Caderno Pensar 0708

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Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

www.agazeta.com.br

Entrelinhas

OS VERSOS DE CORAGEM E TERNURA DOS POETAS DA AMÉRICA LATINA. PÁGINA 3

Cinema

COMO O OSCAR DE 1968 REGISTROU O NASCIMENTO DA NOVA HOLLYWOOD. PÁGINA 10

Artes cênicas

FESTIVAL CELEBRA O PALCO COMO LUGAR DE REFLEXÃO E INTERAÇÃO. PÁGINA 11

Memória

O CENTENÁRIO DO POETA QUE NARROU EM VERSOS O AMOR POR CACHOEIRO. PÁGINA 12

ESPECIALISTA EXPLICA POR QUE ERIC CLAPTON SE TORNOU O DEUS DA GUITARRA. Páginas 6, 7 e 8


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

quem pensa

Wilson Coelho é Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris. wilsoncoelho@gmail.com

Carlos Henrique Boninsenha é editor de Qualidade de A GAZETA. chboninsenha@redegazeta.com.br

marque na agenda prateleira Encontro na Biblioteca Debate-papo com o Escritor

Cariê Lindenberg é o convidado da próxima edição do projeto, dia 10 de agosto, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual, com mediação de Ana Laura Nahas.

Audiovisual Programadora Brasil

Saulo Simonassi é cantor, compositor, guitarrista e professor de música. saulo.simonassi@oi.com.br

A Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (MinC) recebe, até 15 de agosto, inscrições de filmes e vídeos de 5 minutos até 30 minutos de duração para fazer parte do banco de dados do Programadora Brasil. O regulamento está disponível no www.programadorabrasil.org.br/inscreva_seu_filme/.

João Moraes é jornalista, músico e documentarista.

Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

Honório Filho é estudante de Jornalismo e pesquisador de cinema. honorio_filho@hotmail.com

Flavia Dalla Bernardina é advogada, bailarina e escritora.

Nesta reedição em formato pocket, Tuppence faz uma visita de rotina à tia de Tommy em um asilo para senhoras, onde conhece a estranha sra. Lancaster. Ela fica perplexa ao descobrir que a anciã foi levada para outro asilo. O casal não medirá esforços para chegar ao seu paradeiro. 256 páginas. L&PM. R$ 18

Muito Além do nosso eu Miguel Nicolelis

O premiado neurocientista brasileiro mostra como a tecnologia será capaz de transformar a sociedade humana e moldar uma nova “indústria do cérebro”, além de oferecer um caminho para a cura de distúrbios como a doença de Parkinson e o mal de Alzheimer.

joaopatuleia@superig.com.br

Gilson Soares é poeta e jornalista. Publicou dois livros e edita o blog www.clubecapixabadovinil.blogspot.com

Um Pressentimento Funesto Agatha Christie

552 páginas. Companhia das Letras. R$ 39,50

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A Lentidão Milan Kundera

de agosto

O som e as ideias de

uma geração Nesta data, o projeto Au rora Gordon faz o show de lançamento de seu prime iro CD, “Lamelombras Bir inights”, no Teatro Carlos Gomes, em Vitória. Disco e show resgatam a música e a contracultura capixaba nos anos 60 e 70. Ingressos: R$ 20, à venda no local e no www.ingres so.com.br.

www.tubodeensaios.com.br

Evandro Moreira éescritormembrodaAcademiaEspírito-Santense deLetras. poetaevandro@hotmail.com

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de agosto

Conferência na Ufes

A professora, historiadora e escritora italiana Luisa Passerini estará em Vitória para a Aula Inaugural do Doutorado em História da Ufes. A conferência será no auditório do Centro de Educação, às 10h, aberta ao público.

Integrando diversos personagens em planos múltiplos, o autor de “A insustentável leveza do ser” propõe uma discussão ao mesmo tempo profunda e prazerosa sobre a dificuldade de apreensão do real ante a velocidade da vida moderna. 112 páginas. Companhia das Letras. R$ 18

Katmandu e Outros Contos Anna Maria Martins

Premiada em 1984 pelo Instituto Nacional do Livro, esta obra da escritora paulista traz 20 histórias curtas divididas em duas partes, nas quais as contradições e angústias do mundo contemporâneo são abordadas com classe e sutileza. 187 páginas. Ed. Global. R$ 33

O BLUES CORRE NESSAS VEIAS

José Roberto Santos Neves

Em 1965, as paredes da estação do metrô de Islington, em Londres, amanheceram pichadas com a frase “Clapton é deus”. Rapidamente aquele grafite se espalhou por toda a cidade, como um aviso profético daqueles que assistiram encantados à performance do jovem Eric Clapton na banda John Mayall and the Bluesbreakers. Cinco décadas depois, consagrado como um dos maiores guitarristas do blues e do rock em todos os tempos, Eric Clapton estará novamente no Brasil para uma série de shows em outubro. O Pensar convidou o respeitado guitarrista Saulo Simonassi para

Pensar na web.

descrever a trajetória daquele que é uma de suas principais referências. Saulo caprichou e relata a carreira do deus da guitarra em 12 passos, com observações sobre seu estilo, técnica e equipamento. A edição desta semana traz ainda resenhas literárias, crítica de música, cinema, crônicas, poesia e um artigo de Flávia Dalla Bernardina sobre o Festival Aldeia Sesc de Teatro e Dança. No campo da memória, a homenagem de Evandro Moreira ao centenário do conterrâneo Newton Braga, poeta que é motivo de orgulho para os cachoeirenses. Saudações literárias e até o próximo sábado!

é editor do caderno Pensar, novo espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Vídeos e músicas de Eric Clapton, faixas do CD “O samba carioca de Wilson Baptista”, trechos de livros, poesias e trailers de filmes comentados nesta edição no www.agazeta.com.br.

Correspondência

Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória - ES, CEP. 29.053-315. Telefone: (027) 3321-8323.


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entrelinhas

Pensar

por WILSON COELHO

A FLOR QUEBROU O ASFALTO

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ada mais oportuno à coletânea “Poetas da América de canto castelhano” que a introdução do poeta cubano Roberto Fernández Retamar, cujo título é “Para imaginar um livro necessário”. Primeiramente, pela ideia de necessidade como uma espécie de pressão exercida sobre os desejos e as ações do homem pelo entrelaçamento inevitável entre os princípios e os fins, os efeitos e as causas. Depois, pela coincidência da postura de Retamar, tanto pelo que conheço de sua poesia quanto pela sua posição política, desde as conversas que tivemos em 1984, quando lancei “Poemas no Escuro” na Bienal do Livro em São Paulo e, anos mais tarde, em Nova Prata (RS), ao participarmos de um seminário latino-americano de poetas, juntamente com Carlos Nejar que, na época, vivia no Espírito Santo. Em “Poetas da América de canto castelhano”, Thiago de Mello confessa sua entrada no caminho encantado da poesia latino-americana a partir de uma

Poetas da América de Canto Castelhano. Thiago de Mello. Global. 496 págs. Quanto: R$ 79, em média

visita ao poeta Manuel Bandeira. Thiago de Mello, com 20 anos de idade, no apartamento do autor de “Pasárgada”, no Rio de Janeiro, conta-lhe que estava traduzindo a “Ode do pão e do vinho”, de Hölderlin. Bandeira comenta: “Esta sua geração parece que já nasceu agarrada com os europeus. E desconhece a obra dos grandes poetas do nosso continente. Por que você não traduz o Rubén Dario, a Gabriela Mistral, que acaba de ganhar o Prêmio Nobel?”

