Pensar 07 04 2012

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Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

www.agazeta.com.br

REPRODUÇÃO

Livros

GILBERT CHAUDANNE ANALISA O ÓBITO DE PARIS EM “ILUSÕES PERDIDAS”, DE BALZAC. Página 4

Música

LUIZ SÉRGIO QUARTO DESCREVE O CANTO APAIXONADO DE NORA NEY. Página 5

Perfil

UMA CONVERSA SOBRE JAZZ E BOSSA NOVA COM O MESTRE LUIZ PAIXÃO. Páginas 10 e 11

Memória

MILSON HENRIQUES CONTA COMO MILLÔR FERNANDES INFLUENCIOU TODA UMA GERAÇÃO. Página 12

O mistério de Jesus

“O Sermão da Montanha”, de Carl Heinrich Bloch (1834-1890), é um dos mais conhecidos retratos artísticos da figura central do cristianismo

ESPECIALISTA DESTACA ASPECTO HUMANO DO PERSONAGEM QUE MUDOU A HISTÓRIA Páginas 6 e 7


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quem pensa Ester Abreu Vieira de Oliveira é presidente da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras. esteroli@terra.com.br

Gilbert Chaudanne é escritor e pintor. Publicou os livros “A moça na janela” e “A busca do Santo Graal”, entre outros.

Luiz Sérgio Quarto é professor e pesquisador musical.

Helder Salvador é padre reitor do Seminário Maior da diocese de Cachoeiro e professor de Filosofia e Teologia.

Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

Sergio Damião é médico e membro da Academia Cachoeirense de Letras. estudos@santacasacachoeiro.org.br

Angela Togeiro éescritorae2ªvice-presidentedaAcademia FemininaMineiradeLetras. angelatogeiro@task.com.br

Manuela Lopes Santos Neves é jornalista e mestre em Ciência da Informação. manuela_lsn@yahoo.com.br Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.

marque na agenda prateleira Literatura Neruda é tema de palestra na Biblioteca

Na próxima terça-feira, às 16h, a escritora Ana Quirino apresenta a palestra “O homem americano no canto geral de Pablo Neruda”, na Biblioteca Pública Estadual.

Campus Fonoaudiologia oferece curso de oratória

Estão abertas as inscrições para o curso de aprimoramento de técnicas de oratória e competência comunicativa, destinado aos estudantes de graduação e pós-graduação da Ufes. Trata-se de um projeto de extensão do curso de Fonoaudiologia da Ufes. Mais informações: (027) 3335-7548 ou www.fono.ufes.br.

10

de abril

Café Literário com Maria Sanz Martins

A autora fala sobre o liv ro “A Vida Secreta da Gente ”e o gênero crônica na próxima terça-feira, a pa rtir das 19h, no Centro Cu ltural Majestic (Rua Dionísio Rosendo, 91, Centro de Vitória). A mediação ser á de Rita de Cássia Maia. “A Vida Secreta da Gente” traz para o leitor as impressõ es de uma observadora do cotidiano.

15

de maio

Expectativa para a Bienal Rubem Braga

A 4ª Bienal Rubem Braga será realizada entre 15 e 20 de maio, na Praça Jerônimo Monteiro, em Cachoeiro de Itapemirim. A partir do dia 17 deste mês, educadores poderão inscrever turmas de alunos em oficinas e apresentações de teatro de bonecos, entre outras atividades, na Secretaria Municipal de Cultura.

Uma Breve História do Cristianismo Geoffrey Blainey O historiador australiano analisa de forma imparcial os primeiros passos do cristianismo, investiga os eventos que possibilitaram a evolução da religião mais professada do mundo e conta por que a doutrina cristã permanece tão viva nos dias de hoje quanto nos seus primórdios. 328 páginas. Fundamento. R$ 29,50

Maya Jostein Gaarder Neste romance, estranhas criaturas começam a perturbar os estudos de um paleontólogo que faz pesquisas no arquipélago de Fiji, na Oceania. O cientista começa a duvidar da lógica das coisas e acaba se convencendo de que a relatividade do tempo é uma teoria muito esquisita. 384 páginas. Companhia das Letras. R$ 26,50

Olhares Sobre o Moderno Italo Campofiorito O primeiro título da Coleção Modernismo + 90, sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, destaca a trajetória de Italo Campofiorito, fiel escudeiro de Oscar Niemeyer e Lucio Costa na construção de Brasília e símbolo da arquitetura moderna brasileira. 160 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

A Corporação que Mudou o Mundo Nick Robins O historiador faz uma análise minuciosa da Companhia das Índias Orientais, fundada em 1600 e considerada a precursora da multinacional moderna. 304 páginas. Difel. R$ 49

