Pensar 14_04_2012

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UMA MULHER CHAMADA PINA

Entrelinhas

DEREK WALCOTT APROXIMA GRÉCIA, ÁFRICA E CARIBE POR MEIO DA POESIA. Página 3

Especialista em dança relata a emoção provocada pelo documentário de Wim Wenders sobre a coreógrafa Pina Bausch. Página 4

Música

O SAMBA PAULISTANO E REPLETO DE IRONIA FINA DE PAULO VANZOLINI. Página 5

Pensar Letras

LINGUISTA ENVIA CARTA A PROCURADOR EM DEFESA DO DICIONÁRIO HOUAISS. Página 8

Memória

ENSAIO LEMBRA A CRIADORA DA MODERNA LITERATURA INFANTIL NO ESTADO. Páginas 10 e 11

VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012

www.agazeta.com.br

Diários de um bispo LIVRO TRAZ O OLHAR DE D. PEDRO DE LACERDA SOBRE O ESPÍRITO SANTO DO SÉCULO XIX

Páginas 6 e 7


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012

quem pensa Renata Bomfim é escritora, mestre e doutoranda em Letras pela Ufes. Autora do blog www.letraefel.com

Flávia Dalla Bernardina é advogada, bailarina e escritora. www.tubodeensaios.com.br

marque na agenda prateleira Campus

A Gaia Ciência Friedrich Nietzsche

História abre inscrições para doutorado

Estarão abertas de 16 de abril a 25 de maio as inscrições para o processo seletivo para o curso de Doutorado em História (área de concentração: História Social das Relações Políticas) do Programa de Pós-Graduação em História da Ufes. Mais informações pelo site www.historia.ufes.br, pelo e-mail ppghis.ufes@hotmail.com ou pelo telefone 4009-7657.

Artes plásticas Maria Clara Medeiros Santos Neves é museóloga e coordenadora de Projetos da Phoenix Cultura. phoenixcultura@gmail.com

José Augusto Carvalho é doutor em língua portuguesa pela Universidade de São Paulo. joauca@hotmail.com

Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

Carlos Antônio Uliana é assessor político da área sindical. uliana@sindfer.com.br

Marcos de Castro é poeta e ator. Publicou 14 livros de poesia. marcosdecastro.vitoria@gmail.com

Francisco Aurelio Ribeiro é professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras. faribe@gmail.com

Mostra de estudantes da Ufes em Vila Velha

Vai até 28 de abril a exposição “Thiago’s”, realizada pelos estudantes de Artes Plásticas da Ufes Thiago Arruda e Thiago Linhalis, no Atelier 904, na Avenida Champagnat, 583, em Vila Velha. Mais informações pelo e-mail atelie904@gmail.com.

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de abril

Paulo Sodré lanç livro de poemas a

O escritor e professor de Literatura da Ufes lan ça “Poemas Desconcertan tes” na próxima quinta, às 19 h, na Biblioteca Pública Est adual. A obra é uma compilação de cinco livros, entre eles “Senh or Branco ou o Indesejad o das Gentes”, que será cobra do no vestibular da Ufes deste ano.

Publicado em 1882, este é o trabalho de Nietzsche com a maior diversidade de formas literárias, incluindo aforismos, breves diálogos, parábolas, poemas em prosa e pequenos ensaios. Em foco, algumas das discussões mais originais do filósofo a respeito de arte, moral, história, conhecimento, ilusão e verdade. 344 páginas. Companhia das Letras. R$ 25

O Código das Profundezas Roberto Lopes

O jornalista narra a fracassada atuação da Arma Submarina argentina durante a Guerra das Malvinas e revela que o país manteve um planejamento secreto de guerra, apesar dos problemas técnicos e do embargo dos Estados Unidos. 294 páginas. Civilização Brasileira. R$ 39,90

A Corista e Outras Histórias Tchékhov

O volume da Coleção 64 Páginas apresenta oito contos do autor russo (1860-1904) sobre temas cotidianos que giram em torno da amizade, da festa de Ano-novo, do casamento e dos dilemas de três atores itinerantes, com requintes de humor e melancolia.

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64 páginas. L&PM. R$ 5

O artista plástico abre a mostra “Meditações Extravagantes” na próxima quinta, às 19h30, no Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio del Santo, em Vitória. A individual é composta por oito instalações e tem curadoria de Almerinda da Silva Lopes.

A antologia do poeta soteropolitano tem seleção do professor Sérgio Martagão Gesteira, que destaca a riqueza lírica do autor no texto de apresentação da obra.

de abril

Nenna expõe no Maes

Melhores Poemas Ruy Espinheira Filho

296 páginas. Global Editora. R$ 39

IMPRESSÕES DE UMA ÉPOCA

José Roberto Santos Neves

Em 1880, quando o bispo D. Pedro Maria de Lacerda chegou ao Espírito Santo para sua primeira visita pastoral, o Estado era ainda desprovido de diocese própria, que só foi criada em 1895, com sede em Vitória. As impressões do líder religioso sobre o Estado estão agora registradas no livro “Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo”. Trata-se de um registro raro da vida e dos costumes capixabas do final do século XIX, uma vez que D. Pedro percorreu diversas regiões, dirigindo um olhar atento aos locais, habitantes e paisagens com os quais teve contato.

Pensar na web

Nas páginas 6 e 7, a museóloga Maria Clara Medeiros Santos Neves, coordenadora da publicação, conta mais detalhes sobre os apontamentos do bispo e sobre o método usado para transcrever as mais de mil páginas de seus manuscritos para o livro, cujo conteúdo está disponível, na íntegra, no site Estação Capixaba: www.estacaocapixaba.com.br. Ainda nesta edição, contamos com artigo do gramático José Augusto Carvalho sobre a censura ao dicionário Houaiss e o ensaio de Francisco Aurelio Ribeiro sobre a literatura infantojuvenil produzida no Espírito Santo. Boa leitura, bom sábado, bom Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Conteúdo do livro “Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo”, trailer do filme “Pina”, músicas de Paulo Vanzolini e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por RENATA BOMFIM

