Pensar_17_08_2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE AGOSTO DE 2012

www.agazeta.com.br

Mulher fotografada por Pierre Verger em Bapuré, no Togo, 1936

Entrelinhas

CRÍTICO LITERÁRIO ANALISA “PUS”, LIVRO DE SÉRGIO BLANK QUE COMPLETA 25 ANOS. Página 3

Artigo

UMA REFLEXÃO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DOS ARTISTAS PARA A PSICANÁLISE.

Página 4

Em ascensão ESPECIALISTA PRODUZ MAPEAMENTO DA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA. Páginas 10 e 11

Jornalismo

PUBLICAÇÃO RESGATA A OUSADIA DA IMPRENSA ALTERNATIVA DOS ANOS 70. Página 12

Orgulho da raça

PESQUISADORA REGISTRA O HISTÓRICO DE LUTA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS

Págs. 6, 7 e 8


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE AGOSTO DE 2012

quem pensa

Adriano Scandolara é tradutor, crítico literário e poeta. www.escamandro.wordpress.com

Ruth Ferreira Bastos é analista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. ruthferreirabastos@gmail.com

Nelma Monteiro é pesquisadora das temáticas Etnicorraciais e Violência Doméstica e Familiar.

marque na agenda prateleira Campus Seminário discute poesia de autor capixaba

O crítico literário paranaense Adriano Scandolara fará conferência sobre o tema “Hermetismo e expressão: A trajetória da poesia de Sérgio Blank”, dia 24 de agosto, no seminário Bravos Companheiros e Fantasmas 5. A partir das 9h, no Auditório do IC-2, campus da Ufes.

Café Literário Sesc Saulo Ribeiro é o convidado deste mês

O escritor e editor vai falar sobre seu livro “Diana no Natal” no Café Literário Sesc, na próxima terça-feira, às 19h, no Centro Cultural Majestic, em Vitória. A mediação será do escritor e cineasta Erly Vieira Júnior. Entrada franca.

RICARDO MEDEIROS

Alex Baradel é membro da Fundação Pierre Verger e curador da exposição “Nos Caminhos Afro”.

Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

O Pensamento Alemão no Século XX – Vol. II Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (org.)

O segundo volume do ciclo organizado pelo Instituto Goethe de São Paulo reúne textos de especialistas brasileiros sobre as obras de grandes pensadores alemães do século passado, como Erich Auerbach, Carl G. Jung e Albert Einstein. 320 páginas. Cosac Naify. R$ 47

A Memória de Nossas Memórias Nicole Krauss

Em seu terceiro romance, a escritora americana constrói um painel sobre memória e esquecimento, esperança e remorso, passado e futuro, narrado por meio de personagens que vão descortinando aspectos inesperados de seu próprio percurso. 344 páginas. Companhia das Letras. R$ 49,50

Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.

Patricia Eugênio é cantora lírica e popular, compositora e poeta. http://notinhaspoeticas.blogspot.com.br/

Marcelo dos Santos Netto é jornalista, escritor e mestre em Relações Internacionais. msanetto@gmail.com Antonio de Pádua Gurgel é jornalista e coordena a Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo. apaduagurgel@terra.com.br

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O Segredo e Outras Histórias de Descoberta Lygia Fagundes Telles

de agosto

Clube do Vinil vai a

Sa

nta Cruz A associação capixaba de aficionados pelos bolachõ es participa da festa dos 45 7 anos da Vila de Santa Cruz, em Aracruz. A programação começará às 13h, em fre nte ao histórico Casarão, com dis cotecagem de Gilson So ares (foto), Júlio Thomaz, Leo Cobal e convidados locais .

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de agosto

Romance juvenil em alta tecnologia

Maxwell dos Santos lança “As 24 horas de Anna Beatriz” em via eletrônica, no próximo dia 29, às 19h, no Ponto de Cultura – Varal Agência de Comunicação, em Itararé, Vitória.

Os cinco contos reunidos nesta coletânea têm em comum o ponto de vista de uma criança ou de um adolescente. Em foco, a descoberta do amor, a frustração perante um segredo de família e a morte narrada com delicadeza. 96 páginas. Companhia das Letras. R$ 24,50

Encontro com a Morte Agatha Christie

Em viagem pelo Oriente Médio, o detetive Poirot escuta um diálogo sobre o plano de um crime que vai se relacionar com turistas americanos que se encontram em Jerusalém. 240 páginas. L&PM. R$ 18

RESGATE ANCESTRAL

José Roberto Santos Neves

A restauração do Museu Capixaba do Negro (Mucane), concluída em julho deste ano, era uma reivindicação antiga da comunidade capixaba. A partir desta conquista, a doutora em Educação e pesquisadora de temáticas etnicorraciais Nelma Monteiro desenvolveu o artigo de capa desta edição, em que descreve a trajetória dos movimentos sociais negros no Brasil, desde o período da escravidão até os avanços mais recentes. Nelma cita personagens fundamentais na luta contra o racismo, como o ex-deputado e ex-senador da República Abdias do Nascimento, elenca vitórias políticas

Pensar na web

do movimento, e registra a criação, nos últimos anos, de várias entidades negras com estratégias de lutas diferenciadas. A abordagem sobre o tema continua na página 8, com o artigo de Alex Baradel sobre a exposição “Nos Caminhos Afro”, em cartaz no Mucane, com fotografias de Pierre Verger. Curador da mostra, Baradel percorre a biografia do francês que construiu uma nova imagem da dignidade do povo africano ao buscar o resgate ancestral de suas tradições. Os registros de Verger – incluindo o período em que viveu na Bahia – falam por si. Bom sábado, boa leitura, bom Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Galeria de fotos da mostra “Nos Caminhos Afro”, poemas de Sérgio Blank e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por ADRIANO SCANDOLARA

PUS Sérgio Blank. Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Editora Anima, 1987. 156 págs. [Coleção Letras Capixabas, vol. 25]. Ilustrações de Sazito. Edição esgotada. Está incluído no livro “Os dias ímpares - toda poesia”, Editoura Cousa, 2011

