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VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
www.agazeta.com.br DIVULGAÇÃO
Entrelinhas
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO BUSCA A WOODSTOCK PERDIDA NO PASSADO.
Página 3
Política
PRODUTOR CRITICA A GESTÃO CULTURAL DE GOVERNOS E MUNICÍPIOS. Página 4
Música
A GLÓRIA E A GARRA DO BLUES NA GUITARRA DE STEVIE RAY VAUGHAN. Página 5
Cinema
ENSAIO REGISTRA A LIGAÇÃO DE GLAUBER ROCHA COM A REVOLUÇÃO CUBANA. Páginas 10 e 11
O enigma de Artaud OS MITOS E VERDADES SOBRE O ARTISTA QUE REVOLUCIONOU O TEATRO DO SÉCULO XX
Págs. 6 e 7
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
quem pensa
Karina de Rezende Tavares Fleury é doutoranda em Letras (Ufes). Membro da AFESL e do IHGES. karina.fleury@gmail.com
Juca Magalhães é blogueiro de crônicas, professor de música e produtor cultural. aletraelektronica@gmail.com Camilo Ceolin é administrador, professor universitário e pesquisador de blues, jazz e rock. camiloceolin@yahoo.com.br
Wilson Coêlho é Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris. wilsoncoelho@gmail.com
Hans Hansen é fotógrafo alemão, tem 70 anos e vive em Hamburgo. Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br José Augusto Carvalho é doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. joauca@hotmail.com Sandra Sarmento é poeta, compositora e membro da Academia de Letras Humberto de Campos. Marcos Veronese é jornalista, diretor de cinema e vídeo. marcosveronese@bol.com.br
Marco Valério Magalhães é autor do blog e do programa de rádio “Um Bando de Bandas”. lupu333@yahoo.com.br Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam.
marque na agenda prateleira Universidade Ufes sedia Jornada de Psicanálise
O Grupo de Pesquisa Psicanálise na Universidade realiza as Jornadas de Pesquisa e Extensão 2012, na próxima sexta, das 17h às 19h30, e sábado, das 8h às 17h30. Os encontros vão acontecer no auditório do CCE (atrás do IC-1), no campus de Goiabeiras. Mais informações: pesquisaeextensaoufes@gmail.com. Entrada franca.
Cultura política Antropólogo lança livro em Vitória
O pesquisador holandês Geert Banck apresenta o volume “Dilemas e Símbolos - Estudos sobre a cultura política do Espírito Santo”, no dia 13 de setembro, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual. Avenida João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória.
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de setembro
Neida Lúcia Moraes no Café Literário Sesc
A escritora vai falar sobre o seu romance histórico “À Sombra do Holocausto”, baseado na história da Inquisição no Espírito Santo, terça-feira, às 19h, no Centro Cultural Majestic. O evento terá mediação do escritor Anaximandro Amorim. Entrada franca.
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de setembro
A MPB elegante de Zé Renato e Kátia Rocha
Os cantores se apresentam na próxima quinta, a partir das 20h, na Estação Porto, dentro do projeto Porto MPB. Entrada franca.
Notícias do Planalto – A Imprensa e o Poder nos anos Collor Mario Sergio Conti
Lançado em 1999, o trabalho documental de Mario Sergio Conti consolidou-se como um marco do jornalismo político brasileiro ao revelar como a imprensa do país primeiro impulsionou Collor à presidência e depois o depôs. A edição econômica traz o texto integral. 528 páginas. Companhia das Letras. R$ 39,50
A Fórmula da Eterna Juventude e Outros Experimentos Nazistas Carlos de Nápoli
O historiador argentino relata cada uma das etapas da fórmula nazista para alcançar o rejuvenescimento humano e os terríveis experimentos para consegui-lo, exercidos sem piedade sobre os corpos dos prisioneiros judeus. 240 páginas. Civilização Brasileira. R$ 32,90
Poemas Escolhidos Elizabeth Bishop
A antologia de uma das mais importantes vozes da poesia norte-americana apresenta grande parte dos poemas que a autora publicou em vida, além de textos póstumos e aqueles que a poeta escreveu sobre o Brasil, resultado das quase duas décadas em que morou no país. 416 páginas. Companhia das Letras. R$ 44,50
A Caixa de Pandora Ferdie Addis
Neste volume, o pesquisador relaciona as origens das expressões mitológicas que usamos no dia a dia, além de oferecer informações variadas sobre a Antiguidade. 192 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90
coletivo.peixaria@gmail.com
DECIFRANDO O ARTISTA
José Roberto Santos Neves
Passados mais de 60 anos de sua morte, Antonin Artaud (1896-1948) permanece como um enigma no campo das artes. Para os leigos, sua obra anárquica é impossível de ser colocada em prática. Para os acadêmicos, ele é estudado apenas como louco ou como homem de teatro e cinema. Há, ainda, os fanáticos que tentam enquadrá-lo na categoria de mito, eliminando o seu aspecto humano. A própria França, seu país natal, tinha uma espécie de dívida com este criador compulsivo que rompeu com os surrealistas na década de 1920 e passou os últimos nove anos de sua vida
Pensar na web
internado em diversos hospitais psiquiátricos. Essa personalidade complexa é decifrada pela pesquisadora Florence Méredieu em “Eis Antonin Artaud”, a mais completa biografia do artista francês. Estudioso de Artaud há mais de três décadas, Wilson Coêlho leu o volume de mais de mil páginas e apresenta a sua visão do livro e do biografado nas páginas centrais desta edição. Wilson chama a atenção para a “série de equívocos e especulações absurdas” sobre um personagem cuja contribuição para a arte e o mundo permanece atual. Vale a pena ler. Bom sábado, bom Pensar.
é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.
jrneves@redegazeta.com.br
Imagens de Antonin Artaud no cinema, vídeos de Stevie Ray Vaughan, trailers de filmes de Glauber Rocha e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br.
Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493
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entrelinhas
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por KARINA DE REZENDE TAVARES FLEURY
UMA VIAGEM EM BUSCA DE SI MESMO
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er é viajar sem sair do lugar. É um clichê! Eu sei! Mas não encontrei maneira melhor para expressar as horas que passei em companhia de Marilda e Zezé Brandão, Márcia e Ignácio de Loyola Brandão, sendo este o narrador de “Acordei em Woodstock: viagem, memórias, perplexidades” (2011). Estar em Woodstock, local onde ocorreu o mais importante festival de música de todos os tempos, foi o elemento motivador que levou o quarteto a empreender, entre 23 de setembro a 7 de outubro de 2000, um passeio de carro pela Nova Inglaterra (EUA). As anotações feitas pelo autor em seu caderno de viagem, que a partir da décima terceira página do livro passa a ser datado como se fosse um diário (no canto direito, no alto da folha, a data sábado, 23 de setembro de 2000 - abre a sequência dos dias registrados), nos dão a falsa ideia de que os fatos serão apresentados numa sequência lógica, obedecendo ao ritmo dos acontecimentos vividos durante a viagem. No entanto, não é isso o que se vê. Loyola quebra essa expectativa de um enredo óbvio, linear, e propõe ao leitor momentos de múltiplas viagens. Mais preocupado com o que diz do que propriamente com a forma como diz, a proposta desse relato é ser “despretensioso”, como afirma o escritor. O texto é composto de “idas e vindas, de pensamentos esparsos, anotações soltas, pequenos incidentes, lembranças, pessoas que retornam, o cotidiano transfigurado” (p. 10). Há também as colagens de cartões-postais comprados durante a viagem, cartões de visita, fotografias, comprovante de pagamento emitido pela butique Giorgio Armani, capas de livros, folhas do jardim das pousadas em que se hospedaram, recorte de notícia de jornal e uma folha de seu caderno de viagens (ao estilo dos produzidos pelo fotógrafo americano que retratou a África, Peter Beard), onde se pode ler textos escritos à mão. Tudo serve como recurso para diversificar as técnicas de composição dessa narrativa que fala de viagens, memórias e perplexidades.
Atmosfera
É para aliviar o sentimento de insuficiência que temos perante uma obra, um museu ou a história da vida de um autor que nos captura com sua escrita, que, muitas vezes, nos deparamos com o desejo de querer mergulhar no universo do artista e de constatar os detalhes que compuseram a atmosfera de sua vida e obra.
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
ACORDEI EM WOODSTOCK VIAGEM, MEMÓRIAS, PERPLEXIDADES Ignácio de Loyola Brandão. Global. 288 páginas. Quanto: R$ 30,40
ANDRÉ CONTI/AG. ESTADO
Ignácio de Loyola Brandão leva o leitor a transitar entre o real e o ficcional através de um passeio de carro pelos EUA
Orhan Pamuk, em “O romancista ingênuo e sentimental” (2011), também nos fala sobre essa questão (esse livro foi resenhado por mim e publicado no Caderno Pensar, em 16/06/2012, p. 3). Quantas vezes, ao concluirmos uma viagem de turismo, não nos invade aquela sensação de que deveríamos ter ido neste ou naquele lugar, de que poderíamos ter desacelerado um pouco o ritmo de turistas e ter interagido mais com a natureza, com a cultura e com os moradores do lugar? Resta-nos amargar aquele “gosto de quero mais”; ou organizar uma nova empreitada a fim de recuperar os tesouros que ficaram para trás; ou, ainda, como no caso de Loyola, que é um fã confesso de biografias (“Gosto de biografias e de livros de correspondência, assim como gosto de ver fotos de autores”, p. 149), embarcar na viagem contada por terceiros, como nós nas mãos de Loyola. Em “Acordei em Woodstock”, Loyola nos revela outras de suas paixões além da literatura: a música e, sobretudo, o cinema. Ao longo das 288 páginas de narrativa, ele demonstra, com muita naturalidade, o homem erudito que é, e dá, aos amantes do cinema, uma lista de “alguns dos melhores filmes de todos os tempos”, “filmes memoráveis”, realizados por Billy Wilder, como “Pacto de sangue”, “Farrapo humano”,
TRECHO “Quando embarco, sei que farei algumas viagens simultâneas. A real, em que desfruto o que observo, me toca, me impressiona. A outra vem com a memória acionada por fotografias, palavras, situações, imagens, cheiros, músicas (ou o simples abrir de uma porta) me devolvendo fragmentos da vida. E a terceira em que misturo fantasia e imaginação. Eu, o que fui, o que sou, o que desejava, o que fomos, o que somos” (Página 10)
“O pecado mora ao lado”, “Crepúsculo dos deuses”, entre outros (p. 135). Em várias partes do texto, como as que citamos acima, a sequência narrativa do diário se abre para dar espaço aos fluxos de memória do autor: “O tempo desaparece em White River Junction. Demorou para tudo ficar claro. O processo fascina. Maravilhas da mente. Aquela cidadezinha foi um ponto de passagem, referencial na literatura e no cinema” (p. 130). Nesta obra, ele nos leva a transitar entre o real e o ficcional, intercalando fragmentos, anotações do dia a dia, memórias afetivas, brincadeiras, recordações particulares, lugares que se ligam a leituras ou filmes. A chegada à cidade de Nova York faz com que a narrativa se despedace, deixando de ser cronológica para transformar-se em “videoclipe, com instantes lembrados fragmentariamente, de acordo com a própria maneira de ser da cidade” (p. 221). “A narrativa sobre a viagem muda de tom em Nova York” (p. 222) e com a mudança vêm as indagações de ser e de estar no mundo. Ao buscar a Woodstock perdida no passado, o autor partiu para uma viagem em busca de si mesmo, de redescobertas e de reencontros surpreendentes, como a vida é.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
políticas públicas por JUCA MAGALHÃES
A DIFERENÇA ENTRE AÇÃO CULTURAL E EVENTO Para professor de música, governo e prefeituras não possuem modelo de gestão definido para a área, e grande parte do orçamento das pastas é destinada a shows e festas pontuais
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az um tempão fomos convidados a representar o rock (imaginem) numa reunião com responsáveis pela gestão estadual da cultura. A ideia era captar uma visão da realidade dos “artistas da terra” (bananas, como diria Alexandre Lima) e ajudar a definir metas e diretrizes com relação às ações e fazeres públicos. Daquela reunião, lembro muito de um senhor que fazia parte de um regional tradicional (acho que era o mestre Aquiles) e que, lá pelas tantas, se encheu do blablablá e perguntou assim: “Vocês estão esperando eu morrer para me homenagear? Façam alguma coisa agora!” Uns vinte e tantos anos se passaram e, curiosamente, muito pouca coisa mudou com relação a essas reuniões. Compus e gravei algumas músicas; pesquisei, escrevi e publiquei dois livros; estudei, toquei, ensinei e palestrei. Por duas ocasiões trabalhei para secretarias de cultura, conheci boas iniciativas e outras bastante oportunistas e equivocadas. Vi muitos artistas “perderem a razão” perante as mumunhas da coisa pública, uns com bons motivos, outros por desconhecimento assumido. Estes nem deviam reclamar (mas como o faziam), afinal: como nem estar aí para uma coisa e querer ou imaginar que ela deveria estar aí para você? Artista é, por definição, alguém que produz arte e “que faz dela profissão”. Porém, quando acontecem essas reuniões políticas com a “classe de artistas” aparece um número grande de pessoas que trabalha eventualmente com arte, mas não cria bens culturais de consumo. São os conhecidos “promotores de eventos”, muitas vezes mais respeitados que os próprios artistas, pelo menos aqui no Espírito Santo. Nessa hora de pensar políticas públicas de base o certo seria separar algumas instâncias entre criar e produzir, mas isso não acontece e dificulta o foco. São tantas vertentes e iniciativas importantes em nossa cultura que estabelecer prioridades é sempre um desafio. Os próprios profissionais lotados em secretarias de cultura até o momento não parecem ter atentado para a necessidade de estabelecer um limite entre “evento” e “ação cultural” e veem com naturalidade grande parte da verba ser desperdiçada nas festas da cidade. Isso acontece porque não existe uma política clara e definida
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assassinada por candidatos a prefeito. O conteúdo da missiva é bacana, mas é também tão abrangente que acaba soando confuso, porque não tenho certeza que seja possível abraçar os “múltiplos aspectos” da dita “diversidade cultural” brasileira e ainda fazer relações com meio ambiente (!). A maioria dos prefeitos não percebe muito bem o que é cultura, menos ainda consegue quantificar sua importância, quando a compara com pastas menos subjetivas como saúde e segurança. Não seria a hora de pensar simples e propor soluções pragmáticas?