A EPOPEIA DAS ANTILHAS DE DEREK WALCOTT

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ristóvão Colombo, agente do “descobrimento”, transformação histórica que teve como marco simbólico o ano de 1942, sempre rezava: “Que nosso Senhor, em Sua misericórdia, me ajude a descobrir ouro”. Colombo navegou, de ilha em ilha, em busca do metal precioso que ele acreditava “nascer” em alguma fonte. No maravilhoso Mundo Novo, como Adão no Éden, Colombo passou a dar nome a tudo o que encontrava: a primeira ilha encontrada pelo navegador era chamada pelos índios de Guanaani, Colombo chamou-a San Salvador, uma homenagem a “Sua Alta Majestade” que ele acreditava, “maravilhosamente”, ter lhe dado “tudo”. A segunda ilha ele renomeou “Santa Maria de Concepcíon”, depois vieram outras, Fernandina, Isabela, Joana... Na sua quarta e última viagem ao continente americano, em 1502, Cristóvão Colombo chegou a uma pequena ilha chamada pelos índios arauaques de Ionado, “ou lagarto”, no arquipélago das Antilhas. Colombo, na sua fúria nominativa, logo batizou-a Ilha de Saint Lucia, inspirado, possivelmente, pelo fato de ser dia de Santa Lúcia, 18 de junho. Saint Lucia é a terra natal de Derek Walcott, escritor ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1992 e é, também, o espaço privilegiado onde se desenvolve o enredo da obra poética “Omeros”. Walcott nasceu em 1930, na capital de Saint Lucia, Catries, e é descendente de negros e ingleses, o que lhe confere a condição de mestiço. O poeta empenha a sua lira em questões relacionadas à identidade e a sua obra encontra eco nas obras de outros escritores nascidos em ex-colônias britânicas na África, como os do Caribe. O crítico Sigrid Renaux afirmou que Walcott “escreve cônscio de si como indivíduo, mas também como arquétipo do homem transplantado para o Novo Mundo, universalizando assim as suas experiências pessoais”. Desde muito cedo Walcott se dedicou à poesia, ao teatro e às artes plásticas, tendo produzido grande parte das imagens que estão estampadas nas capas de seus livros. A obra “Omeros” recebeu, em 1992, uma versão para o teatro denominada “The Odyssey”. “Omeros” é um poema único, sem divisões, e de proporções épicas que funde o particular e o universal, formando um canto atemporal. Ele é, também, um canto de descolonização e de resistência, especialmente por ter sido escrito em um tempo no qual os mitos perderam parte da sua força, especialmente o mito nacional. Podemos dizer que o canto lírico em

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OMEROS Derek Walcott. Tradução: Paulo Vizioli. Companhia das Letras. 440 páginas. Quanto: R$ 54

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TRECHO Meu canto foi sobre o tranqüilo Achilles, filho de Afolabe, Que nunca subiu num elevador, que nunca Teve passaporte, pois o horizonte não exige nenhum. Nunca pediu ou tomou emprestado, nunca foi garçom de ninguém, um homem cujo fim, quando vier, será uma morte por água (o que não é para este livro, que ele não conhecerá nem haverá de ler). Cantarei o único morticínio Que lhe trazia deleite, o dos peixes – e isso por necessidade; cantarei os canais de suas costas ao sol. Cantei nosso vasto país, o mar das Caraíbas (“Omeros”, cap. LXIV)

Em “Omeros”, escritor usa o canto poético para aproximar Grécia, África e Caribe

“Omeros” subverte as noções tradicionais de centro e periferia e busca reunir os fragmentos de um povo estilhaçado por séculos de exploração colonial, e posteriormente, capitalista, neoliberal e globalizada. “Omeros” retrata a vida simples dos pescadores de Saint Lucia na sua luta diária pela sobrevivência: “A aurora escoou pelos seus vales, o sangue se espalhou sobre os cedros, e o bosque inundou-se com a luz do sacrifício”.

Inconsciente

Walcott lançou mão de mitos universais vindos das profundezas do inconsciente coletivo, regiões profundas da alma, onde os seres vibram em uníssono. “Omeros” é um poderoso canto poético que aproxima a Grécia, a África e o Caribe, e nele a busca pela identidade se dá por meio de um mergulho profundo nos costumes e nas tradições dos antepassados negros do Golfo de Guiné sem, contudo, ignorar a

herança deixada pelo colonizador. Em “Omeros”, observa-se uma reunião de aspectos tradicionais da poesia narrativa, do gênero épico, e da prosa ficcional, tendo como base o romance moderno. Técnicas como o flashback, do romance, e cortes característicos do cinema, conferem dinamismo ao enredo. O escritor adotou, também, recursos da poesia tradicional e estratégias vinculadas ao pós-modernismo, como a mistura do real com o imaginário e o questionamento constante de si mesmo e da sua poesia. Dessa forma, ao adentrar os arcanos de “Omeros”, o leitor experimenta mudanças de ritmo na narrativa que encontram paralelo no ritmo visual dos filmes; possivelmente, essa habilidade do escritor provenha da sua experiência em adaptar e preparar roteiros para o cinema. Omeros é um personagem do poema épico que possui vários nomes e assume, a partir de cada um deles, uma nova dimensão interpretativa: ele é o velho

pescador cego Sete Mares, e um barqueiro desterrado. As metamorfoses de Omeros e suas interrrelações, inesperadamente, transformam o mar das Antilhas no Mar Egeu, povoado por seres mitológicos. A obra traz outros personagens como Achilles, Heitor, Theophile, Philoctete, homem vivido que possui uma ferida aberta e dolorosa. Philoctete pergunta, no capitulo IV: “Vocês todos veem como é estar sem raízes nesse mundo?”. Esse misto de poesia, romance, mito e roteiro de cinema singulariza a obra e exige do leitor momentos de paradas e reflexões, mas vale a leitura, pois “Omeros” trata de questões atuais, como o desenraizamento do indivíduo contemporâneo, a destruição da natureza por ganância e ignorância, e questões identitárias. Derek Walcott foi o convidado de honra do VIII Festival Internacional de Poesia de Granada, Nicarágua, realizado em fevereiro de 2012, ocasião que recebeu das mãos da autoridades as chaves da cidade de Granada. Pude acompanhar a sua palestra e observar na sua fala, nos seus gestos e no olhar a calma e a sabedoria de um homem que utilizou a poesia como instrumento de resistência e que ainda tem muito a dizer.


