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falando de música

Pensar

por ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE MARÇO DE 2012

FOI ASSIM QUE CLAUDE DEBUSSY VIU O MAR

“Q

uem tem medo da música clássica?” Era esse o nome do programa de TV, apresentado pelo saudoso Artur da Távola, que visava aproximar o grande público àquele gênero musical. Pergunta semelhante pode ser feita em relação à música erudita composta no século XX: muita gente a evita por considerá-la de difícil compreensão. Devido ao desapego às práticas usuais em termos de tonalidade, instrumentação, uso de melodias e adoção de estruturas, boa parte das composições modernas não soa tão agradável aos ouvidos como soam, por exemplo, as obras de Mozart ou de Vivaldi. Porém, existem algumas obras do século XX que são bem acessíveis e que já em uma primeira audição despertam o interesse de muitos. Uma delas é “La Mer” (O Mar), composição orquestral do francês Claude Debussy. Não foi a primeira partitura que tratou das águas: Bach compôs a Cantata BWV 206, intitulada “Deslizai, Ondas Borbulhantes”, em que quatro rios europeus se unem para homenagear Augusto III, o Corpulento, governante da Saxônia (e patrão de Bach). Outro caso digno de nota é o poema sinfônico “Vltava”, de Smetana, que descreve o curso do rio Moldava desde seu nascimento nas florestas boêmias até a sua foz, no encontro com o rio Elba. Há outros exemplos semelhantes em Handel, Haydn, Wagner, Rimsky-Korsakov, Mendelssohn e Beethoven. No caso de Debussy, nota-se no conjunto de sua obra especial predileção pela água, mencionada em nada menos que sete composições até a época da estreia de “La Mer”. A vida marinha o deixava especialmente entusiasmado: quando jovem, cogitou seguir a carreira de marinheiro. Em “La Mer”, não há uma tentativa de se retratar diretamente, por meio da linguagem musical, os diversos aspectos do mar. Essa ressalva é importante, pois outros compositores se valeram de recursos como o uso de “pizzicatos” nas cordas, imitando pingos dágua. Villa-Lobos, em “O Trenzinho do Caipira”, retratou com perfeição a viagem de uma locomotiva Maria-Fumaça, reproduzindo o som dos apitos e da fumaça expelida pela chaminé. Debussy optou por um caminho diverso: o francês buscou expressar-se fazendo uso de atmosferas, de sensações, deixando de lado quaisquer imitações. Ainda que os três movimentos da obra,

DIVULGAÇÃO

“La Mer” é uma das peças sinfônicas mais acessíveis do compositor francês, que completaria 150 anos em 2012; no destaque, DVD com regência de Leonard Bernstein

descritos pelo autor como três esboços sinfônicos, possuam títulos descritivos (“Da Aurora ao Meio-Dia no Mar”, “Movimentos das Ondas” e “Diálogo do Vento com o Mar”), em nenhum momento será possível identificar a reprodução em notas musicais do som de uma onda, de um pássaro ou de um navio. A música não é objetiva, composta para o intelecto, e sim

subjetiva, composta para os sentidos. Uma das explicações para o êxito da obra é a hábil orquestração de Debussy, em que há o emprego dos mais diversos timbres e efeitos, como alterações de dinâmica e de ritmos, exigindo dos instrumentistas grande atenção e habilidade técnica. No primeiro dos três esboços a atmosfera é misteriosa; no segundo, há

vivacidade e movimento; no último, interagem duas forças distintas. Não é possível determinar um programa específico, vinculando cada trecho dos esboços a um evento correspondente (revoada de gaivotas, ondas quebrando na praia). Essa impossibilidade frustrou parte do público quando houve a estreia da obra, uma vez que os ouvintes estavam acostumados com o literalismo descritivo de diversos poemas sinfônicos da época. Um crítico mais conservador chegou ao ponto de chamar a obra “Mal de Mer” (enjoo marítimo), sendo as três partes “Dor de cabeça”, “Tontura” e “Náusea”. O excêntrico compositor Erik Satie, amigo de Debussy e notório piadista, não perdeu a oportunidade e ironicamente afirmou que achara particularmente sensacional um curto trecho entre 10:30h e 10:45h. Logo as opiniões positivas prevaleceram e a obra se tornou muito executada. O resultado dos esforços de Debussy deve ser conferido ao vivo, em uma sala de concertos. Na impossibilidade de fazê-lo, algumas gravações podem ser recomendadas com segurança. Indicamos o empolgante registro feito pela Orchestre National de l'ORTF, regida por Jean Martinon, um mestre em termos de equilíbrio orquestral. Essa gravação é como Guarapari: praticamente, não há quem não goste. Por sua vez, Leonard Bernstein, regendo a Accademia di Santa Cecília, navega por mares mais calmos, como se estivesse em Manguinhos. Uma bela interpretação, das últimas deixadas pelo regente, disponível em DVD. Outras versões de renome são Concertgebouw/Haitink, Cleveland/Boulez, Suisse Romande/Ansermet. Recentemente, foi lançada uma excelente versão em vídeo com o regente Claudio Abbado à frente da Orquestra do Festival de Lucerna, formada por alguns dos maiores virtuoses da atualidade. Em 2012, comemoram-se os 150 anos do nascimento de Debussy. “La Mer” estreou em 1905 e após a fria recepção inicial estabeleceu-se nos anos seguintes como um dos marcos do repertório orquestral do século XX. É música para se ouvir apreciando uma bela moqueca, com direito a pirão e casquinha de siri. Se possível, à beira-mar.


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