JESUS, ALEGRIA DOS HOMENS

José Roberto Santos Neves

Durante a Quaresma é grande o volume de publicações sobre o cristianismo e o mistério da existência de Jesus Cristo. Uma delas nos chamou especialmente a atenção: a biografia “Jesus”, de Christiane Rancé. Para avaliar a qualidade desse trabalho, convidamos o padre reitor do Seminário Maior da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, Helder Salvador. Estudioso do tema, além de professor de Filosofia e Teologia, padre Helder relata aos leitores o conteúdo da obra nas páginas 6 e 7. Na sua visão, um dos méritos da autora é a utilização de pesquisa fundamentada para “apresentar Jesus como homem

Pensar na web

entre os homens, um personagem histórico que fundou um novo modo de pensar e viver, que mudou para sempre a ordem do mundo ocidental”. Uma reflexão relevante para todos os momentos e, especialmente, para a Semana Santa.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Galeria de obras de arte inspiradas em Jesus Cristo, vídeos de Nora Ney, trechos de entrevistas de Millôr Fernandes e de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

O Pensar completa no próximo dia 9 um ano de circulação. Esse primeiro ciclo só se tornou possível graças à participação dos leitores, autores, acadêmicos, representantes culturais e de todos aqueles que incentivam este espaço único na imprensa capixaba. Parabéns a todos!

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por ESTER ABREU VIEIRA DE OLIVEIRA

ESPAÇO, TEMPO E MEMÓRIA ENTRE A FICÇÃO E O REAL

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amuel Duarte, nos 60 capítulos distribuídos em dois volumes de “As Montanhas da Lua” (1982), engendra o personagem Ariel, idealista, imaginativo, íntegro, corajoso, grande leitor, que procura descobrir um enigma de sua existência. Nessa busca, esse ser vai captar a sua história ancestral ao mesmo tempo em que amplia, mediante o enigma do tempo, a história da humanidade, do Brasil e, principalmente do Sul do Estado do Espírito Santo. Contudo, sua inquietação não se limita à questão do tempo proustiano da memória pessoal; ao contrário, ele amplia o horizonte para o enigma do tempo coletivo, do tempo que gira para olhar o passado, para captar o mistério de sua própria história. Na busca da origem de Ariel, um dos traços do homem e na construção da saga desse personagem, para fazê-la verossímil, Samuel toma como base a historicidade e o tempo, caminhando do século XV ao XX, pois a vida do homem tem início muito antes dele, conforme esclarece Foucault em “As palavras e as coisas”: “É sempre em relação a um fundo já começado que o homem pode pensar aquilo que vale para ele como origem”. Samuel desenvolve a história de uma família portuguesa, os Ignez, que imigraram para o Espírito Santo no século XIX. Mas, entre a história e a ficção, em um tempo fantástico que retrocede e antecipa, vai desenvolvendo, de geração a geração, 400 anos de história, o que nos faz lembrar a saga dos Buendías de “Cem anos de solidão”, de García Márquez. A vida de Ariel, viajante do tempo, pode ficar inserida na temática da “Oração do tempo” de Caetano Veloso, trilha sonora da novela “Vida da Gente” (“tempo, tempo, tempo, tempo/compositor de destinos/[...] tempo, tempo, tempo, tempo/Por seres tão inventivo/ E pareceres contínuo/ Tempo, tempo, tempo, tempo/És dos deuses, mais lindo”), porque entre o historiográfico e a ficção, o real e o fantástico, ou maravilhoso, dentro de um tempo verossímil, Samuel Duarte, magnificamente, como Cromo, absorve o tempo, rompe com ele e o espaço num romance épico-poético, onde o leitor acompanha a angústia de um ser solitário e percebe o grande leitor que é o criador da obra. Samuel, por meio das dúvidas, tristezas e anseios de uma vida, rememora as crises mundiais (econômica, política e social), dá ênfase ao crescimento de Cachoeiro de Itapemirim e lugares circundantes e mostra que a humanidade não aniquila nem sufoca a obra humana, mas

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AS MONTANHAS DA LUA Samuel Duarte. Gracal Gráfica e Editora. 286 páginas (Volume 1) e 292 páginas (Volume 2). Quanto: R$ 35, em média, cada um

ESTER ABREU/DIVULGAÇÃO

Em “As Montanhas da Lua”, Samuel Duarte percorre 400 anos de história para descrever os caminhos do personagem Ariel

a acompanha, pois a vida é uma maré constante entre o existir e a memória. Em cada capítulo, uma surpresa, um avançar e um retroceder no tempo e no espaço de Ariel, cujo nome decorre de uma leitura de sua mãe da obra “A Tempestade”, de Shakespeare. Essa situação climática envolverá a vida de Ariel, no mar ou na terra.

