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entrelinhas

Pensar

por MANINHO PACHECO

O CAPITALISMO SELVAGEM DOS HOMENS PRIMATAS

O

que Ken Faulks fez não foi menos abjeto que o tratamento rotineiramente dispensado a milhares de macacos ao redor do mundo em circos, zoos, centros de pesquisas militares, laboratórios acadêmicos e das indústrias cosmética e farmacêutica. E o que fez o cidadão? Forjou um atentado que mandou pelos ares o Laboratório de Línguas dos Grandes Símios da Universidade de Kansas, onde a pesquisadora Isabel Ducan desenvolvia uma pesquisa de comunicação através de sinais entre humanos e bonobos. Faulks queria aqueles macacos e sabia bem para que. Achava que o atentado faria com que a universidade abortasse o projeto temendo novas ações violentas e abrisse mão dos animais. Não deu outra. O cara era um escroque. Com o auxílio luxuoso de um cientista não menos picareta, arrematou seis daqueles bonobos. Também conhecidos como chimpanzés pigmeus, bonobos são a espécie de símios mais próxima dos humanos. Com uma característica especial e única: o sexo. Sexo feito de forma intensa, livre, entusiasticamente, o tempo todo e com todo mundo (machos e fêmeas, bem entendido). Bonobos são as únicas espécies animais, além de nós, sátiros Homo sapiens, que não estabelecem relação direta entre sexo e reprodução. Para eles sexo é interação, prazer e vida social. Como nós, fazem mais amor do que filhos. E era nisso que Faulks estava de olho. Personagem com um sólido histórico no submundo da pornografia, foi alçado à condição de magnata da mídia e vislumbrou na peculiaridade sexual dos bonobos o pulo do gato para o mais infame dos reality shows norte-americanos: “A Casa dos Macacos”, fictícia atração que empresta o nome ao mais novo romance de Sara Gruen. Escrito na esteira do best-seller “Água para elefantes” (Sextante, 2007, 272 págs.), “A Casa dos Macacos” retrata a vida de seis bonobos confinados em um estúdio cercado por cinco dezenas de câmeras. Esse Big Brother dos bonobos eleva a audiência da Faulks Enterprises à liderança indiscutível entre as emissoras abertas dos Estados Unidos e para metade da América quando entra no ar. Todos se deliciam com a mais recente bizarrice da cultura midiática norte-americana. À exceção de Isabel e do decadente repórter John Thigpen. Juntos, eles investigarão a origem daquele circo deplorável e tentarão resgatar os animais. Para isso, terão que mergulhar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE MARÇO DE 2012

A CASA DOS MACACOS Sara Gruen. Tradução: Paulo Cezar Castanheira. Record. 400 páginas. Quanto: R$ 32,90

no mundo das subcelebridades do show business, no mercado paralelo de roteiristas de séries televisivas de quinta categoria, no território virtual de hackers e demais clichês da pós-modernidade contemporânea. “A casa dos macacos” é produto da discussão sobre a utilização de animais, sobretudo primatas, em pesquisa de laboratórios, reacesa ano passado com o filme “Planeta dos macacos: a origem”. Desde então, a Academia Nacional de Ciência dos EUA discute o fim da pesquisa médica envolvendo primatas. EUA e Gabão são os dois únicos países do mundo a conduzir esse tipo de pesquisa. A União Europeia baniu o uso do animal no ano passado. No Brasil não se utilizam macacos para esse fim.

Tortura

Sara Gruen inspirou-se em reality show para escrever “A Casa dos Macacos”

TRECHO “Por serem chimpanzés descartados pela Força Aérea, sua mortes causaram algum interesse da mídia e ultraje público. Buddy, Ivan e Donald foram celebridades quando jovens. Queridinhos da mídia, e seus sorrisos enormes ao serem

retirados das cápsulas espaciais depois de caírem no mar foram estampados nas capas de revistas de circulação nacional. O que o público norte-americano não sabia era que aquele sorriso era uma careta de medo.”

Chimpanzés e bonobos têm 99% do DNA semelhante ao dos humanos. Vivem em sociedade e, como nós, precisam das relações interpessoais. Têm cultura própria, técnicas de comunicação complexas, laços emocionais. Lembram do passado, planejam o futuro, experimentam solidão e tristeza. Merecem nosso respeito. Sob o ponto de vista animal o que se passa nos laboratórios é tortura. Sem meias palavras. Mas o que se desenrola em seus bastidores é uma disputa acirrada por vultosas verbas científicas e resultados pífios. A utilização de animais em laboratórios médicos ou farmacêuticos alimenta uma ativa e milionária indústria das linhas de financiamento públicas e privadas. O modelo animal é largamente utilizado porque o trabalho da ciência depende dele para, mais que sobreviver, enriquecer. Nos EUA, a maior parte da pesquisa médica é financiada pelo Instituto Nacional de Saúde, com orçamento anual de US$ 30 bilhões. Metade disso é entregue a pesquisadores que utilizam animais. E são justamente esses pesquisadores que controlam os comitês que decidem para onde vai a verba pública aplicada em saúde. Deu para entender? Temos aí não mais um sistema preocupado em encontrar cura para doenças e novos remédios, mas um sistema corrupto preocupado em garantir o dinheiro aos pesquisadores que o controlam. O que “A Casa dos Macacos” nos prova é que o lucro gerado pelo sofrimento animal é muito alto para circular apenas nas mãos de cientistas. A mídia televisiva também reivindica a parte que lhe cabe nesse cruel latifúndio.


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