Conceitos
O processo de ação cultural resume-se na criação ou organização necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem, assim, sujeitos da cultura e não seus objetos” —
Francis Jeanson jornalista e filósofo
para a cultura – basta comparar com a educação. As pessoas das secretarias acham que estão “mandando bem” quando “criam” projetos “itinerantes” com oficinas e apresentações que migram pelas comunidades. Já imaginou como fun-
cionariam, ou qual efeito educacional teriam, em longo prazo, aulas “itinerantes” de matemática e português? Em Brasília, existe hoje a “Frente Parlamentar em Defesa da Cultura”, que concebeu uma carta compromisso a ser
Minha primeira contribuição para o Caderno Pensar de A GAZETA foi um texto intitulado “Cultura para quem?” Nele já defendia alguns conceitos que vinham da experiência como professor do curso de Biblioteconomia e hoje, cada vez mais, de música popular e erudita. Participei na orientação da tese de conclusão de curso de dois alunos (Lausi e Valmir) que mencionavam a obra “L'action Culturelle dans la cite” (1973), do jornalista e filósofo Francis Jeanson (1922-2009), para quem a única ação cultural válida é a de formação, aquela que fornece instrumentos de trabalho para o surgimento de novos criadores. É claro que os grandes eventos de uma cidade são importantes, porém são pontuais, portanto, sua relevância enquanto ação cultural é nula, quando muito têm impacto no comércio e no turismo da cidade e talvez devessem ser vistos assim: pelo valor turístico ou cívico, que seja; cultural, jamais. Ainda quero ver um candidato a prefeito defender a dissociação entre ação cultural e evento, e a criação de núcleos de ensino formal de arte, a exemplo de outras cidades do país, ou mesmo a Venezuela, que é referência em ensino de música para o mundo. Existe hoje uma demanda enorme por esse tipo de iniciativa longe de ser atendida. Enquanto os municípios fervem uma ou duas vezes por ano com apresentações públicas de astros nacionais, seus próprios artistas (como o caso do mestre Aquiles) são ignorados e seu talento desperdiçado por falta de uma política formadora que proporcione o acesso e o domínio das ferramentas de criação cultural.
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falando de música
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por CAMILO CEOLIN
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
A GUITARRA CHORA O FUTURO NÃO VIVIDO
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cenário para o blues no início dos anos 1980 era trágico. Só como exemplo, Buddy Guy, um dos maiores guitarristas e bluesman da história, estava implorando por um contrato com alguma gravadora. Até o “Rei do Blues” estava numa situação ruim: já não era tão fácil para B.B. King conseguir um contrato. Mas eis que na cidade norte-americana de Austin, no Texas, surge um branco magricela tocando e cantando blues como um negro. Stevie Ray Vaughan apareceu do nada no início dos anos 1980 para proporcionar a última grande inovação no mundo do blues. Sua curta e profícua carreira pôde ser apreciada pelo grande público desde o lançamento de seu magnífico álbum de estreia, “Texas Flood”, em 1983, até a sua morte num trágico acidente de helicóptero, há 22 anos, em 27 de agosto de 1990. “Texas Flood” obteve repercussão estupenda no meio da música em geral, não só entre os blueseiros. Que som era aquele! Que guitarra feroz e intensa! Stevie tocava com a urgência de quem dependia daquela chance para fazer sucesso. E tocou como nunca. Como se diz na gíria dos guitarristas, Stevie “desceu o braço” na sua Fender Stratocaster, batizada por ele de “Number One” (Número Um), e tirou dela riffs, licks, turnarounds e bends furiosos, flamejantes e intensos. Seu som fluía e ele parecia não se perder nunca. As cordas grossas da guitarra, quase sempre afinada meio tom abaixo, com a sua palhetada firme, precisa e suingada, produziam um som que destilava a fúria de Hendrix, a finesse de B.B. King, a crueza de Robert Johnson e a classe de Albert King. O blues estava vivo de novo. O sucesso dos dois próximos álbuns, “Couldn’t Stand the Weather” (1984) e “Soul to Soul” (1985), pôs Stevie no topo do mundo da música. De quebra, o blues voltou a ficar em evidência. O visual extravagante, os indefectíveis chapéus, a voz anasalada e potente e, é claro, uma guitarra com muita personalidade, fizeram de Stevie Ray Vaughan um novo ícone do blues. Seu séquito de fãs não parava de crescer. Guitarristas de todas as vertentes, do blues ao hard rock, reverenciavam o seu som. Todos os guitar heroes da época desejavam “dar uma canja” com ele: Eric Clapton, Jeff Beck, B.B. King, Buddy Guy, Albert King, Robert Cray, Albert Collins e outros. Tanto sucesso teve um efeito colateral: o abuso de álcool e drogas pesadas. Certa feita, Stevie quase foi a óbito por causa de
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uma hemorragia no estômago que o fez vomitar muito sangue. Internado numa clínica de desintoxicação, saiu de cena por alguns meses, mas recuperou a vida. Sóbrio, anunciou que estava indo pro estúdio gravar canções inéditas para um novo álbum. Muita gente atribuía ao álcool e às drogas a explicação para o talento de Stevie, como se essas substâncias químicas fossem os propulsores do fantástico som que ele emulava. Ledo engano. “In Step” saiu em 1989 e trouxe um Stevie sóbrio em canções que falavam da sua luta contra seus vícios, como em “Crossfire” (que tem um dos solos mais geniais de sua carreira) ou na espetacular “Tightrope”. Stevie provara ao mundo que não era um fenômeno por causa das drogas, mas apesar delas. Um show de divulgação de “In Step” foi transformado no DVD “Live in Austin”. O solo que Stevie toca em “Thightrope” neste DVD é tão arrebatador que deveria ser obrigatoriamente assistido por qualquer iniciante em guitarra elétrica (pra falar a verdade, até para certos veteranos preguiçosos).
