PensarCompleto 010912

Page 1

Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

www.agazeta.com.br

DIVULGAÇÃO

Entrelinhas

VILMA ARÊAS REGISTRA SUA MEMÓRIA AFETIVA NOS CONTOS DE “VENTO SUL”. Página 3

Música

UMA CRÍTICA DE “SONGS FOR THE DEAF”, DO QUEENS OF THE STONE AGE, DEZ ANOS DEPOIS.

“2 filhos de Francisco” (2005), de Breno Silveira: sucesso de bilheteria representou a consolidação da indústria cinematográfica no país

Página 5

Ensaio

ACADÊMICA IDENTIFICA O PAPEL DA ARTE, COM BASE NA PSICANÁLISE E NA FILOSOFIA. Páginas 10 e 11

Perfil

BIÓGRAFA DESTACA A TRAJETÓRIA DE LUIZ BUAIZ NA MEDICINA E NA POLÍTICA. Página 12

“O céu sobre os ombros”, do mineiro Sérgio Borges, vencedor do Festival de Brasília de 2010: Novíssimo Cinema Brasileiro

Cinema em estudo LIVROS TRAZEM OLHAR CRÍTICO SOBRE A PRODUÇÃO NACIONAL CONTEMPORÂNEA

Págs. 6, 7 e 8


2

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

quem pensa

marque na agenda prateleira Campus

Vera Márcia Soares de Toledo é professora de Literatura e História da Faculdade Saberes. veramarciast@terra.com.br

Paulo Gois Bastos é jornalista iririu! pgoisb@yahoo.com.br

Leandro Reis é estudante de Jornalismo e está escrevendo um livro sobre rock’n’roll. leandrosr.blogspot.com

Erly Vieira Jr. é cineasta, escritor e professor de Comunicação Social da Ufes. erlyvieirajr@hotmail.com

Nayara Lima é escritora. lima.nayara@globo.com

Mário Bonella é jornalista, apresentador da TV Gazeta e âncora da Rádio CBN. mbonella@redegazeta.com.br

Paulo DePaula é diretor do Teatro da Barra/ES, escritor e membro da Academia de Letras Humberto de Campos.

Rita de Cássia Maia é mestre em Educação e doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ. ritadecassia0010@gmail.com

Galeria recebe projetos de arte contemporânea Vai até 16 de setembro o prazo para inscrições de projetos de trabalhos artísticos para a exposição “Transpondo o Olhar”, a ser realizada pela Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes. Ficha de inscrição disponível no site www.seminariopaisagem.com.br/.

Fotografias Mostra traz imagens do Espírito Santo rural

A exposição itinerante “Francisco Seibel: um fotógrafo rural do Espírito Santo” será aberta na próxima terça-feira, às 19h, na Sala Levino Fanzeres, anexo à Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim. A curadoria é de Paulo de Barros e o projeto expográfico de Attílio Colnago.

04

de setembro

Parque Moscoso é tema de documentário

O DVD “Parque Moscoso: um parque centenário”, de Pedro J. Nunes, comemora o aniversário de 100 anos da mais antiga área de lazer de Vitória. O lançamento será na próxima terça, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual, em Vitória. Mais informações: www. tertuliacapixaba.com.br.

O autor cita desde Hegel, Kant e Shakespeare até artistas e esportistas da atualidade a fim de mostrar como o conceito de honra foi central para pôr fim a práticas mortais e abomináveis e impulsionar revoluções morais no passado. 256 páginas. Companhia das Letras. R$ 39,50

Arte e Humanismo André Chastel

Estudo do historiador francês sobre Lourenço de Médici (1449-92), o diplomata, escritor e mecenas que tornou possível o desenvolvimento das artes em Florença, na pintura, escultura, poesia e filosofia, com o incentivo a artistas como Botticelli e Michelangelo. 768 páginas. Cosac Naify. R$ 179

A Máquina da Lama Histórias da Itália de Hoje Roberto Saviano

O jornalista e escritor italiano leva para o livro o conteúdo do programa de televisão em que revela a corrupção e as injustiças da Itália contemporânea, com destaque para os negócios da máfia calabresa em Milão. 160 páginas. Companhia das Letras. R$ 29,50

06

de setembro

Professor de Stanford faz palestra na Ufes Sandra Medeiros é jornalista, designer, mestra em design, escritora e professora da Ufes. sandra.med@uol.com.br

O Código de Honra Como Ocorrem as Revoluções Morais Kwame Anthony Appiah

Um dos maiores críticos literários contemporâneos, Hans Ulrich Gumbrecht vai falar sobre o tema “Depois de 1945: latência como origem do presente”, quinta-feira, às 15h, no Auditório do IC-4.

O Horror em Red Hook H.P. Lovecraft

A edição pocket reúne três contos que integram o universo sombrio do autor americano (1890-1937), conhecido como o inventor da moderna tradição da literatura de horror. 64 páginas. L&PM Editores. R$ 5

OLHARES MÚLTIPLOS

José Roberto Santos Neves

Qual é a identidade do cinema nacional? As comédias de grande bilheteria produzidas pela Globo Filmes ou as produções de baixíssimo orçamento da nova geração? Os longas inspirados na realidade das favelas ou as experiências baseadas na coletividade e na desconstrução de estereótipos, em alta nos festivais? Essas são algumas das questões levantadas por dois livros que abordam a indústria cinematográfica do país. O cineasta, escritor e professor de Comunicação Social da Ufes Erly Vieira Jr. leu “Cinema Brasileiro no Século 21”, de Franthiesco Ballerini, e “Cinema de garagem”, de Dellani Lima

Pensar na web

e Marcelo Ikeda, e apresenta aos leitores uma visão crítica das duas publicações. Segundo ele, as obras trazem abordagens diferentes, porém complementares: enquanto o livro de Ballerini cobre o período da Retomada, com ênfase para filmes de grande aceitação popular (como “O Auto da Compadecida” e “2 Filhos de Francisco”), Lima e Ikeda pesquisam o chamado Novíssimo Cinema Brasileiro, marcado por trabalhos autorais de jovens realizadores. Em comum a ambos, o mérito de explorar vertentes de um cinema em permanente construção. Bom sábado, boa leitura, com Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Trailers de filmes nacionais contemporâneos, gravações do Queens of the Stone Age, vídeo da exposição de Filipe Borba e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


3

entrelinhas

Pensar

por VERA MÁRCIA SOARES DE TOLEDO

A MEMÓRIA AFETIVA DE VILMA ARÊAS

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

VENTO SUL: FICÇÕES Vilma Arêas. Companhia das Letras. 110 páginas. 2011. Quanto: R$ 30

