios, caricaturas, desenhos, capas de livro e poemas em prosa são algumas das searas em que se aventurou. Consensualmente, a crítica atribui-lhe a inauguração do impressionismo na ficção brasileira, por ter ele ultrapassado o molde naturalista, flagrando a realidade em sutis orquestrações sensoriais. Tais características estariam prefiguradas em seu livro de estreia, “Uma tragédia no Amazonas” (1880). A par do Pompeia ficcionista, há o polemista, o republicano e o abolicionista, revelados em caricaturas de professores, na novela “As joias da Coroa” (1882) ou em crônicas inflamadas. Em Raul, estética e ética nunca se excluem. Prova disso são suas “Canções sem metro”, obra iniciadora do poema em prosa no Brasil. Apesar de editadas em livro postumamente, em 1900, as canções eram publicadas em periódicos desde 1883, antecipando-se uma década às incursões de Cruz e Sousa no gênero. Vanguarda da literatura oitocentista, o poema em prosa marca a insurreição dos poetas contra a tirania do metro. Os primeiros a se rebelar foram os românticos, opondo a vivacidade da imaginação à monotonia das prescrições. No romantismo, no entanto, a flutuação dos gêneros proliferou mais na reflexão teórica do que na criação efetiva. Assim, se a mão escrevia fragmentos, o cérebro ou o coração ainda se afeiçoavam a parágrafos e estrofes. Este não é o caso de Raul Pompeia: no âmbito do poema em prosa, ele é pioneiro em criar obra em que a multiplicidade equilibra forma e conteúdo e é o primeiro brasileiro a estofar o gênero num sistemático arcabouço teórico. A constatação mais ostensivamente plural das “Canções sem metro” está no título, que opõe a versatilidade dos poemas (canções) ao aprisionamento homogeneizador do metro. A procura de um estilo intransferível favorece o ritmo em detrimento da metrificação, pois, enquanto esta é molde genérico, em tese aplicável a qualquer poema, aquele se adapta à necessidades singulares de cada criação. Adentrando no universo textual, ve-

ARQUIVO AG

Em Raul, estética e ética nunca se excluem. Prova disso são suas ‘Canções sem metro’, obra iniciadora do poema em prosa no Brasil”

Autor de “O Ateneu” produziu crônicas, contos, novelas, ensaios e poemas em prosa

livro, seu último poema, “Conclusão”, contém um suspiro utópico, ao acenar que, retornando à natureza, o homem talvez logre redenção. O tempo é outra instância multívoca na obra: superando a cronologia, ele é ruína em que se sobrepõem experiências e ensinamentos. O poeta apresenta esse baú de ossos em sequência irônica: após os poemas “Ontem” e “Hoje”, esperamos encontrar algo sobre o amanhã, mas nos deparamos com “Vulcão extinto”...

Paradoxo rificamos que, nas “Canções”, a polifonia da natureza condiz com a forma plural do poema em prosa: ela é uma “floresta de símbolos” à qual o homem deve atentar para conhecer o mundo e a si. Epigrafado pelas “Correspondências” baudelairianas, o primeiro poema, “Vibrações”, postula a analogia, princípio de índole plural, como articuladora da obra: “Sonoridade, colorido: eis o sentimento”. Avatares naturais, homens, animais, plantas e minerais originariamente se relacionam de maneira cordial com o cosmo: na seção inicial do livro, os personagens leem as mensagens da natureza, aceitando-a como esfinge que, embora pródiga de revelações,

sempre guardará segredos. Entretanto, essa relação altera-se radicalmente, uma vez que o homem se transforma num farejador de matéria-prima (“Indústria” e “Comércio”). Tal predatismo reflete-se na estrutura crescentemente esquartejada das “Canções sem metro”: “Vibrações”, seção inicial, contém um único poema que, subdividido embora, insinua a harmonia primordial. Já “Amar”, contendo cinco textos distintos, adianta a quebra da união homem-natureza. Os oito textos do terceiro bloco, “O Ventre”, agravam o dilaceramento, culminando em “Vaidades”, com nove poemas, e “Infinito”, com dez. Conquanto o pessimismo se sobressaia no

A ruína comparece de outras maneiras nas “Canções sem metro”, sempre com efeito multiplicador: a abundância de epígrafes, citações e alusões do livro, por exemplo, também não chancelam polifonia? Diríamos ainda que a própria obra se configura como ruína, pois ela admite seu inacabamento: o poema derradeiro é “Conclusão”, título que, apesar de sugerir desfecho, assume caráter menos definitivo do que “Solução”, poema anterior. O paradoxo da conclusão inconclusa condiz com a ideia de “Infinito”, última parte das “Canções”. Uma possível reiteração simbólica da pluralidade, agora biográfica, perpassa o suicídio de Raul Pompeia: o autor celebra o Natal de 1895 com um tiro no peito. E fica para a posteridade como um poeta exclusivo da prosa.


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audiovisual por ÉRITON BERÇACO

CONTRA TUDO E CONTRA TODOS, O ESPÍRITO SANTO ENTRA EM CAMPO Documentário sobre o modesto time de futebol de Anchieta registra a razão e a emoção de jogadores que se inspiram no cinema para tentar superar os reveses do esporte e da vida

“Q

uando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Essa conhecida estrofe do “Poema de sete faces”, de Drummond, traz a intrigante palavra gauche, que vem do francês e significa “esquerda”. E por extensão de sentido, podemos atribuir a gauche outros significados, como “do contra”, “errado”, “underground”, “contrário” à lógica da ordem das coisas. Estar à esquerda é pensar de forma contrária, em oposição à doxa, ser contrário ao senso comum. A expressão “do contra” é comumente usada quando se quer caracterizar alguém que tem sempre uma opinião contrária à do outro. A palavra “contra” – assim como “gauche” – é muitas vezes julgada como pejorativa e pode ser ressignificada de outro modo mais agradável aos olhos semânticos. O do contra vai de encontro a. Mas toda topada, toda sola, toda guerra também promove um encontro. A disputa não me parece ser mais que a união de contrários. O atrito, a fruição, são necessidades do jogo. Quem caminha sempre na mesma direção não cria embate, não pode experimentar o enfrentamento, a provocação produtiva, a reflexão. Sem ser do contra não há jogo em campo algum, muito menos naquele em que rola a bola. No cinema – no audiovisual –, a câmera que revela o outro lado é a do contraplano. O plano contrário àquilo que se vê na tela permite pensar o que pode haver por trás daquele olhar. No vídeo “Espírito Santo Futebol Clube”, dos diretores André Ehrlich Lucas e Lucas Vetekesky – lançado no último Vitória Cine Vídeo e vencedor do prêmio Jaceguay Lins de melhor documentário, na mostra da ABD Capixaba deste ano –, os planos e contraplanos revelam a razão e a emoção dos jogadores de modo que grudamos o olhar na tela e entramos num jogo de afeto que só nos faz torcer por aquele time. O resultado de três meses de filmagem é um documentário que consegue traçar uma narrativa aos moldes clássicos: personagem, enredo, clímax, desfecho. Trágico desfecho. Tris-

