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O Rio de Janeiro do tempo de Machado de Assis era uma delícia, como descreve o estudioso Wilberth Salgueiro. PÁG. 4

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Vitória (ES), sábado, 9 de abril de 2011

Tropicalismo (

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Especialista explica por que o movimento capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1967 continua mais atual do que nunca e ainda determina os rumos da produção cultural, estética e midiática do país. PÁGS. 6 E 7


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A GAZETA Vitória (ES), sábado, 09 de abril de 2011

O prazer da cultura

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F A L A N D O

D E

M Ú S I C A

Oscar Castro-Neves regrava temas que não envelhecem AO VIVO.

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Caros leitores,

Bossa para japonês ver José Roberto Santos Neves

jrneves@redegazeta.com.br

JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES .

é editor do Caderno Pensar, novo espaço para a discussão e reflexão cultural que circulará aos sábados, mensalmente, em A GAZETA

Pensar na web: Leia crítica do psicanalista Ítalo Campos sobre o filme “Cisne Negro” e resenha da publicitária Mária Lacerda sobre o livro “Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944”, no www.agazeta.com.br

partir deste sábado iniciamos em A GAZETA um novo espaço mensal para a discussão e reflexão cultural. O Caderno Pensar vai trazer ensaios, artigos e críticas sobre literatura, música, cinema, artes plásticas, história, teatro, sociologia, psicologia e outras áreas das artes e do conhecimento, assinados por colaboradores do meio acadêmico e cultural. O objetivo é brindar os leitores com diferentes – e prazerosos – olhares sobre o cenário artístico local, nacional e internacional, partindo da certeza de que a arte deve ser vista como fator de representação e transformação social. Entre os atrativos deste primeiro número, Fernando Duarte analisa como a Tropicália mantém sua influência sobreaformadepensaraculturano país; Wilberth Salgueiro descreve as relíquias culinárias do tempo de MachadodeAssis;eRogérioCoimbra revela os bastidores da vinda de Sarah Vaughan a Vitória. Desfrutem da criação de nossos pensadores e até o próximo número!

Pensar:

C

ertas incoerências no Brasil são difíceis de entender. Por exemplo: se, nos Estados Unidos, um músico da nova ou velha guarda lança um álbum com o repertório de Ira e George Gershwin, Irvin Berlin e Cole Porter, este trabalho é analisado como uma “releitura de standards”. Aqui, quando um artista de bossa nova regrava canções de Tom, Vinicius, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Baden Powell, logo recebe a pecha de “estagnado” da imprensa especializada e dos palpiteiros da internet. É provável que seja este o tratamentodadoaonovoCDde OscarCastro-Neves,“Liveat Blue Note Tokyo” – com exceção deste espaço. Compositor, violonista, arranjador e produtor, Oscar Castro-Neves, 70, tem todo o direitoderevisitarorepertório fabuloso de um movimento do qual é um dos artífices. Afinal ele participou das reuniões musicais no apartamento de Nara Leão, no fim dos anos 50; estava no famoso concerto do Carne-

OSCAR CASTRO-NEVES

CD LIVE AT BLUE NOTE TOKYO GRAVADORA: ATRAÇÃO FONOGRÁFICA. 14 FAIXAS QUANTO: R$ 25, EM MÉDIA

gie Hall (EUA), em 1962; e construiu uma sólida carreira no exterior, conquistando o respeito de nomes como Dizzy Gillespie, Stan Getz, Quincy Jones, Dave Grusin.

É compreensível que seu novo disco tenha sido gravadonoJapão,paraumaplateia que demonstra sentir-se maisàvontadedoqueosbrasileiros diante dos acordes de “Ela é Carioca” (Tom/Vinicius), “Manhã de Carnaval” (Luiz Bonfá/Antonio Maria) e “Chora tua Tristeza” (primeiro sucesso de Castro-Neves, em parceria com Luvercy Fiorini). Será queteremosqueredescobrir comosjaponesesoprazerde ouvir “Águas de Março”, aqui em sua versão para o inglês “Waters of March”? RegistradonaBlueNotede Tóquio, entre 26 de abril e 1º demaiode2009,oálbumcontacomumelencodeferasque incluiAirtoMoreira(bateria), Marco Bosco (percussão), Paulo Calasans (piano acústico e teclados) e Marcelo Mariano (baixo elétrico), mais a voz delicada de Leila Pinheiro, que se casa perfeitamente com o lirismo do roteiro. Impossível deixar de destacar a performance de Airto Moreiraem“Caninana”,uma narrativa da filiação do Brasil à África em toques de pandeiroecantodesenzala.Éassim, a partir da fusão da célula rítmica do samba com o refinamento do jazz, que Oscar Castro-Neves e Cia. conquistaram a terra do sol nascente.Porqueistoébossanova, isto é muito natural.

EXPEDIENTE – Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Editor de Qualidade: Carlos Henrique Boninsenha; Design gráfico: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Arquivo A GAZETA; Textos: Colaboradores; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória-ES, Cep: 29.053-315; Fax: 3321-8642.

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N A S P R AT E L E I R A S E N T R E L I N H A S

MILLÔR FERNANDES

Em “Ribamar”, José Castello mergulha em si ao descrever o amor de um filho pelo pai

ROMANCE.

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Labirinto de afeto e memórias sinuosas Caê Guimarães é

jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

V

ocê entra em um labirinto. Vielas e escadas o levam a níveis e frestas. Ao seguir, vence a claustrofobia e chega a um recinto escuro onde há um corredor que desemboca em uma parede, que acaba em outro nível e escada. Mais adiante, uma luz difusa prenuncia a saída. Ao chegar lá surge outro novelo emaranhado de ruelas, passos, desníveis. O labirinto, como os deEscher,éumajaula.Nãohá lado de fora. Tudo é dentro e estamos todos dentro da jaula – personagens, fantasmas, linguagem. Memórias verdadeiras e inventadas. Mas o percurso não é solitário. Você caminha, braços em laço e pés em descompasso, com a perda da matriz que

te legou costela e traço, fisionomiaenome,olhoselinguagem. Seu pai é também a língua que você fala. E a memória, em harmonia ou contraste, que te enleva e revela. Traduz e corrói. Seu pai é muito maisdoqueumretratonaparede. E isso dói. José é filho de Ribamar e escreve uma longa carta ao progenitor morto. Nela,rasgaascamadasdostecidos do afeto e da perplexidade que permeou ambas as vidas. E anuncia que escreverá um livro cujo título é o nome do pai. O labirinto arquitetado por José Castello é forrado por espelhos côncavos e convexos. Mas “Ribamar” (Bertrand Brasil) também é um labirinto feito de pântano. A cada instante o chão pode ceder. E as paredes, instáveis, mudar de lugar. Num engenhoso jogo de duplos,Castellodesfolhaarelação José x Ribamar desdobrada em seu afeto literário mais potente e confesso, Franz Kafka. Em especial, o Kafka de “Carta ao Pai”. Neste livro, o tcheco estabelece e desconstrói o diálogo que

nunca teve com Hermann Kafka,paionipresenteaquem se deixou oprimir por toda sua breve existência. Em uma das esquinas do labirinto, José reencontra o exemplar do mesmo livro com a dedicatória que fizera quase 40 anos antes ao próprio pai, que nunca deixou transparecer ao filho se lera ou não o livro.