V

ilma Arêas, escritora e professora de Literatura da Universidade de Campinas, é fluminense, de Campos, e vive em São Paulo. Possui uma carreira premiada e consolidada nas letras nacionais como escritora de narrativas e ensaios. Recebeu o “Jabuti” duas vezes pelas obras: “Aos trancos e relâmpagos” (1988) e “A terceira perna” (1992). Recebeu também o prêmio Alejandro José Cabassa por “Trouxa frouxa” (2002) e o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) pelo ensaio “Clarice Lispector com a ponta dos dedos” (2005). Seu livro mais recente, “Vento Sul”, é composto de 20 contos que a autora denomina “ficções”, divididos em quatro blocos de temáticas afins. Todas essas “ficções” são marcadas, fundamentalmente, por uma memória afetiva e inquietante que indaga e busca compreender os “flashes” de lembranças passadas. Para Vilma, “viver é guardar”, recolher e registrar tudo o que, aqui e ali, vai passando por suas retinas. Ela vai “guardando”, o tempo todo, frases, posturas, aforismos, pessoas, gestos, paisagens e momentos. Ela disse, em entrevista recente: “Alzheimer é o meu pavor. E tudo conspira a favor do esquecimento. A civilização hoje é contra a memória. As máquinas estão tomando o lugar, as pessoas confiam tudo ao Google.” O crítico e amigo Ronaldo Bressane já afirmou: “Vilma não esquece nunca...” Seus textos são claros, objetivos, quase ásperos, às vezes dão a impressão de um relatório, em tudo buscando a lembrança vívida e crua. Sendo uma voz feminina, não obstante, possui uma prosa que se distancia do clichê do “texto feminino”, pois não se vale do melífluo e do fluido. Na composição de “Vento Sul” notam-se três grandes e sempre presentes características: a influência de Clarice Lispector, a memória da terra natal e os fios de lembranças reunidas, formando um tecido que envolve as narrativas. Em “Thereza”, conto da primeira parte (“Matrizes”), há muito de sua avó que, segundo a autora, estranhava o fato de ser necessário amar para se casar ou se manter casada. “Persistência da Memória”, na segunda parte (“Contracanto”), fala de uma personagem que luta desesperadamente para manter vivas memórias que teimavam em ir se apagando. Retoma, por isso, incessantemente, diversos hábitos e rituais de passagem, na lembrança,

Nos contos de “Vento Sul”, escritora recolhe e registra frases, posturas, aforismos, pessoas, gestos, paisagens e momentos

para não esquecer o passado. No conto “Fulana”, na terceira parte (“Planos Paralelos”), sua dívida com a influência de Clarice Lispector se faz sentir mais de perto, como por exemplo: nas frases indagativas, no assombro diante das insignificâncias do cotidiano, no significado oculto que salta dos pequenos gestos. Em “Paixão de Lia”, na quarta e

última parte (“Garoa, sai dos meus olhos”), há tanto uma influência da prosa curta de Clarice quanto elementos da memória que se cruzam para compor a história da senhorinha Lia, de noventa anos, que vive como estorvo e morre abandonada pelo filho e o resto da família. Além dos elementos desencadeadores

TRECHO “Na parada de Bangu, o calor soprava o céu que tremia feito um pano. Ele entrou e ficou encostado na porta rebentada. O vento agitava a camisa azul, ele mesmo azul cor de carvão, retinto, opaco, a luz batia e escorria, brilhava nos olhos. O homem da foto. Mas seria o homem da foto? Qualquer

repetição faz cismar. Mas a verdade é que se eu não tivesse conservado a imagem na memória, não ficaria assim. Não adianta perguntar pelos motivos. Eu sei do que se trata. Mas se você perguntar do que se trata, não vou saber explicar.” (“Linhas e trilhos”, p. 30)

que moldam suas narrativas, Vilma também não esquece um tema que é constante em suas obras: o vento sul. Nesta obra, ele não só perpassa todos os textos como também a nomeia. A presença deste elemento tão presente e significativo nos remete às produções de outro querido e inesquecível escritor que foi Amylton de Almeida. Também ele em “A Passagem do Século” (1977), “Blissful Agony” (1988) e “Autobiografia de Hermínia Maria” (1994) usa o vento (ou a “brisa”) como elemento recorrente em suas narrativas. É o vento sul, tanto em Vilma como em Amylton, que traz a lembrança do passado, os nomes que não se esquecem, as palavras que ecoam e os gestos que deixam marcas. Muito bom ler Vilma Arêas em narrativas tão diretas e evocativas. Também é muito bom poder, através de seus textos, recordar o saudoso Amylton e suas narrativas onde o vento sopra amargor e melancolia, mas também doçura e serenidade.


4

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

visuais por PAULO GOIS BASTOS

AS FRONTEIRAS DA ARTE E DA PROPRIEDADE CRIATIVA

COSMO COMMONS Exposição de Filipe Borba. Até 23 de setembro, no Bar Cochicho da Penha, Rua da Lama, Jardim da Penha, Vitória. Entrada franca. Mais informações: cosmocommons.wordpress.com

Na exposição “Cosmo Commons”, em cartaz no bar Cochicho da Penha, Filipe Borba aposta na lógica do compartilhamento como caminho para repercussão e veiculação do trabalho artístico

MARIANA ETIELY MORAES

D

ono de uma trajetória ativista e de uma postura iconoclasta diante da arte institucionalizada, Filipe Borba realiza criações que são cópias de seus próprios trabalhos. Em “Cosmo Commons”, exposição recentemente aberta no bar Cochicho da Penha – tradicional espaço boêmio da Rua da Lama –, o artista “remixou” uma série de cerca de 60 desenhos que foram concebidos entre 2005 e 2006 e denominados “Fractais Cosmosxerográficos”. São imagens que já fizeram parte de outras obras anteriores do artista e que agora são usadas para tencionar os limites da autoridade e da propriedade criativa. Nos trabalhos expostos, os desenhos ocupam diversos suportes e também estão disponíveis na internet sob licença Creative Commons*, acessíveis para download, reprodução e intervenção – exceto para fins comerciais. Trata-se de uma aposta na lógica do compartilhamento como caminho para repercussão e veiculação do trabalho artístico. Filipe espelha-se em experiências que acontecem no atual mundo da música, onde a disponibilização gratuita de conteúdos tem possibilitado que muitos artistas mobilizem público para suas criações. A autoria e a propriedade criativa são categorias fundamentais para o funcionamento do circuito institucionalizado e comercial de arte, muito bem representados pelas galerias e marchands. Filipe abre mão de empreender uma trajetória sob essa lógica. Ele faz cópias e recombinações de suas próprias criações – um desbunde para com os limites da originalidade e com a aura do objeto artístico. Dessa forma, a dimensão ético-política dá sentido e está diretamente imbricada aos aspectos estéticos das obras desse jovem artista. Ao implodir com as convencionais noções de propriedade e de uso criativo, ele não quer extinguir o mercado, mas sim criar brechas e instituir novas formas de remuneração para a atividade artística – uma atualização do “plágio como verdadeiro método artístico” proposto pelos Neoístas**. As obras que compõem “Cosmo Commons” misturam as técnicas de desenho, pintura e colagem. Quem for ao Cochicho da Penha ver os trabalhos irá encontrar reproduções de desenhos inteiros, pe-

PERFIL FILIPE BORBA Nascido em Resplendor (MG), tem 28 anos e mora no Espírito Santo desde 1999. É graduado em Artes Plásticas pela Ufes e participou de diversas exposições coletivas, entre elas a “1 + 7 Arte Contemporânea no Espírito Santo”, no Museu da Vale. Faz parte do coletivo Bolor e colabora com outros coletivos e movimentos locais como a Bicicletada e a Marcha da Maconha. Interage com diversas linguagens artísticas. Recentemente, participou de uma residência artística na NUVEM – Estação Rural de Arte e tecnologia (www.nuvem.tk) e, atualmente, está na França, participando de outra residência.