Pesquisa

Na obra, foram selecionados cerca de 400 poemas de 120 poetas de 18 países da América Latina, somado a Porto Rico que, além do castelhano, também fala inglês. Uma pesquisa de convivência e tradução a que Thiago de Mello, o Poeta da Floresta, se dedicou durante 20 anos. Thiago de Mello cumpre revolucionário papel na integração da América Latina, de certa forma, encarnando na poesia o mesmo espírito que encarnava na política José Martí, Solano Lopez e Simón Bolívar. “Freguesia do Andirá, no silêncio da

Na obra, foram selecionados cerca de 400 poemas de 120 poetas de 18 países da América Latina floresta, começo da cheia de 2011” é de onde Thiago de Mello assina o prefácio e declara: “Dou por feita a minha parte (com a minha arte imperfeita)”. A tradução do autor de “Faz escuro mas eu canto” resulta de sua trajetória pela América Latina, tanto como poeta quanto como exilado. Tendo conhecido praticamente todos os países da América Latina, Thiago de Mello, lembrando Julio Cortázar, se refere a eles como “todos os

POETAS LATINOS

PALMEIRA SÓ Nicolás Guillén (Cuba)

VERBIGRACIA Mario Benedetti (Uruguai)

A palmeira que está no pátio, nasceu só; cresceu sem que eu a visse, cresceu só; sob a lua e o sol, vive só. Com seu longo corpo fixo, palmeira só, só no pátio selado, sempre só, guardiã do entardecer, sonha só. A palmeira só sonhando, palmeira só, que vai livre pelo vento, livre e só, solta de raiz e terra, solta e só, caçadora das nuvens, palmeira só, palmeira só, palmeira.

A palavra, paloma insubmissa, debaixo da asa do corvo se esconde e mesmo assim se eleva e chega até onde sequer a sombra de Deus se divisa. A palavra, que o homem improvisa, e o silêncio, seu pálido servo, na distância se extraviam – o corvo fica sozinho, sem deus nem Paloma, e seu vôo de séculos assombra, verbigracia pela raça do verbo.

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

LIÇÃO ÚNICA SOBRE COISAS VELHAS Andrea Cote Botero (Colômbia) Já disse não sei quem inventa o cheiro das casas, não sei. Mais ainda se o que você gosta é olhar de cima a vista ruinosa dos telhados e a parede embaçada e os muros e as sujas portas das casas velhas daqui. Mais ainda, se já não recorda que não é o cheiro senão a bondade das coisas ao exibir sua derrota.

povos de nuestra pátria grande”. Entre seus encontros com os poetas da sua tradução, Jorge Luis Borges pergunta-lhe se a poesia serve para alguma coisa. Thiago de Mello responde que sim e, para surpresa de Borges, acrescenta que a poesia serve para atender. Assim como atendem a ternura e o carinho. Noutro momento, Neruda lhe aconselha que ao traduzir o “Poema 20”, de sua autoria, não troque o “olvido” por esquecimento. Ainda no Chile, Salvador Allende toca-lhe o ombro dizendo que “a flor quebrou o asfalto”. Thiago de Mello é, conforme ele mesmo, um abençoado pela luz rosada do vulcão extinto da Bolívia, Ilimani. Decide-se a traduzir com as mãos mágicas da Poesia para esgarçar as grades frias do desconhecimento que afasta povos irmãos e abre brechas de luz sonora rompendo a falta de comunicação entre os países desta América. E, para não dizer que eu não falei das flores, os versos do necessário “Poetas da América de canto castelhano” devem falar por si mesmos. E... como falam!!!


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

língua portuguesa por CARLOS HENRIQUE BONINSENHA

UM NOVO AMIGO DE CABECEIRA

Gramática Superior da Língua Portuguesa. José Augusto Carvalho. Ed. Thesaurus. 450 págs. 2ª edição. Quanto: R$ 57 pelo site da editora: www.thesaurus.com.br

Nesta edição atualizada da gramática do mestre José Augusto Carvalho, o leitor vai encontrar, além do ensino padrão, polêmicas, questionamentos e curiosidades da língua

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enso que devem existir dois grupos de livros na cabeceira de nossa vida: os que tocam a nossa alma e os que nos ajudam a entender e até a escrever os primeiros. A Gramática Superior da Língua Portuguesa, 2ª Ed., Thesaurus Editora, do incansável mestre em Linguística e doutor em Letras José Augusto Carvalho, tem tudo, de a a z, para conquistar um lugar especial nesse segundo e seleto grupo de obras. Destinada, objetivamente, a quem já tem certo domínio da língua, ela é dessas fontes de ajuda diária onde bebemos todas as explicações para os porquês, crases, regências, concordâncias, infinitivos e erros ortográficos, entre os tantos desafios da nossa língua que nos perseguem desde os primeiros tempos escolares. Com ela, parece ficar mais fácil entender fonema (lembra-se das consoantes fricativas – como o f –, das oclusivas – como o p –, dos hiatos da vida?) e que tais, porque, seja nesse caso, seja em todos os demais, os exemplos que ilustram as explicações são de fácil compreensão, sem o rebuscamento de autores consagrados. Se prestarmos a atenção, dá até para sentir que estamos diante de uma aula gostosa, daquelas que nos deixam saudades e a nos perguntar: por que não entendi isso antes? Talvez a resposta esteja na sequência dos assuntos, que são abordados seguindo uma lógica didática para que, ao chegarmos ao fim, tenhamos as principais regras fixadas na memória sem muito esforço. Por exemplo, se concordância gera discordâncias, discussões (aliás, um dos objetivos da obra), basta a simples leitura do assunto para se ver, com todas as letras (e fonemas), o caminho seguro do entendimento. E ela seria prática? Com certeza. Em determinados casos, vai além das expectativas. Se o consulente está inseguro com crase, por exemplo, ele vai encontrar tudo sobre o tema e até poderá sair dizendo que crase não ocorre somente entre a preposição “a” e o artigo “a”. Que em “blusa azul” também ocorre crase!! A explicação está lá.

BERNARDO COUTINHO

evitar que a língua se transforme no sabir monossilábico dos surfistas de Ipanema”. Parece que o MEC se esqueceu disso recentemente com o lamentável episódio da distribuição de livros didáticos com erros de português para nossas escolas públicas. E o que dizer da reprovação em massa dos bacharéis em Direito de várias faculdades no exame da OAB há poucos dias? Será que o leitor também não começa a pensar que esse panorama pode ter algo a ver, em algum momento, também com deficiência no uso da língua?