nho dos intitulados colcheia. Os temas também entram na ciranda. Os capítulos em fá abordam a infância do autor com o pai, os que “tocam” em sol descrevem sua viagem à Parnaíba, no Piauí, terra natal de Ribamar, e assim por adiante. Como o próprio autor/narrador/filho afirma, “Romances devem ter um esqueleto, ou desabam”. Desta coluna vertebral partem as terminações nervosas riscadas pela pena de José Castello.Cadasinapsefalanão apenas sobre a vida e o amor filial, mas sobre a própria literatura. “Todo escritor é um náufrago”. “Escrever é cavalgar.Somososcavalos”.“Émuito difícil visitar a si mesmo”. Escritor e jornalista, autor de “Inventário das sombras”, “Literatura na poltrona”, “Vinicius de Moraes – uma Biografia”,entreoutros,JoséCastello é um ourives da palavra, afeito a mergulhar de forma arguta no universo do outro, como biógrafo e ministrador de concorridas oficinas de texto. Em “Ribamar”, ele mergulhaemsi.Masaovoltaràtona, fala sobre nós. De quando falamos. E de quando nos quedamos mudos.

A ENTREVISTA. Trata-se da íntegra da deliciosa entrevista que Millôr concedeu à revista “80”, no final da ditadura militar. Foram sete horas de conversa com um dos mais importantes intelectuais brasileiros. L&PM EDITORES. 104 PÁGINAS QUANTO: R$ 22, EM MÉDIA

ANDREA MARIA SCHENKEL

TANNÖD. Testemunhas conduzem a trama da premiada estreia da autora alemã, baseada em um caso real: o assassinato de um fazendeiro, sua mulher, filha, netos e empregada, na Alemanha pós-guerra. RECORD. 144 PÁGINAS TRADUÇÃO: JENS LEHMANN E PATRÍCIA BROERS-LEHMANN QUANTO: R$ 29,90

NARRATIVA

Sinuosacomooscaminhosda memória, a narrativa é construída no diapasão da canção de ninar herdada desde quatro gerações pelos homens da família. Ribamar a entoava para José quando este era menino. Castello descobriu a cançãoaocaso,aoouviramãe cantá-la. Disparado o gatilho da lembrança, pediu ao irmão músico que a transcrevesse em partitura. E a intitulou “Cala a boca.” Assim feito, recorreu à melodia que embala os versos para estruturar o texto em capítulos correspondentes a notas musicais. A lógica rege a duração dos capítulos – os chamados semínimatêmodobrodotama-

A.S. FRANCHINI JOSÉ CASTELLO

RIBAMAR. EDITORA BERTRAND BRASIL. 280 PÁGINAS QUANTO: R$ 37, EM MÉDIA

AS 100 MELHORES LENDAS DO FOLCLORE BRASILEIRO. O autor gaúcho conta sua versão de histórias que incluem lendas indígenas, contos pitorescos e seres assustadores. L&PM EDITORES. 200 PÁGINAS QUANTO: R$ 34, EM MÉDIA


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LIVRO. “Relíquias

Culinárias”, de Rosa Belluzzo, traz panorama cultural e gastronômico do Rio de Janeiro de tempos machadianos

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Degustando Machado de Assis

T

Wilberth Salgueiro é professor da Ufes, pesquisador do CNPq e autor de “Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea” (2002), e “Lira à brasileira” (2007), ambos pela Edufes. wilberthcfs@gmail.com

ítulos enganam:“MachadodeAssis: Relíquias Culinárias”, de Rosa Belluzzo, não é um livro sobre a presençadecomesebebesnaobra do badalado escritor. Quem dera. Ele se quer um “panorama gastronômico do Rio de Janeiro de tempos machadianos”. Mas, como panorama, alcança vitória maior: faz um vasto quadro da vida cultural carioca do século XIX e princípios do XX. É mais um livro de história e de antropologia, e menos de gastronomia – e nada, mesmo porque nãopromete,decríticaouteorialiterária. Basta-nos, no entanto, avançaralgumaspáginaseMachado, de chamariz, se torna dono daquilo que, isca do título, se vende: do lugar, por excelência, em que se dá o paladar: da língua. Numa crônica de 1888, dirá nosso escritor: “Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderei fazer o mesmo com as bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá ideia de antropofagia, pelo equívoco da palavra”. Ou seja, Machado pensa a vida feito um passe de letra, palavra, frase, língua, linguagem, e isso vale tanto para suas reflexões acerca da política e dos hábitos de sua época quanto para suas concepções estéticas e filosóficas, tramadas em crônicas e romances, contos e poemas, peças e outras armadilhas. Plasticamente, o livro é impecável:pode-sepô-lonamesadecentro da sala, e ali ficará muito bem, ao lado de publicações de arte. Toda a suaiconografiaéexcelente,comdezenas de fotos, charges e pinturas, e as devidas legendas. Há, sim, 25 receitascomosingredienteseomodo defazer,desdeocitadobouchéesde dame ao ensopadinho de camarão comchuchu,dobacalhauàlagareira aos pastéis de nata, da sopa de cas-

ROSA BELLUZZO

MACHADO DE ASSIS – RELÍQUIAS CULINÁRIAS EDITORA UNESP. 156 PÁGINAS QUANTO: R$ 80

IRONIA. Em crônica de 1888, o autor escreveu: “Nunca comi croquettes,

por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês”

tanha e perdiz ao toucinho do céu. COMPOSIÇÃO

O tom do texto acompanha a composiçãodolivro,sendoambosagradáveis e transparentes, sem sintomas de pedantismo. (A epígrafe geral, de Roberto Schwarz, expert em Machado, e o ótimo prefácio de CarlosLessa,conhecidoeconomista, soam como uma piscadela, vã, a um leitor supostamente exigente.) AhistóriadoBrasilsefazveremtodo capítulo, sem o intuito de altas análises, e por isso livrando-se da pretensa erudição que, com frequência, alhures, se dilui em lances herméticos ou cosméticos. Lendo “Relíquias Culinárias”, lembramo-nos da vinda de D. João em1808edadesapropriaçãodecasas para a corte portuguesa, quando se pregava às portas um autoritário“P.R.”,significando“prínci-

peregente”,masqueagentetraduziapor“propriedaderoubada”.Essa gente, garante Belluzzo, alheia às transformações da cozinha carioca, se mantinha na mesma toada: “A grande maioria da população livre e dos escravos alimentava-se de feijão, carne seca, farinha de mandioca, pirão e angu”. Fatos e curiosidades se multiplicam: a popularização dos pães – “até então iguaria de luxo” – graças aos franceses, o surgimento dos lampiõesdeazeiteelogoaseguiros de gás, a primeira feijoada carioca completa, a primeira “machina de tirar chope”, a primeira sala de cinema, a inauguração de casas tradicionais (Colombo, Casa Cavé, Clube Rabelais, Café Central, atual Lamas), o choque de civilidade imposto ao Rio pelo “prefeito bota-abaixo”PereiraPassos,queproibiu “o comércio de leite onde as va-