O CAOS POÉTICO DE SÉRGIO BLANK

O

livro “Pus”, de Sérgio Blank, completa este ano um quarto de século. Discutivelmente o primeiro livro de um Blank maduro, ele é fundamental para começar a compreender toda a obra do poeta. A citação de Waldo Motta na contracapa é reveladora: “Demolindo e reelaborando a linguagem do mundo, deformada com efeitos de estranhamento que incomodam, Blank espicaça consciências entorpecidas”. De fato, a demolição de uma certa linguagem é tema recorrente em “Pus”, na medida em que o autor distorce de vários modos o discurso do dia a dia, dos chavões, da mídia e do poder. Como fica claro pelo poema de amor em estilo burocrático “o que dita a dor”, “Pus” é delimitado pela temática da política e do corpo. Nele, Blank encarna tensões nacionais através de uma poética da carne, retomando e subvertendo algo de uma concepção de política medieval (que, como sugere a terminologia do poeta, deve ser cara a esse “vassalo vencido”), em que a ação política é subordinada ao indivíduo político, e um se torna o reflexo do outro. Assim, corporificando um impalpável doentio, como era e ainda é, em muitos casos, a situação social brasileira, não é surpreendente que em “Pus” predominem as excrescências. Mais importante ainda é como o tratamento dado à linguagem reflete isso: contra o discurso da retórica, da propaganda (política e comercial), repetido infinitamente por uma televisão de poder plenamente consolidado nos anos 80, Blank nos oferece versos deformados e desconexos, cujo grotesco é realçado pelas ilustrações do Sazito. São versos de uma sujeira sugerida e sintaxe em frangalhos, conduzidos por técnicas de trocadilhos, ambiguidades, aliterações e rimas assistemáticas, como em “propriedade de estado/de meu espírito”, “de bossa à beça/basta de bosta na festa/besta com fama de lenda”, “cristã taram tantã”, “só se for no forno /furna de sábados finais/moderno forno de inferno”, etc. A isso se somam deturpações de expressões da linguagem cotidiana e de elementos da cultura popular, como “tem sim sinhô”, “impávido colar de osso”, “no país das mil e uma maravilhas e utilidades”, “o par ou o ímpar?/nem sou dado a soldado/o quartel pegou fogo/ímpar/um dois três e já”, etc. É importante atentar para esse aspecto caótico e assistemático de sua versificação, pois trocadilhos e rimas

ZANETE DADALTO

No livro “Pus”, lançado há 25 anos, o poeta constrói jogos sonoros de palavras

inusitadas são não somente típicos da estética dos anos 80, como se tornaram um domínio principalmente do poeta Paulo Leminski e seus epígonos. No caso de um leitor como eu, nascido no Estado do Paraná, a comparação é inevitável. No entanto, há diferenças cruciais entre esses dois poetas: em Leminski, na sua poesia mais pop, trocadilhos e rimas costumam estruturar e se ver no cerne dos poemas, aparecendo frequentemente nos últimos versos e concluindo ideias. Blank, porém, parece rejeitar quaisquer tipos de estruturas, inclusive poéticas, e seus jogos sonoros de palavras tendem a dar uma impressão de que o poema se constrói no improviso, conforme uma ideia, um som, uma imagem surgem e são explorados durante alguns versos (como quem faz variações sobre um tema) para então darem lugar a novas ideias, sons e imagens. Logo, nos versos “rio à margem/eu rio muito/página a página”, etc, (poema “o ovo todo vazio”) Blank se distancia bastante de, por exemplo, “rio do mistério/que seria de mim/se me levassem a sério?” de Leminski.

Unidade

Apesar da desestruturação, cada poema mantém sua unidade, que impede o livro de se tornar uma torrente de versos sem pé nem cabeça que

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beirem o nonsense – assim como o próprio livro mantém uma unidade coesa na obra de Blank. Cada poema individual aborda situações, assuntos, imagens que os distinguem dos outros poemas, e “Pus” se distingue do restante da obra não somente por ser o mais escatológico, mas porque cada livro do autor, longe de compor coletâneas aleatórias de poemas, se concentra num modo específico de articular essa voz poética única – lidando com a relação entre corpo e política, no caso de “Pus”, que apresenta já uma voz bem definida. Isso fica evidente ao reler “Estilo de ser assim, tampouco”, onde um Blank estreante ainda experimenta com a linguagem, ora revisitando o concretismo e modernismo, ora indicando o desenvolvimento de sua voz própria, introduzindo já sua discussão das relações entre poesia e cultura de massa. Cada livro seguinte de sua obra se desenvolve sobre essa voz que amadurece em “Pus”, mesclando-a a uma miríade de referências em “Um”, e usando-a para se apropriar do discurso da química e da metalinguagem, em “A tabela periódica” e “Vírgula”. Revisitá-lo, então, sob essa ótica, após esses 25 anos, pode ser uma bela entrada para o obscuro universo da melancolia pós-moderna de Sérgio Blank.

UM POEMA OS MEUS INQUILINOS a casa de meus pais é de meus pais e então/ e só por isso que eu moro à beira do mar eu e eu/ e uns amigos que ñ aparecem e não mandam notícias suas meu sangue (por isso) é azul esferográfico de um tom d’um blue inexpressivo e rápido blonde avec blank (a loura da gillette) e outro país um produto bozzano eu sinto frio quando deito a face nos degraus mas eles que são meus amigos moram aqui assim mesmo só eu sei disso e como sei bem disso a noite noir está aí para ñ me deixar mentir a casa de meus pais não possui piscina e a minha também não possui piscina mas o mar está aí para meus afagos para peixe e espinha por meus fagulhos de fogo por minhas tentativas de afogamento um recurso bem simples da minha necessária permanência sincera a casa de meus pais hoje é fachada a praia é suja comigo e com meus banhos new waves a minha casa é de crise é de pudim, chocolate, chicletes, bombons e açúcar regina sugar blue na veia, suspiro e corações de abóbora não aparecem e não mandam notícias suas e só por isso/então/eu alugo


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psicanálise por RUTH FERREIRA BASTOS