Profundidade

Subverter a norma por despreparo é ser tolo. Subvertê-la por amor à arte é ser consciente da expressividade da língua” —

JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

Mas nem só de fonemas e crases vive a gramática do mestre. Ao folheá-la, fica mais tranquilo entender, por exemplo, que os objetos diretos (os indiretos, nunca!) viram sujeitos (vide vozes verbais); que a divisão silábica de “ficção” e “fixam” deveria ser assim: fi-cção e fi-xam; e que a “contaminação semântica” é a responsável por se escrever “lateral direito” mas “ponta-direita”. Polêmico? Então veja algumas opiniões do autor. Sobre os que desprezam a gramática: “Subverter a norma por despreparo é tolo. Subvertê-la por amor à arte é ser consciente da expressividade da língua”. “O ensino da gramática não é nenhuma panaceia, mas certamente é um meio eficaz e indispensável de se

O autor não se limita ao que as outras gramáticas trazem. Alguns exemplos: ele mostra que -zinho não é sufixo (é antes um adjetivo preso); que existe ditongo em “vinho” e “manha”; que não existe dígrafo em pombo, dente ou unha, por exemplo; que há orações subordinadas de adição (“além de estudar, ele trabalha”), entre outras não previstas na Nomenclatura Gramatical Brasileira. Há até mesmo um capítulo inteiro mostrando as diferenças entre complemento nominal (pai de família, caixa de fósforos) e adjunto adnominal (pai de coragem, caixa de papelão) que nenhuma gramática explora em profundidade. Por fim, chama a atenção a série de curiosidades apresentadas pelo autor após cada capítulo. Vale a pena conferir. Umas pitadas: você sabia que o “ç” já pôde ser escrito antes de qualquer vogal e em qualquer posição, inclusive no começo da palavra? Conhece a origem do ano bissexto e do dia da mentira? Por que “cuspido e escarrado” (nada a ver com esculpido em carrara nem com esculpido e encarnado)? Por que “amigo da onça” (nada a ver com o felino)? Por que se diz que o português é a última flor do Lácio? Essas e muitas outras, além de exercícios com respostas, completam os objetivos desta obra que merece estar ao lado daquelas que, certamente, recebem de você adjetivos como indispensável, confiável, um verdadeiro amigo de cabeceira.


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falando de música

Pensar

por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

ORGULHO DO SAMBA E DA MALANDRAGEM

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ilson Batista tinha menos de 20 anos quando chegou ao Rio de Janeiro num trem cargueiro, vindo de Campos, sua cidade natal. Na bagagem, trazia o sonho de ser artista. Não gostava dos livros, mas herdara o gosto pela música do Tio Ovídio, maestro e compositor de dobrados. Mulato, pobre e semianalfabeto, começou a criar sambas batucando o ritmo na caixa de fósforos, sua companheira inseparável até os últimos dias, e passou a frequentar o baixo meretrício da Lapa com os temidos irmãos Meira, que tinham fama de ser barra pesada. Foi a partir dessa convivência com a marginalidade que, em 1933, ele compôs “Lenço no pescoço”, o mais fiel retrato do malandro de sua época: “Chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gingando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho em ser tão vadio”. Silvio Caldas interessou-se pela composição, gravando-a no mesmo ano. Quem não gostou foi Noel Rosa. Segundo os catedráticos do samba, o Poeta da Vila ficou preocupado com a imagem dos sambistas, razão pela qual respondeu a Wilson Batista chamando seu personagem de “Rapaz folgado”. Iniciava-se ali a polêmica musical que entraria para a posteridade. No entanto, para o ator, cantor e produtor Rodrigo Alzuguir, o verdadeiro motivo da discórdia entre os dois envolvia uma certa morena do cabaré Novo México, na Lapa, que eles andaram disputando, com Wilson Batista levando a melhor. Pesquisador da obra do “Maestro da caixa de fósforos”, Alzuguir estrela com Claudia Ventura o espetáculo “O samba carioca de Wilson Baptista”, cabaré-documentário em que a dupla interpreta passagens da vida do compositor, personagens de suas músicas e os sucessos de uma longa carreira que soma cerca de 600 composições, um recorde no universo do samba. Após cumprir temporada no Rio de Janeiro, o espetáculo ganhou registro em CD duplo homônimo, sob a chancela da Biscoito Fino. O primeiro disco, “Reserva especial”, reúne sete faixas inéditas do homenageado e 19 releituras de sambas nunca regravados, nas vozes de Céu, Cristina Buarque, Elza Soares, Marcos Sacramento, Mart’nália, Nina Becker, Roberto Silva, Rosa Passos, Samba de Fato, Tantinho da Mangueira, Teresa Cristina, Wilson das Neves e Zélia Duncan. Um elenco diverso e de diferentes gerações que se reuniu para mostrar que Wilson

Batista foi muito além do que “aquele que brigou com Noel”; foi, sim, um sambista brilhante que registrou com olhar atento as transformações urbanas da sociedade do seu tempo, criando tipos inesquecíveis como o pedreiro Waldemar, que “faz tanta casa e não tem casa para morar”; Emília, a esposa prendada e submissa, companheira da “Amélia” de Ataulfo Alves e Mário Lago; o Seu Oscar, pobre trabalhador abandonado pela mulher, que lhe deixou um bilhete com a mensagem “não posso mais, eu quero viver na orgia”; e tantos outros personagens que se confundem com a própria história do samba.

Inéditas

Entre as inéditas levantadas por Rodrigo Alzuguir estão “Que malandro você é!” (com Erasmo Silva), que Zélia Duncan tem agora a honra de gravar pela primeira vez; “Interessante” (outra parceria com Erasmo Silva, uma delícia na voz de Nina Becker) e “Nelson Cavaquinho” (com Manoel Pereira de Andrade), marcha-rancho dedicada ao colega que Wilson adorava encontrar nas madrugadas boêmias no centro do Rio. Já “Artigo nacional”, parceria com Germano Augusto lançada por Cynara Rios em 1940, era uma das que estavam inexplicavelmente esquecidas. Coube a Elza Soares a tarefa de trazer este samba-fox para o século XXI. Sua poderosa

garganta se ajusta perfeitamente à letra debochada que imagina uma roda de samba com astros americanos dos anos 30 e 40, entre eles Cab Calloway, Ted Lewis e Jeanette McDonald. O segundo CD reproduz o musical recheado de sucessos e de causos sobre a carreira do compositor, incluindo a polêmica com Noel Rosa, que terminou num botequim da Rua Evaristo da Veiga, na

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O samba carioca de Wilson Baptista. Vários. 44 faixas. CD duplo. Biscoito Fino. Projeto idealizado por Rodrigo Alzuguir. Quanto: R$ 39, em média.

Lapa, com a primeira e única parceria da dupla, “Deixa de ser convencida”. Na verdade, a música já existia com o título “Terra de cego”, uma das respostas malcriadas de Wilson Batista a Noel; mas este gostou tanto da melodia que, num lance de mestre, transformou a letra em um recado para a tal morena do cabaré Novo México que teria motivado a rixa entre os dois. Usando o circo como metáfora da vida, Noel fecha o samba com maestria: “E no picadeiro desta vida/Serei o domador/Serás a fera abatida/Conheço muito bem acrobacia/Por isso não faço fé/Em amor, em amor de parceria”. Dois anos depois, Noel Rosa partiu para a eternidade, aos 26 anos, levando consigo a fama de gênio da música popular brasileira. Wilson Batista viveu até 1968, aos 55 anos; morreu pobre, gastou quase tudo o que ganhou, mas deixou uma obra gigantesca que permanece moderna, viva, e repleta de sabedoria popular, a exemplo dos versos que encerram “Chico Brito”, parceria dele com Afonso Teixeira: “Se o homem nasceu bom/E bom não se conservou/A culpa é da sociedade que o transformou”.

Álbum duplo e espetáculo lembram que Wilson Batista foi um cronista musical do seu tempo e criador de tipos inesquecíveis


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música

De promissor popstar a purista do blues, de guitar hero do rock a solitário trovador, músico desa

ASSIM SE FEZ O DEUS DA GUITARRA EM 12 PASSOS, A CARREIRA DO MITO ERIC CLAPTON, QUE VOLTA AO PAÍS EM OUTUBRO

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os últimos 50 anos, a extraordinária carreira do guitarrista, cantor e compositor britânico Eric Clapton tem sido marcada pelo pioneirismo, pela incansável mudança de direção e em certo momento pelo total isolamento do mundo. De promissor popstar a purista do blues, de guitar hero do rock a solitário trovador, Eric Clapton vem ao longo desses anos desafiando a lealdade de seus fãs ao mesmo tempo em que conquista seguidores a cada novo caminho que assume. Nas próximas linhas, tentarei pontuar a forma como o espírito aventureiro do deus da guitarra alterou o seu som e sua forma de tocar, influenciando várias gerações de guitarristas em todo o mundo. Uma viagem longa que continua a percorrer diversos caminhos e simbolicamente será dividida em 12 momentos, uma referência ao programa de 12 passos dos alcoólicos anônimos que Eric Clapton ainda frequenta.