Sabor. O bolo Mãe-benta está entre as 25 receitas contidas no livro

cas eram levadas de porta em porta”, a metamorfose, enfim, de uma cidade em direção ao progresso. Cético e cínico, Machado escrevia à queima-roupa sobre o tempo, personagem-mordesuaobra.Avesso à modernização da Rua do Ouvidor, dispara, em crônica de 1893: “É a rua própria do boato. Vá lá correr um boato por avenidas amplas e lavadas de ar. O boato precisa do aconchego, da contiguidade, do ouvido à boca para murmurar depressaebaixinho,esaltardeumladopara outro”. O livro de Rosa Belluzo, em suma, faz jus àquela sensação que alguns temos ao ler Machado: numa palavra, ou duas, dá gosto.


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Nayara Lima, Gabriel Menotti e Milena Paixão expõem diferentes olhares sobre o dia a dia em linguagem sensível CRÔNICAS E POESIA.

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Merece um brinde Nayara Lima é escritora e tem 22 anos. E-mail: lima.nayara@globo.com Blog: nayaralimaversoeprosa.blogspot.com

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átrêssemanasoBrasilaguardava com ansiedade o discurso do presidente Barack Obama na Cinelândia. Há também três semanas internautas brasileiros discutiam sobre a polêmica em torno do custo do projeto “O mundo precisa de poesia”, que tem por objetivo a criação de um blog para difundir a poesia brasileira pelo mundo. Quanto vale a poesia? Até vir a resposta decidi ficar com ela na varanda, lendo nosso poeta Vinicius de Moraes. Tudo isso acontecendosábado,nomomentoemque eu contemplava as estrofes que o poeta intitulou “O dia da criação”,declamadascomentusiasmo por ele e plateias durante muitos shows inesquecíveis: “(...) Há uma comemoração fantástica Porque hoje é sábado Da primeira cirurgia plástica Porque hoje é sábado E dando os trâmites por findos Porque hoje é sábado Há a perspectiva do domingo Porque hoje é sábado (...)”. E era. Enquanto eu lia estes versos, o domingo chegaria e ouviríamos o homem considerado mais importante do mundo falar em nosso Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Assim foi feito. As páginas on-line ainda discutiam sobre o valor da poesia, enquanto o presidente começava o seu discurso. Até que me vi em alegre espanto frente à televisão. O leitor talvez se lembre: Barack Obama citou o filme “Orfeu Negro”

contando ter sido apresentado a ele por sua mãe. Mal pude me conter! Porque este filme foi inspiradonoespetáculo“Orfeu daConceição”,dopoetaqueassim se apresentava com orgulho: “Eu, por exemplo, capitão do mato Vinicius de Moraes, poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil...!”. Pois ao tal filme o presidente americano se orgulhou em recorrer. Mas o mais incrível ainda aconteceria. Horas depois do discurso me deparei com uma notícia, no mínimo, valiosa: um jornalista e biógrafo brasileiro, Fernando Jorge, contou em um de seus livros uma história que ficou para a História:

Quanto vale a poesia? Até vir a resposta decidi ficar com ela na varanda, lendo nosso poeta Vinicius de Moraes.

ESPAÇO DA POESIA

Milena Paixão é cachoeirense, poeta e professora de Língua Inglesa e Portuguesa. mlnpaixao@aol.com

GABRIEL MENOTTI FOMALHAUT *

As estrelas, quando falo de estrelas, não fulguram distantes, fornalhas atômicas: as estrelas, imagem de estrelas, apesar da coincidência de órbitas, apesar do esgotamento da luz: o sossego de sucessivas encarnações no espírito. Memória projetada na tela: é um álbum; já era; é mais que o bastante. Paperback/romance dilacerado no vão entre o carro e a plataforma, a História pelos trilhos, se descama feito moscas, na sopa de aspargos; (como) caspa, na lapela do garçom. PONTOS DE REFERÊNCIA *

aos 16 anos, branca e de classe média,amãedeObamafoipara o cinema assistir ao filme inspirado em “Orfeu da Conceição”, quando ficou encantada com o ator protagonista Breno Mello. Algum tempo depois, morando no Havaí, conheceu um queniano cujas feições muito se assemelhavam às do ator.Resultado:ajovemseapaixonou perdidamente pelo homem e com ele teve um filho. Portanto, caro leitor, podemos concluir que graças a Vinicius de Moraes temos hoje o primeiro presidente americano negro da História. Independentemente do valorquesediscuta,achoqueela merece nossa homenagem: porque hoje é sábado, um brinde! Um brinde à poesia.

Caliandra

um relógio sem torre um ponto de ônibus um pequenino elefante do tamanho da palma da mão vagando perdido através de um deserto de conchas conchinhas entre moinhos de vento um semáforo plantado no fundo do mar. O anjo caracol não tem asas: ele carrega, nas costas, sua casa – ele nunca sai do lugar. ------------------------------* Publicados originalmente no livro “Yù”, de Gabriel Menotti, premiado no edital de Produção de Obras Literárias da Secretaria de Estado da Cultura