DIVULGAÇÃO

Vídeo de André Ehrlich e Lucas Vetekesky exibe uma narrativa aos moldes clássicos: personagem, enredo, clímax, desfecho

“A postura do gladiador é contrária a daqueles jogadores que, atentos, se entusiasmam com o filme e se miram no herói” —

ÉRITON BERÇACO REALIZADOR AUDIOVISUAL

te, emocionante. O vídeo, de 15 minutos, conta a trajetória de uma equipe de futebol cujo objetivo – como havia de se esperar – é vencer. O time é de um contralugar: o Espírito Santo. Contra, neste caso, no sentido de se

tratar de um Estado com pouca, ou rara, tradição no cenário do futebol nacional. E se isso parece pouco para um time “do contra”, na disputa do campeonato estadual de 2011, o ESFC chegou ao final em penúltimo lugar, tendo em seu histórico de derrotas um placar de 14 gols contra 2 em apenas uma partida. E 6 contra 1 em outra. Além disso, contrariando as expectativas da diretoria e dos jogadores, o time perde o apoio da prefeitura de Anchieta, única patrocinadora. Em meio a tantos contratempos, é do cinema e do vídeo que se vale o treinador. Para jogadores “contranutridos”, com desfalque no contracheque, e num espaço “contraestruturado”, um filme é exibido a fim de dar ânimo à equipe. O filme a que assistem é “Gladiador”, um épico hollywoodiano com um herói tipo exportação do cinema americano. A postura do gladiador é contrária a daqueles jogadores que, atentos, se entusiasmam com o filme e se miram no herói. A projeção é feita na parede do clube e alimenta nos jogadores a sede de saber

como o filme acaba. No contraplano não revelado, a câmera documenta a docilidade de anti-heróis, que se nutrem da vontade de ganhar o jogo. Ganhar o jogo é vencer? Ou perder significa mais que se render ao jogo sistêmico que nos força a querer sempre a vitória? Quando perder significa ganhar? Quando o olhar deixa o campo e vai para a tela, quando o olhar sai do gramado e permite ver cada um de nós: humanos e não heróis, sabedores de uma vitória: vencer a si mesmo e não o outro. Com uma edição bem pensada, planos bem entrosados, e direção cuidadosa, “Espírito Santo Futebol Clube” – o vídeo e o time – encanta e arranca aplausos no estádio e no cinema, de modo a colocar em contraplano plateias geralmente distantes quanto ao gosto por cinema e futebol, forçando a estranhos rostos um olhar no olho. Prefiro cinema a futebol, mas quando assisti ao filme me vi neste contraespanto: a partir de agora – com perdão pela rima -, torço para o Espírito Santo.


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falando de música

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por ANAXIMANDRO AMORIM

O PESADELO QUE RENDEU UM CLÁSSICO DO METAL

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THE NUMBER OF THE BEAST Iron Maiden. 9 faixas. EMI. Ano de lançamento: 1982. Quanto: R$ 19,90 (CD)

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om mais de 30 anos de estrada, o nome Iron Maiden já se confunde com o próprio heavy metal. Mesmo quem nunca foi chegado ao ritmo já ouviu falar do grupo. Um dos ícones da geração New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM), a banda conheceu o auge de seu sucesso nos anos 1980, sobretudo após a entrada do vocalista Bruce Dickinson e do álbum “The Number of The Beast”, que completa, neste ano, 30 anos de lançamento, e que, a par de todas as polêmicas, ainda mexe bastante com o imaginário de muitas pessoas. Conta a lenda que o álbum foi concebido em uma época conturbada para a banda. Primeiro vocalista a gravar com o Iron, Paul Di’Anno teria sido demitido do grupo por problema com alcoolismo. Ao contrário do que muitos das novas gerações podem imaginar, Di’Anno era um cultuado vocalista naquele início dos anos 80. Com a entrada de Bruce, muitos fãs iam aos shows com enormes cartazes dizendo “Queremos Paul”, no que, certamente, foi uma enorme pressão. Bruce Dickinson também teve uma história um pouco difícil. Na verdade, ele deveria ser o primeiro vocalista a gravar com o Maiden (lembrando-se que a banda teve dois crooners anteriores, Paul Day e Denis Wilcox, que só fizeram história), no entanto, foi “garfado” para o Samson, banda de que participou até, de fato, tornar-se o lead singer do Iron. Outra curiosidade é que Dickinson se chama Paul... Paul Bruce Dickinson, mas que resolveu optar pelo segundo nome. Ah, a propósito, dizem também que ele queria ser baterista, mas isso é outra história... Por falar em baterista, este é o último álbum com Clive Burr, baterista com pegada mais punk. Para engrossar o caldo das dificuldades, dizem que Steve Harris, baixista e líder supremo do grupo, teve um terrível pesadelo com nada mais nada menos que... satã! Atormentado, escreveu a letra do que seria a faixa-título do álbum, “The Number of the Beast”, em bom português, “o número da besta”, ou 666, com direito à transcrição da passagem bíblica das “Revelações” e tudo mais. Essa explosiva mistura resultou em grande sucesso. Já bastante popular na Inglaterra, o álbum elevou o Maiden a um patamar mundial, vendendo milhões de cópias, além de ser vencedor de discos de platina no Reino Unido,

O Iron Maiden em 1982, ano do lançamento de “The Number of the Beast”: músicas inspiradas em História e ocultismo

Estados Unidos e Canadá, numa época sem internet e levando-se em conta um ritmo pouco comercial e eivado de preconceitos como o heavy metal. Além de estabelecer o nome de Bruce Dickinson como vocalista da banda.