Helicóptero
Stevie Ray Vaughan: para muitos, a última grande inovação no mundo do blues
Em 22 de agosto de 1990, Stevie fez mais uma apresentação em sua turnê americana. Terminado o show e com pressa de chegar em Chicago, seu próximo destino, ele resolveu ir de helicóptero, desobedecendo aos avisos de perigo por causa do mau tempo. Minutos depois da decolagem, o helicóptero bateu numa rampa de uma estação de esqui e o matou. Tinha 35 anos. A morte de Stevie Ray Vaughan foi amargamente lamentada. Anos depois, alguns de seus fãs tornaram-se músicos profissionais e cuidaram de manter acesa a chama do blues. Gente como Jonny Lang, Kenny Wayne Shepherd, Joe Bonamassa, Gary Clark Jr e John Mayer são fãs declarados de Stevie. O tamanho da perda de Stevie Ray Vaughan é incalculável. A sua obra, construída numa breve carreira, é avassaladora e inspira muitos até hoje. É triste ver um músico tão brilhante e tão importante ter uma vida ceifada muito cedo e de maneira trágica. Fico aqui pensando no que Stevie estaria fazendo hoje com tanto talento e tanta vontade de tocar e compor. Aonde ele chegaria com tanta garra, paixão e determinação? Se passados 22 anos de sua morte ele continua sendo lembrado e reverenciado como o homem que salvou o blues do fundo do poço, só posso concluir que pensar em Stevie Ray Vaughan hoje é pensar no desperdício de um futuro não vivido.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
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vanguarda
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por WILSON COÊLHO
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012
Com a edição de “Eis Antonin Artaud”, de Florence Méredieu, a França resgata uma espécie de dívida com o escritor, poeta, dramaturgo, roteirista, ator, desenhista e criador do “Teatro da Crueldade”
PARA ACABAR COM O MITO DE ARTAUD
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Filmografia Ator: “Fait-divers”, de Claude Autant-Lara (1922) “Matusalém”, de Yvan Goll (1924) “Surcouf”, de Luitz Morat (1924) “Graziela”, de Marcel Vandal (1925) “O Judeu Errante”, de Luitz Morat (1926)
“Napoleão”, de Abel Gance (1927, foto acima) “A Paixão de Joana D’Arc”, de Carl Dreyer (1928) “O dinheiro”, de Marcel L’Herbier (1928) “Verdun, Visões de História”, de Léon Porier (1928) – versão muda “Tarakanova”, de Raymond Bernard (1929) “Verdun, Visões de História”, de Léon Porier (1931) – versão sonora “A Ópera dos Três Vinténs”, de Georg Pabst (1931) “A Mulher de uma Noite”, de Marcel L’Herbier (1931) “Faubourg Montmartre”, de Raymond Bernard (1931) “As Cruzes de Madeira”, de Raymond Bernard (1932) “Tiros na Madrugada”, de Serge de Poligny (1932) “A Filha de Minha Irmã”, de Henri Wullschleger (1932) “Mater Dolorosa”, de Abel Gance (1933) “Liliom”, de Fritz Lang (1934) “Sidonie Panache”, de Henri Wullschleger (1934) “Lucrécia Bórgia”, de Abel Gance (1935) “Koenigsmark”, de Maurice Tourneur (1935)
PESQUISADOR ANALISA A BIOGRAFIA MAIS COMPLETA DO ARTISTA QUE VIVEU ENTRE A GENIALIDADE E A LOUCURA
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onforme narrativa de Florence Mèredieu, em seu “Eis Antonin Artaud”, “aos 4 de setembro de 1896, às 8 horas da manhã, ao final de uma gravidez normal, Antoine Marie Joseph Artaud sai do ventre materno, na rua do Jardin-des-Plantes, 15, em Marselha. Antoine, Marie, Joseph: a criança leva os dois nomes muito cristãos da Virgem Maria e de José, o carpinteiro. É concebido, então, como sendo ‘da Sagrada Família’. Fato que ele especificará mais tarde...”. Do muito que se tem escrito ao redor do nome de Artaud em várias partes do mundo, há uma série de equívocos e especulações absurdas. Insistem num processo de mitificação que acaba por assassinar o homem Artaud, colocando-o num plano onde deve ser adorado sem espaços para diálogo ou reflexão. São impressionantes as leituras que se tem feito, desde os mais ignorantes até os acadêmicos, passando, obviamente, pelos fanáticos. Aos olhos dos ignorantes, talvez os mais sinceros, Artaud se apresenta mesmo como um enigma e toda sua obra lhes parece inviável, ou seja, impossível de ser colocada em prática. No caso dos aca-
dêmicos, fazendo jus a um tipo de mentalidade departamental das cátedras, Artaud passa por um processo de esquartejamento. Por um lado, estudado apenas como um louco; por outro, meramente como um homem de teatro ou cinema e, ainda, há os que – mesmo com dificuldade – pretendem enquadrá-lo numa categoria literária. Os fanáticos se subdividem em dois tipos. O primeiro está entre aqueles que na incapacidade de compreender algo do mundo fazem de Artaud uma seita para se asfixiarem do absoluto. O segundo são aqueles que na incompetência em organizar e desenvolver técnicas no campo da arte, em especial, no teatro, se dizem artaudianos para se autorizarem a fazer qualquer coisa e se sentirem inseridos no rótulo de vanguarda. Estes ainda se desdobram nos happenings dos performáticos demais, pós-modernos que não chegaram nem no moderno, contemporâneos não sei de quem e outros nomes que se vomitam por aí. O espaço aqui é pequeno para este debate, mas, resumindo a ópera, e sem querer me arvorar em especialista do tema (apesar de estudá-lo desde 1981), posso afirmar que Antonin Artaud é ritual, ou seja, nele não há espaços para a improvisação. Na verdade, o que poucos conseguem
Na cisterna estreita que os senhores chamam pensamento, os raios espirituais apodrecem como palha” —
ANTONIN ARTAUD em Carta aos Reitores das Universidades da Europa
entender é que compreender Antonin Artaud não passa pela via do mito e tampouco pelos atalhos do modo conceitual de explicar o mundo. Melhor mesmo é recorrer às suas obras, tendo em vista que sua história tem sido muito mal contada e, como sempre, de acordo com os interesses de quem conta.
Com a edição de “Eis Antonin Artaud” (C’était Antonin Artaud), de Florence Méredieu, a França resgata uma espécie de dívida com o escritor, poeta, missivista, dramaturgo, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”.