A PALAVRA ENTRE O ARTISTA, O PSICANALISTA E O PÚBLICO Escritores e produtores de arte têm muito a ensinar aos analistas, na medida em que dizem por meio de suas obras sentimentos que o leitor anseia por compartilhar

“M

ilhões de artistas criam; somente alguns poucos milhares são discutidos ou aceitos pelo público e muito menos ainda são consagrados pela posteridade”. (Marcel Duchamp,1965) E, mesmo que um artista se considere um gênio, ele “terá de esperar pelo veredicto do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte”. Como uma obra de arte, um texto, um livro, novas ideias chegam ao público? Mario Vargas Llosa, em “Defesa do Romance” (revista “Piauí” 37), diz sobre sua experiência como escritor: “O romance não começa a existir quando nasce, por obra de um indivíduo; só existe realmente quando é adotado pelos outros e passa a fazer parte da vida social, quando se torna, graças à leitura, experiência partilhada”. Esclarece ainda Camus em “A inteligência e o cadafalso”: “Chamamos de mau escritor aquele que se exprime levando em conta um contexto interior que o leitor não pode conhecer. O autor medíocre, dessa forma, é levado a dizer tudo o que lhe agrada. A grande regra do artista, ao contrário, é esquecer parte de si mesmo em proveito de uma expressão comunicável. Isso não ocorre sem sacrifícios. E essa busca de uma linguagem inteligível, que deve recobrir a desmedida do seu destino, leva-o a dizer não aquilo que lhe agrada, mas aquilo que é necessário”. Este diálogo entre escritores mostra uma preocupação comum: como um texto passa à categoria de literatura e permite que outros possam compartilhar das emoções, angústias, aventuras e achados do autor? Na verdade, esta é pergunta central que intriga artistas e amantes da arte. Qual magia produz a obra? O que permite, contingencialmente, que alguém se torne um artista? E como se dá a passagem do subjetivo dessa experiência ao público? Lacan, nos seus estudos sobre a sublimação (1960), afirma: “Toda produção da arte, especialmente das Belas-Artes, é historicamente datada. Não se pinta na época de Picasso como se pintava na época de Velásquez, não se escreve tampouco um romance em 1930 como se escrevia no tempo de Stendhal”. E alerta

DIVULGAÇÃO

de modo tal, que o objeto perde aquilo que nele seria excessivamente pessoal e que por isso afasta os demais”. Parece que o “esquecimento de si mesmo”, em um, permite a aproximação de outros que identificam ali algo de seu, mas não de sua imagem própria.

Fantasia

Para Lacan, o artista capta algo do seu tempo que para outros fica nas sombras

Toda produção da arte, especialmente das Belas-Artes, é historicamente datada” —

JACQUES LACAN PSICANALISTA

que este elemento deve ser conotado no registro do cultural. O artista teria, supostamente, uma condição psíquica que permitiria captar algo do seu tempo que para outros permaneceria nas sombras, invisível, impronunciável, enigmático, no campo do estranho; algo que oferecido ao público, permite, revela, desvela uma certa satisfação. Freud teria ressaltado, em 1917, que o objeto criado só passa do privado ao público se ele fisga o olhar alheio, se ele doma o olhar do público; e isso se dá porque “esses seres especiais, os artistas, dão forma ao seu devaneio, à sua fantasia

A questão não é, portanto, simplesmente revelar os devaneios de um. Isso poderia inclusive causar mal-estar e pudor no outro. Freud insiste que a questão está na possibilidade para alguns de dar forma à fantasia, retirando dela o excessivamente pessoal e uma linguagem excessivamente particular. Isso permitiria a outros experimentar alguma ressonância com as próprias questões. Assim o autor faz chegar ao leitor a sua mensagem. E se os analistas se ocupam destas questões é porque elas oferecem uma preciosa aproximação com as dificuldades encontradas na transmissão da psicanálise. E, nessa matéria, artistas e escritores muito têm a ensinar. Todo o tempo eles dizem através de seus personagens e suas obras sobre sentimentos que o leitor anseia por compartilhar. A passagem ao comum faz parte da sua prática na construção da narrativa que deve ser lida, partilhada com o público, para ter existência de fato. Entre a invenção do inconsciente por Freud e a assimilação da psicanálise pela cultura ocidental, passou-se pouco mais de um século. Isso mostra que para uma novidade sair do campo do estranho e se tornar familiar, comum, o novo que ela contém precisa ter pertinência a esta civilização. José Eduardo Agualusa, em seu “Milagrário Pessoal” (2010), ensina: um significante novo encontra ressonância e entra na linguagem comum, sempre que “as palavras soam tão familiares que não parecem neologismos... As pessoas ouvem-nas, repetem-nas, e ficam convencidas de que sempre as utilizaram.” Quais os desafios que os psicanalistas vivem hoje diante de uma sociabilidade em que o excesso das imagens relega as palavras a um plano secundário? Poderiam os artistas, que estabelecem um diálogo com e mesmo para além das palavras, nos dar algumas pistas a este respeito?


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estudos etnicorraciais

Nos últimos anos, a evolução das entidades negras no Brasil e no mundo se refletiu no cenário c WIKIPÉDIA

A litografia “Negros de Diferentes Nações”, de Debret, produzida por volta de 1830, destaca povos oriundos de Monjolo, Mina, Moçambique, Benguela e Calava

MOVIMENTOS DE LUTAS E CONQUISTAS PESQUISADORA DESCREVE TRAJETÓRIA DE RESISTÊNCIA DOS NEGROS NO PAÍS, DA ESCRAVIDÃO AOS AVANÇOS RECENTES


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por NELMA MONTEIRO

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capixaba através do surgimento de organizações não-governamentais de combate ao racismo