Símbolo

Para variar, o sucesso não poderia vir sem uma boa dose de polêmica: a começar pela capa que, mesmo hoje, faz até os menos ortodoxos torcerem o nariz. Eddie, a “caveirinha” símbolo da banda tem como marionete o próprio... demônio! O fato ensejou uma onda de boatarias, de que o sucesso do grupo era fruto de um pacto com as forças do mal e coisas assim. Não é preciso dizer que cristãos mais fervorosos promoveram verdadeiras queimas coletivas do LP, o que, anos mais tarde, ensejou uma

bem-humorada reação da banda, na canção “Holy Smoke”, ou “fumaça sagrada”, do disco “No Prayer for the Dying”, de 1990. Porém, não há absolutamente nada de satânico no disco. Steve Harris praticamente assina todas as letras, mas há um pouco de Bruce Dickinson nelas. Eu explico: é que Dickinson é professor de História e, assim, canções como “Run to the Hills” (“corra para as colinas”, que fala sobre a colonização americana), “Hallowed be thy Name” (“abençoado seja o vosso nome”, que trata dos últimos momentos de um condenado à forca) e “Invaders” (“invasores”, que tem como temática a invasão nórdica numa céltica Grã-Bretanha) dão o tom do disco. A própria “The Number of the Beast” é “redondinha redondinha” no tal “pesadelo” de Harris – além de produzir um clipe hilário, bem ao

estilo dos anos 80. Trinta anos depois, o disco “The Number of the Beast” já não mete medo nas pessoas, apesar de a capa ainda fazer alguns torcerem o nariz. Ícone do heavy metal mundial, o Maiden se aproveitou bastante do disco para construir toda uma simbologia que o acompanha até hoje. O voo do grupo tem o número 666 (e o capitão é Bruce Dickinson!); celebrando três décadas de carreira, a banda lançou a coletânea “Best of the Beast”, em alusão clara ao álbum. Interessante que o Iron não “reinventou a roda”. Caveiras, ocultismo, são temas recorrentes do metal. O grupo teve força suficiente para “popularizar” esses símbolos, influenciando bandas nacionais e até capixabas, sem contar o som melódico, agudo, no que, certamente, muito do que está gravado ali soa atual, três décadas depois.


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música

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por TURI COLLURA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 25 DE AGOSTO DE 2012

Na letra de “Fita Amarela”, lançada em 1933, compositor se baseia em dualidades e antagonismos tais como vida/morte, catolicismo/candomblé, branco/preto, e faz exaltação às mulheres e à boemia

NOEL, A FITA AMARELA E O MALANDRO

ARQUIVO AG

[...] Quanto a você Da aristocracia Que tem dinheiro Mas não compra alegria, Há de viver eternamente Sendo escrava dessa gente Que cultiva hipocrisia.”

MUSICÓLOGO IDENTIFICA O OLHAR DO POETA DA VILA SOBRE A MALANDRAGEM ATRAVÉS DO DISCURSO DE SEUS SAMBAS

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m sua produção artística, Noel Rosa teve, sem dúvida, uma relação muito profunda, bem como multifacetada, com o tema da malandragem, assunto que me parece uma de suas principais fontes de inspiração. O linguajar do malandro é cativante, por ser evasivo, polissêmico, estilizado. Ele nunca chama as coisas pelo que são, preferindo utilizar gírias para se comunicar. Essa performance verbal lhe serve para manipular a discussão com o outro, tornando-a sempre a seu favor. É possível, se não provável, que Noel, atento às questões linguísticas, tenha observado a performance peculiar do linguajar do malandro, sendo inspirado por ela. Assim, uma característica marcante dos textos noelinos, a da ambiguidade da escrita, que carrega em si pontos de vista múltiplos e/ou antitéticos, poderia estar inspirada na própria malandragem. Com proceder malandro, então, em seus textos Noel aparenta exaltar o malandro ao mesmo tempo em que parece querer levar o ouvinte/leitor a refletir sobre as consequências – às vezes com direito a uma leitura negativa – sociais de suas práticas.

O Poeta da Vila, como Noel era apelidado, era filho de uma família de classe média de Vila Isabel – um bairro do Rio de Janeiro em ascensão econômica – e estudou em um colégio tradicional, o colégio São Bento. Mas Noel adorava a vida noturna, a boemia, a bebida e as mulheres. E por isso se encontra, segundo meu ponto de vista, em uma posição privilegiada para escrever sobre a malandragem de uma forma nova e mais ampla: ele conhece o morro e seus personagens, tem livre acesso a eles, frequenta os sambistas de lá – Cartola será seu grande amigo e parceiro, tanto de sambas assim como de noitadas e bebidas – e frequenta, também, os malandros, alguns dos quais são seus amigos. Ao mesmo tempo, ele tem acesso às badaladas rádios da cidade, muito em voga naquele período, e, dada a sua condição social, tem, com muita probabilidade, a oportunidade de travar alguma forma de contato com as reflexões e as vertentes da corrente modernista, oriunda da Semana de Arte Moderna de 1922. Entre muitas letras altamente interessantes produzidas por Noel e ligadas à malandragem, há uma que tem chamado a minha atenção, tanto por sua sagacidade, bem como por basear-se, co-

piosamente, em dualidades e antagonismos tais como vida/morte, catolicismo/candomblé, branco/preto, entre outros. Refiro-me à letra da canção “Fita amarela”, em que o discurso carnavalesco satiriza a morte, zomba dela: “Quando eu morrer Não quero choro nem vela, Quero uma fita amarela Gravada com o nome dela. Se existe alma, Se há outra encarnação Eu queria que a mulata Sapateasse no meu caixão Não quero flores, Nem coroa de espinho, Só quero choro de flauta, Violão e cavaquinho” Podemos observar, nesses versos, um dualismo entre elementos do candomblé e do catolicismo: ao invés de choro e vela, que parecem próprios de um velório católico, o protagonista – um malandro – prefere uma “fita amarela”. Se a fita é, por si só, própria das oferendas do candomblé, a de cor amarela é própria de Oxum, orixá feminino,

a deusa mais sensual e bela. E se o protagonista deseja ter, ao morrer, uma fita gravada com “o nome dela”, é possível que se trate propriamente do nome da deusa.