LINDA MCCARTNEY

Eric Clapton e o baterista Ginger Baker em 1968, nas gravações do álbum duplo “Wheels of fire”, do Cream

1º passo. O início no Yarbirds O influente grupo inglês de R&B dos anos 60 é lembrado principalmente por ter abrigado três dos maiores nomes da guitarra inglesa – Eric Clapton, Jeff Beck e Jimmy Page. Foi no Yarbirds que Clapton realizou suas primeiras gravações, e para nossa tristeza elas não passam de algumas demos, singles e um álbum ao vivo. Com forte influência do blues de Chicago dos anos 50 e armado com uma Fender Telecaster e um amplificador Vox no máximo volume, Eric Clapton, apelidado logo no início da carreira de slowhand (mão lenta), iniciou nesse período uma coleção de memoráveis solos com a marca registrada E.C. Playlist: “A Certain Girl”, “Good Morning Little Schoolgirl”, “I Ain’t Got You” e “Got to Hurry”. 2º passo. O Blues Breakers Artisticamente insatisfeito com a inclinação pop que o Yarbirds começou a adotar, Clapton literalmente buscou abrigo na casa e na banda de um músico inglês de muito prestígio, o bluesman John Mayall.

Dono de enorme acervo de discos de blues, Mayall disponibilizou toda sua coleção para o jovem guitarrista aprimorar seus conhecimentos. O impacto desse período é tão forte que juntos eles produziram um dos mais importantes e influentes álbuns de blues de todos os tempos. Apelidado carinhosamente de “Beano”, em referência à foto da capa em que Clapton aparece lendo a revista britânica de quadrinhos infantis, o álbum “John Mayall’s Blues Breakers with Eric Clapton” marca a estreia do guitarrista com o cantor, mesmo que discretamente em uma faixa, e continua sendo ainda hoje uma referência para a guitarra no blues. Moldado basicamente com uma Gibson Les Paul, um amplificador Marshall do tipo combo de 45 watts e várias combinações de ajuste no volume e tonalidade da guitarra, o lançamento do disco foi uma revolução na sonoridade da guitarra elétrica. Playlist: “All your Love”, “Hideaway”, “Ramblin’ on my mind” e “Steppin’ out” 3º passo. A nata Cansado de simplesmente copiar seus heróis da guitarra na banda de John Mayall, Clapton achou que era chegada a hora de injetar criatividade em sua arte. Para isso juntou forças com o baixista Jack Bruce, ex-membro do Graham Bond Organisation que também tocou num curto período de tempo no Blues Breakers, e o baterista Ginger Baker, ex-companheiro de Jack na banda de Graham Bond. Conhecido como o primeiro supergrupo da história do rock, o Cream proporcionou a Clapton mostrar amadurecimento no seu modo de tocar. Na música que promoveu a união do fraseado do blues – que Clapton aprendeu nos discos de Freddie King e Otis Rush – a longas passagens de improvisação – fruto da bagagem jazzística de Jack e Ginger – Clapton produziu os mais poderosos timbres de sua carreira. Um deles ficou imortalizado como woman tone, e é fruto dos experimentos de Eric com os ajustes de volume e tonalidade iniciados no período do Blues Breakers. Adepto das guitarras da marca Gibson, dessa vez ele alternou entre os modelos Les Paul (sua preferida nos Blues Breakers), SG, ES-335 e Firebird. Uma diferença marcante foi o uso de pedais de efeito como o wah-wah, o fuzz, o chorus e o reverb na construção de seu som. O resultado sonoro que Clapton alcançou no Cream é um dos timbres mais imitados da história da guitarra elétrica. Playlist: “Sunshine of your Love”, “Spoonful”, “Badge”, “White Room” e “Crossroads”. 4º passo. Fé cega, guitarra amolada Na turnê americana de despedida do Cream no final de 1968, Eric Clapton conheceu um som que iria mudar o rumo de sua carreira. A sonoridade do álbum “Music From Big Pink”, do The Band, e o


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por SAULO SIMONASSI

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

afia a lealdade dos fãs e conquista novos seguidores ao longo dos seus 50 anos de carreira

DIVULGAÇÃO

estilo econômico de seu líder, o guitarrista Robbie Robertson, tiveram grande influência na forma de tocar que Clapton adotou nos anos seguintes. A sua primeira tentativa de colocar a guitarra a serviço da canção foi com a formação do Blind Faith, outro supergrupo que reuniu Clapton ao talentoso multi-instrumentista, cantor e compositor inglês Steve Winwood. Na gravação e turnê de lançamento do único disco do Blind Faith, e também após a dissolução da banda, quando participou de concertos ao lado de John Lennon e Delaney and Bonnie and Friends, Clapton experimentou guitarras variadas como sua Gibson ES-335 e Firebird dos tempos do Cream, uma Les Paul Black Beauty e uma Fender Telecaster Custom com braço de Stratocaster. Playlist: “Can’t Find my Way Home” e “Presence of the Lord”. 5º passo. O primeiro solo Novamente uma turnê americana deixou um rastro na carreira de Clapton. Dessa vez foi a banda que abriu os shows da turnê de 1969 para o Blind Faith que conquistou sua amizade e seus ouvidos. O Delaney and Bonnie and Friends era uma trupe de músicos de estúdio reunidos em torno do cantor, compositor, músico e produtor americano Delaney Bramlett. Delaney foi o grande incentivador da decisão de Eric Clapton em se lançar como artista solo, assumindo de vez sua função de guitarrista, cantor, compositor e homem de frente, posição que ele tanto relutou. O primeiro álbum, intitulado simplesmente “Eric Clapton”, mostra uma mudança radical na sonoridade de Clapton, que assumiu a Fender Stratocaster com braço em madeira clara (maple) como sua única guitarra em estúdio e shows. A primeira Strato foi batizada de “Brownie” e está estampada na capa desse álbum. Playlist: “After Midnight”, “Blues Power”, “Bottle of red Wine” e “Let it Rain”.