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cinema por FLÁVIA DALLA BERNARDINA

“PINA”, A DANÇA QUE INSPIRA A VIDA Filme de Wim Wenders sobre Pina Bausch, em cartaz no Cine Jardins, emociona ao mostrar a profundidade do trabalho da coreógrafa que viveu o prazer e a dor de dançar até o fim

DIVULGAÇÃO

O documentário cresce na medida em que os bailarinos interagem com a cidade, seguindo os ensinamentos de sua mentora: “Não tenha medo, dance por amor”

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heguei à sala de cinema e poucas cadeiras me esperavam. A que encontrei me disponibilizou uma vista justa à tela. Tomei um fôlego como se fosse começar um solo, e solos são cruéis: você, os movimentos e seu oxigênio. O prazer e a dor de dançar até o fim. A dança habita o espaço vazio deixado pela palavra que não existe. Quando não há como dizer, há dança. Pina Bausch (Phillippine Bausch, Solingen, 27 de julho de 1940 – Wuppertal, 30 de junho de 2009), bailarina, coreógrafa e diretora do Tanztheather Wuppertal, não precisava ter morrido para se eternizar. A lenda já estava viva. Wim Wenders dirige com maestria o documentário “Pina”, um projeto de mais de duas décadas, que só foi concretizado quando ele conheceu a tecnologia 3D. Essa foi a única maneira que o diretor encontrou para fazer jus à profundidade do trabalho da coreógrafa. Após transpor essa barreira, houve outra inesperada: a morte de Pina, alguns dias após ser diagnosticada de câncer. Com o peso da ausência sobre os ombros, o diretor assume o lugar de

coreógrafo e oferece ângulos impossíveis a um palco italiano: a expressão do rosto do bailarino, a interação dos corpos em outras perspectivas, a mancha de suor no figurino, a intensidade da entrega, os ossos do colo. Wim Wenders nos oferece a dança de Pina, seus braços, sua entrega, sua vida. Com uma companhia madura – mas que não nasceu jovem – de corpos velhos, talhados, inteligentes, tímidos e loucos, os bailarinos fazem depoimentos ao longo do filme sobre a sua relação com a coreógrafa. E Pina parece saber mais deles do que eles mesmos, por isso os olhares de tristeza, o discurso de saudade. Mestres nos orientam por um tempo, e nos deixam de repente. Esse é o teste do discípulo – seguir sozinho. Pina pouco falava, deixava que o bailarino se descobrisse por si mesmo. Para emergir o movimento verdadeiro é preciso lidar com os próprio dramas, se apropriar das falhas como algo virtuoso, genuíno. Suas pontuações eram essenciais como suas coreografias: não tenha medo, não seja tímido, enlouqueça e dance, dance por amor. Os corpos que se soltam em direção ao nada, a música que penetra os poros

O diretor recorreu à tecnologia 3D para realizar o longa e teve de enfrentar a morte inesperada da coreógrafa dias antes do começo das filmagens

para ligar a poesia à carne, a água, a pedra e a terra. Os braços, os lindos braços de Pina que dizem muito mais do que poderiam pretender. A obra se ilumina na medida em que os bailarinos interagem com a cidade. Duos em cruzamentos, solos em metrôs, performances no subsolo. Dançar no precipício, em desertos ou castelos de vidro. Essa é a dança que traz a vida à tona. O filme acabou e eu, ainda extasiada, não havia recuperado o fôlego. Como se tivesse inspirado no início do filme, e só. Uma combinação de saudades, vontades e ideias. Do que vivi, do que poderia ter vivido e do que viverei. Do amor que distribuí de graça e daquele que me privei. Fiquei um tempo na cadeira, pensando em nada. Soltei o ar devagar, assimilando os sentimentos. Uma das bailarinas espera ansiosamente sonhar com Pina. Quem sabe a aparição onírica lhe daria um conforto desnecessário. Ela ainda vai descobrir que o desconforto é sua maior herança, sua criatividade. Mesmo sabendo que ela nunca lerá esse texto, lhe digo: não espere por Pina, nem em sonhos, nem em aparições. Dance, dance, caso contrário, estaremos perdidos.


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falando de música

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por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

ONZE SAMBAS E UMA CAPOEIRA – TRIBUTO A PAULO VANZOLINI Chico Buarque, Mauricy Moura, Cristina Buarque, Adauto Santos, Claudia Moreno e Luiz Carlos Paraná. Microservice. 1967. 12 faixas. Quanto: R$ 16,90

APÓS A RONDA, A VOLTA POR CIMA

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história é saborosa, assim como a maioria das histórias que surgem em bares à meia-luz, onde se reúnem pessoas dispostas a celebrar os prazeres da vida em volta de música sofisticada e cerveja gelada. Corria o ano de 1967, e Paulo Vanzolini, habilidoso compositor de sambas e diretor do Museu Zoológico de São Paulo, levava suas criações ao Jogral, famoso reduto dos notívagos paulistanos. Impressionado com a qualidade do repertório, o publicitário e companheiro de boemia Marcus Pereira fez-lhe a seguinte proposta: – Paulinho, por que você não grava um disco? Conhecedor do temperamento arredio do amigo, Marcus Pereira estava preparado para receber uma negativa. Mas surpreendeu-se com a resposta:

– Com você eu faço qualquer negócio. Nascia ali o álbum “Onze sambas e uma capoeira”, primeiro registro fonográfico dedicado exclusivamente às canções de Paulo Vanzolini e que marcou a estreia do selo Marcus Pereira, cujo proprietário desenvolveu precioso trabalho de valorização da música popular brasileira nos anos 70. O disco agora volta ao mercado pela chancela da Microservice, que recuperou o acervo da Copacabana Discos, distribuidora das produções do selo. As gravações foram realizadas em outubro de 1967, em clima de amigos, com arranjos do então iniciante Toquinho. Juntaram-se ao projeto nomes como Chico Buarque de Hollanda, Cristina Buarque, Mauricy Moura, Adauto Santos, Claudia Moreno e Luiz Carlos Paraná. Ou seja: a turma que batia ponto no Jogral, e que nutria especial