Encarnação

A “outra encarnação”, à qual se refere o “eu lírico”, é um conceito próprio de religiões reencarnacionistas, que me parece contraposta à “coroa de espinho”, própria do Cristo, e, portanto, do catolicismo. Enquanto os espinhos são sofrimento, a morte que o sujeito imagina e deseja para si é uma festa, uma orgia. O clima de festa do candomblé próprio dos morros, com a mulata que sapateia ao ritmo da música, da flauta, do violão e do cavaquinho, contrapõe seu dinamismo ao velório, e a morte imaginada pelo boêmio se transforma num carnaval. Eis que o dualismo religioso se entrelaça com outro: o entre a morte e a vida, essa última representada aqui pela festa. Trata-se de um dualismo tanto universal quanto antigo: é o dualismo entre Eros e Tânatos, que Sigmund Freud definiu, na psicanálise, respectivamente, a pulsão de vida e a

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pulsão de morte. Desenvolvida na obra “Além do princípio do prazer”, a ideia de Freud, baseada nos conceitos do grego Empédocles, é a de que exista, em cada ser humano, um jogo constante entre a pulsão de vida, que estimula o crescimento da vida e sua realização – Eros, a pulsão sexual – e a pulsão de morte, que alimenta princípios destrutivos – Tânatos. Aos versos originais que compõem a letra, Noel acrescenta, logo depois, outros, também atravessados pelo dualismo vida e morte, que assim começam: “Estou contente, Consolado por saber Que as morenas tão formosas A terra um dia vai comer” O sujeito está contente e consolado por saber que um dia as morenas formosas morrerão. Que consolo é esse, pela morte do outro? Observamos, então, o prazer na morte. Provavelmente, é morrendo que as morenas irão juntar-se novamente a ele e, assim, todos estarão novamente reunidos para a festa. A palavra “comer” remete novamente ao ato sexual: se não for ele, que seja a terra, então, a possuí-las com sua força poderosa. No dualismo candomblé/catolicismo exposto na letra, podemos ler, ainda, uma contraposição entre elementos das culturas branca e negra. Lembremos, a esse propósito, a letra da música “Filosofia”: “O mundo me condena E ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome. Deixando de saber Se eu vou morrer de sede Ou se vou morrer de fome.

Em “Filosofia”, o burguês preocupado cada vez mais com sua ascensão social desprezaria a figura do malandro, o qual, avesso ao trabalho, constituiria a imagem do fracasso, um peso morto, ou, mais ainda, um perigo para seu desenvolvimento. Em “Fita amarela”, o burguês e a cultura branca poderiam ser representados, porque não, por sua religião predominante. Segundo uma visão católica, o destino do malandro, ao morrer, não será o paraíso, mas sim o inferno. E se é para ali que o malandro vai, que possa, então, continuar a ter a orgia e a festa. O malandro da letra se compraz de ser um canalha, de ter vivido devendo a todos, de não ter nunca pago a ninguém. É no momento da morte que aparecem os herdeiros, os quais representam a continuidade da vida. A exaltação máxima do malandro da letra é não deixar nada para ninguém: nem para herdeiros – aliás, nem mesmo deixar herdeiros! – nem para credores. Ele nunca deu dinheiro aos outros, nem nunca dará. Assim procedem os versos restantes da letra: “Não tenho herdeiros, Não possuo um só vintém, Eu vivi devendo a todos, Mas não paguei a ninguém Meus inimigos, Que hoje falam mal de mim, Vão dizer que nunca viram Uma pessoa tão boa assim Quero que o sol Não visite o meu caixão Para minha pobre alma Não morrer de insolação” Se o boêmio não quer que o sol visite seu caixão, é porque ele vive da noite. Mais uma vez, encontramos, aqui, a oposição sol = vida/morte. Nesse verso, Noel usa do nonsense humorístico, do surreal: o sol mataria sua pobre alma, que morreria de insolação – de fato, racionalmente, como seria possível o sol matar uma alma? Se, uma vez morto, a partir do momento do velório, quem morre vira santo – mais um elemento tomado pela religião católica – morto o malandro, até seus atuais inimigos passarão a dizer que “nunca viram /Uma pessoa tão boa assim”. Quem são esses inimigos? A burguesia, inimiga dos ideais boêmios? Afinal, parece-me que o desejo último do “eu lírico” é que o mundo que o condena possa redimi-lo.

A ambiguidade da escrita de Noel Rosa, que carrega em si pontos de vista múltiplos e antitéticos, poderia estar inspirada na própria malandragem


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 25 DE AGOSTO DE 2012

história por JULIO BENTIVOGLIO

MANOBRAS IMPERIAIS Livro de trineto de D. Pedro II revela o empenho do imperador em escolher futuros maridos para as filhas Isabel e Leopoldina

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uitos leitores sequer imaginam que o Brasil contou em seu passado com histórias que se assemelham a verdadeiros contos de fadas. Pois saibam que em 1864 o imperador D. Pedro II (1825-1891) buscou nas monarquias europeias pretendentes para casar suas duas filhas: D. Isabel (1846-1921) e D. Leopoldina (1847-1871). Só isso já bastaria para motivar a leitura do recém-publicado “A intriga”, no entanto, o livro vai além ao tratar tanto da surpreendente troca entre os candidatos a noivos, quanto do dilema vivido para a sucessão do imperador. O livro mostra o empenho de D. Pedro II em escolher futuros maridos para suas filhas. Após intensa troca de correspondências com o príncipe de Joinville (1818-1900) e sua madrasta D. Maria Amélia, rainha de Portugal (1812-1876), inclinou-se por dois pretendentes: o príncipe austríaco Augusto – duque de Saxe (1843-1907) – que se casaria com futura herdeira da coroa Isabel –, e o francês conde D’Eu (1842-1922) – Gastão de Orleans – que se casaria com Leopoldina. Mas, manobras de bastidores decidiram em favor do francês, afinal, D´Eu era sobrinho de Joinville e neto do rei Luís Felipe (1773-1850) da França. O encontro de fato entre os quatro jovens, na tarde de 6 de setembro de 1864, no Palácio Imperial do Rio de Janeiro, todavia, é que decidiu os casais e ratificou a troca: a herdeira Isabel encantou-se pelo conde D´Eu e a sorridente Leopoldina apaixonou-se por Augusto. Para além das maquinações diplomáticas, teria pesado a escolha motivada pelos corações. É isso o que se depreende das cartas que escreveram, minuciosamente examinadas pelo autor.