C

onto-lhes a breve história de uma das minhas primeiras perdas. Qualquer inverossimilhança deve ser atribuída ao espanto comumàscriançasdaquelaidade, em que as coisas diante dos olhos parecem um pouco maiores e mais interessantes que em seus estados naturais. É por isso que, não raro, com o passar dos anos, os adultos vão progressivamente perdendo a habilidade de ver os detalhes, as rendilhas, e têm que arranjar-se como podem com lentes ópticas. Enfim, a questão é que naquele tempo eu morava a uma rua calçada com paralelepípedos, desses já encerados pelo uso. Perigo em dia de chuva, caíamos muito, mãe pedia cautela, joelhos viviamraladosdeinventardedescer o morro sem saída sobre folhas de papelão. Era no mesmo morro sem saída que havia essa arvorezinha. Dava umas flores semimportância,porquenãose pareciam com as que todas nós meninasdesenhávamos,coloridíssimas. Não tinha pétalas arredondadas, ou miolinho pra ser pintado de amarelo – o propósito do miolo era justamente ser pintado de amarelo. Ao invés, essa flor calhou de ter uma existência estranha e arrepiada, se espalhava pra todos os lados numas filandras de um branco encardido, que mudava a um inesperado rosa purpúreo na extremidade. Tinhaaépocadeaárvoreflorescer. Mas essa época vinha sempre ao acaso, nunca era ansiada feito o tempo das mangas. Certodiaolhávamospromorro, lá estava a árvore apinhada daquelas flores. “Ah”, dizíamos,

desinteressados.Eíamoscuidar da vida. A árvore se esvaindo naquela abundância à beira de nossas brincadeiras de rua, por anos. Pouco ligávamos. Foi então que houve uma tarde muito particular. Sentamo-nosemumcírculodecrianças e nos pusemos a discutir nossos assuntos de extrema importância. Íamos bem assim até que nos interrompeu o sobressalto inesperado de uma amiga sentada à minha frente, que abriu a boca para dizer algo e não conseguiu. Diante de nosso silêncio, logrou soltar uma ex-

Tinha a época de a árvore florescer. Mas essa época vinha sempre ao acaso, nunca era ansiada feito o tempo das mangas. clamação sem forma e apontar por sobre nossas cabeças. Quandopudemevirarsóenxerguei a pequena árvore com aquelas suas mesmas dezenas deflores.Masalgoeranovidade no entorno daqueles instantes, como se o céu mesmo tivesse assumido um azul mais profundo de anunciações, e corresse poraliumventocausadordearrepios na gente. De repente entendiqueumadasfloresbemno centro da copa da árvore havia acabadodeseabrirporcompleto e eu não havia visto. Era diferente das outras, até menos encardida – provavelmente de tãopoucodemundoaindaquea aborrecia. Estava embriagada de sol, túrgida de ilusões precoces. Achei-a bonita, fiquei triste por dias de uma pena profunda. Passei a perder muitas coisas pequenas depois disso: lápis, borrachas, chaves, moedas, minutos. Nunca me recuperei.


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ENSAIO. Mais de 40 anos depois do disco-manifesto “Panis et Circencis”, movimento mantém influência sobre a forma de pensar a cultura no país

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Tropicália: um projeto permanente de Brasil

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Fernando Duarte é músico, pesquisador e editor do site Bandolim.net.

msetembrode1968,umCaetano Veloso contrariado tentava cantar “É Proibido Proibir” para a plateia do Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o TUCA, onde acontecia a disputa do Festival Internacional da Canção. A música tomava emprestada uma das frases de efeito das manifestações do Maio de 68 francês e tinha como destaque do arranjo a guitarra distorcida de Sérgio Dias, dos Mutantes. Irritado com as vaias e a agressividadedopúblico,oartista,então com 26 anos, despejou sobre os espectadores um discurso histórico em que exprimiu sua decepção com o conservadorismo estético da esquerda. “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudirnoanopassado;sãoamesmajuventudequevaisempre,sempre,matar amanhã ovelhoteinimigo que morreu ontem!”, e concluía com veemência: “Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada.” Hoje o compositor é um inquestionável ícone cultural do país e convive em paz com a juventude atual. Aos quase 70 anos, Caetano ganhou um prêmio com seu show ao lado da Orquestra Imperial, se apresentacomacantoraMariaGadú e lança o DVD do álbum “Zii e Zie”, gravado com uma banda formada por músicos jovens. Sua opinião é sempre ouvida, a respeito da capacidade de políticos, da qualidade de novos artistas ou, mais recentemente, sobre a questão dos direitos autorais e a internet. E não é só Caetano. Tom Zé foi alçado, com justiça, a seu posto de gênio, Gilberto Gil cumpriu seu mandato de ministro da Cultura e Os Mutantes são febre na Europa eEstadosUnidos.Maisde40anos depois do lançamento do disco-manifesto do movimento, a Tropicália mostra que não foi uma agitação passageira, e que suas propostas e protagonistas

ARQUIVO AG

Como achar Fellini genial e não gostar de Zé do Caixão? Por que o Mariaaschi Maeschi é mais místico do que Arigó?”

Torquato Neto, no texto “O Tropicalismo para principiantes”

OUTROS TROPICALISTAS Conheça alguns coadjuvantes e personagens dos bastidores da história da Tropicália David Byrne: músico escocês, líder da banda Talking Heads, é um dos principais responsáveis pela divulgação da Tropicália no exterior. Guilherme Araújo: produtor e empresário que orientou o início da carreira dos baianos, sugeriu a Caetano usar a frase “É proibido proibir”.

continuaminfluenciandoeorientando não só a produção artística comotambémaformadepensara cultura no Brasil. LINHA EVOLUTIVA

No momento de embrutecimento da ditadura militar e de cerrada patrulhaideológica,afiguradejovens cabeludos misturando guitarras elétricas,Chacrinha,CinemaNovo e Roberto Carlos era assustadora. Sob o propósito de dar continuidade à “linha evolutiva” da música brasileira e se irmanar às tendências que vinham de fora, os tropicalistas evocavam o Antropofagismo da geração de 22. Se a forma era violenta e de ruptura, por outro lado o processo de criação proposto nãoeranadainédito.Aproveitarinformações estrangeiras para desenvolver características próprias é uma constante na formação da música brasileira e não faltam exemplos para comprovar. O choro nasce no fim do século XIX como um jeito rebolado de se tocar danças europeias, como a polca. Villa-Lobos deu cores eruditas a gêneros e instrumentos po-

ALEGRIA, ALEGRIA.

Caetano Veloso e Gilberto Gil no auge do Tropicalismo: artífices do movimento dialogam com a juventude atual e vivem em constante renovação

Hélio Oticica: artista plástico famoso pelos parangolés, esculturas móveis para vestir. Criou a “Tropicália” (foto acima), obra que deu nome ao movimento.

Vocês não estão entendendo nada”

Caetano Veloso reagindo às vaias a “É Proibido Proibir”, no Festival Internacional da Canção, em setembro de 1968

Lennie Dale: dançarino, participou do show “Momento 68”, com Caetano Veloso. Fundador do grupo de teatro e dança Dzi Croquetes.

