Pensar_04_08_2012

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Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 4 DE AGOSTO DE 2012

www.agazeta.com.br REPRODUÇÃO

Entrelinhas

AUTOR EXPLICA A RELAÇÃO ENTRE A LITERATURA E A MORTE EM CEM LIÇÕES

Página 3

Música

ARTICULISTA DEFENDE MISTURA DE ERUDITO E POPULAR NO FESTIVAL DE INVERNO Página 5

Jornalismo

UM PERFIL DO MESTRE GAY TALESE, EXPOENTE DO NEW JOURNALISM Página 8

Violência

SOCIÓLOGO ELENCA AS CAUSAS DOS ASSASSINATOS EM MASSA COMETIDOS POR JOVENS. Páginas 10 e 11

Passista Nildo da Mangueira com parangolé criado pelo artista plástico

A estética da favela

ENSAÍSTA REGISTRA O OLHAR DE HÉLIO OITICICA SOBRE A ARQUITETURA DO MORRO Páginas 6 e 7


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quem pensa

Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 4 DE AGOSTO DE 2012

Mariana Passos Ramalhete é graduanda em Pedagogia pela Ufes e professora. marianaramalhete@yahoo.com.br Graça Cabral é idealizadora do Movimento Hot Spot e diretora de Comunicação da Luminosidade.

Juca Magalhães é blogueiro de crônicas, professor de música e produtor cultural. aletraelektronica@gmail.com Nenna é artista.

marque na agenda prateleira Campus

Confissões Darcy Ribeiro

Ufes sedia Seminário sobre Educação Especial

Nos dias 14, 15 e 16 de agosto, acontecem o II Seminário de Educação Especial e o XIII Seminário Capixaba de Educação Inclusiva, no Teatro Universitário, campus de Goiabeiras. Inscrições até 14 de agosto pelo site www.forumcapixaba-ei.com.br.

Literatura Bravos Companheiros e Fantasmas nas Letras

O 5º seminário Bravos Companheiros e Fantasmas, aberto ao público em geral e focado no autor capixaba, será nos dias 23 e 24 de agosto. Ao todo serão 4 conferências e 39 comunicações nos auditórios do IC-2, no campus de Goiabeiras, e da Biblioteca Pública Estadual, na Praia do Suá. Mais informações: www.ufes.br/ppgl/.

www.nenna.com

José Augusto Carvalho é doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de SãoPaulo. joauca@hotmail.com

Erly dos Anjos é professor aposentado do Dep. de Ciências Sociais da Ufes. erlyanjos@uol.com.br Jânderson Nunes Pretti é acadêmico do 7º período de Medicina da Ufes. janderson_1991@hotmail.com

Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam.

A Expansão do Brasil e a Formação dos Estados na Bacia do Prata Luiz A. Moniz Bandeira

336 páginas. Civilização Brasileira. R$ 52,90

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A Primeira Pessoa Ali Smith

de agosto

Crônicas musicais de

Deny Gomes é professora de Literatura e escritora.

536 páginas. Companhia das Letras. R$ 33

Amplo estudo sobre a formação da região que se tornaria o “ponto nevrálgico” da América do Sul e do Atlântico Sul, desde a chegada dos espanhóis e portugueses no século XVI até os dias de hoje.

Manuela Lopes Santos Neves é jornalista e mestre em Ciência da Informação. manuela_lsn@yahoo.com.br Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

Escritas quando o câncer já o condenava ao recolhimento, as memórias do antropólogo e escritor perpassam a infância na cidade natal, os tempos de estudante, o trabalho como ministro de João Goulart, o exílio e a volta ao Brasil, a retomada da atividade política e a atuação na área educacional.

Jace Theodoro O cronista lança o livroCD “inDelicadezas em Cena crônicas musicais”, a pa rtir das 19h, na Oficina de Ideias Ana Paula Castro (Rua Franci Ferreira). O CD conta com sco Rubim, 210, Bento participações de Alaíde Costa e Gilson Peranzzetta interp retando músicas de No el Rosa.

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A partir de situações do dia a dia, a escritora escocesa Ali Smith constrói narrativas curtas sobre temas como a identidade, o amor e o fazer literário, usando jogos sofisticados capazes de despistar os leitores e que exploram os possíveis caminhos da arte de narrar. 152 páginas. Companhia das Letras. R$ 35

O Retrato Gogol

de agosto

Mostra de livros sobre teatro na Biblioteca

Livros sobre teatro de vários períodos históricos estão em exposição na Biblioteca Pública do Espírito Santo, até 31 de agosto, com visitação de segunda a sexta, das 9 às 19h.

O famoso conto de Gogol (1809–1852), aqui em edição de bolso, traz a perfeita combinação entre fantasia e realidade com toques de humor, uma das marcas da narrativa do autor russo. 64 páginas. L&PM. R$ 5

coletivo.peixaria@gmail.com

O MORRO EM CORES E FORMAS

José Roberto Santos Neves

Hélio Oiticica (1937-1980) é mais conhecido do público pela fama de artista performático e pela instalação “Tropicália”, que deu nome ao movimento capitaneado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. São associações legítimas, até porque a inquietação sempre foi uma das marcas do artista, bem como a defesa da miscigenação racial e cultural como sinônimo de identidade nacional. No entanto, sua obra merece uma pesquisa mais aprofundada. Foi essa a proposta da ensaísta Paola Berenstein Jacques em “Estética da ginga – A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica”, que

Pensar na web

chega à quarta edição. Na resenha do livro, publicada nas páginas 6 e 7, Nenna chama a atenção para o momento em que o artista troca o ambiente intelectual do neoconcretismo pelo universo sedutor das favelas cariocas, em especial o morro da Mangueira, onde sua vivência se materializou nos parangolés vestidos pelos amigos sambistas. As criações de Hélio Oiticica servem como modelo para a autora confrontar a arquitetura tradicional com a arquitetura espontânea das favelas e suas interfaces urbanas. E, naturalmente, nos ensinam muito sobre o Brasil. Boa leitura, bom sábado, bom Pensar.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Fotos de obras de Hélio Oiticica, vídeos do Festival de Inverno de Domingos Martins, trailers dos filmes “Precisamos falar sobre o Kevin” e “Tiros em Columbine” e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por MARIANA PASSOS RAMALHETE

PEDRO EIRAS: “A LITERATURA MATA!”