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admiração pelo homenageado. As 12 faixas selecionadas trazem uma amostra do talento desse personagem excêntrico que completa 88 anos no próximo dia 25 de abril. Mesmo convivendo no meio boêmio, Paulo Vanzolini jamais pensou em largar a carreira de zoólogo para viver de música. Esta, para ele, sempre foi um hobby, um prazer. Talvez venha dessa espontaneidade a simplicidade e a beleza de canções como “Ronda”, seu maior sucesso, aqui interpretado por Claudia Moreno. Mas sua obra vai muito além desse recorte trágico sobre a mulher que percorre a noite paulistana à procura do amado, segundo o próprio autor, “não em busca de uma reconciliação, mas para enchê-lo de bala”. Seus sambas são assim: repletos de finais infelizes, desencontros amorosos e ironia fina. São exemplos dessa lavra

“Samba erudito” e “Praça Clóvis”, gravados por Chico Buarque, e “Juízo Final”, por Adauto Santos, sobre o homem que se encontra com seus pecados no céu e diverte-se ao ver que “aquela ingrata hoje está/Trabalhando de salsicha/Espetadinha no garfo/Satanás fritando a bicha”. A maior parte das composições tem andamento cadenciado e arranjos embelezados pelos sopros que pontuam as melodias de canções como “Amor de trapo e farrapo” e “Volta por cima”, ambas na voz empostada de Mauricy Moura. De onde se conclui que “Volta por cima”, gravada originalmente por Noite Ilustrada, em 1963, bem poderia ser adotada como lema do brasileiro trabalhador, um herói que a todo momento “reconhece a queda/E não desanima/Levanta, sacode a poeira/Dá a volta por cima”.


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história

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por MARIA CLARA MEDEIROS SANTOS NEVES

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012

Os escritos do líder religioso destacam-se pela riqueza de informações e detalhes na descrição de suas impressões sobre locais, habitantes e paisagens com os quais teve contato em 1880 e 1886

O OLHAR PASTORAL DE UM VISITANTE

REPRODUÇÃO

“E

1881); no segundo e terceiro, informações sobre a segunda visita (ocorrida entre fevereiro de 1886 e março de 1887). A publicação desse documento representa a continuação de trabalho semelhante feito anteriormente e que deu origem ao livro intitulado “O Espírito Santo em princípios do século XIX”, baseado nos Apontamentos de outro bispo – D. José Caetano da Silva Coutinho –, que visitou o Espírito Santo em 1812 e 1819. Ambas as narrativas compõem importante conjunto de documentos que, além do marcante caráter religioso, contêm rico registro de vida e costumes de época sob pontos de vista de viajantes, mencionando personalidades e retratando o dia a dia das localidades visitadas, constituindo assim importante contribuição para a historiografia na qualidade de fontes primárias de pesquisa. Em comparação com os apontamentos de D. José Caetano, os escritos do bispo Lacerda destacam-se por maior riqueza de informações e detalhes na descrição de suas impressões sobre locais, habitantes e paisagens com os quais teve contato, dando também notícias sobre os caminhos percorridos, os meios de transporte utilizados, os incômodos encontrados e o tempo despendido nos trajetos, especial-

De maneira geral, os Diários do bispo revelam um homem de curiosidade aguçada” —

Maria Clara Medeiros Santos Neves Museóloga

mente na visita de 1886. O bispo Lacerda nos oferece um amplo panorama da época e através de seu relato pode-se vislumbrar o Espírito Santo do final do século XIX, com suas paisagens naturais e urbanas, costumes e personalidades.

um grande observador, e é a esses traços de sua personalidade que devemos tamanha riqueza de detalhes encontrada em seus relatos. O bispo D. Pedro dirige um olhar atento aos habitantes locais. Menciona nomes e fala de suas preocupações com cada indivíduo, assistindo-os em suas necessidades, fossem eles livres, escravos ou índios. Aliás, não esconde sua admiração especial pelos índios, deixando claro o respeito que sente por sua cultura pelas exortações à preservação da língua e esforços que fez para aprendê-la, como se vê em várias passagens ao longo do texto.

Paisagens

As paisagens têm nele observador atento. Sempre que seu trabalho permitiu ele reservou momentos para suas caminhadas, galopes ou passeios de barco para explorar as redondezas e ter contato com a natureza, tomando nota de tudo quanto considerasse significativo. Assim descreveu exaustivamente paisagens locais com seus rios, córregos, montanhas e outros acidentes, abundância e beleza de matas, sempre comparando suas observações com mapas produzidos na época e apontando suas imperfeições. Tanto os apontamentos de D. José Caetano como o de D. Lacerda remontam a uma época em que o Espírito Santo era ainda desprovido de diocese própria, que só foi criada em 1895, desmembrada da de Niterói e com sede em Vitória, tendo como primeiro bispo D. João Batista Correia Nery. No que se refere à edição do texto, excetuando-se a atualização da ortografia, procurou-se respeitar ao máximo a redação original, mantendo-se o padrão pessoal e variável do autor, sendo também respeitada a pontuação, exceto quando se fez necessária uma intervenção em prol da clareza da frase. Nosso trabalho de edição dos Diários tem como objetivo precípuo disponibilizar o documento ao público em geral. Acreditamos que a sua transcrição e publicação tanto na forma impressa como virtual democratizará o acesso ao documento, permitindo que pesquisadores como também o público leigo interessado em assuntos relacionados ao Espírito Santo conheçam seu conteúdo. No mais, esperamos que os pesquisadores se sintam estimulados a realizar a necessária análise e produção de estudos a partir destes diários.