Citações

Nas citações de obras e nas intertextualidades, Samuel se vale da boca de seus personagens para demonstrar a força do passar do tempo. Com esses recursos, o leitor percebe o caudal de leituras do autor. Assim, se o nome do personagem principal provém de uma obra, o mesmo acontece com o título da obra, que foi inspirado no poema “El Dorado”, de Edgar Allan Poe, que o leitor encontra citado, na p. 81, do 2º volume, na lembrança um pouco destorcida de Ariel, também um grande leitor e possuidor de uma memória fabulosa. Tanto “A Tempestade” como “El Dorado” serão suportes para o desenvolvimento do teor maravilhoso temporal que

TRECHO “Podem me chamar de Ariel; tempos atrás eu acrescentaria: “sem medo de errar”. Se hoje não acrescento é porque já não tenho certeza de mais nada. Nem mesmo por mais absurdo que isso possa parecer, do meu próprio nome. Devem ser por volta das nove da noite e estou sozinho, sentado à porta da cabocla Delaura, a uns escassos vinte quilômetros de uma cidadezinha chamada São Felipe. Há um temporal se formando no quadrante sul. Eu o espero com uma certa impaciência, porque sei que com a sua chegada, irei embora. Para aonde? Eis algo que não sei. Porém desconfio que seja para essa terra sem retorno a que chama de Morte.” Volume 1, p. 18

percorre o livro, na metáfora do tempo, seja nos ciclones atmosféricos e pessoais que o personagem enfrenta, seja na busca de sonhos, que as palavras de Próspero, em “A Tempestade”, refletem: “[...] somos feitos de mesmo material que os sonhos e nossa curta vida acaba num sono”. Na maioria dos capítulos predomina a primeira pessoa, onde o leitor vai encontrar as experiências diretas e as buscas de Ariel. O romancista consegue criar para o leitor um mundo fictício num mundo real e os limites entre eles não são firmes, mas diáfanos, proporcionando um mundo real completo e consistente, enquanto os mundos fictícios são incompletos, inconsistentes, duvidosos. Não há delimitação de fronteiras entre fictício e não fictício que se desenvolvem ao longo dos variados tempos e se fazem presente na existência do ser Ariel. Em “Confissão”, XI, 15, 20, Agostinho explica que os tempos, sucessão contínua de instantes individuais, são três: o presente dos fatos passado (memória), o presente dos fatos presentes (visão) e o presente dos fatos futuros (a espera) que existe na alma, logo memória e espaço estão dentro do tempo.


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livros por GILBERT CHAUDANNE

BALZAC, O TABELIÃO DA CONSCIÊNCIA

ILUSÕES PERDIDAS Honoré de Balzac. Tradução: Rosa Freire d'Aguiar. Penguin/Companhia das Letras. 792 páginas. Quanto: R$ 38

Para articulista, escritor desnuda a superficialidade de Paris e registra o óbito da cidade como capital cultural no romance “Ilusões Perdidas”, publicado originalmente entre 1837 e 1843

A

realidade social, nua e crua, vai se encarregar de matar suas fadas com suas facas. No livro “Ilusões Perdidas”, de Balzac, a equação é clássica: um jovem da província francesa, bonito e poeta, sonha “conquistar” Paris, depois de ter engolido os sapos da província francesa (do sec. XIX). Assim ele vai enfrentar Paris, mas já naquela época a poesia não interessava a ninguém, mas, com seu rosto bonitinho, Lucien, “nosso herói”, abre as portas e até as pernas de senhoras da nobreza, já maduras, porém sedentas de carne fresca: é a devoração ritual dos jovens talentos, rito parisiense. E se “Paris é uma festa”, é só para um cowboy bobo (porém simpático) como Hemingway. A bela capital é, na verdade, um elegante matadouro, onde são sacrificados no altar do cinismo e da busca desenfreada do poder os cordeiros poéticos que chegam deslumbrados de Angoulême, Besançon ou Vitória. Nosso poeta das mãos brancas vai fazer, ao mesmo tempo, sua educação sentimental e político-cultural: aliás, uma antieducação, porque, rapidamente, tem de aprender que a lei que rege o belo mundo parisiense é a lei do cão. Baudelaire via Paris como um imenso bordel regido pelo diabo. Mas Paris é famosa pela sua cultura, sua elegância, sua arte de viver, porém Balzac nos mostra que tudo isso são máscaras atrás das quais se escondem trocas de favores: é um sistema de elevadores que constitui o que chamamos de ascensão social: subir na sociedade e (ou é) descer na ética: fabricar o homem cínico que não acredita em mais nada, a não ser em dinheiro, sexo e poder: é o bairro chique do “Faubourg Saint Germain.” É o caso sintomático de um jovem bonito que vai “atender” sexualmente a uma mulher trintona ou quarentona. Ninguém vai dizer que é um gigolô (porque na França nunca se diz que um gato é um gato) e porque o amor é romântico, sobretudo quando é regalado com dinheiro debaixo da mesa e protegido pelo nome (nobreza): quem é poderoso não comete pecados, só procura ajudar o próximo. . . Como escrevia, já no século XVII, o grande Molière: “A hipocrisia é um vício que está na moda”. Lucien “aprende” Paris e aprende que não é a qualidade do poema que vai fazer