O estilo original e orgânico do músico britânico continua influenciando várias gerações de guitarristas em todo o mundo

6º passo. Layla Para o seu próximo disco, Eric adotou a seção rítmica do Delaney and Bonnie and Friends, a mesma banda base que participou das gravações do seu primeiro disco solo e também do aclamado “All Things Must Pass”, do amigo e ex-Beatle George Harrison. Batizada de Derek and The Dominos, a banda foi responsável pelo que é reconhecido como o melhor trabalho fonográfico da carreira de Eric Clapton. Seu som soa fluido, intenso e carregado de emoção em todas as faixas desse clássico produzido pelo experiente Tom Dowd, e que conta com a participação ilustre do guitarrista americano Duane Allman. “Layla and Other Assorted Love Songs” assegurou a Eric Clapton lugar de figura honorável na história do rock. Playlist: “Layla”, “Bell Bottom Blues”, “Key to the Highway” e “Have you ever loved a Woman”

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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

+ artigo de capa por SAULO SIMONASSI

O BLUES NA ALMA A figura do velho herói que inspira jovens a tocar guitarra agora está personificada em Eric Clapton

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7º passo. Solo mais no nome O fim do Derek and The Dominos e uma série de problemas pessoais lançaram Clapton num período de total isolamento por quase três anos. Nesse período, ele fez apenas uma aparição no “Concerto para Bangladesh”, organizado por George Harrison. Seu retorno ao palco aconteceu num show intitulado “Rainbow Concert”, organizado pelo amigo Pete Townshend, líder do The Who. A partir de 1974, Clapton retomou sua carreira com o excelente álbum “461 Ocean Boulevard”. O som produzido por Clapton durante os anos 70 mostrou como foi forte a influência da sonoridade americana do The Band em sua estética como compositor, intérprete e guitarrista. Um Clapton econômico querendo afastar sua imagem de guitar hero e muito mais focado nas canções foi o artista que atravessou os anos 70 e 80 experimentando em alguns momentos grande sucesso comercial. Uma Strato preta com escudo branco batizada de “Blackie” assumiu o posto de nº 1 e tornou-se, ao lado da “Lucille” de B.B. King, a guitarra mais famosa da história. Playlist: “I shot the Sheriff”, “Double Trouble”, “Cocaine”, “Lay down Sally”, “Forever Man” e “Holy Mother” 8º passo. Journeyman no Brasil Em outubro de 1990, o deus da guitarra pisou pela primeira vez em solo brasileiro para a turnê do álbum “Journeyman”. Um Clapton revigorado e confiante, acompanhado por uma banda de talentosos e experientes músicos, destilou incríveis solos de guitarra em duas horas de espetáculo. Em entrevista à revista americana “Guitar World” naquele ano, Clapton afirmou que pela primeira vez em sua carreira estava feliz com a precisão com que puxava as cordas de sua guitarra, provavelmente referindo-se à sequência de bends (nome da técnica) que ele executou primorosamente no solo de “Bad Love”, uma composição que soa como uma mistura de “Layla” com “Badge”. Apesar da sonoridade datada recheada de sintetizadores, uma característica de boa parte da música produzida a partir de meados dos anos 80 e início dos anos 90, o álbum está repleto de ótimas canções, grandes músicos e ilustres participações. Playlist: “Bad Love”, “Running on Fai-

th”, “Old Love” e “Before you Accuse me” 9º passo. Acústico A série “Unplugged”, produzida pelo canal MTV, provou ser uma das mais populares e bem-sucedidas séries musicais da TV. Mas apesar de ter adorado a experiência, depois da gravação Clapton achou que seu show não deveria ser lançado, pois segundo ele só interessaria a um pequeno nicho de mercado. Um dos melhores momentos de toda série dos acústicos, o álbum se tornou o maior sucesso de vendas de sua carreira, além de render vários prêmios Grammy. Explorando a sonoridade de vários tipos de violões de aço de seis e 12 cordas, violão de nylon e um resonator national steel (Dobro, violão com cordas de aço e cones metálicos dentro de sua caixa de ressonância), e se recuperando da perda de seu filho, Clapton tocou como se depositasse nas canções sua esperança em superar o momento mais difícil de sua vida. Playlist: “Tears in Heaven”, “Layla”, “Walkin’ Blues”, “Change the World”

a de que Eric havia acabado de deixar o Blues Breakers para produzir seu próprio álbum de blues. Para revisitar todos os seus heróis, Clapton usou na gravação e na turnê do disco “From The Cradle” mais de 50 guitarras, entre elétricas e acústicas. Playlist: “I’m tore Down”, “Hoochie coochie Man”, “Motherless Child”, “Five Long Years”

10º passo. De volta às raízes Apesar de todo estrelato que alcançou em sua carreira, sendo considerado o mais importante guitarrista branco de blues de sua geração, foi apenas com o sucesso comercial da série “Unplugged” que Clapton se convenceu de que existia um público ávido por um disco exclusivo de blues. Após quase 30 anos a sensação era

11º passo. Peregrino Após quase dez anos sem lançar um álbum de músicas inéditas, Clapton encerrou a década de 90 com o surpreendente “Pilgrim”, onde mais uma vez se reinventou musicalmente. Para muitos, nesse álbum Clapton conseguiu se afirmar definitivamente como um artista completo, cantando, tocando e compondo. A partir desse período, Clapton incorpora definitivamente os amplificadores Fender Tweed Twins como sua principal escolha, alternando em algumas ocasiões com o Fender Vibro king, o JCM800 da Marshall e o Eric Clapton Custom 80 da Cornell. Playlist: “My Father’s Eyes”, “River of Tears”, “Going down Slow” e “She’s Gone”

Foi apenas com o sucesso comercial da série “Unplugged” que Clapton se convenceu de que existia um público ávido por um disco exclusivo de blues.

12º passo. Revisitando a obra Nos últimos dez anos, Eric Clapton vem trabalhando de forma prolífica em vários projetos que de certa forma o aproximaram de personagens que fizeram parte de sua vida. Deu uma volta ao lado de um de seus maiores ídolos, o rei e lenda do blues B.B. King, celebrou a música e a vida de seu velho amigo George Harrison, participou de show em homenagem ao seu mentor, o bluesman John Mayall, produziu um tributo reverenciando o legado da obra de Robert Johnson, promoveu a reunião do Cream, um dos mais importantes grupos da história do rock, lançou um álbum em parceria com J.J. Cale, o compositor de dezenas de hits gravados por Clapton ao longo de sua carreira, e ainda teve tempo de excursionar diversas vezes pelo mundo

com sua banda ou ao lado de astros como Jeff Beck e Steve Winwood. Para celebrar a guitarra ao mesmo tempo em que ajuda os dependentes de drogas e álcool, criou o festival “Crossroads”, que já está em sua terceira edição. A figura do velho herói do blues que inspira jovens a tocar guitarra agora está personificada em Eric Clapton, o primeiro e único artista a receber três títulos no Hall da Fama do rock. Playlist: “Help the Poor”, “Don’t let me be Lonely Tonight”, “I want a Little Girl”, “Me and the Devil Blues”, “One Track Mind” e “Travelin’ Alone”.

Os shows no Brasil Turnê mundial. Aplaudido pela crítica devido ao sucesso de seu álbum mais recente, “Clapton”, lançado no ano passado, o cantor, compositor e guitarrista Eric Clapton chegará ao Brasil em outubro para shows em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Esta será a primeira passagem do artista pelo país em 10 anos – a última vez que ele se apresentou aqui foi em 2001. A banda. Para os shows, Clapton montou uma banda única, que reúne alguns de seus grandes parceiros de longa data: Steve Gadd na bateria, Willie Weeks no baixo e Chris Stanton nos teclados, além de Michelle John e Sharon White nos backing vocals. Datas e locais: Porto Alegre. Quando: 6 de outubro Onde: FIERGS – Avenida Assis Brasil, 8.787 Quanto: De R$ 180 a R$ 700 Rio de Janeiro. Quando: 9 de outubro (esgotado) e 10 de outubro Onde: HSBC Arena – Avenida Embaixador Abelardo Bueno, 3.401 Quanto: De R$ 240 a R$ 950 São Paulo. Quando: 12 de outubro Onde: Estádio do Morumbi Quanto: De R$ 140 a R$ 650 Ingressos. À venda pelo site www.livepass.com.br ou pelo tel. 4003-1527.


