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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE MARÇO DE 2012

+ artigo de capa por RENATA BOMFIM

A PAIXÃO TRANSBORDANTE DE FLORBELA ESPANCA Publicação de correspondências da poeta com o seu amante lança luz sobre uma faceta até então obscura da vida da autora portuguesa, aponta estudiosa da sua obra

A

poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) publicou em vida dois livros de sonetos: “Livro de Mágoas” (1919) e “Livro de Sóror Saudade” (1923). Postumamente, vieram a lúmen: “Charneca em Flor” (1930), “Reliquiae” (1931) e “Juvenília” (1931). A morte, com a sua tentação plena, o suicídio, consagrou a tragédia florbeliana. O suicídio, ritualisticamente realizado no dia em que completaria 36 anos de idade, não passou despercebido pela sociedade patriarcal portuguesa (família católica, interdição da palavra “suicídio” na imprensa, receio de falatório), e Florbela, que em vida conheceu o silêncio da mídia, tornou-se, depois de morta, um fenômeno literário. Conhecida como a “poetisa da melancolia e da saudade”, Florbela Espanca é uma persona dramatis que ainda não teve todas as máscaras reveladas. Recentemente, a editora portuguesa Quasi publicou a correspondência amorosa de Florbela Espanca, cuja organização, fixação de textos e notas foram assinados pela pesquisadora Maria Lúcia Dal Farra. A obra “Florbela Espanca Perdidamente” reúne uma série de correspondências trocadas entre a poeta e o seu amante que, posteriormente, tornou-se o segundo marido, Antônio Guimarães. Essa epistolografia de Florbela Espanca, escrita entre os anos de 1920 e 1925, lança luz sobre uma zona até então obscura da vida da poeta, revela uma “Florbela inaugural”, “em estado de amante”, que escreve a partir de uma zona silenciosa e solitária, onde tudo é “sigiloso e dito em sussurro”, como afirmou Dal Farra. Florbela estava separada do primeiro marido, Alberto Moutinho, porém, ainda oficialmente casada com ele, e acabara de publicar o seu primeiro livro, o “Livros de Mágoas”, quando, num baile de carnaval, em Lisboa, conheceu Antônio Guimarães. Os seus olhos de pantera pousaram sobre o jovem bem apessoado, magro, de cabeleira lisa e loira, que trajava uma farda cor de avelã: “Olhos do meu amor! Infantes loiros/ Que trazem os meus presos, endoidados!”, escreveria a poeta

DIVULGAÇÃO

Florbela com seu primeiro marido, Alberto Moutinho; no destaque, o amante e segundo marido Antônio Guimarães, a quem dedicou vários poemas

no soneto “Teus olhos”, da obra “Charneca em Flor”. Florbela estava com 25 anos e atravessava uma fase difícil, experimentava a sensação de desamparo por estar afastada da família, e o fato de ela ser estudante de Direito na Universidade de Lisboa, destacava-a dentre as outras mulheres. Exposição pública que se agravou com a sua estreia no mundo das letras e deu margem a variados comentários maliciosos. Embora Florbela ainda estivesse oficialmente casada, ela se considerava a “noiva” de Antônio, que lhe acenava com promessas de amor e de um lar, “um ninho”, onde seriam felizes. O amor vivido sob o signo da clandestinidade e da ilegalidade levou os amantes a buscar estratégias para ficar juntos. A bordo do elétrico, porém sempre sobressaltados com a possibilidade de encontrar alguém conhecido, os amantes trocavam olhares e

pequenas frases, noutros momentos, Florbela ficava à janela de sua casa e Guimarães ao longe, ficavam se olhando e se desejando, porém, logo as más línguas fizeram com que Florbela escrevesse para Antônio um bilhete dizendo: “Quando por aqui passares não pares nunca. Depois te direi por quê. Passa a pé ou a cavalo, de trem, de automóvel ou de aeroplano mas vê-me de longe sempre”. Vivendo em casa alheia, Florbela ansiava legalizar a sua situação com Antônio para que pudessem viver felizes, em uma casa só deles, ela ansiava um lar. Esse desejo pode ser observado expresso no poema “A nossa casa”: “A nossa casa, Amor, a nossa casa!/ Onde está ela, amor, que não a vejo?/ Na minha doida fantasia em brasa/ Constrói-a, num instante, o meu desejo!. O casal vivenciou uma grande cumplicidade sexual: “Os nossos mimos, a

nossa intimidade, as carícias são só nossas; no nosso amor não há cansaços, meu pequenino adorado! Como o meu desequilibrado coração de artista se prendeu a ti”. Das noites solitárias vividas pela poeta chegam os relatos da falta que o amado lhe fazia: “Uma grande noite sem ti! Quantas horas terá ela, a noite que vem, a noite que desce sobre a terra e dentro de mim? Tenho saudade das carícias dos teus braços carinhosos que me apertam e que me embalam nas horas alegres, nas horas tristes. Tenho saudades dos teus beijos, dos nossos grandes beijos que me entontecem e me dão vontade de chorar. Tenho saudades das tuas mãos, tão más as vezes, como ontem à noite... Tu tens me feito feliz, como eu nunca tivera esperança de o ser”. O casamento trouxe para o casal, além da realização sexual, a rotina e uma fase de grandes dificuldades financeiras. Apenas seis meses após o casamento, Florbela já pensava em se separar de Antônio. A ascensão profissional do marido foi o início do fim do relacionamento entre ambos. Enquanto esteve apaixonada por Antônio Guimarães, Florbela produziu alguns de seus mais belos poemas, como os sonetos “Anoitecer”, “Da minha janela”, “A vida”, que, posteriormente, Florbela intitulou “Inconstância”: “Amar-te a vida inteira eu não podia/ A gente esquece sempre o bem dum dia/ Que queres, ó meu amor, se é isto a vida!”, e o soneto “O nosso mundo”, que a poeta dedicou ao seu “homem querido”: “Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos/ Como um divino vinho de Falerno!/ Poisando em ti o meu olhar eterno/ Como poisam as folhas sobre os lagos…” Em 1921, residindo com Antônio no quartel da Foz, há um silêncio entre os amantes, já não se comunicam mais como antes. Nessa época, janeiro de 1921, na casa de seu pai, Florbela compôs o poema “Caravelas”: “Eu sempre fui assim este Mar Morto:/ Mar sem marés, sem vagas e sem porto/ onde velas de sonhos se rasgaram!”. Adoentada, no dia 3 de dezembro de 1923, Florbela escreve a derradeira carta para Antônio e nela se despede assinando: “Saudades de tua mulher”. Em abril de 1924, a relação tornou-se insustentável e Antônio iniciou um processo de divórcio litigioso contra Florbela, alegando “abandono de lar”. Após a separação, Florbela Espanca se casou com o médico Mário Lage, com quem viveu até o dia de sua morte.


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