Divisão
O livro é dividido em nove partes, a saber: I – As Infâncias (1896–1920); II – Os Primeiros Anos Parisienses; III – 1924– 1926: Um Rebelde Lançado ao Assalto à República das Letras; IV – 1927–1930: Os Anos Jarry; V – 1930–1935: Teatros. Filmes. Literaturas; VI – As Viagens e os Anos de Deriva (1936–1937); VII – Os Primeiros Anos de Asilo (setembro de 1937 – fevereiro de 1943); VIII – O Período de Rodez (fevereiro de 1943 – maio de 1946); e IX – O Retorno a Paris. Apesar da obra garantir uma espécie de fidelidade cronológica, o grande mérito de Florence Mèredieu foi conseguir escapar do mero relato biográfico e tampouco cair na armadilha do “historicismo”, tendo em vista que consegue contextualizar o processo socioartístico em que Artaud transitou, desde seu nascimento, no final
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Suicidado pela Sociedade”, “Para acabar com o julgamento de deus”, “Artaud, o Momo” e “Aqui Jaz”. Gravou, juntamente com Roger Blin, Maria Casarès e Paule Thèvenin, o texto radiofônico “Para acabar com o julgamento de Deus”, na Rádio Nos nove anos em que viveu em manicômios, Antonin Artaud concluiu uma obra polêmica que revolucionou a arte dramática Difusão Francesa, embora tenha sido proibida pelas autoridades. Em Ivry-sur-Seine, uma espécie de casa de do século XIX, até a primeira metade e - em virtude de seu declarado amor ao o “Manifesto do Teatro da Crueldade”. Sua repouso, foi encontrado morto na manhã do século XX. “Para além da cruel- teatro – reivindicar a sua destruição. Mas obra escrita é extensa e somente pela de 4 de março de 1948. Enfim, a contribuição de Antonin Ardade”, como um capítulo inserido em “O destruir o quê? Destruir este teatro refém editora Gallimard, suas “Oeuvres Comteatro e seu duplo”, a autora enfatiza a do modelo civilizatório, cuja sistematização plètes” (Obras Completas) se compõem de taud não se dá pela mera sistematização de “crueldade” que está impregnada no iti- se dá a partir dos cânones de Aristóteles em 30 volumes. Além do já citado, suas um novo teatro pronto e acabado para sua “Poética”, onde imperam as unidades publicações mais conhecidas são “O Pe- responder às inquietudes daqueles que não nerário de toda a sua existência. sa-Nervos”, “O Umbigo dos Limbos”, “A mais se contentam com o caduco teatro Na França dos anos 30 e 40 do século de ação, tempo e espaço. tradicional, mas pela provocação aos que Artaud chegou em Paris nos anos 20 e, Arte e a Morte”, “Heliogabalo”. XX, a recompensa que Antonin Artaud teve Tem uma passagem muito importante necessitam assumir a si mesmos como um pelo seu desinibido modo de viver e pela a partir daí, participou do Grupo Surrejeição dos valores convencionais, fora o realista, capitaneado pelo temperamental no cinema, como ator, diretor e roteirista, instrumento de ação sobre o mundo para internamento em hospitais para doentes André Breton. Logo depois, foi expulso e, embora as películas de maior destaque mudá-lo, recriando o homem e cumentais durante nove solitários anos. A inclusive, o “segundo manifesto” do mo- tenham sido “Napoleão”, de Abel Gance, rando-o, sim, pela destruição. importância de Artaud não está simples- vimento fora escrito praticamente para em que fez o papel de Jean-Paul Marat, e mente por ele ter sido um inspirador do criticar Artaud. Tendo como sonho a re- “A Paixão de Joana D’Arc”, de Carl Thèoteatro ou um pesquisador de estilos al- novação da arte dramática e, devido à dore Dreyer, no papel de um monge ternativos de vida. Artaud foi, sobretudo, o impossibilidade encontrada entre os sur- louco e apaixonado por Joana D’Arc. Em 1936, viaja ao México e chega criador de uma imagem viva, um homem realistas, em 1927, com Robert Aron EIS ANTONIN ARTAUD que encarnou o sonho em sua própria vida, (1898-1975) e Roger Vitrac (1899-1952), trazendo o texto “No País dos TarahuFlorence de Mèredieu. as contradições e discórdias entre muitas fundou o Teatro Alfred Jarry, onde passa a maras”. Logo em seguida vai para a Editora Perspectiva. manifestações e movimentos que contri- desenvolver suas ideias sobre as artes Irlanda. Na volta, é preso e – entre 1937 Tradução: Isa Kopelman buíram para mudar o mundo, tanto no cênicas em “O Teatro e seu Duplo”. Devido e 1946 – fica internado em diversos e equipe Perspectiva. 1048 páginas. 2011. espaço da estética e da política quanto na ao novo fracasso e a sua postura de hospitais psiquiátricos. Mesmo assim Quanto: R$ 180 possibilidade de colocar a razão na berlinda resistência, volta-se para a teoria e publica continua criando e escreve “Van Gogh, o
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artesanato por HANS HANSEN
A MAGIA DA SIMPLICIDADE
ALVARO ABREU BAMBOO Hans Hansen. Com 20 fotos P&B de 108cm x 29cm e 6 textos (em alemão, inglês e português). Quanto: R$ 180. À venda na OÁ Galeria (Rua Aprígio de Freitas, 50, Consolação, Vitória - (27) 3227-5443) e no site www.mandacarudesign.com.br.
Fotógrafo alemão revela o encantamento que o levou a produzir um livro sobre as colheres de bambu de Alvaro Abreu, traduzindo em imagens a dedicação do artesão por suas criações
HANS HANSEN
O
que me fascinou nas colheres de bambu produzidas por Alvaro Abreu foi a magia que vem da simplicidade. Um tema, um material, essa diversidade sem fim e a criatividade do artesão. Não havia nenhuma questão sobre arte, design, filosofia ou artesanato. Era tudo de uma só vez e ainda muito mais que isso. Mas também não era uma questão de sucesso, dinheiro, fama, técnica ou velocidade. Ver Alvaro Abreu trabalhando cercado por suas colheres me tocou profundamente. Sua tranquilidade, sua concentração, o domínio da atividade, o silêncio. Disso surgiu o desejo de fazer um livro. Então se passaram dez anos, e o livro agora existe, e espero que ele permaneça atemporal, pois foi feito tão simples quanto possível.