SUBSTÂNCIAS PERIGOSAS Pedro Eiras. Casa da Palavra. 216 páginas. Quanto: R$ 34,90

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scritor português de múltiplas facetas, Pedro Eiras, além de professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta. No universo literário, a morte sempre foi um tema recorrente, palco para encenações, reflexões filosóficas. No livro “Substâncias perigosas”, portanto, versão abreviada do gigantesco título “Pequeno Divertimento sobre Literatura em Cem Lições, também Conhecido sob o Título Substâncias Perigosas, em que se Explica por que Meios os Livros Matam os seus Leitores, & Onde se Dão Variados e Mui Instrutivos Exemplos ao Alcance do Comum dos Mortais”, Eiras reflete sobre o poder mortífero da Literatura: “Não consigo abrir um livro sem terror: acredito que a literatura mata”. A obra, de título autoexplicativo e igualmente convidativo, é muito perigosa e devidamente advertida pela cor de sua capa: vermelha. Construída de maneira pouco convencional, explica astuta e ironicamente a relação entre a Literatura e a morte em cem lições, materializadas em “pequenos divertimentos”. Com uma escrita potencialmente assassina, é um misto de história de escritores, personagens suicidas, questionamentos, divagações, abstrações e textos que chegam ao aspecto metaliterário. Aludindo aos textos propositadamente fragmentários, o autor assegura não saber “se são ensaios, ou crônicas, ou monólogos de personagens sem romance”. É uma espécie de crítica literária sem a formalidade acadêmica, cuja “despretensão” com a rigidez torna a obra ainda mais interessante, já que mimetiza a fluidez do pensamento. Eiras se permite avançar e recuar, cogitar, manipular e surpreender o leitor a cada lição, com jogo, reflexão, fazendo de nós, leitores, vítimas; e do livro, nosso algoz. Afinal, “este livro, talvez não aspire a matar-nos, talvez ainda não, talvez nunca, mas enquanto leitores devemos tornar-nos dignos da ameaça”. Num período onde o leitor tem a mão que afaga suas inquietações e neuroses, possui o acalento, fórmulas de felicidade, de entretenimento, do amor eterno em livros que ensinam como se tornar um vencedor em 48 horas e cinco minutos, como ser um bom líder, bom orador, como ser irresistível, atraente, bom funcionário e ainda ser bom companheiro, “Substâncias perigosas” incita, provoca e expõe, no caminho inverso, livros que

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 4 DE AGOSTO DE 2012

TRECHO “Não consigo abrir um livro sem terror: acredito que a literatura mata. Mata como veneno no sangue. Ninguém se apercebe a tempo de procurar o antídoto. Que, aliás, não existe. Mesmo parar de ler não resolve nada. Infiltrado, o veneno literário torna-se carne da própria carne, a ponto de já ninguém saber quem pensa dentro de si: a ilusão de uma voz original, ou das personagens que entraram sem pedir licença.” (Página 13)

isso, temos a crença de que ao pegarmos um livro para ler, para criar intimidade, temos algo em mãos que nos permite a sensação de domínio, uma relação de possuidor e posse.

“Objeto possuído”

Em “Substâncias perigosas”, autor reflete sobre o poder mortífero dos livros

“convidam a matar” e que “só deveriam poder ser comprados com receita médica ou atestado de robustez intelectual.” “... A Literatura mata como um veneno no sangue. Ninguém se apercebe a tempo de procurar o antídoto”. Intoxicado, o leitor pode conjecturar, por exemplo, a punição para quem lê um livro proibido, ficcionado por Umberto Eco em “O Nome da Rosa”, e se de-

bruçar com mais cautela em Freud, Saramago, Baudelaire, Dostoiévski, Camus, Bataille, Lacan, Pessoa, Mário de Sá Carneiro, dentre outros. Embora a matéria-prima essencial da Literatura seja a palavra, ela só consegue fazer “sentido” através do leitor. É ele quem vive o texto, adere, copula com os vocábulos, imagina, critica, é sensível, “levanta a cabeça”, como já nos disse Roland Barthes. Por

Eiras, entretanto, manifesta ao longo da obra a tese de que o leitor é o objeto possuído, isento de direitos, cuja privilegiada função é obedecer fielmente aos trâmites e peripécias do texto. O capítulo 97, intitulado “Última Hipótese”, encerra esse pensamento, afinal “não sabemos ler a existência senão como texto”. Ao final do livro, percebe-se ainda um desejo do autor pelo leitor. Pedro Eiras literalmente abre espaço para as divagações, concedendo a possibilidade de se fazer parte da obra, tornar-se próximo dela. Convoca o leitor a assumir uma postura não passiva: instiga-o a caminhar, a pensar com e não sobre o livro. O último capítulo, inclusive, conduz a experiência às últimas instâncias, ao deixar até as linhas prontas para que o leitor escreva. “O livro não é um espetáculo em frente aos olhos do leitor. É um fogo que engole o leitor. Não existe a vida por um lado e a leitura por outro. Ler pertence à própria vida e transfigura toda a vida.” Sendo assim, “Substâncias Perigosas” nos induz a observar particularidades, pois, sem elas, nossos olhos estariam fadados a ver apenas as pequenas fagulhas diante desse imenso fogo.


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mercado cultural por GRAÇA CABRAL

NEGÓCIOS MOVIDOS PELA INTELIGÊNCIA E CRIATIVIDADE Responsável por 10% do PIB mundial, o conceito de Economia Criativa é amplo, gerando empregos e sintetizando tendências por meio de diversas linguagens ancoradas na cultura

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uito se fala hoje em crise no mundo. Vivemos um momento de turbulência de efeito dominó, e, se por um lado o perigo parece estar à espreita, a cada dia percebemos também que as soluções só poderão surgir em rede. Para nós que trabalhamos com estratégias de desenvolvimento e inovação a partir de recursos intangíveis e de novos modelos de gestão, a crise só fortalece nossa crença em processos colaborativos e em rede, como bem preconiza a chamada Economia Criativa, um setor que tem na inteligência e criatividade humanas seus principais recursos. Está cada vez mais claro que a grande estratégia de desenvolvimento para este século está nos negócios criativos. Segundo a ONU, a Economia Criativa já é responsável por 10% do PIB mundial. A Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) divulga que, entre 2000 e 2005, os produtos e serviços criativos mundiais cresceram a uma taxa média anual de 8,7%, o que significa duas vezes mais do que manufaturas e quatro vezes mais do que a indústria. O conceito de Economia Criativa é amplo o suficiente para incluir desde as mais diversas linguagens e atividades ancoradas na cultura e na criatividade bem como modelos de negócios que vão do simples indivíduo a bem estabelecidas marcas de luxo. O design desempenha um papel fundamental nesse processo, inovando, abrindo portas, adicionando valor aos negócios, gerando empregos, sintetizando tendências, criando redes não só de negócios, mas de saber e cultura. Sempre buscamos oportunidades para projetar e discutir caminhos para a inserção definitiva do Brasil no mundo enquanto país criador de design como sinônimo de inovação e tecnologia. Esta é uma visão que tem tudo a ver com os princípios de uma economia criativa voltada para o desenvolvimento e que permeia todos os nossos projetos. Em tudo que fazemos, buscamos criar espaços de relações, pontos de convergência de redes criativas diversas. O desafio agora é aproximar os “Brasis” – o Brasil do design, da inovação, da tecnologia e o Brasil da vocação, do talento, da diversidade, e estabelecer novos