A

s trajetórias dos movimentos sociais negros brasileiros têm sido marcadas por um processo histórico de resistências e de lutas em defesa do direito à diferença étnica e, ainda, pela implementação de políticas públicas voltadas à garantia dos princípios da reparação, do reconhecimento e da valorização do povo negro. Os movimentos negros capixabas, articulados com a sociedade civil organizada, sempre tornaram legítimas suas reivindicações que possibilitaram muitas conquistas junto ao governo estadual – como o Decreto n° 3.527-N, de 13 de maio de 1993, que instituiu o Museu Capixaba do Negro – e, também, junto ao governo municipal de Vitória o compromisso com restauração do prédio do Mucane. Em nosso Estado, na década de 1980, o MN contou com a contribuição organizativa do professor historiador Cleber Maciel (em memória), que foi docente da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde lecionou no curso de História. A sigla MN foi, genericamente, usada para denominar a formação dos diferentes movimentos negros, sobretudo aqueles organizados nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. No país, o pan-africanismo encontrou um grande aliado: o negro guerreiro, ex-deputado e ex-senador da República Abdias do Nascimento, falecido em 2011, na cidade do Rio de Janeiro. Esse movimento influenciou a formação do pensamento das lideranças negras brasileiras da década de 1970, que na resistência e na luta vem contribuindo para desconstruir os mitos fundantes do racismo: mito da inferioridade, do embranquecimento e da discriminação racial.

Escravismo

Visando a impulsionar o desenvolvimento do país, a política do escravismo incentivou a vinda de negros(as) de diferentes regiões da África. Eles/elas chegaram forçados ao Brasil em distintos contextos históricos, totalizando mais de quatro milhões de africanos(as) de diferentes etnias. Segundo Ney Lopes (2004), as etnias provinham de Angola e Congo (bantos), Benin (fons, jejês e sudaneses), Nigéria (Iorubás, haussás, malês, mulçumanos e togos) e Tanzânia (swahili e quiloa). Pereira (2008), em seu livro “Trajetória e Perspectivas do Movimento Ne-

DIVULGAÇÃO

Durban, na África do Sul, aflorou a discussão sobre as reparações por meio de ações afirmativas, a exemplo da política de reserva de vagas para negros – “cotas” – no ensino superior das universidades federais brasileiras, que em 2012 foi aprovada por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal; o Decreto Nº 4.887/03, que prevê o reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras das comunidades dos quilombos; e a Lei 10639/03, que prevê o enfrentamento ao racismo na educação.

Organizações

Restauração do Mucane representa uma vitória para o movimento negro capixaba

gro Brasileiro”, relatou os diferentes acontecimentos e histórias de vida desses movimentos, partindo do período da escravidão, quando os arranjos negros, rurais e urbanos, sobre diferentes formas de organização e lutas, espalharam-se por todo o recanto deste país. Exemplo dessa resistência foram os quilombos, as guerrilhas, as irmandades e as revoltas urbanas que eram “maneiras de fazer negro” contra o perverso sistema escravista. No pós-abolição, outros cenários políticos foram produzidos, possibilitando outras tessituras de redes sociais e étnico-raciais nas agendas políticas dos Movimentos Negros. A trajetória dos Movimentos Negros foi marcada por grandes acontecimentos sócio-históricos: 1°) Nas décadas de 1920 e de 1930, o advento da “locomotiva” e a opção pela política da imigração europeia caracterizaram a intenção do governo brasileiro em substituir a mão de obra do negro pela do trabalhador europeu, dificultando assim o acesso desse segmento ao mercado de trabalho; 2°) O período de 1940 a 1970 foi marcado pela resistência negra em busca do reconhecimento e valorização de seu patrimônio cultural e de suas reivindicações. Este movimento fez surgir várias entidades negras, com destaque para o Teatro Experimental Negro (TEN) e a Frente Negra, primeiro partido negro do país;

3°) A partir de 1970 se evidenciou um cenário político-militar com a pregação da ideologia do mito da democracia racial, perspectiva que fora combatida ferrenhamente pelas organizações dos Movimentos Negros no auge da ditadura militar e em pleno regime de exceção. Os Movimentos Negros das décadas de 1970 e 1980, ao colocarem em suas agendas as denúncias de racismo institucional, de racismo à moda brasileira e da farsa da democracia racial, demarcaram um campo de força política imprescindível na conquista por direitos civis, políticos e materiais. Apesar do período de repressão militar, surgiu em São Paulo o Movimento Negro Unificado (MNU) contra o Racismo – uma reação à ideologia dos militares que apregoavam e sustentavam a existência da democracia racial no Brasil. No final da década de 1980, foi inequívoco o avanço dos Movimentos Negros em seu projeto político de denúncia do racismo institucional. É preciso lembrar a inegável contribuição desses segmentos que, com suas diferentes correntes e tendências, vêm contribuindo na construção de políticas afirmativas de valorização da população negra. Na atualidade, alguns avanços foram significativos. Após a Marcha 300 anos da Imortalidade de Zumbi, em 1995, em Brasília, e da III Conferência Mundial Contra o Racismo, em 2001, na cidade de

Esse salto organizativo dos movimentos sociais negros, nacional e internacional, fez surgir no cenário capixaba muitas organizações não governamentais com estratégias de enfrentamento ao racismo institucional por meio da defesa do direito à diferença e da implementação de políticas públicas afirmativas por parte das diferentes esferas de governos. Após os anos de 1980, considerando as diferentes correntes e tendências dos Movimentos Negros, foram criadas várias entidades negras com estratégias de lutas diferenciadas. São exemplos dessa época o Centro de Estudos da Cultura Negra (Cecun-ES), a União de Negro (Unegro) e o Círculo Palmarino – eixo de formação e de organização; Entidades de Mulheres Negras Oborin Dudù – eixo de organização política das mulheres negras; o Instituto Elimu Professor Cleber Maciel – eixo de pesquisa e de formação; o Grupo de Dança Negraô, o Hip-Hop Nação Zumbi Ojab – eixo de cultura negra; e o Fórum Estadual da Juventude Negra (Fejunes) – eixo político de luta contra o extermínio da juventude negra capixaba. Considerando o que estabeleceu a Lei n° 10.639/03, outras organizações surgiram no cenário educacional capixaba em âmbito institucional. Algumas secretarias municipais de Educação criaram em suas estruturas as Coordenações de Estudos Afros (Ceafros). A Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória criou o Conselho Municipal do Negro (Conegro). A Ufes fundou, em 2008, o Núcleo Estudos Afro-Brasileiros (Neab). Com essas trajetórias de resistências e lutas, os Movimentos Negros Capixabas conquistaram a restauração do prédio onde está funcionando o Museu Capixaba do Negro “Verônica da Pas”.