De cima para baixo: diversas formas em um mesmo tamanho; colheres finas e compridas, que fazem pensar; e peças que mostram os vários usos do nó do bambu
Foi o primeiro livro que desejei fazer. E eu não quis ter qualquer compromisso. Então decidi retratar as colheres em tamanho original, organizadas segundo meus critérios, sem usar nenhuma cor, a não ser o preto e o branco, com papel reciclado para os leporellos e uma luva rígida. O hotstamping em laranja é o único enfeite e uma referência ao Brasil. A embalagem não
A colher maior, que definiu a dimensão do livro
poderia usar plástico e deveria ser feita à mão, assim como as colheres. Convidar seis pessoas de áreas tão distintas – filosofia, design, jornalismo, poesia, curadoria de design – para falar sobre as colheres foi a maneira que encontrei para mostrar a variedade de experiências e pontos de vista sobre um mesmo assunto: um único objeto (colher), feito de um único material (bambu). Somente dois deles conheciam Alvaro pessoalmente. Eu quis fazer o livro para que pessoas que nunca tiveram (e talvez nunca terão) a oportunidade de ver de perto as co-
lheres, pudessem vê-las em toda a sua simplicidade e suas variações. Optei por usar as fotos em tamanho real, para que as pessoas pudessem ver os detalhes e, também, as diferenças entre colheres parecidas, como na foto em que agrupei peças que mostram os nós do bambu. Na contramão da pressa e da multiplicidade de coisas que se faz hoje em dia, acho impressionante que uma pessoa se dedique com tanto afinco e paciência à confecção de um único tipo de objeto, feito de um único material – e, ainda, contrariando tecnologias e recursos disponíveis, utilizando-se apenas de ferramentas tão simples. E que o faça somente por querer fazer. Isso também impressionou Marcus Jauer, um dos autores do livro. Ele, que mora na Alemanha Oriental – onde se espera que todo cidadão se enquadre no “sistema” –, ficou profundamente emocionado ao ver que uma pessoa pode fazer algo movido apenas pelo desejo de fazê-lo, livre de obrigações. Espero que o livro leve um pouco do meu fascínio.
poesias TARDE MORTA SANDRA MARIA SARMENTO Tarde morta... Fechando portas. Dando adeus ao fim do dia, Difundindo a nostalgia, Que meu coração destroça. Tarde morta... Quem se importa? Nesta doce calmaria, Esvai-se a luz da alegria, Desmaia o céu que me conforta. Tarde morta... Que em mim aporta. Derrama na paz que me invade, Tantos rios de saudades, Desse amor que me sufoca.
MELANCOLIA Parece que vai chover... Parece que vou sofrer... O dia perdeu as cores. A vida esmaeceu. O céu se fez sombrio. A rola voou pro ninho. O sapo com seus temores, Num canto emudeceu.
crônicas A LÂMINA E OS DADOS SOBRE A MESA
(com o pensamento em João Cabral de Melo Neto e Stéphane Mallarmé) por CAÊ GUIMARÃES A poesia é uma mirada crítica sobre a condição humana. Ela usa a palavra como música. Como pintura. Como escultura, como teatro e como cinema. E pode tomá-las, tanto uma por vez, como com quantas combinações simultaneamente lhe caibam. É que ela preexiste a todas essas manifestações, e sendo a mãe das artes, surgiu no segundo seguinte à criação do universo e o adivinhou todo. E assim tornou-se seu anverso e reverso. Em verso. Poesia é raspar a língua lânguida na pele trêmula, é a fala trôpega de idiomas sonâmbulos, é o escuro e a várzea onde nos encontramos, tantos e tontos, trôpegos e assombrados ante todos os sinais do mundo. Poesia é o estrondo da bolha que explode quando somos sábios ou
tolos. É o pó que sobra do farelo do ouro, o caldo mais ardente do destilado mais feroz. Com ela podemos desenhar guelras imaginárias em nossas artérias para mergulhar em fossas abissais dispensando a apneia. Ela também é a lâmina afiada que desenha essa várzea necessária à passagem de oxigênio no meio aquoso. Poesia. Ascensão e dolo. Essa faca só lâmina nos mostra o vermelho que nos corre por dentro, porque é a cor que carregamos do lado de lá da pele, onde nada é lento, muito menos o sangue que circula – vai e vem e vai – e os nervos que respondem aos sinais cerebrais. Sob o sigilo da insinuação em tempos banais, como o que vivemos, a poesia é antídoto para celebridades instantâneas, comidas instantâneas, arte instantânea,
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relações instantâneas. Hoje é possível comprar qualquer coisa – afeto, entretenimento, valores, informação –, abrir a embalagem, adicionar água quente e misturar a gororoba por um minuto e meio. Pronto para olhar sem depurar. O poeta é o cara que busca obsessivamente até encontrar a parte mais infinitesimal da grande explosão do corpo como extensão indissociável do espírito. E a relação destes com a matéria e o campo fértil e incinerado das ideias. Em geral o poeta é torto. E no corpo herético e erótico das palavras, emborca todas as garrafas esvaziadas e faz delas um xilofone afiado onde percute uma canção desafinada. Quando a poesia vem, arcanos fervem no tutano. Medusas dançam sem mesura na medula. É a força de cada lâmina com a maciez própria do seu brilho. E o brio que corta com eficiência o que cabe em seu corte. Um lance de dados que jamais abolirá o acaso. Ou a sorte. Poesia é faca. Poesia é carne. Poesia é corte. Ela não escreve sobre você. Escreve através de você. Em caso de necessidade, fique à vontade para arrancar os olhos para ver.
PARALIPSE ESTILIZADA por JOSÉ AUGUSTO CARVALHO
O tempo se arrasta lento... Lá fora, fustiga o vento. Tristonhas pendem as flores... O bicho se recolheu. Parece que vai chover... Parece que vou sofrer... O peito lateja as dores, De amores que já viveu.
QUIMERA Seu amor, triste quimera, caprichos do coração. Foi a mais crua miséria, que me domou a razão. Descuidada, dei-lhe vida, deixei meu sonho ecoar... Pra depois, arrependida, ver que estava a delirar. Ao redor, só restam cinzas... A empanar o meu olhar. Foi-se o meu desejo louco! Diluindo, pouco a pouco, o encanto a desmanchar...
IN MEMORIAN Rumor dos teus passos ecoam no silêncio... saudades.