GUILHERME FONTANA/DIVULGAÇÃO

A Amni Hot Spot, incubadora de talentos de moda, originou o Movimento HotSpot

vínculos com base no reconhecimento, na autoestima e na confiança. O Brasil tem várias caras, inúmeras identidades e muitas vocações. Temos a obrigação de propor novos olhares num país tão rico e diverso e tão avesso à reflexão. Como valorar o intangível? Como ma-

pear esse mercado de tamanhos diferentes? Como impulsionar tudo isso e trazer inovação? Entre os fatores estratégicos para atuação dentro de uma economia criativa estão a criação de novos indicadores e medidas que possam ir além da valoração tangível, econô-

mico-quantitativa, para incluir as dimensões intangíveis e qualitativas; a articulação entre a economia de escala e a economia de nicho; a sensibilização das lideranças para que possam ser criados mais ambientes convergentes e propícios; estimular uma visão sistêmica que fomente ações integradas e multissetoriais e processos de continuidade. Nesse contexto, o IN-MOD lançou, em março deste ano, o Movimento HotSpot, uma evolução do Amni Hot Spot, projeto de incubadora de talentos que revelou nomes como Amapô, Neon e Samuel Cirnansck, hoje consolidados no mercado da moda. Nos últimos anos, identificamos uma demanda crescente para ampliar o projeto e envolver todo o Brasil. Assim, a partir das novas tecnologias em rede, criamos uma plataforma multimeios, que se apoia no portal movimentohotspot.com, para buscar e conectar em todo o país talentos criativos com foco em inovação. O projeto tem em si as características intrínsecas à geração Y/ We. Hoje essa geração nos ensina que tudo pode ser transformado a partir do coletivo, do colaborativo. Queremos mostrar o poder de mobilização e transformação das inúmeras conexões que estamos estabelecendo desde já, seja na nuvem – com os mais de 135 mil visitantes que passam pelo portal – ou na multiplicação dos nossos encontros presenciais. Inventar novas possibilidades é um desafio tremendo, porque não depende de uma única cabeça solitária. Isso acontece em meio a inúmeros encontros entre pessoas, ideias, gerando uma multiplicidade fantástica. Esse movimento é contagiante porque é capaz de provocar novos desejos e possibilidades que podem ganhar consistência, desencadear novas maneiras de cooperar e se associar, novos caminhos. Um processo contínuo de e em construção. A nossa intenção é ampliar espaços de diálogo entre economia e criatividade, inaugurando um novo ciclo que possa pautar e convergir esforços públicos e privados em torno do nosso enorme patrimônio social, cultural e ambiental, e dos enormes potenciais que a economia criativa oferece, num movimento mais abrangente de qualidade, convergência e sustentabilidade. Estabelecer novas conexões que nos ajudem a crescer, e crescer é aceitar mudanças, transformações. E por que não?


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falando de música

Pensar

por JUCA MAGALHÃES

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 4 DE AGOSTO DE 2012

DO PRELÚDIO AO BAIÃO: POR QUE NÃO?

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urante o último Festival de Inverno de Domingos Martins, ficou marcada a grande diversidade musical das atrações, o que nos faz pensar no benefício causado pelo “choque cultural”: uma forma criativa e interessante de circular mensagens sonoras entre grupos e públicos considerados estanques. Frequentemente vejo muita gente de fora do contexto musical manifestar a expectativa do festival focar mais na música erudita. É interessante notar que geralmente pensam assim os leigos, porque os que se interessam por música sabem que muitas vezes do estranhamento vem a inspiração. Foi o caso de Claude Debussy, um dos homenageados do festival em 2012. Em 1889, aconteceu em Paris a famosa Exposição Universal, onde, segundo os estudiosos Jean e Brigitte Massin, o gamelão javanês deixou uma “marca indelével” na música do compositor francês. Ainda segundo os autores acima, havia no final do século XIX uma espécie de internacionalização cultural, um grande interesse por contato com diferentes formas artísticas. É evidente que essa prática é importante e que, como dizem os americanos, de vez em quando é necessário “to think outside the box“. Então qual é o problema de num festival de música termos uma apresentação da Escola de Samba MUG? Ou mesmo do megafamoso Falamansa? Pensar fora da caixa é entender que nosso gosto pessoal não determina o que é bom, e que, por essas e por outras, Eric Clapton dizia: “Em cada multidão tem um melhor guitarrista do mundo”. Para entender os rumos do Festival de Inverno de Domingos Martins, é preciso atentar para a sua importância cultural, que emana muito especialmente da programação didática, digamos assim, do evento. Essa iniciativa nasceu, e assim se mantém, com o propósito formador para o estudante de música. Durante cinco dos nove dias de realização do festival, acontece uma extensa e intensa programação de oficinas com professores muito renomados em nível internacional. Essa parte da programação é sempre obscurecida “midiaticamente falando” pelos shows populares, porém, estes são também muito importantes para aquela. Ninguém estuda música sem o desejo de se apresentar publicamente. Quando alguém começa a tocar, seja o instrumento que for, quer logo mostrar pra família, pra seu amor, para os amigos e, se bobear, até pra fazer raiva aos inimigos. Todo as-

ELANI PASSOS/DIVULGAÇÃO

Articulista defende a diversidade do Festival de Inverno de Domingos Martins, que este ano teve show de Dominguinhos e homenagem da Ofes a Claude Debussy

pirante a músico sonha em pisar num grande palco e todo professor sabe que a experiência é crucial para o amadurecimento do aluno. No estudo da música tudo se direciona para as apresentações, os concertos, os shows, sejam lá quantas denominações tenham. Esse momento é uma encruzilhada de interesses que partem em várias direções, portanto, definir a programação de um grande festival de maneira a contemplar a maior diversidade possível e ainda assim manter a qualidade é um desafio.