Desde quando jesuítas tocadores de viola encontraram índios dançadoresdecatira,amúsicabrasileira evoluiu por misturas. Ao fazer estardalhaço com o cruzamentoderockevanguardacommúsica brasileira (da Bossa Nova ao repertóriotidopormaiscafonaàépoca), os tropicalistas não se declararam donos ou criadores do método. Mas ao assumirem como característica o que era natural do processo de evolução, fadaram toda tentativa posterior de combinação de elementos a ser carimbada como consequência da Tropicália. Certamente o que chocou o público naquele momento foi a abrangência da proposta sincera de abraçar todo o Brasil. O poeta

Torquato Neto, em seu texto “O Tropicalismo para Principiantes”, pergunta “Como achar Fellini genial e não gostar de Zé do Caixão? Porque o Mariaaschi Maeschi é mais místico do que Arigó?” E responde em tom de confissão que “somos um país assim mesmo”. Como se não bastasse a genial obra musical produzida no período, a Tropicália ainda legou um projeto de Brasil mais complacente com suas próprias peculiaridades. Os artistas ligados ao movimento ainda reivindicavam a liberdade total de temas, instrumentos e processos de criação. Ao incorporarem a guitarra elétrica, o uso artístico de signos cotidianos (como no ready made de Marcel Du-

champ), o gesto cênico do happening e elementos kitsch de cultura de massa, propuseram um processo de criação mais fácil de ser assimilado hoje do que na década de 60. É certo que outros artistas igualmente importantes do período não sefizeramtãoafeitosarenovações. Compositores como Paulinho da ViolaouChicoBuarquefazemparte do mais elevado panteão da arte brasileira, mas não se mostram tão visíveis no dia a dia do fazer (ou opinar)cultural,talvezpordialogarem menos do que os tropicalistas com as novas gerações. Em seu ardente discurso aos estudantes de 68, Caetano diz: “Eu e ele (Gilberto Gil) tivemos a coragem de entrar

Manifesto vai do erudito ao brega

Rogério Duprat: maestro responsável pelos arranjos musicais tropicalistas.

TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENCIS

Manoel Barenbein: produtor musical, trabalhou no disco-manifesto “Tropicália ou Panis et Circencis” e outros álbuns importantes da época.

UNIVERSAL. 12 FAIXAS CD E LP. PREÇO DEPENDE DA RARIDADE DA EDIÇÃO

Nelson Motta: jornalista e compositor onipresente nos movimentos recentes da música brasileira, foi o primeiro “porta-voz” da Tropicália na imprensa.

José Celso Martinez Corrêa: dramaturgo, ator e diretor de teatro. Sua montagem de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, teve profundo impacto intelectual nos tropicalistas.

pulares. Pixinguinha sofreu, quatro décadas antes, as mesmas críticas que os guitarristas, por usar o saxofonenamúsicabrasileira.DodôeOsmardesdeocomeçodadécadade50jáestavameletrizandoo carnaval baiano. E mesmo a Jovem Guarda, tida como representante da dominação cultural ianque, era uma justa mistura de rock com temáticas de samba-canção e boleros em tons menores.

Lanny Gordin: guitarrista presente em gravações com Caetano, Gal e todo o grupo tropicalista.

CRÍTICA

Rogério Duarte: designer criador do pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (filme de Glauber Rocha) e das capas dos primeiros discos solo de Caetano e Gil.

em todas as estruturas e sair de todas, e vocês? E vocês?” Hoje, esse recado poderia ser direcionado a muitos de seus colegas da MPB. O ready made nomeia a principal estratégia de fazer artístico do francês Marcel Duchamp (1887-1968), que consiste no uso de objetos industrializados no âmbito da arte. Happening (do inglês acontecimento) é uma forma de expressão das artes visuais que apresenta características das artes cênicas, como a espontaneidade e a improvisação, e que geralmente envolve a participação do público espectador. Kitsch é um termo de origem alemã usado para designar a arte falseada, uma espécie de engodo artístico da era tecnológica. Usado também para definir trabalhos artísticos ou literários de má qualidade.

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N

o momento de transpor para o vinil “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968)asideiasereferências que ferviam em suas cabeças, o chamado “grupobaiano”(Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Capinam e o piauiense Torquato Neto) se cercou de parceiros de inegável competência. A participação da cantora Nara Leão cantando o bolero “Lindonéia”(inspiradonuma obra do artista plástico Rubens Gerchman) era significativa da filiação musical da Tropicália, mas os elementos essenciais ao resultado sonoro do disco foram Rogério Duprat e os Mutantes. O maestro Duprat vinha de uma relação de longa data com a música

erudita do século XX, familiarizado com os processos composicionais de Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen eJohnCage,efaziaparte do grupo de músicos vanguardistas sob influência do alemão Hans-Joachim Koellreutter. Além disso, tinha muita experiência com música de publicidade e sólida técnica de arranjadorparacriarsonoridades que iam da comicidade ao mais profundo desespero. Já os Mutantes eram um grupo de adolescentes que dominavam com extrema maestria uma outra escola musical igualmente importante na mistura tropicalista: o rock and roll. Conhecedores da evolução do gênero dos primórdios de country e blues ao refinamento psicodélico dos Beatles, eram hábeis instrumentistas e cantores, e foram a faceta pop que faltava à seriedade intelectual do movimento. A soma das capacidadesdessesartistaspossibilitou traduzir musicalmente a colagem de elementos que iam do modernismo e da poesia concreta ao histrionismo brega e às novidades do rock inglês, sintetizada na capa do disco com uma irônica “foto de família” à brasileira. (Fernando Duarte)


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VISUAIS. Gringo Cardia, que participou da edição 2011 dos Seminários ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Internacionais Museu Vale, reflete sobre seu processo de criação

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------REPRODUÇÃO

ção. Não tem como separar isso. OBJETOS, AÇÃO E REAÇÃO

OBRAS DO AUTOR. Cenário do show “As Cidades”, de Chico Buarque, e material gráfico do CD “Barulhinho Bom”, de Marisa Monte

As coisas já estão aí

c

olagem, remix narrativa em banco de dados remix de referências de várias áreas novas tecnologias a maneira que eu trabalho Gringo Cardia é cenógrafo, designer, artista gráfico, arquiteto, diretor de arte e diretor de videoclipes, teatro, ópera e desfile de moda. www.gringo cardia.com.br

Eu acredito, na verdade, que as coisas já estão aí. Você nunca vai inventar uma coisa nova. Você sempre tem referências. Você não é uma pessoa que veio de um planeta e desceu aqui. Uma pessoa já nasce em um mundo que tem uma determinada cultura. Ela assimila essa cultura e fala à sua maneira. Então, vemos que a vida da gente é, e sempre foi uma colagem. Faz parte do ser humano fazer essa mistura e tentar trazer o inconsciente coletivo que existe no mundo. O artista tenta, de alguma forma, colocar na mesa esse inconsciente. Esse poste de luz está sempre aí, todo mundo passa por ele, mas ninguém o enxerga.