DIVULGAÇÃO

Balzac mostra uma Paris repleta de máscaras onde se escondem trocas de favores

+ sobre Balzac Nascimento Nasceu em Tours, França, em 1799, filho de um funcionário público. Passou quase seis anos interno em um colégio de Vendôme, depois se fixou em Paris, onde exerceu a função de estagiário em um escritório de advocacia.

impressor e tipógrafo. Aos 30 anos, muito endividado, retomou a literatura com grande empenho e publicou o primeiro romance assinado com seu próprio nome. Nos 20 anos seguintes, escreveu cerca de 90 romances e contos, que receberam o nome de “A comédia humana”.

Romances e contos Entre 1820 e 1824, adotando diversos pseudônimos, escreveu alguns romances e a seguir tentou a sorte na atividade de editor,

Morte Morreu em 1850, poucos meses depois de se casar com Evelina Hanska, a condessa polonesa com quem manteve relações durante 18 anos.

com que seja publicado. Aprende que nesse belo mundo parisiense, que hesita entre o veludo e o estilete, há uma entidade que orquestra essa grande missa negra: o cão – é a lei do cão, impiedosa, num mundo onde terá que andar armado

(não de faca ou revólver, o que é de mau gosto), mas de palavras-alfinetes e do black-out dos que são sinceros demais. Nesse contexto, se você não tem nome, tem que ter outro poder: a beleza ou ... o jornalismo. A beleza é o caminho das

mulheres – mas no caso de Lucien, há o perigo do efeito “gigolô descartável”. E nosso ambicioso tem que ter outro poder na mão para durar. Vimos que a poesia não tem poder nenhum e já era considerada, mais ou menos como hoje, como atividade de débil mental. Mas, além da poesia, há um parâmetro novo que está explodindo as estruturas do salão das madames: é o jornalismo. Assim, o poeta Lucien de Rubempré se torna jornalista e adquire finalmente (um) poder, é assim temido, respeitado. O que é normal, já que em qualquer atividade humana o respeito não vem do valor espiritual, moral, profissional e intelectual da pessoa, mas do poder que ela tem. O jornalista é um espadachim temido e, pois, respeitado. O valor intrínseco da pessoa e da sua obra é absolutamente descartado e assim se fabricam homens bonecos, andróides dos poderes constituídos ou paralelos, e assim se instala uma sociedade parisiense cheia de dinheiro e títulos de nobreza, do brilho de fora, e do vazio de dentro. “L’ homme du monde” é um boneco oco que consegue se promover justamente porque é oco. Assim, a “ideologia” da alta sociedade coloca nele o que ela quer. O resultado é o “homo parisiensis”, cuja cultura é uma cultura do parecer e não do ser, o que explica que a “intelligentsia” da capital passou ao lado de Rimbaud, Van Gogh, sem perceber suas presenças. Paris é uma festa? Não, Paris é uma pele – e o que quer dizer que Paris é uma pele? Quer dizer que Paris vive na sua superficialidade: o famoso “parisianismo”. E, se o filósofo Merleau-Ponty escreve que “a pele é profunda”, está falando da pele do homem (acho que a pele da mulher é mais profunda ainda...) e não da pele de Paris. Paris é uma cidade escorchada, esfolada, mas vestida de cetim e de seda (não é por acaso que é a capital da moda), o que dá a ilusão de uma pele macia. A cultura francesa fabrica um homem comedido: o “honnête homme”, aparentemente educado, mas que na verdade é um homem ressecado e cheio de si. Assim, Balzac faz o levantamento cartorial desses tipos. Ele é um tabelião, mas não é míope, seu olhar impiedoso é de cristal, o cristal transparente e absoluto da consciência. É o cartório da consciência onde se registra o óbito de Paris como capital cultural.