Convergência

O que acaba acontecendo é que um evento tão grande e tradicional vai criando suas próprias pernas, ou seja: o festival acontece na cidade de Domingos Martins, sua programação envolve também o sentimento das pessoas do lugar. Imagine alguém entrar no seu carro ou em sua casa

e querer determinar o que você vai escutar? A convergência desses vários interesses define o perfil do festival e também é fator determinante para seu sucesso. Os grandes shows populares atraem pessoas que vão assistir orquestras, bandas sinfônicas, corais, cameratas, duos, quartetos e sabe-se lá mais o quê, e os estudantes de música terão a tão desejada prova de fogo perante um grande público em suas primeiras apresentações, em um grande palco dividido com astros da música. Isso tudo se traduz em enriquecimento cultural para tanta gente que é difícil quantificar com certeza. No final, tudo soma e o que parece destoar, na verdade, é importante dentro da programação. Poderia ser como é em Campos do Jordão, o tradicional festival de São Paulo, o modelo para este de Domingos Martins? Não creio. Simplesmente porque se trata de um universo cultural completamente diferente. Cada uma des-

sas iniciativas segue seus passos individuais porque afeta um determinado tecido social, visa o bem comum e não o desejo de um grupo restrito de pessoas. Se em Campos do Jordão o festival é voltado para a música dita “erudita”, é porque um grande conjunto de fatores proporcionou a situação; havemos de guardar as devidas proporções entre uma coisa e outra e entender a construção da realidade como ela é e não como gostaríamos que fosse. Eu já caí na tentação, como tantas pessoas, de criticar a grande mídia por só valorizar e destacar muito especificamente os “grandes shows populares”, como os que agora aconteceram com Dominguinhos e Falamansa no Festival de Inverno de Domingos Martins 2012. Atualmente, gosto de imaginar que tudo isso converge para ajudar uma criança que aprende violino a crescer musicalmente. Parece coisa de maluco, mas é assim que eu a percebo, aliás, todo mundo tem o direito de discordar, mesmo porque eu não falo em nome da organização do Festival de Inverno de Domingos Martins, o trabalho que desenvolvi lá foi totalmente periférico, mas, como cidadão capixaba, melômano e músico bissexto, posso confortavelmente emitir essas opiniões. Deixar de lado preconceitos musicais é uma boa prova de maturidade cultural – basta pensar no sentimento de profundo respeito e carinho que todos os grandes compositores sempre tiveram pelas manifestações populares. Portanto, minha gente: Viva Debussy! E viva também Luiz Gonzaga! Do prelúdio ao baião: por que não?


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artes plásticas

Em “Estética da Ginga”, ensaísta Paola Berenstein Jacques registra a vivência do artista perform

AS FAVELAS PELO OLHAR DE HÉLIO OITICICA LIVRO SOBRE ARTISTA É UMA VIAGEM DE AFETIVIDADES PELOS MORROS CARIOCAS DO FINAL DO SÉCULO PASSADO

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eja Marginal, Seja Herói”. Essa afirmação emblemática, incluída em obra/homenagem ao bandido carioca Cara de Cavalo e que depois se espalhou permeando outras obras e também eventos ligados aos tropicalistas na música, foi durante um longo período a base filosófica/comportamental – hoje politicamente duvidosa - de Hélio Oiticica. Tem início em 1964, com a troca do ambiente “limpo” e intelectual do neoconcretismo pelo ambiente sedutor da marginalidade carioca do morro da Mangueira. E continua em seu período nova-iorquino dos anos 70, perdurando até sua morte logo após o carnaval de 1980. A relação do Hélio com a favela permitiu uma série de vivências que se materializaram em obras como os “Parangolés” e a série de “Penetráveis”, entre eles o mais famoso e explícito dessa relação: “Tropicália”, que deu nome ao movimento. E é exatamente essa vivência/obras, em diálogo com as características urbanas do espaço favela, que Paola Berenstein Jacques coloca em confronto com a arquitetura “de arquitetos”. Com uma visão claramente cúmplice das possibilidades da favela - em sintonia com

REPRODUÇÃO

FOLHAPRESS

Hélio Oiticica”, o ensaio nasceu, como descreve a autora, da “indignação provocada por dois encontros: o primeiro, com as favelas do Rio de Janeiro, e o segundo, com a obra de Hélio Oiticica”. Durante seus estudos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, a autora tinha que vivenciar o contraste ao atravessar uma parte da Favela da Maré antes de atingir os prédios modernistas da escola. O encontro com a obra do Hélio aconteceu em Paris, tempos depois, na exposição do Jeu de Paume, e é descrito com ternura pela autora. Que ao final resume: “Foi em Paris, e por meio da obra de Hélio Oiticica que eu compreendi, de um lado, que a cultura carioca está inextricavelmente ligada às favelas, e, de outro, que existe uma estética própria a elas, o que constitui uma alteridade urbana e merecia ser estudado mais de perto”. A instalação “Grande Núcleo” está entre as obras estudadas pela autora

Hélio Oiticica trocou o neoconcretismo pela sedução da marginalidade carioca

Hélio – ela perpassa alguns aspectos da urbanidade “rizomática” dos morros cariocas, num ensaio impregnado de percepções interessantes. O livro: “Estética da Ginga”, 168 páginas, editora Casa da

Palavra, é uma viagem de reflexões e afetividades pela favela carioca do final do século passado. Com o subtítulo esclarecedor de “A arquitetura das favelas através da obra de

Estrutura

Para desenvolver o texto, Paola Berenstein recorre a uma estrutura com três conceitos básicos: Fragmento, Labirinto e Rizoma. O objetivo é confrontar a arquitetura tradicional com a arquitetura espontânea das favelas e suas interfaces urbanas. Nessa estrutura-

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por NENNA

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mático na Mangueira e o diálogo de suas obras com as características urbanas desse espaço

REPRODUÇÃO

A instalação “Tropicália”, que deu nome ao movimento, integra a série Penetráveis e remete à arquitetura das favelas