A psicodelia, o punk, os quadrinhos, os fractais e o pop são algumas das referências presentes nos desenhos de Filipe Borba

daços de desenhos colados ou modificados. São ampliações fotográficas – algumas maiores que os desenhos originais –, colagens digitais impressas e colagens manuais feitas com fotocópias. Por meio da disponibilização do arquivo digital com as imagens na internet, o suporte transcende a materialidade e permite infinitas recombinações e usos criativos posteriores. Na abertura da exposição, na noite do último dia 23 de julho, os desenhos também foram projetados em tecido fixado no canteiro central da Rua da Lama. Naqueles instantes, as imagens ocuparam o entorno do bar, tendo os transeuntes, os veículos e a fluidez da rua como suportes. Cicloativista e grafiteiro, Borba tem a rua, espaço público instável e precário por excelência, como um território que lhe é denso de afeto e íntimo de sua criação.

Sobre os desenhos

Em uma primeira olhada, os desenhos de Filipe Borba parecem querer vazar dos seus suportes para escorrer pelas diversas superfícies, como fluído vivo e vibrante, proporcionando uma sensação de euforia

e desconcerto diante da saturação de detalhes e disformidade alegre. É possível remetermos à “estrutura” de uma estampa, a um excesso, a uma repetição imprecisa. Nas imagens, há predominância da forma e dos corpos humanos, há pedaços e partes humanas, são personagens nus que estão fundidos e incrustados uns nos outros. Não há qualquer referência segura que permita estabelecer medidas de proporcionalidade entre os personagens e objetos desenhados, tampouco há qualquer eixo de orientação que estabeleça em qual sentido ou direção a imagem deve ser lida. O artista não fornece indicações que restrinjam as possibilidades de recepção da cena representada ou uma tomada de posição em relação à imagem. Os desenhos nos demandam, de fato, uma desorientação e alheamento a qualquer referência realista. Trata-se de um figurativo próximo dos quadrinhos, porém borrado para dar lugar a uma espécie de arabesco pop, debochado e, em alguns momentos, angustiante. Essa organicidade permite que as imagens atuem como módulos, ou seja, cada uma dessas unidades pictóricas, que já são prenhes de informações, pode ser encaixada, recombinada ou justaposta saturando ainda mais a sua capacidade informativa - um cosmo em expansão. * Creative Commons – São licenças que abrangem um espectro de possibilidades entre a proibição total dos usos sobre uma obra – todos os direitos reservados – e o domínio público – nenhum direito reservado. Essas licenças ajudam autores de obras intelectuais e/ou artísticas a terem o seu direito autoral respeitado ao mesmo tempo em que é permitido certo uso de suas obras. ** Neoísmo – Vanguarda artística dos anos 1970, tendo como influência o Futurismo, o Dadaísmo, o Situacionismo e o Punk. Posicionavam-se como uma filosofia prática que, tanto na forma quanto no conteúdo, buscavam fazer uma crítica à individualidade, às artes e ao capitalismo. Os neoístas atuavam para romper com o conceito de autoria, eram contrários ao copyright e entusiastas do plágio positivo.


5

falando de música

Pensar

por LEANDRO REIS

DO DESERTO VIEMOS E A ELE VOLTAMOS

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

SONGS FOR THE DEAF Queens of the Stone Age. Universal. 14 faixas. Ano de lançamento: 2002. Quanto: R$ 19,90

O

cenário é o deserto californiano e o ruído é o da porta de um carro recém-fechada com força. Na cabeça, uma leve ressaca e a nicotina, bem-vinda nos dias difíceis e nos de festa. Cercadas pelo porta-luvas ou soterradas pelo banco do carona, substâncias, digamos, imorais. A mão direita liga o rádio e ouve um estranho locutor anunciar a Klon Radio, “a estação que mais soa como todo mundo do que qualquer outra”. Durante o movimento que buscaria o volante, o braço para no ar, logo acima da marcha, e segue as primeiras faíscas da bateria de Dave Grohl. A estrada escolhe a sua trilha sonora.

O guitarrista e vocalista Josh Homme e o baixista Nick Oliveri, as mentes criativas do álbum “Songs for the Deaf”, do Queens of the Stone Age: uma década de violência e críticas positivas

Onde estamos

Era 2002 e Cobain já tinha estourado os miolos há muito tempo. No mesmo ano, Layne Staley, do Alice in Chains, perdia a batalha contra a seringa e deixava o mundo ainda mais estranho. O rock respirava a ressaca do grunge e vomitava Nickelback e Creed. Do outro lado, bandinhas como Strokes construíam uma cena de guitarrinhas domesticadas e cabelos metodicamente desarrumados. O Radiohead, com “Kid A” e “Amnesiac”, transcendia o gênero e largava um pouco as guitarras. Existia vida inteligente com Jack White e mais algumas cabeças a fim de correr riscos, mas era pouco. Faltava, na verdade, mais testosterona. A ajuda veio, e de um lugar inóspito e primitivo: o deserto. “Songs for the Deaf”, do Queens of the Stone Age, é um murro nos tímpanos. Uma injeção de testosterona. O álbum completou uma década de críticas positivas e tentativas de homicídio na última segunda-feira, dia 27.

Identidade

O Queens of the Stone Age surgiu das cinzas do Kyuss, ícone do stoner rock dissolvido em 1995. Após uma turnê com o Screaming Trees, Josh Homme começou as Desert Sessions, projeto em que reunia músicos no deserto californiano para trabalhar sons mais experimentais. Em 1997, com Alfredo Hernandez, seu ex-companheiro de Kyuss, Homme volta ao estúdio para começar o que seria o primeiro álbum do Queens. Depois da boa recepção do disco homônimo, começa a se formar a iden-

tidade musical do QOTSA, que se configuraria, praticamente, numa Desert Sessions itinerante. Para o segundo álbum, “Rated R”, Josh Homme trouxe o baixista mau elemento Nick Oliveri, também ex-companheiro de Kyuss, e mais um monte de gente pacífica, entre eles Mark Lanegan e Rob Halford – sim, aquele do Judas Priest. Desse disco, ficaram Oliveri e Lanegan para o “Songs for the Deaf”. Ao lado deles e de Josh Homme, chegaram Dave Grohl e Troy Van Leeuwen.

Faixas

As batidas de Grohl iniciam a trinca homicida do “Songs for the Deaf”: “You Think I Ain't Worth a Dollar, But I Feel Like a Millionaire” tem Oliveri nos vocais gritando algo sobre um touro morto e bebidas. Mas o que se destaca nessa música é a subversão de vários clichês do hard rock – riffs matadores, velocidade em queda livre, guitarras violentas – em destruição calculada. “No One Knows”, a “Smells Like Teen

Spirit” do Queens, é um groove embriagado que pode deixar a sua namorada um pouco, digamos, animada com a voz de Josh Homme. Na mudança de estação, o ruivo canta um refrão profético em “First it Giveth”, e Grohl faz as honras na cozinha com uma bateria de dois bumbos. E essas são apenas as três primeiras. Mark Lanegan, que vinha de sua obra-prima “Field Songs” (2001), empresta seu vocal tóxico a “A Song for the Dead”, quase homônima do álbum. “The Sky is Fallin’” é uma enxurrada de versos de amargura, mas sem lamentação barata. A mão direita sai do volante momentaneamente para tocar “Six Shooter”, que retoma a insanidade de “Millionaire”, com Oliveri cantando o ódio. Seguindo: “Hanging Tree” volta com Lanegan nos vocais e é marcada por uma ótima linha de baixo. Como nem só de porrada vive o rock’n’roll, “Go With the Flow”, “Gonna Leave You” e “Another Love Song” são da lista das canções que colam no ouvido e, se a