Pesquisa

Versando sobre tema tão interessante, a obra é a prova viva de que nem só da pesquisa acadêmica feita por historiadores profissionais dentro das universidades sobrevive a História. Resultado de 10 anos de pesquisa, “A

A INTRIGA: RETROSPECTO DE INTRICADOS ACONTECIMENTOS HISTÓRICOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO BRASIL IMPERIAL D. Carlos Tasso de Saxe-Coburgo e Bragança. Senac, 2012. 384 páginas. R$ 54

DIVULGAÇÃO

Princesa Isabel, conde D’Eu e filhos em 1885: escolha do pretendente superou maquinações diplomáticas; no destaque, a princesa Leopoldina

Intriga” reúne documentos, fotos, correspondências e informações colhidas em acervos públicos e da família imperial, cujo acesso é bastante restrito no Brasil e no exterior. O autor, D. Carlos Tasso de Saxe-Coburgo e Bragança, é trineto do imperador D. Pedro II e publicou ainda “O ramo brasileiro da Casa de Bragança” e “Vultos do Brasil Imperial na Ordem Ernestina da Saxónia”, ambos pelo Museu Histórico

Nacional, e “Dom Pedro II em Viena(1872-1877)”. De vida reclusa e austera, o futuro das princesas iluminou-se com o casamento, afinal, antes do enlace, Isabel e Leopoldina nunca tinham ido a um baile ou ao teatro (pág. 23). Passavam o dia tendo aulas particulares, depois do jantar faziam um passeio no jardim ou ouviam as leituras do imperador e, às nove e meia,

recolhiam-se para dormir. A vinda do príncipe Maximiliano von WiedNeuwied (1782-1867) ao Rio de Janeiro, em 1860, foi a primeira etapa para os arranjos matrimoniais. Ele levou à Europa fotografias e impressões das futuras herdeiras da coroa brasileira aos interessados em desposá-las. Casamentos naquela época, reais ou não, eram sempre acordados, como negócios, não por acaso envolviam o famoso dote. Sobre a troca dos casais, uma carta de Augusto para sua mãe, de 20 de setembro de 1864, é reveladora: “Eu renuncio com prazer à mais velha e me ocupei mais da segunda. Ela não é muito bonita, mas é muito agradável, de bom caráter, muito instruída, muito boa (...) nós temos os mesmos sentimentos de um para o outro”. O livro apresenta em riqueza de detalhes todos esses aspectos, é farto em mostrar correspondências trocadas, trazendo para o primeiro plano a sensibilidade e as emoções dos personagens. A seu modo realiza uma verdadeira história dos afetos. Em seguida, o autor analisa os muitos dramas vividos pelos jovens casais. Primeiro com a separação devido à Guerra do Paraguai (1865-1870), depois com as diferenças entre o casal D´Eu e D. Pedro II: eram avessos à política, carolas, pouco comedidos nos gastos e viajavam demasiadamente à Europa.


poesias MORTE-VIDA SILVANA SAMPAIO Ninfa de infância Afoita, Afasta o medo de não ser. Fada flutuante, Reflete. Multiplica o prisma, explode em milhares de cores: Arco-íris Aquarela, Quimera. Escorre fluida e se esvai No templo do tempo Sem direção nem dimensão Água calma, Onda meiga e mansa, Movimento de vida Brilha, trilha Perpetua no infinito meu grito. Memória. Minha história.

MOTOPERPÉTUO Não quero certezas, Eu quero a dúvida Não quero respostas, Quero perguntas Não quero verdades, Quero hipóteses. A inércia mata a busca. A inércia mata. Eu busco.

crônicas DA JANELA, VENDO O BARCO PASSAR por CAÊ GUIMARÃES Alta noite ia, longa e insone, açoite de constelação no céu. Sapos coaxando no quintal. O som grave da sirene de um barco apita ao entrar na Baía de Vitória. Saio e caminho até o mirante. Tudo em volta respira. Do lado de lá, a ilha dorme. Do lado de cá, só, em silêncio e insone, converso com as criaturas da noite. Uma coruja voa em círculos sobre as árvores. Saciada, provavelmente após uma cilada. Ela se refaz no que sua presa jaz. As horas correm lentas. Lá embaixo, um peixe salta e agita a pele de pantera do oceano, tão lisa e imóvel quanto pode ser em uma noite sem vento. Também solitária, uma folha cai e pousa sobre meu pé direito. É uma hora surda. Momento em que tudo se adensa. Contrai e expande. Com a força de um cantejondo que toca surdo. Em retribuição ao que ouço, mudo. Calar,

antes do que tudo. “Ora direis ouvir estrelas”, e olho para as mesmas que o poeta olhou. Mas no lugar de ficar pálido de espanto, me encanto. A lua, mais pra cheia que pra meia, é como o olho de um Deus que nos mira rasgando o tecido da realidade. E para além desse olhar, a eternidade. Para além da gravidade, no espaço sideral, não há em cima, em baixo, atrás e adiante. Há o que sempre houve antes. E seguirá havendo. Devagar, o barco segue seu rumo. Traz no bojo do seu rastro, logo desmanchado na espuma do mar que levanta, um tanto de tanta coisa. Histórias que não cabem na lousa de nenhuma sala, badulaques que não cabem no estojo de nenhuma mala. O que une e o que separa. O barco vem milenar, com a mesma força do primeiro que cruzou o mediterrâneo na