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ção, o Fragmento é o Barraco, o Parangolé... Que em conjunto constroem o Labirinto, os Penetráveis, e sua expansão são os Rizomas, sempre acrescidos... espaço-movimento. Procurando “ir além da simples analogia formal” com a obra do Hélio, buscando “novos aportes que permitissem ver além dessas constatações”, as aproximações teóricas constroem conexões sustentadas por filósofos e escritores como Deleuze, Nietzsche, Derrida, Borges, Haroldo de Campos... Tudo com um frescor que ilumina o fas-

cínio pelo objeto de estudo. Na análise dos “Labirintos”, dos “Penetráveis”, desenvolve considerações claras como na diferenciação entre o labirinto da favela e o labirinto construído a partir de um projeto específico: “Os labirintos de Hélio Oiticica, ao contrário do de Dédalo, não são feitos para as pessoas neles se perderem, mas para ali se acharem, se encontrarem consigo mesmas e com os outros”. As favelas, mesmo mantendo seus princípios básicos de “urbanismo”, continuam se transformando e enfrentando

novos desafios. Nessa reedição do ensaio, uma década após a primeira, a autora aborda e reconhece essa transformação, mas mantém o mesmo tom: “Hoje, diante do acelerado processo de espetacularização mercantil das cidades contemporâneas – sobretudo em momentos como a Copa do Mundo e Olimpíadas – com violentos processos em curso tanto de remoção como de militarização de favelas na cidade – as narrativas mangueirenses de Hélio Oiticica, ou seja, as narrativas artísticas de sua experiência urbana na

Mangueira, exploradas neste livro, ao enfatizar as questões da experiência, do corpo e da alteridade na cidade, podem nos ajudar a reafirmar a enorme potência da vida coletiva destes espaços urbanos, uma multiplicidade de sentidos que pode servir como outra forma de produção de subjetividades bem diferentes das imagens midiáticas consensuais e, assim, desestabilizar algumas partilhas hegemônicas e homogêneas do sensível e das atuais configurações anestesiadas dos desejos.[...] Talvez estejamos vivenciando hoje um processo de esterilização da experiência urbana, sobretudo da experiência da alteridade na cidade”. Além das ilustrações, com imagens de obras do Hélio, de atividades do período e da favela, outro destaque do livro é a reunião de depoimentos. Entre os originais, o da amiga Lygia Pape, relembrando a descoberta e a futura cumplicidade de Hélio com o tradicional morro carioca: “Hélio era um jovem apolíneo, até um pouco pedante, que trabalhava com o seu pai na documentação do Museu Nacional, onde aprendeu uma metodologia: era muito organizado, disciplinado[...] Em 1964, seu pai morreu; um amigo nosso, o Jackson, então, levou o Hélio para a Mangueira, para pintar os carros, foi aí que ele descobriu um espaço dionisíaco, que não conhecia, não tinha a menor experiência. Parecia uma virgem que caiu do outro lado; ele não tinha mais um pai que poderia ser um superego. Descobriu, aí, o ritmo, a música. Ficou tão entusiasmado que começou a aprender a dançar, para poder participar dos desfiles, dos ensaios; se integrou na escola de samba, fez grandes amigos, ele descobriu o sexo, aí então foi uma esbórnia total na vida do Hélio. [...] Aí ele começou a incorporar essas experiências do morro, aquilo começa a fazer parte dos conceitos dele, da vivência dele. Ele muda radicalmente, até eticamente; ele era um apolíneo e passa a ser dionisíaco. Essas barreiras da cultura burguesa se rompem lá, é como se ele vestisse um outro Hélio, um Hélio “do morro” que passou a invadir tudo: sua casa, sua vida e sua obra”. Um livro sedutor e inteligente na análise de possibilidades para a arquitetura/urbanismo e um registro de encantamento afetivo pela favela e pela obra e personalidade de Hélio Oiticica. Verde e Rosa!

ESTÉTICA DA GINGA – A Arquitetura das Favelas através da obra de Hélio Oiticica Paola Berenstein Jacques. Casa da Palavra. 160 páginas. Quanto: R$ 38


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 4 DE AGOSTO DE 2012

perfil por MANUELA SANTOS NEVES

GAY TALESE E O LIRISMO DO DIA A DIA A elegância do texto, e também dos ternos que veste, são marcas deste expoente do new journalism, uma maneira de escrever que aproximou o texto jornalístico do gênero literário

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ay Talese é um homem elegante e um repórter persistente. Não fosse a persistência, não teria escrito seu artigo mais famoso, que o consagrou definitivamente como um dos maiores nomes do jornalismo mundial. Afinal, Frank Sinatra andava resfriado e de mau humor – não queria conversa e nem tinha mais paciência com jornalistas. A persistência, e também o faro de repórter, fez com que Talese buscasse outros meios de retratar Sinatra. Sem trocar palavra com o cantor, produziu um dos perfis mais densos, humanos e surpreendentes sobre uma personalidade mundial, contado através de um texto que se tornou antológico, exemplo mais bem acabado do jornalismo escrito com tintas literárias. A elegância do texto, e também dos ternos que veste, são marcas de um dos expoentes do que ficou conhecido como new journalism, uma maneira de escrever que aproximou o texto jornalístico do gênero literário. Usando de técnicas narrativas e descritivas à maneira da literatura, e com um rigor de pesquisa que muitas vezes pediu horas, dias e até semanas de apuração, nomes como os de Talese, Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer, só para citar os mais conhecidos, chacoalharam o convencionalismo dos textos com lead e sublead que então se praticava na imprensa americana em meados dos anos 1950. “Eu acho que jornalismo pode ser uma forma de arte, que o jornalista pode escrever tão bem quanto um autor de ficção”. E quem poderia duvidar da colocação ao ler o parágrafo inicial da reportagem que Talese escreveu sobre Joe DiMaggio, um ídolo do beisebol americano na década de 1940? “Ainda não chegara a primavera. Estava-se ainda na estação silenciosa antes da busca do salmão, e os velhos pescadores de São Francisco pintavam seus barcos, remendavam suas redes ao longo do píer ou sentados ao sol, conversando tranquilamente, observando o vaivém dos turistas.” Não cometeria nenhuma heresia o leitor que inadvertidamente atribuísse a autoria do texto acima a Ernest Hemingway, Guy de Maupassant ou Scott Fitzgerald, autores que Talese admira e que lhe serviram de inspiração à escrita que veio a praticar.

EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

retratou para as revistas “Esquire” e “Harper & Row”, na década de 1960, que foram posteriormente reunidas no livro “Fama e Anonimato”. Filho de pai alfaiate e mãe costureira (daí certamente vem o hábito de vestir-se com elegância), nascido em 1932, em Nova Jersey, Talese contou que a inspiração para suas reportagens veio ainda na infância. Curioso – “como deve ser um bom repórter” –, mantinha-se atento às conversas sobre os dramas, as preocupações e mesmo as futilidades que os clientes contavam a seus pais. “Eu via um romance emergindo desse cotidiano. Percebi ali que as boas histórias podiam estar nas pessoas comuns.” E ele escreveu muito sobre pessoas anônimas, “pessoas que ninguém vê”, como operários, mergulhadores e músicos no metrô de Nova York.