DIÁRIOS DO BISPO D. PEDRO MARIA DE LACERDA TRAZEM REGISTRO DE VIDA E COSTUMES DO ESTADO NO SÉCULO XIX nfim embarcamo-nos em um vaporzinho, e conosco o Sr. Simão e outros e a banda de música e deixamos a Barra com suas poucas casas, algumas fábricas e trapiche e vistosa casa do Sr. Simão e começamos a subir o Itapemirim, rio pardacento, largo sim, mas sem beleza nem margens vistosas – não sei como é lá para cima. Por terra se vai em 20 minutos da Barra à Vila, pelo rio em razão das voltas leva-se quase o triplo do tempo. Dobrado certo cotovelo do rio, ao som de música e de foguetes...” Assim o bispo D. Pedro Maria de Lacerda descreve sua chegada à Vila de Itapemirim em 15 de fevereiro de 1886. Seus apontamentos são documento valioso do final do século XIX e encontram-se minuciosamente transcritos no livro “Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo”. A importância desses apontamentos cresce quando se considera a escassez de documentos reveladores do cotidiano da época no Espírito Santo. O manuscrito contém mais de mil páginas distribuídas em três cadernos ou volumes: no primeiro o bispo registrou suas impressões da primeira visita (de julho de 1880 a março de

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Ele descreve tudo vividamente sem deixar de fora suas impressões pessoais e, por vezes, sua impaciência, registrando sua passagem por Serra, Nova Almeida, Fundão, Santa Cruz, Riacho, Linhares, Itapemirim, Piúma, Benevente (atual Anchieta), Guarapari, Alfredo Chaves, Cachoeiro de Itapemirim, Castelo, Conceição do Castelo (que ele chama de Afonsino), Rio Pardo (atual Iúna), arraial do Espírito Santo (atual Muniz Freire), Alto Guandu (hoje Afonso Cláudio), Alegre, Vala do Souza (Jerônimo Monteiro dos nossos dias). Observa-se a ausência de parte de seus relatos no que diz respeito a Vitória e Vila Velha que, ao que tudo indica, foram registrados separadamente e sobre os quais ainda não se tem notícia. Concluímos, de acordo com algumas passagens de seus apontamentos, que tais registros foram produzidos, nem o bispo deixaria de fazê-lo tendo realizado a visita a esses lugares. De maneira geral, os Diários do bispo revelam um homem de curiosidade aguçada, o que o levou a realizar por conta própria várias pequenas incursões com o fito de deleite e para conferir cartografias da época. Além de sua natural curiosidade por tudo e todos que estavam a sua volta, encontramos nele

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Apontamentos de D. Pedro foram transcritos no livro “Diários das visitas pastorais de 1880 e 1886 à Província do Espírito Santo”

DIÁRIOS DAS VISITAS PASTORAIS DE 1880 E 1886 À PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO D. Pedro Maria de Lacerda. Org.: Maria Clara Medeiros Santos Neves. Phoenix Cultura. 648 páginas. R$ 35. À venda na livraria Logos. Disponível no site www.estacaocapixaba.com.br.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012

língua portuguesa por JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

CARTA ABERTA A UM PROCURADOR Estudioso critica ação judicial que determinou a retirada de circulação do dicionário Houaiss, sob a alegação de que traz “verbete carregado de preconceito ou xenofobia”

S

enhor procurador Cléber Eustáquio Neves, Escrevo-lhe esta carta porque soube que o Sr. entrou com ação na Justiça solicitando a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição do dicionário Houaiss, porque no verbete “cigano” há acepções ao seu ver carregadas de preconceito ou xenofobia, apesar da informação explícita no dicionário de que tais acepções são pejorativas. Para o Sr., o texto do verbete afronta a Constituição e pode ser considerado racismo. É para ajudá-lo nessa importante tarefa de cortar as afrontas linguísticas à Constituição que lhe escrevo esta carta aberta, na esperança de que ela lhe chegue às mãos. Há outros verbetes racistas e preconceituosos que afrontam nossa Carta Magna, como “judiar”, “judiaria”, “judiação”, uma verdadeira apologia ao antissemitismo. Mande suprimir também o verbo “denegrir” que é um acinte aos afrodescendentes por sua significação pejorativa. Por que o luto

tem de ser preto? Envie uma mensagem ao Congresso para que faça uma lei que proíba a cor negra para o luto. Mande retirar também dos dicionários o verbete “mulato”, que se origina do nome “mula” e é uma ofensa também aos que têm a cor da Gabriela de Jorge Amado. Aliás, também deve ser retirada dos dicionários a expressão “eminência parda”, por sua conotação negativa que agride os que são pardos. Seria bom também retirar do dicionário o verbete “esquimó”. Na língua do povo mongólico que habita as regiões geladas da Groenlândia, Canadá e Alasca, a palavra “esquimó” significa “comedor de carne crua”, o que é altamente ofensivo para esse povo que prefere ser chamado de “inuit”, que quer dizer “povo”. Os esquimós, digo, os inuits, também merecem respeito, embora morem longe do Brasil. Por que não mandar suprimir todos os palavrões dos dicionários? Pense num adolescente ou numa criança que,

ao abrir o Houaiss ou o Aurélio, encontre um palavrão desses cabeludos que fariam enrubescer uma freira de pedra. Trata-se de pornografia explícita que deve ser extirpada.

Notas musicais

Aliás, por que as notas musicais pretas são de menor valor que as brancas? Trata-se de racismo velado, já que uma semifusa, por exemplo, toda pretinha, vale bem menos que uma semibreve, toda branquinha. Mande tirar o negrume das notas musicais e mande apreender todas as partituras, de Bach a Villa-Lobos, por exemplo, porque todas contêm notas pretas de menor valor que as notas brancas. Mande suprimir nos livros de Física a expressão “buraco negro”, e de todos os dicionários expressões como “magia negra”, “humor negro”, “ver as coisas pretas”, todas com conotações altamente ofensivas à raça que tanto fez pelo progresso de nossa Terra. Aliás, por que não mandar recolher todas as gramáticas da língua que en-

sinam que a concordância nominal se faz no masculino mesmo que haja um único homem entre milhões de mulheres? Trata-se de um preconceito contra as mulheres ainda não previsto na Lei Maria da Penha. Como vê, Sr. Procurador, sua tarefa é extremamente árdua. Haveria outras coisas a dizer, como o preconceito contra a raça branca, encontradiço também nos dicionários, pois passar a noite em claro, dar um branco (quando se perde momentaneamente a memória), arma branca, casamento branco, elefante branco, greve branca, intervenção branca, versos brancos, escravatura branca, viúva branca, ditadura branca, e outras mais, são expressões que devem ser abolidas por sua conotação pejorativa, nitidamente racista. Se de todo for impossível acabar de vez com os dicionários e livros científicos, só lhe resta uma solução, dada a dificuldade de cumprir sua missão de salvar a língua portuguesa e a cultura brasileira dos preconceitos e afrontas à Constituição: aposente-se.


poesias A PORTA DO POETA

crônicas BOM APETITE

por NAYARA LIMA

MARCOS DE CASTRO A porta do poeta é vulnerável está quase aberta por pouco escancarada a porta está fechada é uma porta sem casa ela pertence a um quarto de um quadrado é uma porta concreta mas ela permite o coração e o coração do poeta é grande bem como o é o seu destino e são as suas tragédias A porta do poeta range à espera da chave chamada amor quando se trancará o ódio e a dor em outro infinito é uma porta abstrata no trato do poeta que por sua vez abstrai a metáfora explode em hipérboles milenares depois espia pela fresta da tal porta com os os lacrimejantes olhos da esperança.