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+ artigo de capa por ALEX BARADEL

PIERRE VERGER: O FOTÓGRAFO DO OUTRO Através da fotografia, francês construiu um novo testemunho acerca da dignidade do povo africano, revelando uma cultura ancestral

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EXPOSIÇÃO “NOS CAMINHOS AFRO” Fotografias de Pierre Verger (1902-1996). Quando: até 7 de outubro. De terça-feira a domingo, sempre das 9 às 17h. Onde: Museu Capixaba do Negro. Avenida República, 121, Centro, Vitória. Mais informações: (27) 3132-8372. Entrada gratuita.

PIERRE VERGER

ierre Fatumbi Verger, como muitos franceses da época, foi provavelmente colocado em contato indireto com a cultura africana através de eventos que tinham como objetivo fazer propaganda das colônias francesas, como a Croisière Noire ou a exposição colonial que ele visitou em 1931. Esses eventos apresentavam aos franceses a cultura dos países colonizados, especialmente as nações africanas, de forma brutal e preconceituosa. Entretanto, graças à simpatia que mantinha com grupos culturais e políticos da vanguarda francesa, Verger constrói uma visão mais respeitosa e afetuosa com relação ao outro. O primeiro contato efetivo com afrodescendentes ocorre através do Bal Negre, em Paris, onde se misturava o “pequeno povo de origem antilhana” com artistas e intelectuais parisienses, animando bailes noturnos. O mergulho no mundo antilhano, porém, se dá quando, em viagem à Polinésia, faz escala nas ilhas da Martinica e de Guadalupe, onde tirou as primeiras fotos de população de origem africana. Encontra outros afrodescendentes, em 1934, no Harlem, bairro nova-iorquino, durante viagem ao redor do mundo. Foi um ano depois, em 1935, que, pela primeira vez, Verger se mistura com as populações africanas ao atravessar a ponta oeste desse continente durante cinco meses. Benin, Brasil, Nigéria, Togo, Burkina Faso, Níger, Cuba, Haiti, Suriname, Senegal, Congo Belgo, Costa do Marfim, Guiné, Serra Leoa, Mali, Argélia, Mauritânia, Antilhas Francesas, Estados Unidos da América, Equador, Santo Domingo, Camarões. É imensa a lista de países e regiões fortemente ligados à cultura africana visitados por Pierre Verger. Fotógrafo-viajante, etnólogo não assumido, babalorixá não atuante, Verger Registros da mostra “Nos Caminhos Afro”, em cartaz no Museu do Negro: no desde o princípio foi atraído por muitas alto, a beleza da mulher africana; à direita, atabaque no Terreiro de Joãozinho culturas no mundo, em especial pela da Golméia, em Salvador, 1946; acima, pesca em Itapuã, Bahia, 1946/1947 africana, e sua câmera fotográfica Rolleiflex, magnetizada pelo corpo negro. Através da fotografia, Verger construiu um novo testemunho acerca da dig- em contraponto com a riqueza imaterial, simples, de cama estreita e poucos mónidade do povo africano, até então o fascinava a ponto de fazê-lo se mudar de veis. Escolheu um bairro popular, decolonizado, rebaixado, humilhado. vez para o Brasil, especialmente para a senhado por vielas e saliente ladeira. Como quem mergulha em busca de um Bahia. Em terras baianas, Verger adotou Suas fotografias, das quais 170 comresgate ancestral, dedicou-se com afinco a não apenas nova residência, mas um põem a exposição “Nos Caminhos uma cultura completamente distante de estilo de vida. Dos anos 1960 até sua Afro”, que se encontra no Museu Casua origem, cuja simplicidade cotidiana, morte, em 1996, morou em uma casa pixaba do Negro “Verônica da Pas”

(Mucane), convidam a uma viagem no tempo com destino às sutilezas e peculiaridades do mundo por ele retratado de 1932 até os anos 1970.

No Brasil

Em agosto de 1946, Pierre Verger chega a Salvador com alguns conhecimentos sobre a cultura afro-brasileira, absorvidos a partir da leitura do romance “Jubiabá”, de Jorge Amado, e também fruto de conversas com amigos recentes, como o artista plástico Carybé e o antropólogo Roger Bastide. Através da fotografia, Verger capta a poesia do jeito de ser baiano, ou afro-baiano. Capta a postura e o vigor dos corpos trabalhando, descansando ou festejando. Mergulha em festas populares de origem afro e também nas celebrações católicas. Fotografa anônimos e famosos, artistas, pintores populares, cordelistas, capoeiristas, pessoas que faziam parte do cenário popular da cidade. Seu testemunho sobre a cultura baiana, notadamente, afro-baiana, é um dos mais relevantes e poéticos feitos até então, e até hoje. Nas fotografias expostas no Mucane, o público pode ver o fascínio que motivou Verger em cenas do nosso passado, muitas vezes tão próximo de nossas atuais experiências. Um presente construído por uma visão simples e humana de um mundo transformado pelos olhos e pela Rolleiflex de um poeta do cotidiano.


poesias PEDIDO PATRICIA EUGÊNIO Alguém arranque meu coração do peito Não sei, acho que deu defeito Com ele não sei mais lidar Às vezes sou pluma leve que voa pelo vento no outro instante rebento sou barco a naufragar Alguém que de piedoso se faça arranque-o dessa carcaça pra que eu viva como se deve Que viva da emoção fingida Pois a real é por demais sem medida mesmo que às vezes me eleve Arranque, arranque-o agora ou deixe-o para minha desgraça Já não há o que se faça minha alma já se perdeu...