Nova York

Talese na Flip, em 2009: “Eu acho que jornalismo pode ser uma forma de arte”

Congresso

Tive a oportunidade de ouvi-lo quando conferenciou no 4º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, realizado no mês de maio em São Paulo. Na ocasião, Talese falou um pouco da sua formação e da experiência de mais de 60 anos de jornalismo. Aliás, ele não se considera exatamente um jornalista. “Sou um es-

critor de não ficção”. Nunca se interessou em escrever sobre as notícias do dia, fatos da economia ou da política. Seu desejo sempre foi ser um contador de histórias, mas de histórias reais, de situações e pessoas reais. “Não gosto de imaginar histórias, como na ficção, mas sim de encontrá-las.” E ele encontrou muitas histórias nas pessoas, famosas ou não, que

Nova York, por sinal, recebeu atenção especial na série de reportagens que ele realizou para a “Harper & Row”, no início da década de 1960. É possível dizer sem exagero que seus artigos estão para a cidade e seus personagens (às vezes, os mais inusitados), assim como estão o cinema de Woody Allen e Martin Scorsese, a música de Lou Reed e a literatura de Paul Auster. Nos textos de Talese é possível sentir-se em Nova York mesmo que nunca se tenha ido lá. Ou como não sentir certa intimidade com o cotidiano da cidade sabendo que seus moradores enxugavam 1,74 milhão de litros de cerveja por dia, devoravam 1,5 mil toneladas de carnes e passavam 34 km de fio dental entre os dentes todo dia? Ou não sentir alguma compaixão por William DeVillis, um dos homens sem cabeça da bilheteria do metrô, que se rebela contra o anonimato e pede, no cartaz pregado do lado de fora de sua cabine: “Por favor, sorria, este trabalho já é duro demais”. É provável que a quilometragem do fio dental diário tenha aumentado bastante e que as pessoas no metrô já não sorriem mais para William DeVillis. As reportagens foram escritas há 50 anos e obviamente perderam a atualidade, mas não a qualidade. São textos que podem ser lidos hoje como verdadeiros contos de Nova York.


poesias ASSINALADA DENY GOMES É que eu sou uma mulher do tipo pouco ortodoxo. Na hora que sinto frio, nem penso no paradoxo. Não me bate a passarinha pra isso de coerência. Quando perco a paciência nessas festas enjoadas, chego pra perto dos homens e também conto piada. Tem gente que recrimina, achando que só menina pode viver estes lances. Tá fora do meu alcance renunciar a este M - signo forte na pele – na palma da minha mão. Não perco leme nem rota, faço a linha Valdo Motta: Eu sou movida a paixão.

MIGRAÇÃO Hoje subi a escada lentamente e ainda mais devagar abri a porta. Sem memória ou raiz, num espanto sem medida, percorri minha casa como estranha. Estes meus territórios devastados! Volto sobre meus passos e bato em retirada. Fecho definitivamente a porta que dá para o passado e jogo fora a chave.

crônicas PLANTAÇÃO por NAYARA LIMA

Tenho visto o ápice da palavra certeza. Que nada tem a ver com a palavra razão. A palavra certeza pode se guardar entre a xícara de café e a carta posta. A palavra certeza pode ter a ver com a palavra palavra. Você sabe. E basta. Sinto o colo da palavra certeza. Que me dá, de tudo, a liberdade. Tem a ver também, quase me esqueço, com a palavra sábado. E com o dia sete de agosto, que cai na terça-feira. É uma data importante, porque nasceu alguém que é riso nela, e eu gosto do queixo dele. Causa-me lua e certeza. Um moço se pendura numa corda para martelar os azulejos do edifício vizinho. Daqui da janela do lado de cá, vejo martelo, que é a certeza do som. E do fim que é a pedra caindo sobre a outra pedra. Certeza é palavra pó. A luz do final da tarde já encosta nos azulejos que ainda estão. O editor

desse texto, desconfiado de que me atraso para terminar de escrever, agora já deve ter certeza. Ele, por sorte, é delicado. (Conheci uma senhora rouca que mesmo assim cantava. Por causa da certeza ganhou um homem bonito e até disco de ouro - menos caro que a beleza do homem). Certeza é o samba. Ou o carro entrando na contramão. Tenho sentido, de repente, o sabor milagroso da tal palavra. A mãe de uma menina pequena, mas comprida e alegre, chamada Tereza, disse que gosta do meu texto. Acho Tereza palavra bonita, sobretudo porque rima com a palavra certeza. Mais bonito ainda é que antes do nome Tereza, a mãe coloca a palavra Maria. Numa festa, conversando com a menina, descobri histórias. Maria Tereza é suave e intensa, feito o nome que tem. A toda hora, desde as quatro últimas

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linhas, sou interrompida. Dois rapazes estão vindo ao apartamento porque precisam melhorar a madeira da porta. Minha cachorra, e eu sou mãe dela, roeu a porta porque queria ser livre. Eu sorri, pasma, para a madeira (e para a poesia de nos amarmos tanto, eu e a Flor). E a cito mesmo, de modo a cansar quem dela não queira saber. Acho certeza, no entanto, a palavra Flor. Vale, para mim, mais até que a palavra casa. Se alguém ainda se interessar, digo que certeza é palavra planta, verde, com galhos entreabertos para a luz. Para os pingos de chuva que chegam à folha, depois caem. Calçada. Certeza é palavra viva, mesmo indo. Mesmo medo. Não se sabe por que razão veio semente fecundar vida na terra. Mas pra certeza nada importa senão o cheiro da planta pronta, verde, densa. Pra certeza nada importa senão ela. É palavra reta, mesmo torta. É palavra neta. Quente. Jasmim e embrião. Nada dói se alguém lhe tenta arrancar perna, musgo ou pétala. Certeza é palavra horta. É plantação.

A VIDA E A MORTE por JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

Perdão e esperança me sustentam. O mundo me espera.

CDA O torto. O coxo. Canhestro, canhoto. O gauche. O traço tenso. A troça. O riso raro claro mais que enigma. Roças de vento, flor no asfalto, mil lições de coisas e apenas duas mãos. Parco o lime do corpo, no vasto pasto do tempo. Torto? Certo. Longe? Perto. A pedra. A perda. “Mas como dói!”