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noite mais ancestral do mais distante e escuro recanto do nosso inconsciente. Noite em que nascemos como espécie ao olhar, eretos, as estrelas. Com medo, excitação e deslumbramento. Noite em que entendemos que somos uma poeira estrelar e que é absurdo tentar explicar o que não começou nem nunca termina. O que não tem linha que meça nem balança que pese. O que é palpável e a um só tempo etéreo. O que é entendimento e mistério. Enquanto tudo isso acontece, um caramujo se prepara para voltar para baixo da palha caída aos pés do coqueiro. Ele move seu corpo esponjoso com a mesma certeza de todo dia. Já se alimentou de musgos ainda menores e mais moles do que sua própria constituição física. Ao chegar ao abrigo se encolherá ainda mais no outro abrigo que no corpo carrega. Condenado à repetição, como as abelhas e os ratos, repetiria o mesmo ritual e percurso em busca do precioso musgo que lhe sustenta. Mas nada percebe quando perece. Sequer a aproximação da sola do meu sapato, que inadvertidamente o esmaga ao me levar de volta para o quarto.

OS CANÁRIOS DO HORTOMERCADO por JORGE ELIAS NETO

MARULHANDO Barulhos frenéticos do mundo. Parei na praia. O mar marulhou em mim.

RECOMEÇO Mergulhar no selvático. Voltar com os cabelos cheirando a mar, florestas fogão a lenha. Coberta de algas de flores fulinge. Voltar ao cotidiano transpirando vida. Sustentando mundos.

ADEUS Uma porta bateu Um cachorro latiu A última página foi virada. -Lugar comum? Você, com maestria, Disse sem o dizê-lo, Aquilo que eu já sabia.

Acostumei-me a tomar o café da manhã na janela da cozinha, ouvindo os bem-te-vis. Um retorno à infância, no Parque Moscoso, entre árvores e lagos tortuosos, ainda sem muros e assaltos. Lembro-me das idiossincrasias... Das tartarugas marinhas, esbaforidas, enormes, não entendendo a falta de sal naquelas águas paradas, cheias de marrecos e gansos. Mas o que mais me intrigava, criança ainda, desconhecedor do saudosismo dos primeiros imigrantes europeus, foi ter que substituir em meu imaginário os canários-da-terra, e sua plumagem amarelo-canarinho – isso em plena Copa de 70 –, que me acostumei a admirar na fazenda do meu pai, pelos tons pastel dos pardais. Aquela variação de cinza e marrom podia ser uma camuflagem adequada à falta de biodiversidade dos bosques e cidades europeias, mas dava um tom meio insosso

às minhas manhãs. Se bem que eles eram engraçadinhos com seus saltos e ousadias... Passaram-se longos anos e com eles sumiram os canários. Pássaro perseguido por seu canto e plumagem, preso em gaiolas (que muitas vezes eram mantidas abertas para entrada e saída dos casais que sempre retornavam para alimentar seus filhotes). Recentemente, com um certo “adestramento” de meus iguais, os canários repovoaram as cidades do interior. Isso me deu até a ideia de conversar com os órgãos responsáveis sobre se seria possível trazer alguns casais para a ilha de Vitória ... Hoje, vim mais cedo para o trabalho, parei em frente ao hortomercado e fiquei surpreso quando vi dois filhotes de canário brincando em meio à ansiedade dos carros no sinal vermelho. Fiquei preocupado: vai que alguém

atropela aqueles jovens indefesos... Então observei o macho adulto, com a sua plumagem amarelo-vivo e cabeça vermelha, sair de um fio elétrico e arrebanhar suas crias. Surpreso, vi esverdear o sinal, e tive que cruzar a avenida. Andei, talvez uns 50 metros, pensando, que mesmo com o passar do tempo, a cor amarela do canário permaneceu entranhada em mim. Mas lá estava ele, interrompendo meus devaneios, com um tom pardacento sem vida, fugindo aos saltos, da marquise do prédio que começava a ser lavada. Só que desta feita já não era um pardal e sim um homem que recolhia, torporoso, um colchão aos farrapos. Lá estava ele, o usuário de crack, para me lembrar o quão fragmentada é a esperança e que a realidade vestiu de cinza nossa cidade.


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memória

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por GEOVANA TABACHI

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MARIANE MALINI

Banhada pelo rio Piraquê-açu e pelas águas do mar, região possui bela topografia, extenso manguezal e rico sistema ambiental costeiro e marinho

ADRIANA MORI

SANTA CRUZ, PATRIMÔNIO CULTURAL E AFETIVO Antropóloga destaca o papel histórico da bucólica vila de Aracruz, que, após viver seu auge no século XIX, atravessa décadas silenciadas de investimentos públicos

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histórica Vila de Santa Cruz comemorou 457 anos em 15 de agosto. Situado a 60 km da capital Vitória, o lugar ainda apresenta traços que possibilitam reconhecer sua unicidade, sendo um patrimônio material e simbólico que merece destaque no Estado, seja por suas características naturais e culturais, ou pela representatividade política, social e econômica para a Província do Espírito Santo, nos séculos XIX e XX. Este lugar de memória apresenta região bucólica, banhada tanto pelo Rio Piraquê-açu, quanto pelas águas do mar. Possui bela topografia, extenso manguezal e rico sistema ambiental costeiro e marinho, fontes de água mineral, além de potencial gastronômico. Dos tempos áureos de sua economia portuária (1860), passando pelo memorável período da travessia de balsa, até a chegada da Base Oceanográfica da Universidade Federal do Espírito Santo (2007), já são décadas silenciadas de olhares e investimentos públicos. Santa Cruz foi fundada em 1556 como Aldeia Nova e, em 1837, pela Lei Providencial nº 5, torna-se freguesia de Nossa Senhora da Penha de Aldeia Velha. Em outras palavras, uma paróquia com status de distrito territorial durante os períodos colonial e imperial. Em 1848, é elevada à categoria de município. Anos mais tarde, pelo Decreto Estadual nº 19,