FITA-ME Fita-me agora se tens coragem Fita-me agora nua Olha meus olhos secos pela verdade crua Engula de vez minha honestidade

crônicas LUTO SEM COR por NAYARA LIMA

As sirenes na Rua Barata Ribeiro, durante a noite da última segunda-feira, em Copacabana, revelavam que parte de nosso patrimônio cultural estava em chamas. Digo em perplexidade: o nosso “Samba”, quadro de Di Cavalcanti, agora se tornou pó. Ocupava, com outras obras artísticas de nosso país, a sala da cobertura de um romeno milionário que as pôde comprar. Tenho sentido um novo desejo, que já dura há alguns meses, de zelar pela arte. Cheguei ao intenso prazer de me imaginar trabalhando em um museu (seja de qual for a manifestação artística). Tamanho é meu respeito e cuidado com aquilo que me constitui.

Quando soube então dessa dor, senti-me em susto pálido. Não foi culpa do senhor romeno que o fogo tocasse a tela do “Samba”, e comemoro que não tenha se ferido. Parece que o ar-condicionado do quarto dele entrou em curto-circuito, e o que era frio, tornou-se fogo. Mas minha opinião é de que as obras artísticas que atravessam uma nação devessem ocupar sempre um espaço protegido, onde todos as pudessem ver. Não uma residência. Em tristeza, escrevi para um amigo que representa parte essencial da música popular brasileira: “O ‘Samba’, de nosso Di Cavalcanti, agora é pó. Sei que é o que um dia nos tornaremos. Mas sempre achei que uma obra de arte

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tivesse o direito de ser imortal”. Dói o instante da tinta no fogo. Atormenta-me ficar escutando na mídia as palavras “prejuízo de milhões de reais”, quando na verdade esse prejuízo está para além das notas do dinheiro. É o luto que arde, sem cor. Por sorte (e a sorte é a roupa que veste o milagre) foram salvas, dentre outras grandes obras, três lindos suspiros de nossa Tarsila do Amaral: “O Sono”, “O Sol Poente” e “Uma paisagem de Paris”. Mas o quadro “Floresta Tropical”, do nosso Alberto Guignard, também foi incendiado. Mais uma floresta brasileira incendiada. Que pavor. Ainda não consigo escrever sobre essa perda. Basta-me a dor do “Samba”. E a frase que um dia foi pronunciada por Di Cavalcanti. Escutemos, portanto, o que o fogo não alcança: “Moço, continuarei até a morte, porque além dos bens que obtenho com minha imaginação, nada mais ambiciono”.

DESAVENÇAS E GOSTANÇAS (VOLTA, TCHONEY!) por MILSON HENRIQUES

O que tens agora pra me dar, mundo cruel de subterfúgios fugazes? Olhares esguios de desejos lascivos? Superficialidades? Eu te dei tudo! Ou tiraste! Corpo, alma, vida, nada disso é meu Agora devolva-me o que me é de direito Me dá o que me já faz parte! Deixe-me viver completa! Deixe-me viver de arte!

ESMERIL DA VIDA Que fardo é este que carrego comigo? Onde a dor da alma dilacera o corpo Onde a dor de um coração partido vem também rasgar minhas entranhas Porque será que sempre me acompanhas Como uma sombra, um espectro, um silêncio A gerar sempre uma despedida A mostrar do amor um falso encanto O que quer da minha alma ainda, se não posso desaguar meu pranto? Este rio, no meu corpo, é ferida Este rio, na sua alma, é espanto Eu só sei que semeio em minha vida tudo que minha alma tem de amor Mas minha alma purifica ainda Vida, teu esmeril é a dor!

Repentinamente arranjaram um nome em inglês e virou moda - bullying. É o “must”! Como odeio pertencer à maioria (daí meu orgulho de, modéstia à parte, ser botafoguense), comigo tinha de ser diferente: sofri o pior bullying, o familiar. Quando criança, toda vez que minha mãe me pegava conversando animadamente com Tchoney, nome que dei ao meu amigo invisível, ela brigava e me chamava de doido. E a estranheza dela era compartilhada por meu pai, pela crueldade própria da adolescência dos meus irmãos mais velhos com os apelidos, e pelos professores, já que meu “problema” foi levado até a escola. Sendo “bullyingado” constantemente, acabei vencido. Vesti o vetusto e corretíssimo uniforme da uniformidade intelectual vigente na época e ingressei na “normalidade”, tentando me convencer de que eu era pirado e o resto da humanidade era normal. Com muito sacrifício, mandei Tchoney embora. Agora, atingida a velhice, despi o tal

uniforme castrador, voltei à sabedoria da infância e sinto que Tchoney está me espreitando atrás das portas, esperando apenas uma chamada. Mas ainda tenho dúvidas: será que Dona Maura tinha razão ao achar que pariu um ser estranho que discutia, ria, brigava com alguém que ninguém via? Será que realmente tenho um pé na loucura? Por que minhas desavenças e gostanças são tão esquisitas e me nego a ser o tal “politicamente correto”? Pior: será que algum psicólogo, psicanalista, intelectual, tipo Ítalo Campos, pode esclarecer o porquê do meu pavor a lanchonetes, essa praga que, juntamente com igrejas das diversas religiões, invadiu Vitória? Por que me recuso a gostar da oca mediocridade do macarrão ou galinha no detestável almoço do detestável domingo? Por que discordo do bom-mocismo obrigatório de ter de gostar de parentes, inclusive cunhados? Por que odeio as explosões e perseguições de carro nas telas de cinema, cada vez mais saindo para a vida real? (afinal, quem

imita quem nessa barbárie?) Por que me recuso a associar cinema a pipoca e Coca-Cola? Por que não gosto de Coca-Cola? Por que desprezo as cenas de transa nas novelas, com sexo pasteurizado, limpinho, quando o melhor do sexo são os odores, sabores e suores? Por que odeio a obrigatoriedade de dar presentes no Dia da Criança, da Mãe, da Páscoa, dos Namorados e outras babaquices puramente comerciais? Por que me recuso a conversar através da internet, sem o calor do diálogo olho no olho, olho na boca, olho na veia da testa do interlocutor? E, principalmente, por que não suporto a falsidade moralista da palavra “bumbum”, no lugar da adorável “bunda”, tão linda, tanto fonética quanto plasticamente? Aliás, por que a maioria dos jornais pode mostrar fotos de bundas, mas não pode escrever? Bumbum pra mim é som de bumbo nas antigas paradas escolares... Ééé... preciso com urgência conversar com Tchoney sobre esses e outros assuntos...