Manoel Lobato, meu correspondente há mais de 40 anos, escreve-me, comentando desolado as deficiências próprias da sua idade. E preocupa-me com um apelo final: “Ensine-me a aceitar meu resto de vida. Ajude-me a compreender que a morte não dói.” A morte talvez doa, antes de acontecer, por ser o ponto final de tudo, o retorno absoluto à eternidade do nada. Acho que a morte, mais do que o fim da vida, é a negação do sentido que a vida poderia ter. O que aprendemos, o que vivemos, o que não deixamos registrado de alguma forma se vai para sempre sem retorno, sem possibilidade de recuperação. Talvez até mesmo o que deixamos registrado se perca ao longo do tempo. Acho que a trilogia do provérbio árabe tem algum valor, embora relativo: é preciso que o homem plante uma árvore, publique um livro e tenha

um filho para garantir postumamente, ainda que por pouco tempo, a marca de sua passagem pela vida. A árvore pode ser cortada; o filho, ainda que não morra cedo, antes do pai, logo esquecerá o nome dele, ou deixará essa tarefa aos seus descendentes. Que trineto ou tetraneto hoje se lembra pelo menos do nome do seu trisavô ou tetravô (“tataravô”)?... E o livro, se for fruto de inspiração literária, cairá na vala comum da literatura, fazendo companhia às obras de Madeira de Freitas ou de Coelho Neto... Se for um livro científico, cedo ficará defasado, graças aos avanços rápidos da ciência que desmentem hoje o que Newton escreveu ontem e desmentirão amanhã o que Einstein provou hoje... Afinal, para a ciência, tudo se passa como se fosse verdade o que ela diz, até que outra verdade melhor ou menos pior

apareça. Afinal, o papel da ciência não é o de revelar verdades, mas o de corrigir seus erros... É cometendo erros que a gente aprende a errar menos. A experiência não é mais do que uma longa sequência de erros que vão calejando a alma e ensinando a gente a suportar melhor a própria fraqueza ou incompetência. A morte é apenas o resultado do último erro que cometemos... Ainda que seja o grande erro que todos praticamos de aguentar a nossa vida besta. Não sei o que dizer ao Manoel Lobato em resposta ao seu apelo sofrido. Não só porque também sou um velho. Mas porque é impossível enganar alguém, tentando ajudá-lo a compreender a grande mentira da vida. O que eu posso dizer ao Lobato não é um consolo. A morte dói muito. Mas é na velhice que a vida dói muito mais.


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estudo da violência

OS CONTEXTOS E AS INCERTEZAS DOS ASSASSINATOS EM MASSA Para sociólogo, as causas de massacres como o ocorrido na estreia de “Batman”, nos EUA, passam pelo descrédito nas instituições e pelas relações conflituosas entre pais e filhos

DIVULGAÇÃO

Ezra Miller em cena do filme “Precisamos falar sobre o Kevin”: longa mostra o drama de uma família cujo filho cometeu uma chacina em uma escola americana

L

i o livro “Precisamos falar sobre o Kevin” (de Lionel Shriver, publicado aqui em 2007, e que inspirou o filme da diretora Lynne Ramsay) e assisti ao filme homônimo com a intenção de compreender o que se passa na cabeça de jovens que assassinam em massa outros jovens, como vem ocorrendo nos Estados Unidos e em menor

escala no Brasil. Quem busca uma causa única se frustra, pois não se chega a uma conclusão definitiva e é quase impossível se prevenir contra esta tragédia, para a qual ninguém está imune e que pode ocorrer tanto em grandes centros quanto nas periferias das cidades. Um comportamento bizarro desta natureza pode estar relacionado a fatores biológicos - que filme e livro enfatizam -,

mas é no indivíduo e em suas relações com os outros, e com as instituições, que se deve pensar na origem, na trajetória de vida e em como intervir continuadamente para que tal padrão não se alastre. É neste campo que as ciências humanas e sociais devem investir seus recursos: em mais pesquisas e em intervenções sociais e políticas mais inteligentes. Não cabe aqui discorrer sobre o que se

passa no livro e no filme citados, até mesmo para não subtrair de quem quer assistir ao filme (hoje nas locadoras) o gosto (ou o desgosto) de ser surpreendido e de tirar suas próprias conclusões. Vai, aqui, apenas um exercício para se pensar sobre o que leva alguém a cometer atrocidades neste mundo estilhaçado por relações conflituosas e dificuldades entre pais e filhos.

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por ERLY EUZÉBIO DOS ANJOS

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DIVULGAÇÃO

No documentário “Tiros em Columbine”, o diretor Michael Moore registra o fascínio dos americanos pelas armas de fogo AP

James Holmes, acusado de matar 12 pessoas e ferir 58 em um cinema do Colorado: contexto social pode explicar a tragédia

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Talvez para validar a tese da primazia da herança genética sobre os condicionamentos exteriores, a autora passa a ideia de que a rejeição da mãe (Tilda Swinton) para com o seu filho, mesmo antes do nascimento de seu primeiro filho, é um ponto de partida para compreender seu desvio social. Numa conversa doméstica em que a mãe tenta acusar o filho pelos acontecimentos maldosos que vêm ocorrendo – sem perceber que estavam sendo observados por Kevin no alto de uma escadaria – se tem pistas desta argumentação. O pai, protagonizado por John C. Reilly, sempre ausente e insensível à gravidade do problema, tenta se desculpar com o filho para evitar um mal-entendido por conclusões fora de contexto e ouve do filho que ele é o próprio “contexto”. Tem-se a impressão de que Kevin havia

Perguntado sobre o porquê de seu trágico ato, Kevin responde ironicamente que achava que sabia, mas não sabe mais. A racionalidade de seus atos se perde com as incertezas de hoje e confunde o que o sociólogo Max Weber propôs ao distinguir razão instrumental de razões afetivas e tradicionais, para teorizar sobre o significado das ações sociais na modernidade. A relação que coexiste entre indivíduo e sociedade está mais complexa e o cimento ou as normas institucionais que davam coesão para se prevenir contra desvios sociais não mais se sustenta. Há um descrédito generalizado do indivíduo pelas instituições sociais – escola, igreja, família, governo e polícia. É preciso ir mais longe para decodificar enigmas de assassinatos numa sociedade em que as promessas do Iluminismo se esgotaram e deixaram déficits, justamente pelo seu descumprimento, como diz o sociólogo Boaventura de Souza Santos. Quando se depara com as atrocidades da violência de hoje não se justifica a busca de meios iguais para contê-las, sem que se faça um preciso diagnóstico do que existe, de fato, no ato do indivíduo, articulado com o contexto em que se vive e intermediado com a capilaridade de outros poderes inerentes às instituições e estruturas que o permeiam.