SONHO MEU

Ontem ouvi conversa alheia em restaurante. Foi brutal o diálogo: uma moça que aqui vou chamar de Elisa dizia a outra que, sendo o mundo a droga que é, com uma ou outra esperança, melhor seria que nada tivesse surgido ou que ela então pudesse não ter surgido no mundo. Que a solidão é inevitável, ainda que por instantes, mesmo diante de um grande amor. Que o vazio não se compra, chega gratuito, desde o primeiro dia. Perdi a fome olhando pro prato, enquanto ela falava entre um garfo e outro, na mesa ao lado. Concordei com Elisa, em termos. Mas talvez eu dissesse mais. É que o tal do vazio existe mesmo. É aquilo que se sente em diversas situações e que não sabemos dar nome justamente porque se trata de um vácuo na sala, de um silêncio na porta, de um espaço mudo

entre paredes e parênteses. Enquanto se vai à cozinha preparar um suco, ou à varanda regar a planta, pode-se de repente sentir o tal vazio. Sim, e por isso a tal da Elisa tem razão. Mas há algo além. Não é possível que mesmo em meio a uma ou outra esperança, o mundo termine por aí. Do vazio se deve, no mínimo, nascer. Não sei. Tem que se dar um jeito. Elisa depois deu pra falar de amor, e resumi-lo dizendo que amar é coisa boa, mas até aí se sofre, até aí se acaba, porque a certeza que temos do fim do mundo não chega aos pés da certeza que temos do fim de um amor. “Acaba-se e pronto”, dizia, convicta. Foi então que precisei interromper. Mesmo desconhecida, me senti no direito, até porque meu prato a essa altura já estava frio e já seria demais perder a sobremesa. Sendo a escrita o

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doce, às vezes amargo, que me falta, resolvi ali mesmo escrever. Copiei num guardanapo, pedi licença, entreguei o bilhete exatamente assim e desejei um bom apetite. “Floresça o pasto, não tem romance que aguente deserto no outono. Chama pássaro, faz do padre um bicho estranho, bota Chico pra cantar, sei lá, treina hipismo, dá um jeito de começar. Que corpo é isto, é a lágrima presa, o movimento do riso, uma acrobacia de relance, corpo é fogo de artifício no vão da terra. Bota hortência na secura do sertão. Manda rosas, se não tem crédito liga do orelhão. Faz carta, esquece e-mail, grita o segredo, samba que sambar é certeza, é na ponta do pé. Quanto ao amor, esqueça. O amor não é isto ou aquilo. O amor é o amor. Não tem o que dizer. Chama o amor, vai caminhar no Leblon, esquece o medo, aceita o real, que fim e fim é tudo igual. É pra vir. Até lá deu tempo. Deu tempo do sorvete não derreter, da Bahia não ir embora, do mar permanecer, de acontecer um carnaval inteiro. Até o amor não acabar, escuta, deu tempo do amor render.”

O NERUDA QUE VIVE EM MIM por CARLOS ANTÔNIO ULIANA

Sonho e meu sonho é simples não é um simples carro muito menos um simples carro novo e caro meu sonho é um sonho simples sonho viver o sonho de viver do que componho.

PÓS MEIA-NOITE Cigarro após cigarro noite após noite em noites se vão não em vão poema após poema estudando a lição procurando a forma aprendendo um pouco de luz na escuridão conhecendo a escuridão na luz escrevendo desenhando pintando cravando a unha encravada no coração e no meio do meio da madrugada urro jorrando sangue como uma fera nas garras da solidão.

O INFERNO É AQUI. OU LÁ? Aqui se faz aqui se paga em vez de uma reza uma praga em vez de Aldir Blanc Lady Gaga

Sou um ser inundado de Neruda por todos lados. Permanentemente ilhado por seus poemas. Por insular, percebo as costas bravias do Pacífico. Serrano, me ocupo em traduzir os pontos de interseção entre Pedra Azul e as Cordilheiras. Ele me consome a cada um de seus versos libertários, a cada uma de suas intrincadas casas, em cada detalhe de suas delicadas coleções. Tenho em mim proas e caracóis próprios e imaginários, como Neruda os teve e colecionou. E borboletas e cavalos empalhados e amores perdidos. Relendo “Confesso que vivi” me vem claramente como os bosques e florestas da minha infância se irmanam com a natureza nerudiana. “Quem não conhece o bosque chileno, não conhece este planeta. Daquelas terras, daquele barro, daquele silêncio, eu saí a andar, a cantar pelo mundo”, entoou Pablo.

De minha infância vivida vejo em meu pai caminhoneiro uma outra infância, que não está em mim, do pai ferroviário de Neruda. Tudo nele incorpora meu universo mais recôndito e pessoal. “Contradigo a mim mesmo porque sou vasto”, pontuou, tão apropriadamente, Whitman, o poeta da América, espelho de Neruda, o poeta de todas as Américas. Imerso em seus versos me surtam outros versos. De outras Américas e outros poetas. Assim, em um átimo, me vem Thiago de Mello e seu poderoso canto amazônico. Assaltam-me Drummond e sua retórica forjada nas minas itabiranas e nos aços incandescentes da alma de todo o ser. Ocorre-me César Vallejo e Fuentes e Lorca e Alberti e Rulfo e Paz e Galeano e Borges. Todos, seus diletos e pessoais cúmplices. “Nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva”, sentenciou. Sobretudo para a vida, me atreveria a complementar.