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falando de música

Pensar

por LUIZ SÉRGIO QUARTO

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

A VOZ E O LAMENTO DA PERSONALÍSSIMA NORA NEY

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uerida por um grande público frequentador do auditório da Rádio Nacional, onde imperavam os mais entusiastas fãs-clubes do Brasil, Nora Ney foi taxativa: só aceitava a fundação do seu fã-clube se suas fãs dele participassem se alfabetizando, aprendendo certas habilidades sociais e manuais. A cantora não queria ser idolatrada, e sim amada, porém útil ao seu fiel público. Conde Aguiar (2007, p. 53) informa que “Nora Ney era uma pessoa politicamente engajada, tendo militado durante muitos anos no Partido Comunista Brasileiro”. Acontece que a contadora Iracema de Souza Ferreira, uma carioca nascida no ano de 1922, jamais poderia imaginar que se tornaria Nora Ney: uma cantora de sucesso reconhecida nacionalmente. Se a grande intérprete de “Ninguém me ama” via a ideia do fã-clube como uma visão política de caráter social; foi como integrante do “fã-clube Frank Sinatra-Dick Farney” que Iracema passou a conviver com o mundo musical, onde se reuniam astros iniciantes como os compositores Johnny Alf, João Donato, Armando Cavalcanti, Klecius Caldas; os músicos Paulo Moura, Fafá Lemos e Raul Mascarenhas e cantores como Dóris Monteiro e Mirzo Barroso – como informa Tárik de Souza no encarte do CD “Mestres da MPB”, focalizando os sucessos de Nora Ney pela Continental (remasterizado em digital), produzido pela Warner Music Brasil, em 1994. Tárik revela que esse encontro desses ilustres fãs de Sinatra e Dick se dava no porão de uma casa na Rua Dr. Moura Brito, na Tijuca. Por admirar Sinatra e Dick, a cantora foi bastante influenciada pela música estrangeira. Talvez seja por isso que foi escalada pela Nacional para cantar ao vivo, pela primeira vez no Brasil, “Rock arround the clock”, que acabou virando hino do rock’n’roll. O adolescente Caetano Veloso estava lá no auditório e comenta em seu livro “Verdade Tropical” (1997, p. 38): “Tive sorte de ouvir”. Mas foi na Rádio Tupi, com o pseudônimo de Nora Ney, levada por Farney, que iniciou sua carreira de cantora, interpretando sucessos internacionais. Em seu livro “Almanaque da Rádio Nacional”, o pesquisador Conde Aguiar (2007, p. 53) informa que foi por convite de Haroldo Barbosa que a cantora foi convencida a abandonar o repertório estrangeiro ao substituir Aracy de Almeida no quadro “Viva o Samba”, do programa Rádio Sequência G-3. E foi ao lado de Dóris Monteiro e Jorge Goulart – com quem se casaria –

REPRODUÇÃO DA REVISTA HISTÓRIA DO SAMBA

fizeram de “Ninguém me ama” a mais autêntica crônica do boêmio rejeitado e do amante desiludido. Nora Ney, sem ter o vozeirão de Angela Maria e Dalva de Oliveira, emocionou os apaixonados e os fracassados do amor com tanta dramaticidade, ganhando espaço e sucessivos sucessos que viriam nos anos compreendidos entre 1953 e 1957. Com sua voz marcante em “Ninguém me ama”, a personalíssima cantora ganhou o Disco de Ouro e fez a escola da fossa em uma época de “dor de cotovelo”, de onde saíram outras vozes marcantes à la Nora Ney, como Maysa, Waleska e Angela Rô Rô.

Versos doloridos

A cantora romântica em cena do filme “Carnaval em Caxias” (1953), de Jorge Ileli

que Nora Ney, contratada pela Nacional, participou do programa “Ritmos da Panair”, transmitido diretamente da boate Midnight do Copacabana Palace por um período de quatro anos. Cantando para um público exigente da Zona Sul, Nora Ney fez do seu repertório um cancioneiro romântico e popular, atingindo as massas. Sua forma de cantar – diferente de todas as outras cantoras, como se estivesse soletrando as palavras e soltando-as com expressão clara, indo até o fundo da alma – fez com que fosse aclamada como “a personalíssima Nora Ney”, apesar de a rainha do rádio

paulista, Isaurinha Garcia, ser assim também chamada pelas emissoras da terra da garoa. Mas o título nacional ficou mesmo com Nora Ney que, em 1952, gravou o primeiro disco e alcançou grande sucesso com “Menino grande”, de Antonio Maria, que no mesmo ano deu a ela, juntamente com Fernando Lobo, o seu mais marcante sucesso: “Ninguém me ama”, um verdadeiro hino de desolação, abandono e angústia, com esses versos iniciais: “Ninguém me ama/ ninguém me quer/ninguém me chama de meu amor”. Todos esses elementos contidos nessa canção de dois minutos e 36 segundos