A menina de cabelos longos tinha ferros nas pernas para poder firmar-se quando estivesse de pé. O palhaço tentava fazê-la sorrir. Suas piadas, piruetas e malabarismos faziam rir a plateia infantil, mas a menininha de cabelos longos e ferros nas pernas permanecia triste, olhando séria para ele. O palhaço usou de todos os recursos de que dispunha, de todos os truques que conhecia, para fazer sorrir a menininha de cabelos longos e olhos tristes. Era como se apenas ela contasse, como se não houvesse ninguém mais na plateia, a não ser a menininha de ferros nas pernas, de cabelos longos e de olhos tristes. Desanimado, odiando a própria incompetência profissional, o palhaço desistiu e, embora dizendo ainda piadas e mostrando riso no rosto pintado, começou a chorar, olhando a menininha de olhos tristes, de cabelos longos e com ferros nas pernas. Quando as lágrimas fizeram trilhas no rosto pintado
do palhaço triste, a menininha de cabelos longos e ferros nas pernas sorriu e gritou para as colegas: “O palhaço está chorando!” E ela mesma começou a rir, fazendo explodir por contágio um coro de gargalhadas. O palhaço parou de chorar e riu também, ao ver que ria feliz a menininha de ferros nas pernas, de cabelos longos e de olhos alegres. A cena, de um filme antigo, talvez ilustre a ideia de que chorar é a solução quando a esperança de êxito se perdeu no esforço inútil. Mas talvez também ilustre a ideia de que as lágrimas trazem consolo aos que desistem de lutar, ou de que elas podem trazer a vitória quando a derrota parece iminente, ou de que podem trazer alegria onde existe tristeza, porque deve haver alegria também na tristeza... Hilário Soneghet, no seu livro de 1971, “Por estradas curvas”, tem um longo poema em que ele diz procurar um tema para escrever um poema
forte. Percorre mundos imaginários e reais, vai de infinito a infinito, recorre à mulher que ama, aos céus, aos mares, às nebulosas, às consciências e aos corações, e não encontra motivo para o seu poema forte. Finalmente, cansado de tanto esforço que lhe parece inútil, abre os braços em cruz e grita, humilhado e vencido, sua angústia e dor que se traduzem no desespero de não ser poeta. No entanto, é na confissão de incompetência que ele consegue mostrar-se competente; é no desespero de achar que não conseguiu escrever seu poema forte que ele acaba por escrever seu melhor poema. Com essa página maravilhosa da poética capixaba, Hilário Soneghet deu-nos uma lição de moral: como na história do palhaço e da menininha de olhos tristes, talvez desistir de uma empreitada seja uma forma de realizá-la.
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cinema
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por MARCOS VERONESE
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QUANDO O DRAGÃO DA SÉTIMA ARTE ENFRENTA A GUERRILHA Especialista em cinema registra o momento em que Glauber Rocha se aproxima da Revolução Cubana e passa a defender a união das esquerdas para combater a ditadura militar no Brasil
E
DIVULGAÇÃO
ste ensaio é um breve olhar sobre a trajetória política e artística de um ícone do cinema no Brasil – o irreverente, combatente e criativo cineasta Glauber Rocha, que se tornou um mito. Em 1964, os militares tomam o poder e o Partido Comunista Brasileiro defende a tese de unir-se à burguesia nacionalista para derrubar o movimento militarista, entrando em processo de ruptura. Siglas surgem – ALN (Aliança de Libertação Nacional), VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), PCRB (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Com o racha, essas organizações passam a assaltar bancos para financiar a guerrilha. A Aliança de Libertação Nacional é reconhecida por Cuba, e Marighella é eleito líder da resistência por Fidel Castro. Em 1967, representando a Olas (Organização Latino-americana de Solidariedade), Marighella chega a Cuba. Um dos primeiros atos da Revolução Cubana (1959) foi a criação da Casa das Américas e do Icaic (Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica), atraindo a simpatia do meio artístico e intelectual.
Com “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, estrelado por Mauricio do Valle, Glauber Rocha ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes em 1969
O início do fim
Cartas a Guevara
No início dos anos 60, Glauber Rocha passou a se corresponder com Che Guevara. “Vou enviar uma cópia de ‘Barravento’ ou levarei pessoalmente a Cuba, pois amo muito seu país e sou um entusiasta da Revolução, inspiração para nós, jovens da America do Sul, que desejamos liberdade de culturas”, escreveu ele em 1961. “O PC acredita e prega uma revolução orgânica sem sangue, o que me parece impossível enquanto toda juventude inquieta deseja uma ação terrorista armada contra os regimes escandalosos”, afirmou em 1962. “Como o considero um velho amigo, direi que o artista e intelectual desapareceram radicalmente e agora sou uma pessoa disposta a trabalhar revolucionariamente. Isto é para mim mais que uma declaração ideológica, e creio que só poderei viajar a Cuba quando estiver à altura de aceitar as condições da Revolução. Apresento-te Hélio, meu amigo, uma pessoa importantíssima no Brasil.” O Hélio citado na carta é Itoby Correa, estudante de Direito de São Paulo e mem-
Jean-Pierre Léaud e Rada Rassimov em “Leão de Sete Cabeças”: rodado no Congo, filme foi fracasso de crítica e de público
bro de um GTA (Grupo Tático Armado) da ALN, que partia para Cuba. Sair do Brasil era complicado, mas no Uruguai e na Argentina grupos ligados aos Tupamaros e Montoneros (organizações guerrilheiras) davam apoio. Viajava-se com passaporte falso feito em uma gráfica de Argel, onde o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, cassado em 64, negociava com os argelinos. A entrada na Europa era por Roma, através da Embaixada Cubana.
Um quixote latino
Em julho de 69, Glauber estava em Roma; acabara de ganhar o prêmio de Cannes de melhor diretor com “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”.
Itoby e Glauber encontram-se na casa do cineasta italiano Gianni. “Posso ajudar na divulgação da luta. Tenho amigos nas embaixadas, jornalistas, posso ser útil na ação de propaganda”, teria comentado Glauber. O cineasta francês Jean-Luc Godard filmava “Vento do Leste” em Roma, com participação de Sartre no roteiro, e doou parte do dinheiro da produção à ALN. O sequestro do embaixador americano pela ALN mudaria o destino da luta armada. Godard oferece um documentário para divulgar a luta. Em Paris, Sartre marca audiências com a ALN e também oferece dinheiro e apoio, além de publicar um número especial em sua revista “Temps Moderns” dedicado à luta armada brasileira. O sequestro cha-
ma a atenção da CIA. O combate à subversão é a prioridade dos militares. Começa o ciclo de queda, torturas, mortes e prisões. Glauber recebe propostas para filmar na Europa e Estados Unidos. Rejeita. Realiza “Leão de Sete Cabeças” no Congo. Sofre reveses - Leão é fracasso de crítica e público. Filma “Cabeças Cortadas” na Espanha, é acusado de ininteligível, vai ao Chile e filma “Definição” com Norma Benguell, a produção para, e os negativos desaparecem. Houve boicote. Glauber então segue para Cuba e encontra o país em pleno andamento com a Campanha dos 10 Milhões, uma safra de grãos que daria ao país divisas e autonomia política. Os brasileiros das organizações ALN, VPR e MR-8 treinavam.