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TUPINIPUNK: O DESAFIO DA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA

Subgênero criado por autores nacionais representa a contribuição do país ao estilo, mas temas permanecem distantes do grande público, aponta especialista

A

ficção científica brasileira inaugurou nesse milênio uma moda editorial. A recente publicação de livros, estudos e revistas do gênero revela e explora um interesse crescente pelo tema. Antigas obras brasileiras são redescobertas como “clássicas”, enquanto exemplares antigos alcançam valor cada vez maior. Surgem também novos autores, publicados por editoras especializadas, alguns embalados por concursos literários voltados para o tema. De onde viria esse interesse? Uma explicação afoita diria que o Brasil agora investe mais em ciência, ou que a globalização facilitou nosso acesso a tecnologias. A modernidade estaria assim mais próxima de nós, estimulando nossa imaginação. Essa explicação é pobre: o vanguardismo científico sempre nos atraiu. Nossa brava gente é fascinada há muito tempo pela ordem e pelo progresso do positivismo, uma filosofia basicamente cientificista. Eis por que ostentamos essas palavras em nossa bandeira nacional. Dessa forma, talvez faça mais sentido perguntar por que o consumo brasileiro de ficção científica ainda não está à altura de nossa admiração histórica pela modernidade. Mesmo sendo o “país do futuro”, conhecemos pouco nossos autores do gênero. André Carneiro, Jerônymo Monteiro ou Rubens Teixera Scavone são ainda desconhecidos do grande público. Ainda que temas científicos nos fascinem, relutamos em consumi-los como alegoria literária de nossa própria condição. Para usar uma metáfora modernista, o Brasil ainda “deglute” a ficção científica com certo receio, como se temesse acabar engasgado.Por que ainda não o fizemos de vez, como os bons “ordeiros progressistas” e “antropófagos culturais” que decidimos ser? Enquanto não temos um diagnóstico técnico, é preciso arriscar alguns palpites. Temos pressa em começar esse debate, pois isso incomoda leitores e escritores, além de ser incoerente com um país que sempre se interessou pelo desenvolvimento. Ora, parte desse problema talvez se explique pela própria relutância geral em dar valor literário à ficção científica. As “excentricidades” de temas como alienígenas, espaçonaves e apocalipses causam receio. Acredita-se que elas

Ilustração de Ionaldo Cavalcanti produzida para a capa do livro “Brazilian Science Fiction”, de M. Elizabeth Ginway


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por MARCELO DOS SANTOS NETTO

DIVULGAÇÃO

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DIVULGAÇÃO

fazem com que o gênero seja sensacionalista, divertido e sem valor estilístico – mesmo que autores como Mary Shelley, Robert Louis Stevenson e George Orwell tenham suas obras de ficção científica reconhecidas também pela qualidade estética delas.

Marxismo

Além disso, gêneros de fantasia são tidos como “alienados” pela nossa crítica literária. Temos uma tendência moralista de rejeitar toda literatura que não seja uma análise “realista”. Devemos isso em grande parte à forma como o marxismo pesa sobre nossa formação intelectual. A opinião de Muniz Sodré é emblemática disso: para ele, ficção científica é um gênero burguês e alienado, mesmo que a própria União Soviética tenha gerado autores relevantes do tema. Outra explicação possível é a de que o gênero ainda nos parece estrangeiro demais. A importação dele agrediria nossa identidade literária nacional. Sofremos de um conservadorismo que por ironia acaba se refletindo também em muitas de nossas obras, nas quais novas tecnologias são retratadas como ameaças externas. Por sinal, esse talvez seja o obstáculo mais danoso: ele impede o gênero de se expandir e amadurecer como produto nacional. Todas essas acusações não fazem sentido. Outros gêneros literários também possuem “excentricidades” arriscadas. Por exemplo, os exageros moralistas do realismo podem torná-lo artificial e sensacionalista. Por outro lado, a riqueza alegórica pode aproximar a ficção científica da realidade. O gênero serve assim para refletir sobre os medos e as esperanças que a ciência causa em nosso imaginário. Finalmente, a importação de um gênero literário não significa agressão ou distorção. O haiku e o miniconto não são brasileiros, mas somente enriquecem nosso universo literário. O mesmo ocorre

André Carneiro, considerado um dos melhores prosadores de ficção científica no Brasil, e Fausto Fawcett, que segue a linha “tupinipunk”; no alto, publicações do gênero lançadas no país

com a ficção científica. É um gênero “alienígena” que foi importado e agora pode engrandecer nossa identidade literária, a julgar pelo parecer da brasilianista M. Elizabeth Ginway. Segundo ela, o Brasil criou um subgênero brasileiro próprio – o tupinipunk – que pode ser apontado como nossa contribuição mundial ao estilo. Figuram nele temas sociais brasileiros como o carnaval, as ditaduras, a diferença de gêneros, a sensualidade, o racismo, o passado escravista. A autora chega a observar que o estilo crítico do tupinipunk torna-o até mesmo superior ao próprio cyberpunk. Apesar disso, o tupinipunk permanece uma riqueza estranha para nós. É irônico pensar que nossa ficção científica é levada mais a sério fora do Brasil do que aqui. Temos tido dificuldade até mesmo de vislumbrar o Brasil como

cenário de ficção científica. Desbravar nossas florestas como temas do gênero coube inicialmente a ficcionistas estrangeiros, como Arthur Conan Doyle e Robert A. Heinlein. Esse é um indício de que temos ignorado por longo tempo um importante potencial.