A sua voz personalizada – marcada pela tonalidade dramática, declamada sem perder a musicalidade e a essência dos versos apaixonados e doloridos – não deixou de causar o mesmo impacto no samba de Dorival Caymmi: “Saudade da Bahia”. Como ninguém, Nora Ney sensibiliza o ouvinte que de alguma forma – ao deixar a sua terra – por ela se comove e confessa: “Esta saudade dentro do seu peito”. “Preconceito”, de Antonio Maria e Haroldo Lobo (1953), é outra joia musical na carreira dessa grande intérprete que dominou boa parte do chamado cancioneiro romântico dos anos 50. Mas é em “De cigarro em cigarro”, de Luis Bonfá (1953), que ela faz de seus versos curtos o símbolo da espera da mulher apaixonada pelo seu companheiro: “Olhando a fumaça/no ar se perder” depois de “ver o tempo passar/o inverno chegar...” para quem “vive pobre de amor/ à espera de alguém”. Paixão pura de um eterno amor marca mais essa crônica sentimental na voz de Nora Ney. E foi nesse tom apaixonado da época, com apelos dramáticos, que surgiu Maysa com o “Meu mundo caiu”. E se Dolores Duran fazia composições nesse mesmo nível de paixão, angústia, espera... Nora Ney transcendia com sua inconfundível interpretação de mulher sofrida. Afinal, era a década de grandes paixões e de mulheres românticas que hoje são vistas como submissas e alienadas. Estamos no século XXI. Muita coisa mudou. Mas o lamento e a voz de Nora Ney ficaram. E antes de sua partida, aos 82 anos, no dia 28 de outubro de 2003, deixou ela um apelo musical muito bem gravado: “Tire o seu sorriso do caminho/que eu quero passar com a minha dor/ hoje pra você eu sou espinho/espinho não machuca a flor” (Guilherme de Brito).


6 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

religião

A história de Jesus, seus gestos, suas palavras, suas atitudes, sua doutrina, seu testemunho e sua

JESUS, UM HOMEM ENTRE OS HOMENS PADRE ANALISA A BIOGRAFIA DO PERSONAGEM HISTÓRICO QUE MUDOU PARA SEMPRE A ORDEM DO MUNDO OCIDENTAL

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uem dizem os homens que eu sou? (...) E vós, (...) quem dizeis que eu sou?’ (Marcos 8, 27-29), Jesus pergunta aos discípulos. Estas duas perguntas continuam sendo absolutamente intrigantes – como uma novidade que não se desmente, que se perpetua de era em era. Elas resumem os dois grandes debates que agitaram a história relativa a Jesus de Nazaré. Quem foi ele? Seria possível traçar seu retrato com base em textos e testemunhos de sua época? O que seus discípulos e, de modo mais amplo, os homens teriam dito a respeito dele no decorrer da longa história do cristianismo?” Com estas palavras a biógrafa Christiane Rancé inicia sua obra “Jesus”, da L&PM Editores, recentemente lançada no Brasil. A autora tem a intenção de dar vida aos feitos e aos gestos de Jesus ao inseri-los em seu contexto da maneira como podemos supor que eles se deram, sem a pretensão de apresentar a verdade histórica ou teológica dessa figura; sem buscar,

REPRODUÇÃO/WIKIPÉDIA

Óleo sobre madeira “Ascensão de Cristo” (1510-20), do italiano Garofalo

também, diferenciar o Jesus da História do Jesus da crença, uma vez que os dois são evidentemente indissociáveis. Nesta obra não há nada de romance, mas há intenção assumidamente despojada de narrar uma vida que não exclui nem os elementos considerados básicos (como o nascimento em um estábulo, a visita dos Reis Magos ou a fuga ao Egito), nem as reservas manifestadas pelos historiadores exatamente a respeito dos acontecimentos dos quais não se encontraram vestígios ou que tenham sido comprovados como de caráter errôneo (o massacre dos inocentes). Em cada ocasião é indicado a que gênero a parte em questão pertence. Esta biografia tem apenas uma ambição: traçar o retrato em movimento desse homem tão singular que todo mundo conhece pelo menos de nome, que viveu há mais de dois mil anos na Palestina, que se chamava Jesus e a quem algumas pessoas deram o nome de Cristo. Expondo de forma simples, porém demonstrando um vasto conhecimento das discussões exegético-teológicas contemporâneas, a autora vai

apresentando um Jesus que não é uma lenda, nem uma ideia atemporal, nem uma criação a-histórica da primeira comunidade cristã, mas Jesus como homem entre os homens, um personagem histórico que fundou um novo modo de pensar e viver, que mudou para sempre a ordem do mundo ocidental.