MAURÍCIO FRANÇA

de 18 de março de 1891, a vila de Santa Cruz é elevada à categoria de cidade. (Fonte: Censos Capixabas APEES) A Vila dispõe de importantes fatos para adensar os registros históricos capixabas, tendo em vista os amplos crescimento econômico e desenvolvimento político. E já foi considerada uma das comunidades mais prósperas da Província por alguns anos. Embora, por outro lado, a situação educacional do município estacionara seguindo o quadro geral da Província. Durante o Segundo Reinado (1840-1889), o desenvolvimento de Aldeia Velha se deveu principalmente ao seu porto, por onde escoavam produtos da terra, agrícolas e de pecuária, além de madeiras de lei, peixe salgado, farinha de mandioca, e as produções dos grupos indígenas. Esses produtos advinham do interior da província, havendo ainda aqueles originários da sua própria região, como açúcar e cachaça. A respeito da produção econômica, da estrutura ocupacional e da prosperidade santa-cruzense, o historiador Coutinho (2006) afirma: “Os habitantes da vila eram praticantes da pesca, fabricantes da louça de barro e cultivadores de excelentes laranjas que exportavam para outras províncias. As terras da região, consideradas bastante produtivas desde o início da colonização, são reconhecidas como de primeira e atraem lavradores,

Prédio que recebeu a visita de D. Pedro II e onde funcionou a antiga prefeitura

obra escrava representava 10,5% da população, que em 1878 era de 4.473 habitantes. Embora massacrados pelos colonizadores, forçados ao trabalho escravo e/ou convertidos à fé cristã, estes grupos contribuíram de forma ímpar para a formação e constituição do patrimônio sociocultural e político do município. Devido ao seu progresso, o município recebeu alguns estrangeiros. Dentre estes, em 1851, o empreendedor italiano Pietro Tabacchi. Já em 1874, outros imigrantes italianos trazidos por Pietro engrossaram o contingente populacional santacruzense, dando-lhe outras características. (Coutinho, 2006). Contudo, seguindo o movimento dos interesses políticos, local e regional, e os deslocamentos econômicos, os tempos de prosperidade do Núcleo Colonial de Santa Cruz, intermitentes desde 1904, duraram até o final da década de 1940. A falta de investimentos era crescente e o período de estagnação aumentava a cada ano. Devido, principalmente, à inexistência de estradas que ligassem o interior ao porto, ao desligamento e à emancipação de algumas regiões, à construção da Estrada de Ferro Vitória a Minas, além da perda do prestígio político no contexto estadual, a cidade acaba diminuindo a sua intensidade econômica e política. Ademais, a situação se agrava à medida que os italianos se deslocavam para o interior em busca de terras disponíveis, fundando novos assentamentos e diminuindo o dinamismo na região litorânea.

Isolamento ocupando seus moradores no corte de madeira, na plantação de café, da cana-de-açúcar e de cereais, que exportavam para o Rio”. (p. 216) Alguns meses após a visita do Imperador Pedro II, em 1860, a Lei Provincial nº 21 criou a Comarca de Santa Cruz, com jurisdição sobre os municípios de Reis Magos, Santa Cruz e

Linhares, com sede na Vila de Santa Cruz. Ainda que diante de uma “queda de braço” entre as lideranças agrário-políticas e alianças com autoridades da capital. Toda essa história se constituiu com a participação de seculares habitantes de distintas etnias indígenas. Enquanto a presença de mão de

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Nesse sentido, o processo de isolamento culminou, em 1948, a partir de uma Resolução da Câmara Municipal, com a remoção da sede do município para Sauaçú, atual município de Aracruz (que na língua Tupi significa Santa Cruz). Conforme Coutinho, esta mudança não foi aceita pela comunidade santa-cruzense, e a Comarca só foi efetivamente “transfe-

UMA CRÔNICA

Viver de novo as sensações emocionadas JOÃO AMORIM COUTINHO

A travessia de balsa sobre o rio Piraquê-açu funcionou até o ano de 1987

rida” após três anos, onde Santa Cruz deixa de ter a atribuição de cidade, tornando-se novamente uma vila. Como diz Baudelaire: “A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de um mortal” (apud LE GOFF, 1998). Portanto, essa breve viagem ao passado deve-se, em grande medida, à necessidade de se agir localmente às aceleradas transformações paisagísticas, ambientais, sociais, dentre outras, fruto do atual modelo de desenvolvimento econômico. E assim possibilitar a manutenção dos vínculos intergeracionais e dos encontros entre os todos os cidadãos, representativos da comunidade santa-cruzense. A preservação de um bem cultural se articula ao seu conhecimento e ao seu uso social. Inclui monumentos históricos, parques naturais, paisagens modificadas pelo homem, peças arquitetônicas e tradições orais e imateriais da cultura popular, dentre outros. Sugere, ainda, uma postura de proteção a quem possui o patrimônio,

seja ele particular ou órgão público. Desse modo, a cidade de Santa Cruz é um bem constitutivo da consciência, das negociações e disputas relacionadas à memória e às identidade sociais. E que merece ser cuidado, guardado, valorizado. Um patrimônio abandonado, que deve ser celebrado e preservado!

Aniversário de 457 anos Clube do Vinil participa da festa O movimento da gente de Santa Cruz realiza hoje mais um evento de história e memória, inspirado no aniversário de 457 anos da Vila. Será na frente do Casarão (antiga prefeitura). Com isto, visamos estimular a participação cidadã, o fortalecimento da cultura, da identidade local e da autoestima, bem como o desenvolvimento sociocultural por meio da valorização do patrimônio e da memória social. E, assim, mostrar a importância de nossa querida Santa Cruz! A festa inclui mostra fotográfica do acervo dos moradores (15h), banda de Congo (17h), exibição de vídeo (18h), lançamento de livro (19h) e apresentação do Clube Capixaba do Vinil (20h).