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poesias DE IDADE

crônicas NO DOCE

GILSON SOARES

por JOÃO MORAES

I O tempo tem falado comigo a todo tempo: ouço-o no osso na tessitura lassa de um músculo no ranger da articulação hirta na fadiga do fígado. II O tempo mastiga minha dentição cediça (rumino o tempo com os meus dentes decadentes) III Do espelho o tempo, tácito, mira meu olho pasmo. IV É o tempo que exige este esforço do pescoço quando me torço desengonçado pra olhar pro passado. V A minha embriaguez nunca me deixou tombado por certo é o tempo que me entorta assim pra um lado. VI Esta dobra na derme -este vinco amarrotadoé que me compele a admitir que o tempo tem passado. VII Alguma coisa tampa-me o tímpano reduzindo a estalo qualquer estampido. Fica o tempo a zumbir no meu ouvido. VIII No travo da minha garganta um prelúdio de adeus o tempo canta IX O tempo em algum momento perderá seu passo num descompasso do meu coração. O recurso da poesia será vão. X Não há tempo maior do que este tempo que ouço em mim: todo tempo se esgota no meu fim.

Destampamos na boca da barra do Rio Doce. Zé de Sabino mostrando como se faz para atravessar o encontro revolto das águas barrentas. Explicava que era preciso observar a quadra das ondas para saber exatamente o momento de trégua entre mar e rio, uns 10 segundos de alguma paz no atormentado piso líquido. Nessa hora, é preciso acelerar o motor do barco ao máximo e romper a barra para onde tubarões, jamantas e botos habitam e operam suas vidas atrás de alimento declinado em outras vidas figuradas em pescadas, robalos, camarões e, às vezes, surfistas e náufragos. Eu ia agarrado à casa de máquina na parte da frente, Pedro, ainda iniciando sua vida no audiovisual, ia atrás junto a Zé de Sabino que com um pé puxava a corda do acelerador e equilibrado no outro conduzia o leme. Logo à minha frente, meu amigo Léo, dessas pessoas que a vida nos guarda a hora certa de entregar, segurando

com toda sua força o pequeno mastro pela mão esquerda e a câmera na direita. Íamos subindo e descendo as montanhas de água rebeldes de seis a oito metros de altura. Não imaginava que houvesse buraco nágua, mas há. Estávamos apavorados, mas tomados por uma felicidade desabrida. Nenhum lugar no mundo nos merecia tanto quanto aquele encontro de águas e seus esquisitos habitantes. Um casal de botos cachimbinho, que o Sabino há muito não via, atravessou a frente do velho barco, e mais adiante golfinhos cinza, um grupo de cinco, pulavam atrás de suas presas, numa caçada desigual e bruta como de resto é toda a vida. Um barco pesqueiro de camarões se aproxima e Zé de Sabino gesticula alguns sinais e navega um círculo contornando o barco dez vezes maior que o nosso, para na saída do percurso jogar um balde para os pescadores. Mais uma volta, dessa vez

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mais perigosa, pois era necessário aproximar os barcos como tantas vezes já havia visto em abordagens piratas comandadas por sanguinários homens do mar. Dessa vez, não foram espadas nem balas de canhão, mas um balde cheio de camarões imediatamente prometidos a uma frigideira mais tarde lá no fogão do Sabino, na terra firme de Regência. Voltamos em direção à boca do rio e Zé nos confessa que voltar é mais perigoso que sair para o mar. Ele disse que se não fizéssemos tudo direitinho ondas poderiam espatifar o barco. A estratégia mais uma vez lembra a dos surfistas. Aliás, não lembra apenas; é exatamente acertar o tempo da onda para entrar na barra surfando com o barco e o motor mais uma vez à toda. Dessa vez, Sabino deu a incumbência ao Pedro que, em absoluta inexperiência, não temeu a função. No entanto deixou o motor desacelerar, o que fez Sabino, pela primeira vez, cerrar o sorriso e franzir a testa. Partiu para a popa do barco, corrigiu leme e acelerador e nós descemos a crista da onda salobra. Foi um dia bom.

AO VIOLÃO DE TOQUINHO Por NAYARA LIMA

Entrei numa loja de discos, um dia, com meu pai. E talvez eu nunca tenha saído de lá. A música que acontece, esta que me atravessa em vida, parece uma espécie de milagre, ou sorte. Minha entrega à música popular brasileira foi meu modo de saltar no mundo, respirar nos dias. Naquele dia, quando meu corpo ainda crescendo sabia contemplar o universo sem o caos das explicações, segurei um disco e olhei para ele como uma mulher olha para o seu amante. Imediatamente disse, eufórica, que aquele disco precisava ser meu. Eu estava de passagem pelo Rio de Janeiro, tinha 13 anos, e hoje consigo dizer o que senti. Amor. O coração acelerava, uma tímida sensação de prazer alegrava o rosto, as mãos contavam os dias para a viagem me levar de volta e eu poder me entregar às notas. Talvez tenha sido a única vez que me despedi do Rio sem lamentar ir embora: “levo comigo a cidade em bossa nova, dentro

da mala”. Daquele dia, para sempre. Escutei por semanas, meses, anos, década. Na capa tem o rosto de Toquinho, alegre, fazendo notas no violão. Logo abaixo as palavras em destaque: “com Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil, Ivan Lins, Jorge Benjor, Vinicius de Moraes. E outros”. Foi quando vi pela primeira vez os olhos de Chico, o amor de Vinicius, a paz de Gil, o piano de Tom, os versos da música “O que será que será” que terminam assim: “o que não tem governo, nem nunca terá/ o que não tem vergonha, nem nunca terá/ o que não tem juízo.” Entre uma música e outra, Toquinho comentava sobre as histórias e as vibrações em torno das letras, apresentando-me às maiores obras da MPB, sendo ele uma delas. É para ele, portanto, que dedico este texto. O violão de Toquinho está no ar como as pinturas de Chagall, que coloca o animal que é da terra, no

espaço. Suas letras embalaram a criança que fui, quando ele as fez para embalar as crianças dele. Em “Canção para Jade” e em “Ao que vai chegar”, encontrei o mundo de que precisava; era simples, era tempo, era uma espécie de dor com faíscas de alegria. De “Aquarela” à “Doce Vida”, a linha das horas que costura meu passado-presente-futuro me fez ser grata ao artista. “Aquele do violão” que brindou com Vinicius de Moraes e Tom Jobim, lerá esta crônica antes que ela seja publicada. Não sei o que vai sentir quando souber, por e-mail, da menina que ouvia suas notas com tanta entrega. Mas saberá sobre quando os 13 anos puderam ver a poesia de Maiakovski, cantada por seu violão e sua voz, abrandando o silêncio quente daquele tempo com este último grave e delicado verso: “Se morrer, nesta vida, não é novo, tampouco há novidade em estar vivo”.


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cinema por HONÓRIO FILHO

HOLLYWOOD NUNCA MAIS SERIA A MESMA

Cenas de uma Revolução – O Nascimento da Nova Hollywood Mark Harris. L&PM Editores. Trad. Alexandre Boide. 488 págs. Quanto: R$ 72, em média

Livro relata como o Oscar de 1968 registrou o embate entre o moralismo da velha indústria e o nascimento de uma nova geração que mudaria a forma de fazer filmes nos Estados Unidos

O

ano de 1967 ficou marcado em Hollywood como sendo a primeira grande evidência da transformação que estava por vir. Ainda hipnotizada pela grandiosidade dos próprios filmes, a velha indústria do cinema não havia se tocado das mudanças da sociedade americana e que as custosas e reacionárias produções (como “A Noviça Rebelde” e “Cleópatra”) em pouquíssimo tempo se tornariam datadas por conta da nova geração “sexo, drogas e rock’n’roll”. Na verdade, o discurso de revolução não estava somente na cabeça dos jovens e já tinha chegado até as ruas. A Guerra do Vietnã recrutava jovens soldados nos Estados Unidos e Martin Luther King discursava pelo movimento negro. Só que em plena década de 60, Hollywood se encontrava amarrada por um Código de Produção que censurava qualquer conteúdo que julgasse moralmente inapropriado, desde cenas de nudez, violência a xingamentos.