MTV ainda tocasse música, integrariam a programação da emissora. Homme retorna em “Do It Again” para tentar – e conseguir – roubar sua namorada mais uma vez. “A Song for the Deaf” é a canção mais sombria do álbum, que precede a também maldita “Mosquito Song” - um arranjo incrível de cordas de vários colaboradores. Não é a última, mas “God is in the Radio” é a canção que resume todo o álbum. Além do perfeito casamento entre instrumentação e versos, “God” faz uma autorreferência: “Eu sei que Deus está no rádio/Checando as estações”. E Ele, como o Diabo, propaga sua publicidade: “Você volte outro dia/ E não faça nada de errado”. Os solos, longe de domesticados, mas concisos, também marcam “God is in the Radio” em catarse. Como em todo álbum, não há masturbação de guitarras nem ostentação exagerada. Elas seguem o ritmo e as ondas áridas do rádio. São criminosas, é verdade, mas de seus crimes estamos agradecidos. Chove no deserto.


6

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

7

audiovisual

Pensar

por ERLY VIEIRA JR.

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

Obras exploram vertentes contemporâneas em que ainda há pouca bibliografia, incluindo os sucessos de bilheteria com a chancela da Globo Filmes e a safra jovem que brilha nos festivais

PÁGINAS DE UM FILME EM CONSTRUÇÃO

LIVROS INVESTIGAM A IDENTIDADE E AS TEMÁTICAS DO CINEMA BRASILEIRO, DA RETOMADA ÀS PRODUÇÕES ATUAIS

C

omo definir o cinema que se faz no Brasil hoje? Quais suas principais características e preocupações estéticas, temáticas, mercadológicas? Com quais públicos ele dialoga? Que tipo de imagens do nosso país ele produz ou questiona? Dois livros recém-lançados tentam dar contribuições para esse debate, numa tentativa de mapear parte da produção audiovisual nacional dos últimos 12 anos: “Cinema brasileiro no século 21” (304 páginas, Summus Editorial, 2012), de Franthiesco Ballerini, e “Cinema de garagem” (178 páginas, Suburbana Co., 2011), de Dellani Lima e Marcelo Ikeda. São duas abordagens diferentes, porém complementares: o livro de Ballerini, por exemplo, traz um ponto de vista mais afinado com nossa (re)nascente indústria cinematográfica, tentando discutir a produção que obteve mais visibilidade em termos de bilheteria. Já o de Lima e Ikeda se propõe a ser um inventário sobre o chamado Novíssimo Cinema Brasileiro, marcado por produções radicalmente autorais de jovens realizadores que iniciaram suas carreiras no curta-metragem a partir do final dos anos 90, fazendo a

passagem para o longa-metragem na segunda metade da década passada. Ambos os livros destacam-se por explorar vertentes da produção contemporânea brasileira em que ainda há pouca ou quase nenhuma bibliografia, uma vez que a maioria dos estudos sobre os filmes nacionais mais recentes concentra-se numa parcela da produção autoral já consagrada no circuito dos grandes festivais internacionais, e realizada por cineastas surgidos durante o período conhecido como Retomada do cinema brasileiro. O cinema da Retomada compreende um momento histórico importante, uma vez que ele reconfigura e reinventa uma produção que, embora tivesse chegado a deter um terço do número de ingressos vendidos no país em final dos anos 70, sofrera um duro golpe durante o final dos 80 e início dos 90, com a extinção da Embrafilme, o aumento da audiência televisiva e a política de não-incentivo estatal à cultura praticada pelo governo Collor. É a partir de 1993 que essa produção se reinicia, a princípio timidamente, tendo à frente alguns realizadores veteranos, mas, principalmente, um grande contingente de estreantes, revelados

gumas mais comerciais, outras mais autorais – o que garantiu o retorno do cinema nacional tanto aos grandes festivais, como Cannes, Berlim e Veneza, quanto nas indicações ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

O Brasil tem, proporcionalmente, o maior circuito de salas de cinema Globo Filmes O marco final da Retomada situa-se destinadas aos entre os anos de 2000, com a consolidação da Globo Filmes no mercado, ‘filmes de arte’ no com o estrondoso sucesso de “O auto da compadecida”, de Guel Arraes, e 2002, mundo” com o divisor de águas “Cidade de —

ERLY VIEIRA JR. Cineasta, escritor e professor de Comunicação Social

durante a chamada “primavera dos curtas”, no final dos anos 80. “Carlota Joaquina”, de Carla Camuratti, realizado em 1995, é o primeiro grande sucesso dessa leva, que também incluiria filmes de nomes como Jorge Furtado, Walter Salles, Lírio Ferreira, Fernando Meirelles. O cinema da Retomada foi marcado por uma diversidade de linguagens e propostas, al-

Deus”, de Fernando Meirelles, misto de filme autoral e blockbuster comercial, responsável por levar, sozinho, mais de três milhões de espectadores aos cinemas. A partir daí, fala-se num período “pós-retomada”, em que vemos quatro grandes linhas se desenvolvendo até os dias de hoje: a consolidação de uma indústria cinematográfica, com campeões de bilheteria como “2 filhos de Francisco”, “Tropa de elite 1” e “Tropa de elite 2” e “Se eu fosse você”; um cinema mais autoral, habitual frequentador do circuito de grandes festivais, com filmes como “O céu de Suely” e “Amarelo manga”; uma grande

DIVULGAÇÃO

Mateus Nachtergaele e Selton Mello em “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes: um dos marcos finais da Retomada

visibilidade para os documentários, tanto nas salas de cinema quanto nas TVs por assinatura; e o Novíssimo – uma produção jovem, mais experimental e radical, em filmes de baixíssimo orçamento e que têm tomado de assalto as premiações de festivais nacionais nos últimos anos. Desta última vertente, destacam-se filmes como “A alegria” (2010), dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande; “Estrada para Ythaca” (vencedor de Tiradentes em 2010, dos cearenses Pedro Diógenes, Guto Parente, e dos irmãos Ricardo e Luiz Pretti); e “O céu sobre os ombros” (do mineiro Sérgio Borges, vencedor do festival de Brasília nesse mesmo ano). Se ambos os livros aqui citados debruçam-se sobre esse cinema pós-retomada, ainda que sob enfoques radicalmente distintos, cabe destacar que ambos não se restringem apenas aos comentários de seus autores, buscando dialogar também com as falas de realizadores, produtores, exibidores e críticos. O livro de Ballerini traz, ao final de cada capítulo, uma entrevista com algum grande nome da indústria cinematográfica brasileira, sejam diretores (Fernando Meirelles), atores (Sel-

ton Mello, Wagner Moura), produtores (Diler Trindade, dos filmes da Xuxa e Renato Aragão, e Carlos Eduardo Rodrigues, da Globo Filmes), roteiristas (Fernando Bonassi) e até mesmo o presidente da rede Cinemark, Valmir Fernandes, bem como o diretor-presidente da Ancine, órgão estatal de incentivo à produção audiovisual no Brasil, Manoel Rangel.