Jogar luz em algo corriqueiro, que passa despercebido para grande parte das pessoas. Fiz uma cenografia para um show do Chico Buarque, em que coloquei um único gigante poste de luz realista em cena. Muita gente achou uma coisa fenomenal, mas eu simplesmente coloqueiumpostedeluzderuanofundo do palco do show “As Cidades”. Essepostedeluzestásempreaí, todo mundo passa por ele, mas ninguém o enxerga. Atrás do Chico e no meio do palco, todo mundo observa a poesia da forma estranha daquele poste. Provocar um outro olhar sobre o cotidiano, instigar as pessoas a darem uma olhada ao redor com mais calma, é um elemento sempre presente no meu trabalho. Eu acho que o papel do artista visual é exatamente o de fazer as pessoas terem atenção para coisas que elasnãoveem.Agentenasceucomo

Viajar conhecer todas as coisas do mundo sem preconceitos estéticos com pessoas e coisas na pressuposta breguice, você pode aprender muito. Eu sempre estou aprendendo. Em busca de uma energia gentil e positiva. Respeitar, trabalhar e se divertir. Com humor e com animação, festa e celebração. Celebrar qualquer coisa de maneira que ela fique enorme. Nenhum artista sozinho é uma pessoa especial, diferente das outras. O melhor é sempre o coletivo. O que vem dos outros e que a gente tenta interpretar.

olho maior que todo mundo. Antes de ser artista visual você tem de olhar tudo. Depois que você olhou tudo, você continua olhando. Só aí você pode dizer que está começando a ser um artista visual. Eu acho que quando você traz qualquer detalhezinho para a cena, esse detalhe ganha outro significado. E esse significado faz as pessoas perceberem a poesia que está em volta delas. Como artista visual a gente está aí para mostrar as belezas do mundo. Até quandomostraalgoruim,vocêsempre busca mostrar o que há de bonito. Então, eu acho que o papel da gente é descobrir o mundo e o colocar para as pessoas verem. Dessa forma,otrabalhodoartistaestámuito ligado ao trabalho da comunica-

Eu procuro, o tempo todo, fazer uma cenografia viva, que interaja com o ator, e este, com ela, porque senão não faz sentido, o cenário se tornaumameradecoração.Euacho que, na verdade, os objetos falam pela gente. Eles sempre expressam alguma coisa. Dessa forma, quando faço um cenário, eu sempre penso em algo dinâmico, em que atores e cenário virem uma coisa só. Então, se uma pessoa está subindo uma parede é diferente de ela estar à frente de uma parede. Se essa parede cai em cima dela ou tende a cair, aparedepassaaserumoutroator.É importante no trabalho artístico darumadireção,masnãoserliteral. Você deve deixar as pessoas interpretarem também. Um trabalho que já vai pronto, interpretado, óbvio, torna-se desinteressante para as pessoas, porque elas não estão participando. Então, se você deixa algumas possibilidades, o público participa. Ele vê alternativas, conectando,assim,aarteàvida,jáque na vida as coisas nunca são únicas. Elas podem ser várias. Portanto, fica mais vivo nesse sentido. ARTE, TECNOLOGIA E IMAGEM EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS? EXISTE REALMENTE ALGUMA COISA NOVA?

Acho que não tem nada novo. Tecnologia é fundamental, pois traz novos instrumentos para você trabalhar e se expressar. No entanto, acho que algumas ideias são novas e, às vezes, muito simples. Eu fiz uma exposiçãoemNovaYorkemquepodia usartodaatecnologiaquequisessee usei, mas o que mais emocionou o público foram as sementes da Amazônia,emqueaspessoaspodiambotar a mão. Aí você pensa: “Que tecnologia é essa?” Na verdade, as pessoasquereméinteragireseemocionarcomascoisas.Euacho,nofundo, queatecnologiaéigualaumatesoura,aumacola,ésóummododevocê colocar o seu pensamento e se comunicar. Eu acho que esse deslumbre com a tecnologia é uma idiotice. Ébomagenteterumcarromelhor,o avião ser melhor, tudo ser melhor, mas isso não vai mudar o mundo. Quem vai mudar o mundo é a gente e a cabeça da gente. Publicado originalmente, na íntegra, no livro “Mão de Obra”, na edição 2011 dos Seminários Internacionais Museu Vale


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Vitória precisa de salas pequenas e médias para absorver a produção local, que perdeu espaços tradicionais nos últimos anos TEATRO.

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Caem o pano, as paredes... A luz se apaga. Ficam os sonhos Luiz Tadeu Teixeira é jornalista, diretor de teatro e cinema. Atualmente apresenta o programa CurtaVídeo na TVE-ES. lutalte@terra.com.br

E

m menos de seis meses Vitória perdeu o Teatro da Scav e o Teatro Galpão. Agora a ameaça paira sobre o Armazém do Porto e o Espaço Multicultural de São Pedro. O que é isso? Ataque aéreo? Terremoto? Epidemia de burrice? O último a sair nem precisa apagar a luz e fechar a porta. Luz? Que luz? Portas não existem mais. Fecham as cortinas, caem as paredes, apagam-se os sonhos... O Scav e o Galpão, teatros particulares, eram os únicos capazes de abrigar temporadas contínuas de produções locais. Com isso, viraram peças-chaves na cadeia produtiva que poderia sustentar a atividade do artista e técnico em espetáculos em bases profissionais. Sem esses espaços fica difícil viabilizar a produção local. A menos que classe artística, público, formadores de opinião, empresários e governo formem uma corrente capaz de rever-

BRUNO MIRANDA - 09/12/2004

CRISE. A demolição do Teatro

O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe” (Gilberto Gil) ter uma situação altamente desfavorável a todos. Ter médios e pequenos teatros capazes de absorver a produção é fundamental para a manutenção do calendário local de espetáculos, a exemplo do que ocorre em capitais como Curitiba e Belo Horizonte. Sem esses teatros fica inviável manter uma peça, um balé ou um show musical em temporada contínua, condição indispensável para viabilizar esses projetos e o desenvolvimento artístico e profissional de quem deles participa. Os teatros públicos, de médio e grande portes, geralmente têm sua programação fracionada, intercalada com espetáculos de vários gêneros e procedências. Dificilmente será viável neles pretender mais que um final de semana para produções, locais ou visitantes. E as produções nativas, sem nomes de apelo comercial no elenco, sem um bom suporte financeiro para ban-

Edith Bulhões (antigo SCAV), em agosto de 2010, e o fechamento do Teatro Galpão, em janeiro de 2011, deixaram os artistas locais órfãos de palco para temporadas contínuas; articulista propõe soluções

carumaeficientepublicidade, raramente se viabilizam. Precisam de mais tempo para que aconteça o boca a boca, para que o espetáculo e o artista amadureçam em contato com o público. É preciso buscar parcerias para que novos espaços sejam criados. Existem muitos lojões desativados no Centro de Vitória, galpões e auditórios vazios ou subutilizados que adaptados poderiam integrar uma rede de teatros. O ideal seria que os grupos tivessem seus espaços, suas bases, para ali desenvolverem seu trabalho, sua linguagem, formassem seu público.