Quando remonto meus primeiros anos é em Neruda que me referencio. Quando adentrava a mata com o pai em busca de musgos e palhas e tocos e paus para montar o presépio com a mãe é nele que busco as mais outonais lembranças da aurora da minha vida. Quando, menino absorto e deslumbrado, mortificava-me diante das águas das chuvas descendo em fortes quedas nas encostas dos granitos monumentais de Pedra Azul, são nas neves austrais chilenas que me reporto e debruço. Neruda me ensinou a confessar a todo momento o gosto de viver. Digo e vivo: para viver, tenho vivido. Há quem o conheça mais que eu. Há, claro, os estudiosos e acadêmicos e teses e tratados e estudos que dominam Neruda com perfeição e excelência. Mas eu digo e afirmo: mais que conhecê-lo, o reconheço. Porque quando o leio o reconheço em mim e na natureza da minha existência.


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por FRANCISCO AURELIO RIBEIRO

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012

HAYDÉE NICOLUSSI, A SEGUIDORA DE MONTEIRO LOBATO NO ESPÍRITO SANTO Em comemoração ao Dia Nacional do Livro Infantil, que acontece em 18 de abril, professor descreve o pioneirismo da autora capixaba que captou a alma das crianças em seus contos

DIVULGAÇÃO

Com posições de vanguarda, a escritora passou a escrever para crianças na década de 1930, numa das épocas mais amargas de sua vida, após desiludir-se com o marxismo

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o Espírito Santo, a literatura escrita para crianças e jovens, assim como a do resto do Brasil, foi marcadamente ideológica e didática. O primeiro livro para esse público foi o “Catecismo histórico e político”, “seguido de máximas e pensamentos de diversos autores. Para uso das escolas de primeiras letras da Província do Espírito Santo”, oferecido ao Exmº Sr. Dr. Pedro Leão Velloso, presidente da Província, por J. M. P. de Vasconcellos, publicado em Vitória, em 1859. Seu autor, José Marcelino Pereira de Vasconcellos (1821-1874), foi funcionário público, político, jornalista advogado, escritor, um ideólogo do sistema a que pertencia. Para ele, o verdadeiro e mais seguro meio de viver na sociedade é “Respeitando a Deus, e aos maiores em idade, e autoridade, guardando os seus mandamentos, sendo amigo da verdade, do trabalho e da economia, e não fazendo aos outros o que não queremos que nos façam” (p. 14). Servilismo, obediência acrítica, aceitação dos valores já estabelecidos, eis o que ensina às crianças o seu Catecismo, numa época de segregação racial, escravidão e exploração do trabalho escravo. Outro escritor capixaba que se preocupou em escrever para crianças e jovens foi o professor Elpídio Pimentel (1894-1971), com uma história dialogada sobre o Espírito Santo, “Quando o Penedo falava”, publicada em 1927. Desde a

ilustração da capa, um velho de barbas e óculos, elegantemente trajado, sentado num sofá, com um livro nas mãos, ao lado de uma criança de pé, à dedicatória – “À mocidade escolar conterrânea para que, iniciando-se na história da terra espírito-santense, saiba tornar-se digna de suas nobres tradições, defendendo-as e honrando-as, sem desfalecimentos” –, a obra do prof. Pimentel é claro instrumento ideológico de preceitos e preconceitos de sua classe, a burguesia. Estruturada na forma clássica do diálogo entre o mestre, o avô, e o discípulo Glauro, as histórias ouvidas de “um gênio preso no Penedo” procuram mostrar a organização político-administrativo-social do Espírito Santo de um ponto de vista do poder. Além da obediência irrestrita ao poder, o avô orienta o neto na profissão a escolher: ”És estudante; logo, porém, que te tornes homem, serás o que tua vocação quiser: médico, engenheiro, advogado, almirante ou general”. Ao que o menino respondeu: “Ah! Hei de ser médico, para dar saúde aos que sofrem” (p. 28). No Espírito Santo, a criadora da moderna literatura infantil foi, ao final da década de 20 e início da década de 30, Haydée Nicolussi (1905-1970), a primeira escritora modernista capixaba. Escreveu contos infantojuvenis, que ganharam prêmios e foram elogiados por Monteiro Lobato. Haydée Nicolussi nasceu em Alfredo Chaves, filha de um imigrante italiano,

estudou no Colégio do Carmo, onde se formou professora, em 1921, aos 16 anos. Segundo ela, “se literatura fosse arte especializada em Instituto como a pintura, a escultura, a música, e não um simples curso à margem de outras cátedras, talvez tivesse, como os discípulos ricos que contam com professores particulares, um canudo de diretrizes certas debaixo do braço. Mas, éramos pobres, papai comprava os livros e revistas nacionais que podia, eu tinha que aproveitar os empréstimos circunstanciais”. (entrevista ao jornalista Carlos Leite Maia. Diário da Manhã, Recife, s/d).

Adolescente

Haydée Nicolussi foi uma adolescente apaixonada pelos livros e pela literatura. Lia tudo o que lhe caía às mãos, dos poetas simbolistas aos parnasianos, escritores realistas e de ficção, teatrólogos e ensaístas. Sua maior atração era o conto e os primeiros mestres, Eça de Queiroz, e as crônicas de Agripino Griecco, de “O Jornal”. Começou sua carreira literária com a publicação do soneto “Parábola”, na revista “Vida Capichaba”, em 1924. Nessa primeira fase literária, usava em seus textos o pseudônimo “B.H.”. A partir de 1927, passou a assinar seus textos. “O símbolo supremo”, conto publicado na “Vida Capichaba”, em 07/06/1928, foi seu primeiro trabalho remunerado. O segundo foi “As flores de Mogorim”, iniciado em 11/10/1928, e que esticou por quatro