Mistério

A história de Jesus, seus gestos, suas palavras, suas atitudes, sua doutrina, seu testemunho e sua morte na cruz constituem o enredo dessa narrativa biográfica. Jesus pode e deve ser acatado “historicamente”. Por um lado, Ele é um personagem histórico que viveu no princípio do primeiro século da Era Cristã (7-4 a.C. – 30 d.C.), que exatamente dele recebe esse nome e o início. A ideia de que ele nunca existiu, propagada por alguns modernos, já não tem mais nenhum crédito nos tempos atuais. Mas, por outro lado, ao mesmo tempo o concreto acontecimento histórico de Jesus constitui em si mesmo, para os cristãos, a revelação e a realização acabada do

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Pensar

por HELDER SALVADOR

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

a morte na cruz constituem o enredo da narrativa biográfica apresentada por Christiane Rancé

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mistério da salvação, dom de Deus. Toda e qualquer interpretação de Jesus deve confrontar-se com a sua história, da qual recebe endosso e fundamento. O estudo sobre a atendibilidade histórica das fontes cristãs e não cristãs, ao centro de um debate caloroso iniciado a partir do século XVIII e até hoje ainda não inteiramente superado, é de grande relevância quer histórica da pessoa de Jesus quer no seu caráter simbólico-teológico. A pesquisa contemporânea não só tende a considerar com maior confiança o fundamento histórico das narrações evangélicas, mas vê sempre mais estreita a relação entre os Evangelhos e as biografias greco-romanas daquele tempo. Talvez por isso tenham sido publicadas nesses últimos anos algumas biografias de Jesus: as informações contidas nos Evangelhos cruzadas com o resgate de fatos históricos na região da Palestina, há dois mil anos, explicitam o homem Jesus. A narrativa histórica da existência terrena de Jesus termina na sua crucifixão e morte. Não existe constante histórica para saber o que aconteceu entre a fuga dos discípulos diante da morte de Jesus e o surgimento de testemunhas e de apóstolos da Boa Notícia que, em sua maior parte, transformaram-se em mártires alegres, como bem observa Christiane Rancé.

REPRODUÇÃO/WIKIPÉDIA

Questão de fé

A história de Jesus chega ao fim na sua morte de cruz, mas a do Cristo, toda simbólico-teológica como a fé que ela suscita, começa nas palavras das testemunhas que afirmaram: o crucificado ressuscitou. Quer tenha sido Deus ou não, e essa continua sendo uma questão de fé e não de saber, Jesus se apresenta ao mundo como homem. E foi assim que seus contemporâneos o viram, observaram e escutaram antes de precisar questionar sua identidade frente a seus atos e suas palavras. Ele foi um mistério e sempre coube ao espectador a questão de solucionar por meio de um trabalho de conversão interna. E, com frequência, como comprovam as contradições e as divergências dos relatos evangélicos, os discípulos não chegaram a nenhuma conclusão a respeito de seus atos nem da finalidade de suas palavras, ofuscadas pela definição imposta do Messias esperado que eles desejavam desvelar em Jesus. Faz-se necessário ler os Evangelhos e refletir sobre as reações das figuras que aparecem na cena com essa noção de contemporaneidade em perspectiva, para ver se estão ligadas à reação dos escribas e dos

fariseus, dos discípulos ou da multidão, porque, como observa Raymond Brown, citado e comentado por Christane Rancé, “aqueles que viram e ouviram Jesus foram confrontados em relação ao seu envolvimento por causa das aparições depois da ressurreição; e tiveram plena fé no Jesus ressuscitado, como naquele através do qual Deus tinha manifestado o seu amor salvador e definitivo por Israel e finalmente pelo mundo inteiro. É essa fé pascal que ilumina as lembranças daqueles que o tinham visto e ouvido antes da ressurreição; e eles proclamam dessa maneira suas palavras e seus atos com um acréscimo de sentido”. É oportuno dizer que a narração bíblica deve ser para o cristão, para o homem de fé não tanto informação, mas autêntica e complexa obra de transmissão da fé, de manifestação dos acontecimentos salvíficos, de interpretação existencial, de conversão, de apelo a uma missão coerente, embora ninguém tenha visto o Cristo ressuscitado, porque não houve nenhuma pessoa presente no momento da ressurreição. É um ato de fé que todos os leitores dos Evangelhos são convidados a fazer. Pode-se ainda dizer que os quatro Evangelhos podem ser vistos como quatro compêndios para se viver a fé em Cristo no seu ensinamento e, sobretudo, na prática do amor ágape. Se a história de Jesus contada por Marcos pode preparar os catecúmenos para a conversão, a história reproposta por Mateus oferece aos neobatizados a maneira mais adequada para viver o seguimento de Jesus. O Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos formam um subsídio para todos os fiéis levarem uma vida de testemunho evangélico e missionário. Por fim, a história de Jesus narrada por João constitui para os cristãos maduros um verdadeiro e genuíno manual de espiritualidade cristã. Por fim, parece-nos plenamente oportuno reafirmar que é no cruzamento das informações disponíveis nos Evangelhos e o resgate de fatos históricos na região da Palestina que encontramo-nos com o homem Jesus que os cristãos, a partir de sua fé, veem nele o Cristo, que é o Messias, o Filho de Deus, a quem devem seguir e viver o que ele viveu.