Memória e cheiro, lembrança de odores voláteis, fugazes e embriagantes, imagens velozes, flashback sem edição nem controle... Acordo com a voz de Geovana avisando que chegamos. Repedindo melodicamente algo como “esse visual da chegada é único, não me canso de falar, ainda mais com maré baixa e com essa intensa maresia...” É sua marca registrada que me encanta sempre que o carro desliza do asfalto para a trepidação dos paralelepípedos que anunciam Santa Cruz, a partir do trevo que desvia a estrada contornando a cidade e atravessa a ponte sobre o rio Piraquê-açu. Foi a soma dessas sensações emocionadas que me tomam em toda chegada que certamente me levaram a aceitar os desafios de empreitadas sempre adiadas, de aceitar sem temores difusos o mergulho de volta a essa espécie de útero morno e aconchegante, aspirando fundo a maresia úmida e agridoce que a suave viração sopra religiosamente, todo preguiçoso fim de tarde... Viver de novo, real e profundamente, as coisas e cheiros, fatos e histórias, registros públicos ou pessoais, as memórias guardadas ou quase perdidas da minha, da sua, das nossas vidas, da nossa Santa Cruz. O casarão abandonado que já foi sede do poder, foi Câmara, cadeia, correios, escola ou salão de imemoriais carnavais, é o símbolo arquitetônico, o ícone dessa luta pelo resgate do respeito e do orgulho de ser e/ou de sentir-se santa-cruzense.


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ficção por EDUARDO SELGA; ILUSTRAÇÃO: COLETIVO PEIXARIA

A CRIAÇÃO DO UNIVERSO FEMININO “Nas últimas semanas, algo cujo rosto lhe era invisível acionara o gatilho da maldição genética”, descreve o narrador deste conto sobre uma mulher atormentada pelo germe da insanidade

A

intuição fazia cálculos, a certeza era plena: sua vida seria tragada pelo desuniverso da loucura, um buraco negro, em... vinte e quatro horas? Se o tempo não estiver se estilhaçando, talvez. Gostava de, passeios pela própria história, ouvir as vozes de sua árvore genealógica, e foi assim que percebera: o germe da insanidade, raízes nalgumas mulheres da família, mesmo ainda não ensandecendo ninguém que se saiba, continuava latente nela e noutras de sua linhagem. Desde a tataravó, mulher que, abandonada pelos masculinos, pintara traduções de si mesma na superfície de vários espelhos espraiados pela casa, e com as imagens dialogava sozinha. Figurativa. Reflexos similares a esse comportamento se derramaram entre as avós, mãe, alguma tia. Presentemente, efeito do tempo, o vírus estava maduro. Pronto para eclodir e escalar a árvore rumo a um dos frutos mais promissores do tronco - ela mesma -. Tanto que nas últimas semanas algo cujo rosto lhe era invisível acionara o gatilho da maldição genética. Enlouqueceria. Antes que o inevitável surpreendesse sua palidez nesta vida decidiu pôr para fora os sentimentos mais sem palavras: necessário colorir toda a dimensão menor de seu universo - o quarto - com os mesmos tons que lhe impressionaram o espírito, quando menina, as descrições alucinadas de sua amiga imaginária, uma velhinha, professora de astronomia, em cujo rosto e mãos havia sempre nódoas de tinta. Mais ainda: por questões de coerência, quando colorisse seu mundo se transmutaria em estrela, aliterativamente. Para tanto buscou a mais antiga tataravó de sua história, existente apenas por autorretratos a carvão no baú e narrativas que nunca couberam nele. Pretendia encontrá-la num canto da casa para que ela pudesse lhe ensinar seu método mais eficiente de ser menos infeliz. A ancestral estava arquetípica num dos escuros da lembrança, limpando cerdas dos pincéis, diluindo tintas em água. Mesmo não sendo uma velha, ainda, recitava a prosa mais poética que conhecia da Via Láctea. De costas, percebera a visita da futura tataraneta.

Não obstante o tempo, entre ambas, um hiato. Sabia exatamente qual a ansiedade dela, eclipse na penumbra. - Nem pergunte, moça. Nem mesmo diga o meu nome - não quero me ver obrigada a virar o rosto para você -. Entretanto, se a proximidade da doidice estiver mesmo incontrolável, desencave a galáxia da família. Ela jaz aqui, sob meus pés. Eu a sepultei. Ou melhor: sepultarei, pois você está me vendo sem a velhice. Esconda-a sob a saia, que ninguém testemunhe. Feito isso... Já havia feito. Desnecessário ouvir o resto: de algum modo as palavras que viriam após as reticências... velhas, conhecidas. Por isso - alguma hesitação ao abandonar a cena - largou-a sozinha, falando, e se conduziu labiríntica pelos meandros da casa cheia de espelhos em cujos corpos havia rostos pintados a mão, até que, decorrido um tempo sem relógio, reencontrou seu quarto. Entre as pernas, milhões de cores se mo-

vendo, seres vivos. Ou não seres? Descascou-se, tirou as roupas até a intimidade, encolheu e curvou o corpo como quem se interroga. Agachada, ficou suspensa. Esperando que os matizes escorressem, menstruação colorida, e formassem uma lagoa para que, no espelho d’água, pudesse pinçar os ingredientes desejados e com eles, alquimista num súbito, rascunhar seu universo no interior de onde seria estrela. Não que o Deus arquiteto fosse, dentro dela, muro contra a loucura iminente: era urgência representar-se pictórica, numa grande alegoria a dialogar com as muitas mulheres semiloucas de sua família, pretéritos e presente, elas que trouxeram e trazem essa mesmíssima náusea. Gotas, o colorido escorreu. Olhou muito fixamente para aquela confusão harmônica, descobriu-se diante de uma metáfora do caos original. Enxergava os próprios traços no reflexo,

mas as cores os distorciam. Não estava exata, e nem era isso o pretendido. Antes, incluir-se naquele universo em construção. Estrategicamente, subjetivou-se e recombinou nuances num tubo de ensaio, sorriu ao perceber: em suas mãos, sem tirar nem pôr, uma galáxia. Tão latente quanto sua loucura. A Via Láctea? Apenas sua amiga imaginária da infância poderia dizê-lo. Mas se amiudasse os olhos o sopro da criação seria audível, o despeito entre satélites e seus planetas, a gritaria feliz dos cometas iguais a crianças correndo no parque. A perícia, obtusa, ao observar na parede tantos corpos celestes pintados, não verá relação com as nódoas de sangue sujando as Três Marias, embora resultem das muitas vezes em que ela se arremessou contra o universo, tentativa de integrar-se a ele. Camaleonicamente, sem cadáver no quarto é impossível percebê-lo entre as estrelas.


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