Sites e blogs

Já o livro “Cinema de garagem” inclui também textos críticos publicados anteriormente em sites e blogs sobre os filmes que analisa, bem como textos extraídos de catálogos e depoimentos de cineastas da geração do Novíssimo, como Gustavo Spolidoro, Cao Guimarães e Helvécio Martins Jr. Ballerini estrutura seu livro em 12 capítulos, um de contextualização histórica e outros 11 tentando mapear os diversos elos da ainda nascente cadeia cinematográfica industrial brasileira: produção, direção, roteiro, distribuição, exibição, legislação, atuação, mercado internacional, espectador, ensino de cinema e produção de documentários. Em todos eles, o olhar valoriza os

aspectos mercadológicos do nosso cinema, chegando a apostar que o século 21 será o dos produtores – e dando voz principalmente aos agentes desse cinema mais comercial para embasar suas afirmações. Todavia, nem sempre esse ponto de vista traz análises férteis – por exemplo, no capítulo sobre direção, que ensaia uma discussão estética sobre essa produção, o discurso concentra-se apenas numa vertente, a dos filmes centrados em favelas e periferias, para retomar uma discussão sobre o polêmico termo “cosmética da fome” (cunhado em 2002, por Ivana Bentes, na época do lançamento de “Cidade de Deus”) e a construção de estereótipos publicitários a partir da realidade social brasileira, que já se supunha esgotada há quase dez anos. Assim como resgata sem necessidade questões tecnicamente superadas há mais de duas décadas, como a do problema do som nos filmes nacionais ou a profissionalização das equipes técnicas, em lugar de talvez aprofundar mais a análise de vertentes promissoras da produção cinematográfica nacional, como os filmes religiosos/espíritas, os sertanejos ou as comédias estreladas por grandes astros televisivos – obras frequentemente mencionadas durante

o livro de forma passageira, mas que mereciam um enfoque maior. Por outro lado, o livro traz informações bastante esclarecedoras sobre certos aspectos da coprodução entre empresas independentes e a Globo Filmes. Por exemplo, derruba o mito da gratuidade da divulgação desses filmes nos programas da Rede Globo – embora tal parceria renda um desconto de, na maioria das vezes, 80% do valor, ainda assim os custos são muito altos. Exemplo disso é “2 Filhos de Francisco”, que destinou um milhão de reais (44% de sua verba de divulgação) para anunciar na emissora, valor que custaria sete vezes mais se ele não fosse uma coprodução. Outra informação bastante reveladora é a de que o Brasil tem, proporcionalmente, o maior circuito de salas de cinema destinadas aos “filmes de arte” no mundo - 10% do total, sendo que São Paulo tem o maior parque exibidor do gênero no planeta. Todavia, esse número de salas ainda é insuficiente para escoar a crescente produção nacional, a ponto de tantos filmes nacionais ficarem pouquíssimo tempo em cartaz, mesmo nos grandes centros. Talvez por isso esse dado esteja intimamente ligado à dificuldade dos novos nomes em se firmar no mercado, uma vez que apenas 30% dos cineastas que estrearam no longa-metragem entre 1995 e 2005 chegaram a realizar um segundo filme.

>

CINEMA BRASILEIRO NO SÉCULO 21 Reflexões de cineastas, produtores, distribuidores, exibidores, artistas, críticos e legisladores sobre os rumos da cinematografia nacional Franthiesco Ballerini. Summus Editorial, 2012. 304 páginas. Quanto: R$ 53

CINEMA DE GARAGEM Um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI Dellani Lima e Marcelo Ikeda. Suburbana Co., 2011. 178 páginas. Quanto: R$ 10


8

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

+ artigo de capa por ERLY VIEIRA JR.

OS DESAFIOS DO CINEMA NOVÍSSIMO Estudo provoca o leitor a lançar outros olhares sobre a produção contemporânea, marcada pela coletividade, experiências radicais, desconstrução de estereótipos e foco na juventude

O

s capítulos do livro “Cinema de garagem” sobre legislação, exibição e distribuição também são muito bem elaborados, e a obra conta ainda com uma discussão sobre como a crítica internacional tem visto o cinema brasileiro, bem como um olhar das grandes produtoras para o circuito de festivais – ainda que o livro o tempo todo incorra em certos julgamentos bastante parciais, como o de reduzir boa parte da produção autoral nacional a filmes que “falem de experiências pessoais dos cineastas”, um julgamento bastante ingênuo e que ignora as especificidades da parcela de público que consome tais filmes. Em nenhum momento também se questiona o gigantesco gargalo que afasta boa parte dos filmes brasileiros das plateias – as condições de distribuição e exibição dos filmes, visto que poucos deles possuem condições financeiras de competir diretamente com os blockbusters internacionais que estreiam em centenas de salas num único final de semana. Talvez por isso o livro de Dellani Lima e Marcelo Ikeda funcione como um contraponto bem rico a essa discussão. “Cinema de garagem” concentra-se num tipo de cinema que se apodera da estética do DIY (do it yourself ou “faça você mesmo”) para levantar os aspectos estéticos dessa produção que pretende lançar o espectador em experiências mais radicais, explorando os limites da linguagem audiovisual e desconstruindo estereótipos sobre as imagens que nosso cinema produz sobre o país e seus habitantes. É como se continuássemos aqui na vereda iniciada pelo Cinema Novo e (mais ainda) pelo Cinema Marginal dos anos 60/70, só que numa linguagem totalmente sintonizada com o que se faz em certos rincões do cinema mundial deste início de século. Em muito formada nas escolas de cinema e faculdades de comunicação país afora (cujo impacto é minimizado no capítulo dedicado ao setor no livro de Ballerini), essa geração encontra primeiro os festivais alternativos como espaço de visibilidade – em especial a Mostra do Filme Livre, realizada no Rio de Janeiro desde 2002, e o Festival de Tiradentes, o primeiro evento de grande porte a voltar os olhos para

DIVULGAÇÃO

essa produção, desde 2006, ano em que a curadoria passou a ser assumida pelos então editores da revista eletrônica “Cinética”. Daí a quantidade de críticas veiculadas em sites e periódicos cinematográficos on-line, bem como textos curatoriais extraídos de catálogos de festivais e republicados em “Cinema de garagem”.

Deficiências

No alto, cena do longa “Estrada para Ythaca”, do Coletivo Alumbramento (CE); acima, “A Alegria”, dos cariocas Felipe Bragança e Marina Melliand

Todavia, o livro carece de problematizar as deficiências dessa produção e, principalmente, de colocá-la em perspectiva, tanto com relação ao cinema autoral mais visível e consagrado criticamente, quanto à produção mais comercial. Mas é exatamente sua opção por compilar textos críticos, escritos entre 2001 e 2010, à medida que esse Novíssimo cinema ia ganhando forma, que provoca o leitor a lançar, também ele, outros olhares sobre essa produção. Há capítulos destinados a cenas fortes e bastante promissoras no cenário nacional, como os mineiros do coletivo Teia e o emergente cinema cearense (em especial do coletivo Alumbramento), bem como um curioso ensaio sobre como esse cinema mais jovem tenta filmar a juventude, por um viés bastante pessoal e intimista. Talvez por isso, em lugar de recomendar a leitura de um ou outro dos dois livros aqui analisados, eu sugiro que se leiam ambos, não somente pela diversidade de propostas que marca o cinema brasileiro hoje, mas também para promover um curioso exercício de tentar olhar cada uma dessas vertentes, ora com o olhar proposto por Franthiesco Ballerini, ora com o de Marcelo Ikeda e Dellani Lima. Afinal, há espaço para todas essas propostas: o maior desafio, na verdade, é fortalecer seus respectivos mercados – mas isso é assunto para outra discussão, tão longa e complexa como esta. O livro “Cinema de garagem” acabou dando origem a uma extensa mostra realizada entre julho e agosto na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro. Há disponível, para download gratuito, um catálogo que inclui textos críticos de outros autores e depoimentos de realizadores, no site da mostra: http://www.cinemadegaragem.com


poesias FOI PAULO DEPAULA Você me deu tanta alegria E deixou-me só. Só com a poesia Do passado que se foi. Do momento que acabou, Do vazio prenho da ausência Saudade: fado deixado por você, Que foi só Amor.