Momento propício

Felizmente a ficção científica brasileira vive agora um momento propício. Parte disso se deve aos recursos tecnológicos atuais. A imprensa barateou os custos de produção sem declinar na qualidade. A internet fornece meios de divulgação, comunicação e venda eficazes e com baixo custo. A renda e o interesse por temas de fantasia cresceram no país. Mais do que isso, o vigor da atual ficção científica brasileira deve-se à

própria qualidade dos autores brasileiros. O talento, a profissionalização e os esforços deles justificam o entusiasmo editorial que o gênero tem alcançado. Fãs brasileiros do gênero poderiam conhecer o estilo “cyberbarroco” de Guilherme Kujawski, ou o tupinipunk de Fausto Fawcett. Pesquisadores literários deveriam se informar sobre o trabalho de brasilianistas como M. Elizabeth Ginway. É claro, ainda há mais a ser explorado. Faltam-nos filmes, teatros, programas de tevê. Temos tido paródias da produção estrangeira, bem como importação direta de temas, como mutantes. Com o tempo, esses esboços darão lugar a nossa ficção científica mais literária e consistente – não por patriotismo ou por “movimento de resistência”, mas como consequência esperada de nosso amadurecimento sobre o gênero.


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jornalismo por ANTONIO DE PÁDUA GURGEL

A IMPRENSA ALTERNATIVA DOS ANOS 70 FEZ HISTÓRIA

JORNAL DA DÉCADA DE 70 Antonio de Pádua Gurgel. Pro Texto Comunicação e Cultura. 220 páginas. Quanto: R$ 50. À venda pelo site www.editoraprotexto.com.br

Livro de jornalista reproduz a trajetória de duas publicações independentes de Brasília que tiveram de usar criatividade nos textos e na linguagem visual para driblar a censura

REPRODUÇÃO

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pós a decretação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, sobreveio um período de paralisação completa de qualquer tipo de manifestação política contra o regime. O Congresso Nacional foi fechado, centenas de políticos foram cassados em todo o país, dezenas de juízes aposentados em todas as instâncias do Poder Judiciário, inúmeras lideranças sindicais e estudantis foram presas, foram desmanteladas praticamente todas as entidades representativas da sociedade civil, a imprensa foi submetida a rigorosa censura. Qualquer reunião podia ser considerada suspeita e seus participantes serem presos para averiguações. Os dois episódios que romperam a letargia provocada por esse clima aconteceram numa mesma semana, em setembro de 1969: o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, e o lançamento da primeira edição do “Pasquim”, considerado o pai da imprensa alternativa, que revolucionou a maneira de se fazer jornalismo. O primeiro desafio era o de veicular informações, comentários e ideias sobre a situação do país, os costumes e os mais variados temas, driblando a censura. Para isso, foi necessário muita criatividade na elaboração dos textos e na linguagem visual, um elemento não só estético mas também cheio de conteúdo. No rastro do “Pasquim” e com o mesmo espírito, surgiram em todo o Brasil inúmeros jornais que expressavam a rebeldia dos jovens contra a ditadura e contra a caretice alimentada pela falta de liberdade e pelo atraso em suas diversas faces. Era a chamada “imprensa nanica”, que tinha esse nome porque suas tiragens eram bem menores que as da imprensa tradicional (com exceção do “Pasquim”, que chegou a 200 mil exemplares semanais). E também porque o formato dos jornais era tabloide, enquanto os jornais tradicionais eram em formato standard (jornalões). Aliás, o visual desses jornalões era extremamente conservador: seis ou oito colunas, uma ou outra foto, algumas ainda em clichê, pouquíssimas ilustrações, praticamente nenhum espaço em branco. Os jornais alternativos surgiram num momento em que as gráficas estavam se modernizando. Aproveitamos os recursos

À esq., capa do número 0 do jornal “Cidade Livre”, lançado em 1977; acima, a atriz Leila Diniz, musa libertária homenageada pelo jornal “Tribo”

do off-set e abusamos da criatividade, enchendo de curvas e mensagens subliminares as publicações, aproveitando ao máximo a falta de sagacidade dos censores. Um vacilo poderia render no mínimo uma sanção contra o jornal. Ou então, cadeia. E, na hipótese mais trágica, o destino de Vladimir Herzog. Em Brasília, circularam vários desses jornais e, em formato tablóide (21cm x 29cm), o “Jornal da Década de 70” reproduz todas as edições dos jornais alternativos “Tribo” e “Cidade Livre”, que circularam na Capital da República durante o período.

Como eram feitos

No caso da “Tribo”, as pessoas entregavam sua colaboração e um grupo de cinco a oito pessoas fazia uma seleção sem

critérios muito definidos, incluindo-se muito material na hora do fechamento. Cabia poema-imagem, “ensaio estético-elétrico-filosófico...”, matéria sobre o lançamento do histórico álbum “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos, resenha do filme “Satyricon”, de Fellini, um texto anarco-tropicalista, entrevistas com Gilberto Gil, Arnaldo Jabor e Lúcio Costa. Ao receber os editores, o afetuoso criador de Brasília proclamou: “Se vocês são da Tribo, então eu sou o pajé”. Formada por estudantes jovens e idealistas, a “Tribo” não tinha departamento comercial. Contávamos manter o jornal com as vendas. Mesmo assim conseguíamos alguns anúncios, mas em outubro de 1972 a Polícia Federal proibiu as agências publicitárias de veicular conosco um centímetro que fosse. O jeito foi arrumar a mochila e ganhar o mundo.

Em 1977, quando já éramos jornalistas formados, começamos a editar o “Cidade Livre”: era um jornal mais estruturado, que tinha como uma de suas funções veicular matérias que jamais seriam aceitas pela chamada “grande imprensa”, onde atuávamos profissionalmente. Tinha reunião de pauta, grandes reportagens sobre temas como transporte coletivo, moradia, a questão indígena, prostituição, jornais sensacionalistas e redemocratização do Brasil. “Jornal da Década de 70” traz textos de Merval Pereira, Eliane Cantanhêde e de outros jornalistas, além de reproduzir outras publicações, documentos e textos relativos à década de 70. Através desse material, o leitor poderá saber o que estava acontecendo no Brasil e no mundo enquanto fazíamos aqueles jornais. Seu lançamento em Vitória faz parte das comemorações pelo 20º aniversário da editora Pro Texto Comunicação e Cultura, que tem em seu catálogo cerca de 45 publicações, inclusive 32 títulos da Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo.


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