capítulos para lhe render mais réis. Em 1929, Haydée Nicolussi ganhou um concurso nacional de contos da revista “O Cruzeiro”, e seu conto “História quase triste” foi publicado em 27/07/1929. Também em “O Cruzeiro” publicou “O primeiro véu de noiva do mundo”, em 18/01/1930, que já tinha sido publicado na “Vida Capichaba” com o título de “O véu de noiva da lua”, em 15/08/1927. Ainda em “O Cruzeiro” publicou “A estrada de Damasco”, em 28/06/1930, e “De Citera a Caná”, em 25/01/1930, todos ilustrados pelo professor Carlos Chambelland, um mestre do desenho. Haydée Nicolussi permaneceu em Vitória até 1930, quando atuou como secretária do curso de Atualização Pedagógica, no governo de Aristeu Borges de Aguiar. Com a Revolução de 1930 e a saída dos principais intelectuais capixabas para os grandes centros (Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro), foi tentar carreira literária no Rio de Janeiro. Passou a viver de publicações esporádicas em “O Jornal”, do Rio de Janeiro, e nas revistas “Canaã” e “Vida Capichaba”, em Vitória. Nessa época, apaixonou-se pelo marxismo e por Marino Besouchet, irmão de sua amiga, a professora Lídia Besouchet. Frustrou-se com ambos. Segundo ela, foi numa das épocas mais amargas de sua vida – “crise política, sentimental, econômica”, em que se perguntava “para que e para quem fazer arte? Até

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onde o interesse humano tem o direito de caminhar e o egoísmo, de recuar?” –, que lhe surgiu a necessidade de escrever para crianças. “A literatura infantil foi um hiato e não chegou a ser infantil. Nasceu de um acaso, de uma afronta, de um capricho”. Haydée Nicolussi foi demitida de “O Jornal”, porque “’O Jornal’ queria mestres para educar o povo não neófitos sem credenciais políticas”. Assim continua em seu depoimento: “Aí resolvi provar que também era capaz. Estava com a alma transbordando de raiva satírica contra Deus e o diabo. Numa só noite, resumindo todos os meus conhecimentos em matéria de fábulas escritas, pintadas e faladas, desde Esopo até Walt Disney, escrevi, dando início, a um novo livro, quatro historietas mais ou menos infantis, que Trilussa não assinaria...” (Id., ibid.) “Mostrei meus trabalhos a Malba Tahan, diretor de um suplemento estudantil na Escola Normal do Rio de Janeiro o qual observou apenas que eu escrevia mais “para crianças de bigodes na cara”, o que não impedia de colaborar num suplemento qualquer, isento de qualquer sectarismo. E Horácio Cartier chegou a me propor o suplemento de ‘O Globo’ das segundas-feiras, onde ele sempre trabalhou e único elemento de que dispunha. Mas eu resolvi renunciar.” (Id. ibid)

Carta a Lobato

Em 19/02/1938, Haydée Nicolussi escreveu a Monteiro Lobato uma carta enviando-lhe os originais da obra “Histórias sem idade”. Esse lhe respondeu, em 25/02/1938, dizendo: “Li os seus contos e quero que receba os meus parabéns. Acho-os primorosos, tanto no fundo como na forma. A linguagem tem a frescura e o correntio que no meu ver o gênero infantil impõe. Vou recomendar à Editora especial atenção no exame da sua obra”. Se o fez, não se sabe, mas os originais desapareceram assim como os desenhos de Nestor Silva. Em outra entrevista, Haydée Nicolussi afirmou que “depois de certos choques políticos em 1935”, foram roubados de sua casa os desenhos originais que possuía, dentre os quais os de Nestor Silva para uma coleção de contos infantis que andou organizando, desenhos de Arpad Szenes, de Nelson Boeira, “tudo se evaporou por milagre de seus arquivos”. (entrevista a Solena Benevides Vianna,

Haydée Nicolussi em abril de 1927, quando passou a assinar seus textos na revista “Vida Capichaba”: escritora ganhou concurso nacional de contos da revista “O Cruzeiro” e viveu de publicações esporádicas em “O Jornal” (RJ)

edição dominical de “A Manhã”, Rio de Janeiro, de 12/08/1945). Haydée Nicolussi, nessa época, com o pseudônimo de Baba Yaga, “velha feiticeira de mentira, sabedora de histórias bonitas e que sai do seu castelo encantado na Floresta Negra, e vem se colocar no meio dos meninos em roda”, escrevia no jornal “A Noite” (RJ), para os meninos do Brasil. Segundo ela, “a literatura infantil é difícil, pois joga com conhecimentos de perto da alma da criança”. É contrária a essa mania brasileira de se fazer literatura infantil para intelectuais e acha, em Monteiro Lobato, “por todos os motivos, o escritor, atualmente, que tem sabido conquistar a alma dos meninos”. Alude aos seus últimos livros para crianças que o põem no rol dos grandes escritores para crianças, no mundo inteiro. (entrevista ao “Diário da Manhã”. Recife, 1938). Enfim, após eu ter escrito, em 1996, a primeira tentativa de historiar “A literatura feita para crianças e jovens no Espírito Santo”, já posso me corrigir sobre o que afirmei, na ocasião: “Da década de 1930 à de 1960, a literatura para crianças procurou manter o ideal horaciano do ‘utile dulci’, numa imitação de Lobato, sem a qualidade estética daquele. No Espírito Santo, não tivemos nenhum seguidor de Lobato”. Tivemos sim. A verdadeira literatura capixaba moderna para crianças iniciou-se com Haydée Nicolussi, desde a publicação de seus contos, dentre os quais, “Uma história quase triste” (1929), “As flores para Nossa Senhora” (1931), “O enterro do sabiá” (1931), “Anda burro, anda!...” (1931), “A ingratidão de Papai Noel” (1931). Quando faleceu, em fevereiro de 1970, Carlos Drummond de Andrade a chamou de “revolucionária romântica” e, fazendo referência a seu único livro publicado, “Festa na sombra”, afirmou que a vida não foi uma festa para Haydée Nicolussi. Ela que gostava tanto de oferecer flores, não as recebeu em vida. Em um conto de 1931, a personagem-menina quis oferecer flores a Nossa Senhora da Penha, em uma festa de coroação a Maria, mas as colegas as tomaram dela, deixando-a sem nada para oferecer à Padroeira. O conto termina com uma lição bem lobatiana, que serve não só às crianças, mas a todos, na fala da criada alter ego da Emília de Lobato, com quem desabafara: “Sua tolinha! Como é que os outros lhe convencem assim do que é e do que não é?!”


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