VIVO OU MORTO? Hoje vi um homem morto. Seu peito nu. Seu corpo exposto. Um homem. De manhã, sobre o teto trabalhava. Viveu ontem. Hoje, a carga o levou. Eletricamente entrou na Vida do Amanhã. Hoje, Eu vi um homem morto. Hoje, Um homem nascer pralém. Só. Sem nin ém g u

crônicas ...

por NAYARA LIMA Não sei o que os senhores pensam a respeito de nunca mais terem visto ele ou ela. Queria, no entanto, arriscar-me. Acho perigo traçar em palavras a linha que cruza fina, rente ao corpo da delicadeza, alguma constatação. Mas encontrei Dona Rosa relendo cartas de uma amiga. Achei a tarde crua, sagrada. Dona Rosa, que um dia me ensinou piano com elegância e humildade sincera, relia as palavras da amiga que, de repente, quis sumir (para não ser esquecida). Achei a tarde viva, embora dura. Perto do piano antigo, do sentimento estrangeiro que aqui concluimos por saudade, dos óculos de grau e de um casaco regido sob a orquestra de branca lã em flores, contemplei aquela vida como o faria dentro de um espetáculo intenso. Porque representava, como um espetáculo intenso, o que há de vida em tudo que, além

de se mover, sente. Por isso a transmito nesta folha de jornal. Embora nem tudo se ouse palavra, posso dizer aos senhores que no silêncio obscuro dos rostos que um dia se encontraram, e nunca mais se viram, habita uma crua fagulha da verdade. Estão se vendo. Desde que o encontro tenha sido áspero, porque profundamente terno, e porque amor, nada mais se conclui senão isto. Em suspenso, o tempo outro maior que o tempo, pontua o que nessa ordem é belo, como pontua a chuva branda cada pedra do paralelepípedo à luz acesa do poste para a noite. No silêncio obscuro dos rostos que nunca mais se viram, e portanto se veem distraídos no riso ou em susto de dor, cala a despedida que nunca aconteceu. Porque existindo verdade, impossível que ocorra o óbvio se ele é morto. Não se despede do que

9

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

sempre vive. E no silêncio obscuro de entre os dois rostos, os dois latentes afloram o encontro na casa disfarçada da palavra esquecimento (que tem por filha a também menina faz de conta. A indiferença). Não o é. No instante desencontrado, entorpece o queixo no ar da noite, enquanto lua e estrela festejam que ali se deu a eternidade. E as palavras um tanto vivas descobrem que o peso da leveza exige força maior do que o amor suporta. Invisivelmente se encontram, adoram-se um rosto diante do outro (e não se sabem disso). Invisivelmente contam piadas, gargalham histórias coloridas, pedregulhos de carnaval, abraçam-se com a ternura daquela chuva. Protegem-se dos pesadelos de vida sangrando. Inauguram, unidos, o carinho. Comemoram que existir é bom. E constatam, ainda no silêncio que não é mudo: “Seu filho nunca cairá de suas mãos”. A frase entre as aspas iniciava a primeira carta de Marta endereçada a sua amiga. Que até então, por medo, havia decidido segurar as notas graves de um piano em troca do corpo intenso e frágil de uma vida.

A REZA DE COSME E DAMIÃO

por MÁRIO BONELLA

BODAS DE OURO Ora, meus pais: Dissesse eu que Tudo foram flores, Estaria a me chamar de flor – Eu! Tantas vezes Motivo de discórdia: Príncipe rebelde d’esquecida tribo africana. - Portanto, espinho e dor, também – entre flores do seu amor, que virou d’ouro!

SOFISTICAÇÃO DE ARTISTA (COM SOTAQUE) Na sepultura meu nome quero, em letras de manchete! Mas minha idade, Please, forget.

Bahia, 63 anos atrás. Uma queda do cavalo e Inácio quase morre. Entre o luto iminente e a fé, Anália, a jovem esposa, agarra-se à segunda opção. Dupla esperança. São Cosme e São Damião. É para eles que ela promete: se o marido sobrevivesse, todo ano, abriria as portas da casa para uma noite de oração e agradecimento. E se promessa é dívida, ela jamais foi inadimplente. Em setembro, diante das imagens, da vela acesa, do incenso, da foto do casal..., a família apertada, espremida, reunida na mesma prece, na mesma ladainha. “Agnus Dei, ora pro nobis, miserere...”. A cantoria é em latim, com um carregado sotaque baiano, misturado a tantos outros que cabem numa família de 12 filhos, quase todos baianos; 27 netos e 20 bisnetos, todos capixabas; e inúmeros agregados e amigos de tudo quanto é lugar.

Quarenta minutos de reza, emoção liquefeita em lágrimas – mal ou bem disfarçadas – e, no fim, o mesmo banquete de todo ano. É sempre vatapá e caruru, nunca um só. É sempre galinha assada e ensopada, nunca uma só. Oxente, a promessa é para Cosme e Damião, não para um só. Vatapá é comida de baiano, feita com camarão seco, castanha, pão, caldo de galinha ou de peixe. Caruru leva quiabo. Quem gosta se lambuza; quem não aprecia carece de bom gosto. Para a noite sagrada de Dona Anália, os principais ingredientes vêm da Bahia. Ela faz questão. Também exige a presença de todos, todo ano. Trinta e seis setembros e eu nunca faltei. Sou mistura de baiano com italiano. Cor da pele e cabelo bem diferentes dos outros parentes. Mesmo assim, na reza de minha avó, entendo que família é reconhecer no

outro um pouco de nós mesmos. Entendo que, em toda promessa ou reunião familiar, encontramos parte do que fomos, somos e seremos. Sinto a doce nostalgia de estar em um ambiente em que todos me chamam pela alcunha da infância e não pelo nome de adulto. A promessa de minha avó sempre se repete, mas nunca é igual. Como um relógio que marca o passar dos anos, ela nos lembra quanto inexorável é o tempo. Tudo tranforma, muito nos toma, mas muito nos dá em troca. É o tempo que fortalece a tradição familiar. E acredito que toda família tem algo assim. Um dia, uma hora, um momento de acolhida e união. Pode ser apenas o gesto de beijar a mão e pedir: “Bença, vó! Bença, vô!” Neste caso, seu Inácio e Dona Anália, seu neto Magu é quem pede bença em nome de toda gente da família.


10

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

11

ensaio

Pensar

por RITA DE CÁSSIA MAIA E SILVA COSTA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

O OLHAR COMO JANELA DA ALMA E DA PAISAGEM DO MUNDO Com base na literatura, na psicanálise e na filosofia, acadêmica se propõe a identificar o papel da arte e os discursos que configuram os sentidos da existência para o homem contemporâneo

Eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte. (...) O olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência”

legenda onoomo ono no on....