Abandono social

planejado desde muito cedo o que iria fazer num futuro incerto. Deu sinais e demonstrações de que algo estava errado, mas pouco foi feito para redirecionar seus atos, e isso nos ajuda a pensar o que se pode fazer para antecipar feitos, como as tragédias que ocorrem hoje.

Indícios

Pouco se pode fazer com o arranjo biológico e genético, e experimentos para corrigir desvios comportamentais por regimes totalitários nada produziram de benéfico para a humanidade. Os contextos e as incertezas, portanto, são indícios sobre os quais se pode debruçar para colher frutos. Ou melhor, para compreender a manifestação e a representação de um fenômeno é preciso relacioná-lo com um determinado contexto

social que se caracteriza cada vez mais por incertezas, às vezes confundidas com irracionalidades. Pois o conhecimento de variáveis anteriores a uma realidade não garante que elas podem ocorrer num futuro próximo, conforme pregavam os positivistas. São novos tempos, com novos conflitos, e o conhecimento passado tem que se afinar com teorias e metodologias que transcendem as barreiras postas pelos especialistas. Existem problemas multifacetados que precisam de abordagem inter e transdisciplinares que o texto e filme parecem sugerir. Em “Introdução à Sociologia - Complexidade, Interdisciplinaridade e Desigualdade Social”(2002), Pedro Demo fala deste enraizamento biológico com o cultural para lidar com os temas de hoje que surgem numa profusão e confusão de significados.

O documentário “Tiros em Columbine” (2002), de Michael Moore, e o drama “Elefante” (2003), de Gus Vant Sant, que abordam o massacre feito por dois adolescentes num colégio do Colorado, em 1999, dão demonstração deste abandono social e institucional para com os jovens. O filme de Ramsay prefere focar na visão dos pais, ou melhor, nos sentimentos de quem deu a vida a um ser completamente indiferente e insensível a qualquer outro ser humano. O contexto do dia a dia, porém, não pode ser visto deslocado do controle social e político em que indivíduos se submetem e são compreendidos. Sim, precisamos muito falar sobre os Kevins, de suas famílias, das escolas, no trabalho, em todos os lugares e a qualquer hora, para que não precisem de um grande malfeito para chamar a nossa atenção, o que será muito tarde.


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ficção por JÂNDERSON NUNES PRETTI

UMA INTENSA LUZ SOBRE OS OLHOS “Queria sair dali de qualquer forma, afinal, o ambiente estava ficando cada vez mais hostil”, comenta o narrador deste conto ao se perceber diante de um caminho sem volta

I

nicio esse relato desculpando-me com o caro leitor pelo fato de não saber precisar ao certo quando tudo começou. Apenas lembro-me de estar em um ambiente muito agradável e aconchegante. Não havia luz ao meu redor, aliás, eu sequer sabia o que era isso. Eu estava envolto por uma membrana produtora de líquido, provavelmente, líquido amniótico. Não sentia fome. Tudo o que eu precisava vinha por difusão. Era suprido de água, nutrientes e oxigênio pelo cordão umbilical conectado à placenta, que parecia ter se implantado no fundo uterino. Minhas excretas também eram recolhidas pelo cordão. Vez ou outra sentia uma pequena contração. Nada muito relevante. Apenas sentia um aperto no dorso e nos membros. Devia ser uma daquelas contrações de Braxton-Hicks, que são contrações fracas e incoordenadas que antecedem o trabalho de parto. Com o passar do tempo, essas contrações foram aumentando e eu me sentia cada vez mais apertado dentro daquele útero. Acho que ele já tinha atingido sua capacidade máxima de crescimento. As contrações vinham com mais vigor e em menor intervalo de tempo. Senti-me empurrado para baixo até que minha cabeça deparou-se com algo similar a uma coroa muito dura. A partir de então não me senti confortável ali dentro. Queria sair dali de qualquer forma, afinal, o ambiente estava ficando cada vez mais hostil. Sobreveio-me outra metrossístole, uma contração forte e efetiva. Dessa vez com muita intensidade. Minha cabeça fletiu-se forçadamente contra a pelve óssea para melhor acomodação. Meus membros já estavam fletidos ao máximo e senti um forte aperto no dorso. Acho que a situação já configurava um trabalho de parto. Minutos após, um novo e inesperado evento ocorreu. O líquido que me envolvia reduziu-se abruptamente e senti-me ainda mais apertado. Devia ter ocorrido a amniorrexe, a ruptura das membranas. Logo após isso, senti dois dedos palparem minha cabeça, bem na região do lambda. Minha progenitora gemeu nessa hora e, logo, deu um suspiro. Com a evolução do provável tra-

COLETIVO PEIXARIA

balho de parto, tive a impressão de que minha cabeça estava girando para tentar adentrar aquele estreito arcabouço ósseo. Isso me deixava aflito. Tive a sensação de estar preso. Cerca de uma hora depois senti novamente aqueles dois dedos palpando minha cabeça. Logo depois sobreveio uma contração ainda mais dolorosa e minha cabeça adentrou o estreito superior da pelve. Percebi que agora estava em um caminho sem volta. Meu corpo descia ainda mais a cada contração até que minha nuca foi escorada

pela sínfise púbica materna. Minha cabeça, por fim, defletiu-se e se viu liberta. Senti uma intensa luz sobre meus olhos. A sensação era inefável, minha cabeça estava livre, mas o corpo ainda preso. Percebi que estava com um pouco de frio do pescoço para cima. Subitamente, alguém fez uma prensa em meu pescoço com muita veracidade. Puxou minha cabeça para baixo e depois para cima e isso libertou meus ombros. O restante do corpo saiu sem resistência. A claridade banhava meu corpo nu e, repentinamente, chorei.

Aquela foi, indubitavelmente, a respiração mais difícil de toda minha vida. Tive que fazer uma inspiração profunda e dolorosa para abrir todos os meus alvéolos. Após isso, fui envolvido por um lençol e logo recebi assistência do médico pediatra. Em seguida, colocaram-me ao lado de minha mãe. Ela, ainda muito dispneica, chorou ao me ver pela primeira vez. Disse que ia me proteger de toda a perversidade do mundo. Seus lábios pálidos beijaram minha fronte e ela repousou.


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