Glauber chega com dois projetos: um documentário e a ficção “A Idade da Terra”. Alfredo Guevara lhe abriu as portas e ofereceu como assistente um líder estudantil carioca que ganhara uma bolsa de estudos do Icaic: Marcos Medeiros, condenado no Brasil por atividades subversivas. Medeiros morou com Glauber em Havana e juntos desenvolveram “História do Brasil”, inspirado no documentário do cineasta argentino Fernando Solanas, “La Hora de los Hornos”, sobre o peronismo. Glauber pensa o Brasil e entrevista vários guerrilheiros, como Vladimir Palmeira, Lizt Vieira, Fernando Gabeira e Onofre Pinto. As entrevistas aconteciam no hotel Habana Libre, sob o olhar de
Daniel Herrera, o “Olaf”, agente treinado pela KGB. “Glauber era uma personalidade, ninguém tomava conta. Eu gostava de seus cabelos, ninguém tinha cabelos compridos. Admirava sua mania de colocar cada sapato de uma cor. Era reconhecido nas ruas e acenava como um herói latino. Ele mandava no hotel. Todos o adoravam”, afirmou Daniel Herrera em depoimento à “Folha de S. Paulo” em 1996.
Suicídio
Foi na sorveteria Copélia, situada numa praça frequentada por intelectuais e artistas, que aconteceu um fato
que ficou conhecido em todo o mundo. Fernando Gabeira cobrou de Glauber a realização de um filme sobre a revolução brasileira, que envolveria atores americanos como Jack Palance e Jane Fonda, os protagonistas Carlos Lamarca e sua mulher, Lara Lavelberg, com música dos então exilados Caetano e Gil. “Gabeira, você tem Hollywood na cabeça e me pede para fazer justamente o que sempre combati. Você quer meu suicídio”, disse Glauber. “Você deve se matar como cineasta e renascer como revolucionário”, respondeu Gabeira. A entrevista que Glauber deu ao “Pasquim” saiu com esse título – “Gabeira tentou me matar em Havana”.
Glauber passa então a defender a tese do Partidão, ou seja, a união das esquerdas. Ele lê muito e conhece as teorias geopolíticas de Golbery do Couto e Silva. Fala publicamente que a ditadura brasileira só cairia com a ruptura dos militares, que a esquerda não tinha discurso correto, que os quadros em Cuba não derrubariam os militares. A safra dos 10 milhões fracassa, Cuba se desorganiza economicamente. O país reaproxima-se da União Soviética. A epopeia libertária chega ao fim. Glauber volta a se dedicar ao cinema, e o projeto “A Idade da Terra” não é produzido devido à recessão. Retoma “História do Brasil” com Medeiros, colagem de 47 filmes brasileiros dos arquivos do Icaic. Em 1972 deixa Cuba. “História do Brasil” tem o som sincronizado em Paris, mas Alfredo Guevara desautoriza o filme, por considerá-lo uma “bagunça ideológica, um documento heterodoxo”. Glauber ficou chocado. Em 1974, em depoimento à revista “Visão”, anuncia apoio à abertura política de Geisel. O filme “Claro” (1975), feito em Roma, é recebido com crítica negativa pela revista francesa “Le Nouvel Observateur”. Em Paris, o ministro João Paulo dos Reis Velloso convida Glauber para voltar ao Brasil e compor o projeto de criação da produtora de cinema estatal Embrafilme. Glauber aceita. Antes de morrer, em agosto de 1981, Glauber desabafou em uma entrevista: “Estudo história do Brasil e tenho vasta informação sobre cultura e política. Não aderi ao governo Geisel porque não disputo o poder, nem me interessa satisfazer a centros de poder. Posso então emitir opiniões independentes de conceitos vigentes.”
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ficção por MARCO VALÉRIO MAGALHÃES
O PRIMEIRO DIA DA MINHA NOVA VIDA “Tomado por uma estranha excitação e sem entender o que acontecia, tomei a decisão de ir atrás de mim”, narra o personagem deste conto sobre um encontro inesperado consigo mesmo
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pós a longa viagem e uma noite maldormida, finalmente estava de volta a Vitória. Rever a rodoviária era a primeira satisfação no meu regresso. Mal esperei o ônibus parar e já estava de pé, procurando minha mochila no bagageiro. E foi assim, ao olhar para o lado, que o vi. Não sei se devido ao cansaço da viagem, ou se por algum problema momentâneo de visão, o fato é que a poucos metros de mim e também pegando uma mochila, estava... eu mesmo. Abri e fechei os olhos com força, e continuei vendo a mim mesmo, agora se dirigindo para a porta de saída. Tomado por uma estranha excitação e sem entender o que acontecia, tomei a decisão de ir atrás de mim. Mantendo distância segura, segui meu duplo até o ponto de ônibus e entrei um pouco depois dele no coletivo que ia para o bairro de Maruípe, onde eu havia morado há muito tempo. Não estranhei quando ele puxou a cordinha para a descida no próximo ponto. Era nele que eu também saltava quando ali vivia. Outras pessoas desceram, o que me permitiu sair sem ser visto por minha cópia. Ao pisar na calçada, olhei para cima e percebi um céu esquisito, passando do cinza ao ocre próximo à altura das casas. Escondendo-me atrás de postes, fui seguindo por ruas bem conhecidas, até chegar ao portão da minha antiga casa. Vi meu alter ego abrir o portão, passar pela varanda, abrir a porta da sala, virar-se na minha direção (atrás de um poste próximo ao portão), dar um sorriso sem abrir a boca – como eu sempre faço – e entrar. Com o coração acelerado e as pontas dos pés e mãos formigando, entrei apressado dentro de casa, procurando por mim. Passei pela sala, pelo estreito corredor onde havia o banheiro e os quartos e cheguei à cozinha, onde minha mãe colocava à mesa as mandiocas cozidas com manteiga e o café bem ralinho que eu sempre considerei a melhor refeição de todos os mundos. Sentei-me ao lado de mamãe, contemplei seu rosto sofrido e, ao encostar minha cabeça
COLETIVO PEIXARIA
no seu ombro, não consegui conter um choro longo e há tanto tempo represado. Conversei por uma hora. Falei pouco e ouvi muito. Coisas que só um coração de mãe é capaz de transmitir. Um a um, revi os muitos erros da minha vida. Nem tudo estava perdido. Compreendi que eu era capaz de dar um novo sentido a tudo isso.
Minha própria mãe me mostrava o caminho, e ninguém melhor do que ela para traduzir todos os anseios do meu espírito. Ao final, chorei de novo. Dessa vez, um choro diferente, adocicado e repleto de esperanças. Nem toquei na melhor refeição de todos os mundos. Perdi a pista do meu duplo. Abracei-a fortemente, me despedi e rumei para casa.
Acordei disposto no dia seguinte, apesar do frio e da chuva fina. Mentalmente, enquanto tomava leite com biscoitos, agendei o primeiro dia da minha nova vida. A primeira visita seria ao túmulo de minha mãe, onde não ia há mais de 10 anos. Depois, um por um, ia tratar de enterrar todos os outros fantasmas que me perseguiam e voltar a ser feliz.