Hotéis, escolas, empresas e auditórios diversos são locais potencialmente capazes de abrigar um teatro. A questão agora é viabilizá-los. Nessa hora entrariam os órgãos públicos com incentivos. Poderia ser a isenção do IPTU (como ocorre com as igrejas), o lançamentodeeditaisouprogramas específicos para a criação e a manutenção desses espaços. De que adianta a Lei Rubem Braga ou os editais da Secult criarem mecanismos para a produção de espetáculos se não existirem espaços para levá-losaopúblico,que,afinalde contas, é o objetivo de todos? É claro: apenas espaços para

apresentar espetáculos não resolvem. É preciso também montar espetáculos que interessem ao público. Mas aí é outra história, outro desafio. Um produtor teatral norte-americano, Joe Kantor, saudoso realizador de grandes projetos teatrais em São Paulo, onde vivia nos anos 60, costumava dizer que “não existem teatros deficitários, mas espetáculos fracassados”. Kantor garantia que se o espetáculo interessasse ao público este iria até embaixo da ponte para assisti-lo. Pontes não nos faltam. Mas é preciso percorrê-las para chegar ao outro lado.


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MÚSICA. Oscar Peterson exibe técnica, silêncio e emoção em disco

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gravado ao vivo na Suíça, em 1953, ao lado de um elenco estelar

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TRAJETÓRIA

O piano que traduziu o jazz MESTRE. A imensidão das gravações do pianista é proporcional ao seu virtuosismo

John Lester escreve o blog Jazzseen (jazzseen.blogspot.com) e há 10 anos tenta imitar Charlie Parker com seu sax alto, sem sucesso

P

oliana,aotimistapersonagem da literatura infanto-juvenil, tinha razão: até a tuberculose tem o seu lado bom. Foi essa a doença que afastou Oscar Peterson do trompete, aproximando-o do piano. Aos 14 anos, ele já ganhava concursos de auditório para crianças prodígio e, aos 19, já fazia sucesso no Canadá, onde nasceu. De origem humilde, aprendeucomopaioamorpelo jazz, amor registrado em mais de 60 álbuns para a Ver-

ve, 30 para a Pablo, 15 para a Clef, 15 para a Telarc, 4 para a Mercury, além de outros tantos para a Victor, Mobile Fidelity, MPS, Limelight, Prestige, Can-Am, Columbia, EmArcy, JazzBand,Philology,Fantasye Trolley Car. A imensidão de suas gravações – que, acredito, ultrapassamos200álbunscomolídere mais algumas centenas como sideman – é proporcional ao seu virtuosismo que, em certas passagens, nos faz lembrar dos pianistas Art Tatum e Milt Buckner (com seus block chords – técnica que utiliza blocos de notas tocadas simultaneamente). Os generosos rocamboles de notas, arranjadas como que num gigantesco e aromático buquê, nos remetem a Errol Garner, verdadeiro pote de mel do piano-jazz. Contudo, Oscar estava um passo adiante desses três mes-

Os generosos rocamboles de notas, arranjadas como que num gigantesco e aromático buquê, nos remetem a Errol Garner, verdadeiro pote de mel do piano-jazz. tres, sabendo administrar com maestria a profusão de ideias musicais que lhe passavam pela cabeça, economizando inteligentemente a emissão de notas e utilizando com mais simpatia o silêncio, embora sempre com a velocidade alucinante de uma pantera negra que se lança à caça. Todas essas características

Estudo. Oscar Peterson nasceu em Montreal, em 1925, começando a estudar piano aos seis anos. Seu entusiasmo pelo jazz traduzia-se em benéficas e longas horas de prática, do que resultou uma técnica quase insuperável entre os pianistas de jazz de sua geração. Nos anos 40 já tocava em rádios canadenses e, em 1944, passa a integrar a bemsucedida orquestra de Johnny Holmes para, logo em seguida, liderar seu próprio trio. Encontros. Em mais de 60 anos de carreira, apresenta-se ou grava com figuras diversas e estilisticamente bastante distintas entre si, como Lester Young, Charlie Parker, Ben Webster, Stan Getz, Benny Carter, Louis Armstrong, Count Basie, Billie Holiday, Ella Fitzgerald e muitos outros. Alguns de seus encontros mais memoráveis foram registrados durante as apresentações do JATP, Jazz At The Philharmonic, criado por Norman Granz, produtor responsável por sua estreia nos EUA, em setembro de 1949, no Carnegie Hall. Songbooks. Mantendo excelentes trios durante toda a carreira – muitos deles com o guitarrista Herb Ellis –, Oscar registra uma série de álbuns com songbooks de Cole Porter, Duke Ellington e vários outros, além de tentar a composição (“Canadian Suite”). Mas é como um alquimista das 88 teclas que Oscar vai ficar em nossa memória e nos inumeráveis registros que ele nos deixou ao longo de uma carreira praticamente sem apelo ao fácil e ao comercial. Tocou até a sua morte, em 2007.

OSCAR PETERSON

JATP LAUSANNE 1953 – OSCAR PETERSON & FRIENDS BISCOITO FINO. 8 FAIXAS QUANTO: R$ 35, EM MÉDIA

estão presentes no excelente álbum “JATP Lausanne 1953 Oscar Peterson & Friends”, lançado no Brasil pela gravadora Biscoito Fino. Acompanhado por alguns dos melhores músicos de jazz doperíodo,comootrompetista Charlie Shavers, os saxofonistas tenores Flip Phillips e Lester Young, e o saxofonista alto Willie Smith, Oscar inicia o álbum com o clássico tema “C Jam Blues”, desenvolvido em quase 20 minutos de improvisos memoráveis. A faixa seguinte é um medley, reunindo três sedutoras baladas, “I Cover the Waterfront”, “Indian Summer” e “Isn't this a Lovely Day”, em que cada um dos saxofonistas demonstra suas habilidades. Na terceira faixa do álbum, “DarkEyes”,éavezdeShavers levantar o público com sua contagiante técnica. O espírito de jam session retorna na faixa seguinte, “Cottontail”, interpretada em velocidade alucinante, com destaque para o solo do baterista Gene Krupa. As duas últimas faixas do álbum, “Tea for Two” e “Idaho”, são interpretadas por uma forma pouco usual de trio: piano, sax alto e bateria, ocasião em que Oscar pode finalmente abandonar a discreta posição de acompanhante para demonstrar toda sua capacidade como solista. SWING

Não sendo nada fácil classificar seu estilo, posso dizer que Oscar está mais bem alocado na estante do swing, embora sua originalidade e capacidade inventiva possam, em alguns momentos, nos levar a classificá-lo como pianista do bebop ou, até mesmo, do stride ou do hard bop (ele conhecia e dominava as linguagens tanto de um James P. Johnson quanto a de um Bill Evans). Mas as praias de Oscar Peterson e, digamos, Bud Powell (em minha opinião o melhor pianista do estilo bebop), não são exatamente as mesmas. EnquantoapraiadeOscartem areia clara, mar azul e muito sol, a de Bud é abrupta falésia em dia de nevoeiro e chuva.