Diretores europeus

No entanto, com a chegada de filmes de diretores europeus como Truffaut e Fellini em solo americano, uma parte do público começou a questionar os valores defendidos pelo código. Nesse contexto, alguns artistas passaram a se espelhar no que havia de original e a produzir algo diferente, contribuindo para o que se tornaria uma nova Hollywood. O livro “Cenas de uma Revolução – O Nascimento da Nova Hollywood” relata a produção de apenas cinco longas de 1967 que concorreriam ao Oscar de melhor filme no ano seguinte, mas que acabaram resumindo perfeitamente o que estava acontecendo naquele momento na indústria. “Bonnie e Clyde” (dirigido por Arthur Penn), “A Primeira Noite de um Homem” (Mike Nichols), “No Calor da Noite” (Norman Jewison), “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” (Stanley Kramer) e “O Fantástico Dr. Dolittle” (Richard Fleischer) sintetizavam tudo que havia

DIVULGAÇÃO

Sidney Poitier e Rod Steiger em “No Calor da Noite”: vencedor do Oscar de 1968

Eles mudaram a cara do cinema americano Na maioria vindos do teatro e do Actor’s Studio, esses nomes eram vistos com deboche pela indústria, mas concorreram ao Oscar de 68 e se tornaram figuras influentes poucos anos depois. Mike Nichols Em 1968, atingiu o auge ganhando o Oscar de melhor diretor por “A Primeira Noite de um Homem” (foto abaixo). No ano anterior tinha dirigido o seu primeiro e premiado filme “Quem Tem Medo de Virgínia Wolf?”.

Dustin Hoffman Por causa da aparência comum, o grande nariz e a baixa estatura, era motivo de piada e muitos apostavam que jamais faria sucesso na tela grande. Após “A Primeira Noite de um Homem”, estrelou clássicos da Nova Hollywood, como “Perdidos na Noite” e “Todos os Homens do Presidente”.

Gene Hackman Ganhou projeção ao concorrer ao Oscar de ator coadjuvante por “Bonnie e Clyde”. Ganharia o prêmio principal poucos anos depois, em 1971, pelo clássico “Operação França”. Faye Dunaway Após “Bonnie e Clyde” (foto abaixo), ela se tornou ícone fashion e sexual. Ganhou o Oscar de melhor atriz em 1976 por “Rede de Intrigas” e também concorreu por “Chinatown”, de Roman Polanski.

Warren Beatty Talvez o grande nome por trás, além de astro, de “Bonnie e Clyde” (foto acima com Faye Dunaway). Aventurou-se ainda jovem, ao assumir a cadeira de produtor e protagonista do filme. Chegou a fazer parte da velha Hollywood quando apareceu em “O Clamor do Sexo”, de Elia Kazan, mas acabou se tornando um dos primeiros a desafiar a indústria.

de revigorante e, ao mesmo tempo, atrasado no cinema americano. Histórias deliciosas, como, por exemplo, de quando Godard quase assinou para dirigir “Bonnie e Clyde”; ou o relato de um encontro do diretor Mike Nichols com uma decadente Ava Gardner na disputa pelo papel de Mrs. Robinson, em “A Primeira Noite”, recheiam o livro, que capta exatamente o que há de extraordinário quando se junta essas produções – um quadro fiel do momento político e cultural dos Estados Unidos. Por um lado, “Dr. Dolittle” representava o fracasso da velha Hollywood, com seu superorçamento, o estrelismo sem proporções do protagonista Rox Harrison e o controle criativo nas mãos dos produtores e do estúdio. Do outro, “Bonnie e Clyde” e “A Primeira Noite” são um marco por trazerem protagonistas ambíguos, exposição crua de temas como violência e sexo, uma produção longe dos chefões dos estúdios, baixo custo e alta renda nas bilheterias, e pouquíssimas estrelas.

Sidney Poitier

Já “Adivinhe Quem” e “No Calor da Noite”, o grande ganhador do Oscar daquele ano, compartilham o mesmo lendário ator negro que, apesar do sucesso dos filmes, era duramente criticado pelo movimento negro. Sidney Poitier era visto como uma representação assexuada (mal havia filmado uma cena de beijo até então) e passiva. Alguns chegavam a dizer que ele era um negro pintado de branco. Poucos dias antes da entrega do Oscar, Martin Luther King ainda seria assassinado, potencializando o clima político e a representatividade desses filmes. Com o resultado das bilheterias ao lado dos novos nomes da indústria, os estúdios abriram as portas para novos cineastas vindos das faculdades de cinema e atores de diversos perfis vindos do teatro. Anos depois a velha e mofada Hollywood perdia de vez o espaço para nomes como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Robert Altman.


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artes cênicas

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por FLÁVIA DALLA BERNARDINA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

O PALCO COMO LUGAR DE AÇÃO E REFLEXÃO O Festival Aldeia Sesc de Teatro e Dança, que vai até o dia 13 de agosto, movimenta teatros, praças e ruas de Vitória com espetáculos que permitem a interação entre artistas e plateia CARLOS ANTOLINI

“Não te abandono mais, morro contigo”, espetáculo da Cia. de Dança Mitzi Marzzuti, é atração de hoje, às 19h, no Centro Cultural Carmélia de Souza: arte sem barreiras

M

arshall McLuhan foi criador do termo “aldeia global”, ainda na década de 60, quando celular e internet eram cenas futuristas de uma odisseia no espaço. Para ele, a diminuição das barreiras geográficas pela tecnologia e o consequente aumento do potencial da comunicação minimizariam os limites de espaço e de tempo. Acertou McLuhan em suas previsões, estamos aqui para ver e crer. De fato, as distâncias diminuíram, tornamo-nos seres excessivamente acessíveis. Entretanto, nossas subjetividades permanecem guiadas por torres de controle obscuras, subliminares. E muito embora ampliamos as possibilidades de acesso às informações – de forma até abusiva – permanecemos trancados em apartamentos que separam nacionais de estrangeiros, pretos de brancos, centro de periferia. Em “Micropolítica - Cartografias do Desejo” (1986), Félix Guattari chamou de produção de subjetividade, aquela de natureza industrial, fabricada, modelada. São as mutações que funcionam “no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se

articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas.” (pág. 26) Desabafos à parte, de 30 de julho a 13 de agosto, acontece em Vitória a Aldeia Sesc de Teatro e Dança, 2011. Com a diversidade da programação que movimenta por duas semanas os palcos do Centro Cultural Carmélia de Souza, do Teatro Carlos Gomes, de praças, ruas e universidades, o Sesc prova que vem subvertendo essa noção maniqueísta nas artes cênicas.