Jacques Lacan Psicanalista

“A Arte não representa o visível, a Arte torna visível”... Paul Klee (1879-1940)

V

ivemos, neste princípio de século, uma mudança de paradigmas similar à que ocorrera com o Renascimento. Sob a égide do mercado e das transformações decorrentes da tecnologia e da ciência, o homem enfrenta o desafio de lidar com o tempo e o desejo face às contingências do predomínio das imagens e das virtualidades do presente. Que discurso, ou melhor, que discursos configuram hoje as visões de mundo do homem contemporâneo? Italo Calvino, ao propor a visibilidade como uma das virtudes essenciais à preservação da fantasia na literatura em uma de suas “Lições Americanas”, antecipa a visão do que se convencionou chamar a “civilização da imagem” e indaga a respeito do futuro reservado à humanidade, “cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas” (1990, p.107) Nesse mundo em que as imagens prevalecem, Agamben, adotando o

conceito de “eterno retorno”, de Nietzsche, e a perspectiva da visão, propõe uma definição de contemporaneidade que alude à cegueira do homem perante as luzes do século. Para ele, “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.” (2010, p.62) Já em 1964, Lacan, ao tratar, no Seminário 11, da formulação do conceito de esquize do sujeito na tradição filosófica, nos remete à Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, para nela destacar uma reviravolta ontológica em que se pauta a instituição da forma e a importância do olhar do sujeito, que a preside. Distinguindo aí uma abertura à apreensão do inconsciente, Lacan nos diz tratar-se de discernir a “preexistência de um olhar”. Afirma ele: “Eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte. (...) O olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da castração. O olho e o olhar, esta é para nós

a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico” (1988, p.73-4). Poderíamos indagar por que e como, de diferentes perspectivas, o que se nos apresenta é sempre o enigma do olhar. Podemos indagar ainda a partir da sutileza da afirmação em epígrafe: 1. O que é uma obra de arte? 2. O que representa o olhar para o sujeito na cena contemporânea? A reflexão sobre a ontologia das obras de arte remonta à Antiguidade Clássica, desde Platão, inquieta os renascentistas e os modernos em busca de sua verdade e de sua consistência próprias, e persiste com a fenomenologia contemporânea, representada por Merleau-Ponty, como uma questão fundamental para a filosofia. Deixando de considerar a arte um objeto de especulação metafísica, a filosofia busca nela as referências de nossa existência ou de nossa relação com o mundo. Por isso, a obra de arte é “unidade indissolúvel do sentido e do sensível” (Haar, 1994:8).

O mundo criado pela obra de arte nos é revelado, tornado presente e intensificado por ela. Sua dupla propriedade de se revelar a si mesma e de revelar o próprio mundo nos faz ver sempre de uma maneira nova nosso cotidiano. A arte revela nossa secreta e corpórea dependência com as coisas do mundo, com o outro, e essa revelação consiste num jogo de presença/ausência, de visível/invisível, que se manifesta duplamente tanto naquilo que é visto como naquele que vê.

Pintura

Para Merleau-Ponty, a pintura nos revela uma corporeidade que não se refere nem ao sujeito nem ao objeto, nem à existência nem à ideia, mas a um “entre dois” destes extremos. A pintura, ao invés de ver o mundo, deixa o mundo ver-se nela. Apontando o olhar como inapreensível e como o avesso da consciência que se funda na “ilusão de ver-se vendo-se” (p.82), Lacan nos mostra que “somos seres olhados no espetáculo do mundo. O que nos faz consciência nos institui, do mesmo gol-

>

O in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele, (...) não se pode vê-lo aí, e todo o esforço para aí vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível, é a sua pátria virtual, inscreve-se nele (em filigrana). (...) o visível está prenhe do invisível” —

Maurice Merleau-Ponty Filósofo fenomenólogo francês

pe, como speculum mundi”. (p.76) A paisagem se pensa no artista e ele é sua consciência, dizia Cézanne, ao referir-se à extensão do visível sobre o seu olhar. O corpo apresenta, ao mesmo tempo, o que é próprio da consciência e o que é próprio do objeto: a reflexibilidade e a visibilidade. O corpo é simultaneamente vidente e visível. Nessa matéria do visível, nos diz Lacan, “tudo é armadilha e singularmente (...) entrelaço”. (p.92) O corpo é esse logos do mundo estético, ou melhor, esse mundo sensível que nos enlaça às coisas (enlaçando nossa visibilidade à delas), e que faz surgir o mundo da cultura e da história. José Américo Pessanha, citando Ba-

chelard, assinala que o mundo quer se ver. “E se vê por meio de todos os espelhos, naturais ou artefeitos: lago, pintura, pensamento”. Para Giordano Bruno, um dos mais perspicazes predecessores do pensamento humanista, a vista é o mais espiritual de todos os sentidos. A psicanálise e a arte, pela sua função, forçam a cultura a dignificar o páthos como marca da condição humana.

Transcendência

Retomemos a questão ontológica da obra de arte. A arte desconcerta pelas suas tentativas de responder às solicitações inesgotáveis e misteriosas das coisas. Ela exalta a verdade, mais precisamente, exalta a verdade do mundo, ao prolongar e ampliar a percepção, que é global, sucessiva, instantânea e lenta. A percepção revela o mundo como latência, como transcendência. Corpo, mundo, linguagem revelam que o real transborda sempre, que seu sentido ultrapassa o “já dado”. A linguagem é uma forma de visibilidade. Qual seria, pois, a atividade própria da contemplação? Parece que tanto para a filosofia como para a psicanálise seria lembrar. No Livro 7, (p.282), Lacan ensina que “o homem não sabe o que ele põe em movimento com sua demanda. (...) O temível desconhecido para além da linha é o que, no homem, chamamos de inconsciente, isto é, a memória do que ele esquece”. A contemplação se relaciona, pois, à visão e à memória, tanto quanto ao imaginário e à criação. Seu efeito de estranheza e a plasticidade que daí resulta se organizam em torno do que não se pode ver ou dizer e que diz respeito à falta. Porque tudo é visão, devir, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o, tornando-nos universo. Citando Cézanne, Deleuze&Guattari (1992:22) constatam: “Há um minuto do mundo que passa”; não o conservaremos sem “nos transformarmos nele.(...) As grandes paisagens têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... A paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este aban-

Numa floresta, repetidas vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as árvores que olhavam para mim, que me falavam... Eu lá estava, escutando... Creio que o pintor deve ser traspassado pelo universo, e não querer traspassá-lo”

Paul Klee (1879-1940) Pintor e poeta

dono não atinge somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida.” Quando os objetos aparecem na tela, simbolizados em cores, linhas, formas, luz e sombras, em reflexos, em nuances e tons, e, portanto, sob a condição expressa de não estarem ali, transcendem a sua materialidade, sem a qual, no entanto, não existiriam. O quadro oferece não ao espírito, mas ao olhar e “à visão aquilo que a atapeta interiormente, a textura imaginária do real” (Merleau-Ponty, 1984:90). O olho do artista, comovido e deixando-se atravessar pelas coisas do mundo, o restitui ao visível pelo traço da mão, dando “existência visível àquilo que a

visão profana acredita invisível” (MP, 1984:91). O artista traduz e reduplica esse “instante do mundo” que passa, mas que nasce continuadamente pela visão da obra de arte. Assim diz Paul Klee (apud MP,1984:92): “Numa floresta, repetidas vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as árvores que olhavam para mim, que me falavam... Eu lá estava, escutando... Creio que o pintor deve ser traspassado pelo universo, e não querer traspassá-lo. Aguardo ser interiormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir”.