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E POR FALAR EM SAUDADE... Rogério Coimbra conta os bastidores do

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show da cantora no Teatro Carlos Gomes, em 23 de outubro de 1977

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Uma noite inesquecível com Sarah Vaughan em Vitória

O Rogério Coimbra é produtor cultural, pesquisador de história da música e autor do blog Música nas Alturas. Foi chefe de Promoções da extinta Fundação Cultural. www.musicanasalturas. blogspot.com

s grandes espetáculos internacionais em Vitória aconteceram nos anos 1977/78/79 quando a antiga Fundação Cultural estava sob o comandodeMarienCalixte.Nomeio campo Sônia Cabral, Afonso Abreueeunosdesdobrávamosem produzir nomes como o de Astor Piazzolla, Art Blakey, Passport, Dave Brubeck, John York, entre tantos. Cada evento tem sua história que nós quatro bem podemos contar. Hoje vale lembrar de Sarah Vaughan, The Divine One. Sassy desembarcou em Vitória num sábado de primavera com uma enorme cabeleira. Cabelos armados eram moda. Sua troupe era o pianista Carl Schroeder, o baixista Walter Booker e o baterista JimmyCobb.AlojadosnoHotelSenac, veio o alvoroço pois tínhamos um dia curto para os preparativos. Sônia Cabral e Marien Calixte encarregaram-se de ciceronear a estrela. O point era o restaurante do Ferrinho.Schroedersumiu,assimcomo Mr. Cobb. Walter Booker não largou do meu pé. As atenções estavam focadas no show de domingo no Carlos Gomes. Comosempreacontecenumdomingo em Vitória, a cidade assusta, aindamaisànoite,quandosócirculam fantasmas. Fiquei no camarim doterceiroandardoteatrocomMrs Vaughan. Eu e a musa, a sós, luzes apagadas, pois as da rua eram suficientes.WalterBookerpassourápido com a missão de passar-lhe uma poderosacigarrilhacujafumaçaexpelida deixava-nos lerdos e feridos pelo insuportável silêncio da cida-

Fiquei no camarim do terceiro andar do teatro com Mrs Vaughan. Eu e a musa, a sós, luzes apagadas, pois as da rua eram suficientes.

ACERVO MARIEN CALIXTE

HISTÓRICO. Sarah Vaughan no restaurante Ferrinho, em Camburi, ao lado

de Sônia e Manuela Cabral, Luiz Paixão e o pianista Carl Schroeder

de.Elaficoufixadiantedotoucador resmungando, ou cantarolando. Nunca esqueci da frase que ela soltou:“Oqueagentenãotemquefazer para ganhar a vida...” Tradução instantânea e imediata melancolia ao deslumbrar as ruas desertas. Fomos despertados pelo segundo sinal: hora do show. Foi uma noite burocrática, profissional, com o insuportávelcalordoteatro.MrsVaughanenxugavaasaxilascomlençosdepapel e os atirava sobre a plateia, num evidente protesto profissional. Mas o melhor estava por vir. Foi marcado um jantar na casa de Sônia Cabral, um daqueles sempre lautos jantares que aconteciam após os espetáculos. Houve resistência por parte do grupo, mas, diante de insistência minha e de Arlindo Castro, embarcamos no meufusquinha.Eudirigindo,Sassy ao meu lado e, no banco atrás, aquela montanha de carne: Walter Brooker e Jimmy Cobb esmagando Arlindinho. Mr Booker providenciou outra cigarrilha mágica. Com os vidros cerrados, para não poluir a cidade, ficamos a passear pela Praia do Canto e Camburi, num

REGISTRO NA IMPRENSA

Documento. O show da cantora em Vitória foi capa do Caderno Dois de A GAZETA em 21 de outubro de 1977

tempo que parecia não terminar. De repente Mrs Vaughan sentenciou: “ I’m hungry, let’s eat.” Lembrei que em Vitória não tinha nada aberto àquela hora. Ponderei sobre o jantar e que seria simpático comparecermos; o ambiente

seria agradável, sem tietagem e tudomaisqueaconvencesseair.Alarica falou mais alto. “Let’s go”. Estacionei o fusca e quando estávamos na rua observei que saía a fumaça mágica da cabeleira armada de Mrs Vaughan. Começamos a rir e não conseguíamos parar. Pisamos a varandadacasadeSôniaeMarílioCabral e retornamos diante de tanta genteaguardandoaestreladanoite. Enfimentramosemfilaindianacircundandoalongamesacomaquele irresistível banquete cuja peça principal era um sedutor bacalhau. Demos pelo menos umas três voltas pela mesa, rindo, simplesmente rindo.Osconvivasnãoentenderam muito mas, como já estavam há algum tempo esperando, tiveram no scotch um poderoso aliado para morreremderirtambém,afinal,estávamos todos lá, reunidos, felizes com o acontecimento, Marien Calixte muito mais. Apresentações feitas, tornamo-nos um grupo social. Cada um foi criando seu grupinho e eu colei em Jimmy Cobb para ouvir as histórias de Miles Davis e John Coltrane. Ele portava no bolso de sua camisa um pente que a cada minuto tirava e passava no cabelo. E contava histórias como se estivesse executando um longo solo de bateria. Schroeder não apareceu no jantar. Foi uma noite fantástica. Plena madrugada,todossoltos,lânguidos; nasalaumpianomeiacaudanoqual o saudoso Manolo Cabral exercitavaseutalento.Pelaluzdeumabajur a silhueta de Marílio Cabral dedilhando um contrabaixo. Mrs Vaughan, com um copo na mão, aproxima-se do piano, senta-se e começa a tocar. Muitos cochilavam mas os atentos se aproximaram. A madrugada estendeu-se e na manhã seguinte as estrelas voltavam para o céu. Ninguém sabe ao certo se Schroeder foi também. Mr. Cobb hoje está com 82 anos e em plena atividade, assim como Schroeder. Mr Booker faleceu em 2006 e Mrs Vaughan em 1990.


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