Palco Giratório

A Aldeia Sesc é um projeto de âmbito nacional, que contempla a mostra local de artes cênicas. São realizadas 32 aldeias anuais no Brasil. Além das apresentações de companhias locais e convidadas, o evento é visitado pelo Palco Giratório, um projeto que viabiliza a circulação de espetáculos produzidos por grupos e companhias independentes. A diversidade dos grupos e suas linguagens peculiares torna a programação ainda mais rica. Além disso, as reflexões cênicas, que acontecem sem-

pre após os espetáculos, permitem a interação entre artistas e plateia. A Aldeia também possibilita que companhias de teatro e dança que atuam fora do eixo Rio-São Paulo, sejam vistas e reconhecidas. E mais: que haja efetiva troca, que estas deixem seus registros e absorvam os nossos também. Tanto é que nesta edição veremos trabalhos de companhias de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul, além dos grupos locais. Na verdade, mais que sua procedência, o que importa é a consistência do trabalho, sua coerência, qualidade, proposta e processo criativo. Nessas premissas, o multicultural aliado ao transdisciplinar proporciona a troca de informações que geram percepções multissensoriais. Por isso, é necessário investir em mutações no campo da subjetividade, para que venha à tona o singular, como proposto por Guattari. Se retomarmos como base o conceito de Guattari sobre a arte, como “um fluxo a se combinar com outros”, atestaremos que o campo da arte passa por singularidades de diversos tipos e procedências. São as “trincheiras da arte”, mencionadas pelo pensador, o lugar onde sou contagiado pelo processo de criação quando sou

chamado a criar a partir da obra, e não a dispor dela como uma mera informação. Mesmo porque, se considerarmos o conceito de Gilles Deleuze sobre informação, esta é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam sobre algo, na verdade, nos dizem o que julgam que devemos crer. Essa postura – dispor da obra como uma informação – seria uma rasteira às fontes de criação, disponíveis a todos e acessadas por alguns. Seria negar o fluxo criativo infinito, que nos torna potenciais cocriadores. Logo, na interação com a obra de arte é essencial que estabeleçamos ligações que habitem fora das identidades determinadas, as chamadas “ligações deleuzianas”. Se tomarmos como base o pensamento de Deleuze, não escrevemos sobre uma tábua em branco, estamos sempre começando do meio. E somos constantemente passíveis de mudança pelas novas ligações que se estabelecem. Vivenciar esse lugar determinaria que não somos de onde viemos ou o que fazemos, não temos cor, credo ou raça. Quando alcançarmos esse degrau, e somente nele, poderemos, enfim, afirmar que habitamos uma aldeia. Programação completa do Aldeia Sesc no http://culturasesc-es.blogspot.com/


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 6 DE AGOSTO DE 2011

memória por EVANDRO MOREIRA

O POETA QUE ENSINOU A AMAR SUA TERRA Newton Braga, cujo centenário de nascimento se completa no próximo dia 11 de agosto, registrou o amor por Cachoeiro em prosa e poesia, como destaca estudioso de sua obra

A

lguém me pergunta o porquê de tanta festa em homenagem a um filho da terra, um simples poeta que não quis ser mais importante do que ninguém. A festa que ele criou este ano começou em janeiro e irá até dezembro, pois é o centenário do seu nascimento. Uma festa criada por ele mesmo, em 1939, para incrementar o nosso amor pela terra natal e lembrar aos ausentes que Cachoeiro sabe amar seus filhos. O santo padroeiro é São Pedro, mas o grande irmão é NB. De fato, não é fácil convencer alguém de que isto é apenas um reencontro. É mais, sim, é um ato de amor à terra, de amizade imorredoura pelos conterrâneos. É mais que um tributo, uma saudade, nossa admiração ao mais ilustre filho de Cachoeiro, que dedicou seu amor aos irmãos de todos os credos, mormente os desafortunados. Newton Braga nasceu em 1911 e faleceu em 1961, deixou exemplos de virtude, e coragem de cantar o nosso bairrismo. Como era o Newton? Mais que o Rubem, era de poucas falas, sabia o que dizer a cada um sem ferir susceptibilidades. Por isso, talvez, amado por todos, pobres e ricos. Era de uma calma inabalável e com tiradas jocosas mas sempre afetivas. Em 1961, reuni alguns companheiros de jornal para fundarmos a Academia Cachoeirense de Letras, sonhada desde os anos 30 mas nunca realizada, e fui ao Newton (com o qual trabalhara alguns anos, como seu secretário e “tradutor” – datilografando seus manuscritos pouco legíveis), convidando-o para ingressar e valorizar a ACL. Ele sorriu, agradeceu e declinou da honra, explicando: “Muito bom para vocês jovens, eu já estou velho e não gosto dessas coisas. Também, a Academia nos torna imortais... mas ela morre logo!” Outra vez, no trabalho publicitário para a família Soares, da Vila de Itapemirim, promoveu um Concurso de Pesca mas os peixes não compareceram, provocando críticas: “Ô Newton, cadê os peixes que temos de pescar? Não pegamos nem um”. Newton sorriu manso e explicou: “Vamos ter paciência, é a primeira vez que eles participam de um concurso assim, estão encabulados”. Em 1941, na escolha do Príncipe dos Poetas Capixabas, classificando Narciso

ARQUIVO DE FAMÍLIA

Araújo, João Bastos e Newton, que “graças a Deus”, segundo ele, não foi o mais votado. Sua produção cultural estava nas revistas de Vitória, jornais do Rio (inclusive crítica literária) e no Correio do Sul, fundado por sua família em 1928.

Livros

Newton Braga publicou livros e escreveu para revistas de Vitória, jornais do Rio e no Correio do Sul, fundado por sua família em 1928; ao lado, o escritor (à direita) com o irmão ilustre, Rubem Braga, em 1932

Em 1945, publicou “Lirismo Perdido” (segundo livro de poesia modernista – o primeiro foi o de Haydée Nicolussi), pela Editora Leitura; em 1946, publicou aqui em Cachoeiro o livreto “Histórias de Cachoeiro”, para uso nas escolas; em 1955, pela Imprensa Oficial, publicou “Cidade do Interior”, minicrônicas, casos e epigramas, publicadas em jornais (Diário de Notícias, inclusive). Em 1964, Rubem publicou por sua Editora a “Poesia e Prosa” do irmão Newton, colhida nos livros anteriores e jornais. Em 2006, publiquei sua biografia sob o título de “Newton Braga – O Poeta Franciscano”, por ser ocupante da cadeira 2 da ACL, da qual NB é o patrono. A ACL ganhou o título de “Casa de Newton Braga”. Newton nunca pretendeu sair de Cachoeiro, para onde voltara mal terminado o curso em BH, em 1932. Ele nos ensinou a amar nossa terra, não por ser a mais bela cidade nem "a capital do mundo", como dizia o Rubem, mas por ser a nossa terra, ter a marca de nossos pés. E a isso chamam de bairrismo, quando é apenas amor. É isto! Nossa festa não é somente uma festa que acontece todo ano, é mais. É uma homenagem ao Padroeiro São Pedro e um reencontro de irmãos, de amigos. É a pública e universal declaração de amor por um pedaço de chão que nos viu nascer. É a lição, a inspiração de um Poeta que soube amar sua gente e sua terra como jamais alguém ousara. Aqui, os amigos são eternos, para sempre lembrados, embora às vezes não pareça. Sim, este bairrismo chama-se Amor e o Newton fez de sua vida um exemplo de humildade, de amizade, de sincero amor pela família, que são todos os cachoeirenses. E em memória dele faremos eterna essa festa. Este é o centenário de nascimento do nosso Poeta, que nos ensinou a amar Cachoeiro. E por isso ele criou o Dia de Cachoeiro, em 29 de junho. E nós o lembramos com saudade e gratidão cada dia de todos os anos. A bênção Poeta, meu mestre!


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