Enigma

Ao referir-se, por exemplo, à noção de profundidade e às técnicas da perspectiva, instauradas pelo Renascimento, Merleau-Ponty aponta o enigma que constitui a ligação entre as coisas: as coisas são vistas “cada uma em seu lugar justamente porque elas se eclipsam umas às outras” e porque há uma “mútua dependência delas na sua autonomia” (1984:103). Essa percepção de que tudo está a um só tempo deflagra um segredo, sugere que algo pré-existe, que reafirma a relação entre o visível e o invisível. O visível torna presente o invisível que lhe subjaz. O invisível se faz presente como uma certa ausência. O invisível é aquilo que se faz ver sobre aquilo que é. Trata-se daquilo que é inapreensível na sua imanência. Por isso, há que se reconhecer, com o filósofo (1984:108), o olho como a “janela da alma”. Para ele, “o in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele, (...) não se pode vê-lo aí, e todo o esforço para aí vê-lo o faz desaparecer, mas ele está na linha do visível, é a sua pátria virtual, inscreve-se nele (em filigrana). (...) o visível está prenhe do invisível”. Essa leitura resgata o olhar estético e primordial do ser humano. Com esse olhar refaz-se a paisagem do mundo: um mundo de coexistências, simultaneidades, implicações de alteridade, afinidades, entrelaçamentos. Nesse traçado torna-se possível o gesto da arte, que, como o conceito, tem um estatuto: ser uma multiplicidade e uma superfície e estar sempre em estado de sobrevoo.


12

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

perfil por SANDRA MEDEIROS

LUIZ BUAIZ: EXEMPLO DE VIDA E DE AMOR À MEDICINA

LUIZ BUAIZ – BIOGRAFIA DE UM HOMEM INCOMUM Sandra Medeiros. 212 páginas. Edição do Autor. Distribuição gratuita. O livro será distribuído para a Biblioteca Pública Estadual e as bibliotecas municipais.

Trajetória do médico de 91 anos, conhecido pela conduta ética e generosa, vira livro emocionado, que relaciona sua atuação profissional e política com a história de Vitória

“L

uiz Buaiz – Biografia de um Homem Incomum” traz a trajetória de um dos mais queridos e renomados médicos do Espírito Santo, contada a partir do ponto de vista dele próprio e de cerca de 50 entrevistados, entre os quais médicos, funcionários, vizinhos e pessoas com as quais conviveu. Para enriquecer o livro foi feito um levantamento de imagens no Arquivo Público Estadual, Arquivo Municipal, Biblioteca Estadual, Instituto Jones dos Santos Neves, Academia Espírito-Santense de Letras e acervo de Nilton Pimenta, o que possibilitou a edição ilustrada com mais de 100 fotos, boa parte de alta qualidade técnica, apesar da época do registro. Dividido em cinco capítulos, distribuídos em 212 páginas, o livro traz a história de Luiz Buaiz como parte da história de Vitória. As informações do médico foram utilizadas na íntegra ou serviram de base para o levantamento de nomes, lugares, arquitetura, comércio e fatos que permitiram compor a história fiel e contextualizada de sua rica existência. Foi um trabalho de 11 meses, sete deles para pesquisa, que resultou no livro. A capa dura, em branco e verde, revela um projeto gráfico sóbrio, apesar do acabamento sofisticado: laminação aveludada ao toque, relevo e verniz localizado. A narrativa da apaixonante vida de Luiz Buaiz justifica a edição do livro que marca o seu nonagésimo primeiro ano de vida. Ele nasceu (em 1921) e cresceu no Parque Moscoso, numa casa que ainda hoje está de pé e muito bem conservada – embora não mais pertença à família – e desde então tem participado com destaque da história social, médica e política do Espírito Santo, tendo saído daqui apenas para estudos no Rio de Janeiro. Quando começou a atuar, em 1947, os grandes males eram sífilis (que costumava levar à loucura), tuberculose e lepra (com raras chances de cura, o portador era confinado até a morte). Esse quadro mudou, os grandes males são outros, mas Luiz Buaiz reclama: “Desumanizaram a Medicina. Eu sou do tempo em que se confiava no médico. A relação médico-pa-

DIVULGAÇÃO

Luiz Buaiz sendo abençoado em Palermo, na Itália, onde visitou o túmulo de São Benedito; no alto, à dir., na formatura em 1946; no destaque, registro profissional

ciente desapareceu.” Ele admira os avanços técnicos, mas não aceita a forma descompromissada como se pratica a Medicina.

Cargos

Buaiz ocupou importantes cargos no Espírito Santo: dirigiu a Santa Casa de Misericórdia (da qual foi provedor durante 14 anos); foi médico no Centro de Saúde (responsável pela área de venereologia), no IAPC, IAPI, Ipase e Iapetec; esteve à frente da unificação regional desses institutos e dirigiu o INPS no Estado; contribuiu para a criação do Instituto Braille; foi professor na Emescam e nos colégios Carmo, Estadual e São Vicente. Foi ainda Secretário Estadual de Saúde. Para a classe médica é exemplo de profissional altamente capacitado, ético e generoso: nesses quase 66 anos de atuação sempre intercedeu para conseguir no-

meações e abria a própria clínica para os recém-formados, causando situações curiosas como ele próprio ficar sem salário para ajudar os mais novos. Aos 91 anos, Luiz Buaiz continua em atividade: atende em seu consultório, no Parque Moscoso, e no consultório de uma cooperativa médica, trabalhando com invejável disposição. Seu vasto conhecimento em dermatologia é destacado da mesma forma que a maneira abnegada como exerce a profissão: para ele, quem precisa de ajuda médica tem que ser atendido, sem distinções. Medicina é um sacerdócio. Isso desperta admiração, mas também gera situações curiosas, como narrado no livro. Vitória era uma cidade bem menor e todos de fato se conheciam, ainda

que só de vista, e todos sabiam o que acontecia em todos os lugares. Não foi difícil à Receita Federal perceber que era dele o consultório mais movimentado da Capital. Convocado, foi convidado a explicar a discrepância entre número de pacientes e renda declarada. Foi simples: recebia pouco porque poucas eram as consultas cobradas. Dos internos do Asilo dos Velhos aos funcionários da empresa do pai, passando pelos mais necessitados, ninguém pagava a consulta. O livro trata também da atuação política de Luiz Buaiz, que tentou, mas não se elegeu prefeito de Vitória, embora tenha chegado a deputado federal. A experiência mereceu dele – que diz ser do tempo “em que fazer política era prestar serviço” – análise em que avalia desfrutarem os deputados de condição de vida inigualável, com produção insignificante na Câmara. Também critica: “Quando o governo domina o Congresso do jeito que domina, não tem como não se arrepender da vida política.” Aquele que busca nas prateleiras das livrarias narrativas de impacto, com violência e sangue, não vai perceber “Luiz Buaiz – Biografia de um Homem Incomum”. Mas deveria fazê-lo: o livro conta uma história edificante, um admirável exemplo de vida que está fazendo falta em nossos tempos.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.