O mais antigo painel iconográfico do Cristo Pantocrator, datado do século VI: representação artística do homem que fundou um novo modo de pensar e viver JESUS Christiane Rancé. Tradução de Ana Ban. L&PM Editores. Coleção L&PM Pocket. 288 páginas. Quanto: R$ 19


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poesias MULHER ANGELA TOGEIRO Sou mulher, sou todas as mulheres: sou Afrodite, Amélia, Angela, Eva, Diana, Joana, Madalena, Maria, Raquel, Rita, Sara, Salomé, Tereza, Vênus, Zênite... Tenho na genética a herança dos tempos, que me dá todos os nomes, que me tira todos os nomes, quando me desdobro em outra mulher. Nasci em todas as raças, tenho todas as cores puras e miscigenadas. Pratico todos os credos. Nasci em todos os cantos deste planeta. Vivi em todas as eras. Registrei meus gritos em todos os rincões, mesmo se expulsos da alma no mais profundo silêncio. Vim de todos os lugares, nasci em berço de ouro, em choupana, na rua, nas matas, hospitais, templos... Fui vestida, fui enrolada, despida, jogada. Gerada num útero que me amou, ou num que me recusou. Pouco importa, se rica ou pobre, se esculpida no Belo ou no Feio, preciso cumprir meu destino, meu destino de Mulher.

crônicas NAVEGAR IMPRECISO por CAÊ GUIMARÃES No rastro de lugar nenhum, vago. Sem matrícula ou vaga no ancoradouro mais próximo. Ou em nenhum que me abarque e onde eu caiba, da Rússia à Arábia, da bancada de corais mais traiçoeira ao banco de areia mais vasto, generoso como um seio farto. Sou feito de ferro e sal. E disso me basto. O que entendes por solidão, ou solitude, guia minhas latitudes. E se da destruição sou nato, renasço no momento absurdo em que volto. Abstrato. Como se tudo fosse moto perpétuo. E as boas intenções – inclusive o afeto – iluminassem o percurso como um farol que revela o caminho e suas léguas. Mas que cega se a mirada for direta. Não naveguei em linha reta. Imediato à rota, parti quando a terra ficou torta e a água invadiu os quintais. Quando a morte, úmida, revolveu as gentes, suas carnes e ossos. E as ci-

dades, suas colunas e vielas. O uivo que me seguiu mar adentro, mesclado ao gosto de iodo do deserto esmeralda, surgiu da franja branca que me tocou e ainda toca. Dessa massa magnânima que me separou – todo ferrugem e espera – da mão humana com suas alturas e crateras. Como cabra cega ao negar sua mirada mais dileta, não retornei deliberadamente. Nada foi combinado. Leso e absoluto em abandono, farto de acasos, flutuei. E como quando encontrado em silêncio estava, assim fiquei. Nada haveria a ser dito. Após um ano desaparecido, surgi como o mais completo retrato do abandono que permeia a evolução do homem e seu estar no mundo, órfão de significado e sentido. Naquele momento tornei-me a grande metáfora da vossa queda. E de todas as suas sequelas. Uma obra de arte, a

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segunda maior de todos os tempos. Uma ode à inutilidade e à estupidez. Vermelho ferroso. Azul e verde zinabre. Nenhuma luz acesa, botão acionado ou engrenagem em atrito. Tornei-me um naco de tudo que é finito, mas luze enquanto dura. Na efêmera história humana na superfície do planeta sou um espetáculo que não simula a natureza. No meu convés só o silêncio fez morada. Passarela salgada cheia de nada. Sou a Stultifera Navis invertida – no lugar de abrigar os loucos e dementes excluídos pela sociedade, alijado da civilização naveguei solitário renegando-a. Observei à distância vossas ânsias. Até ser encontrado. Para lá das margens, em terra firme e segura, os senhores seguiram e seguirão se devorando. Famintos e óbvios. Imensos em suas certezas. Imersos em boas maneiras, desperdiçando recursos, afeto e energia. Tornando raso tudo que é genuíno e porventura valeria. Eu? Sou apenas um navio fantasma cujo nome não importa. A representação da derrota que os senhores se autoimpingiram. O dejeto que volta impreciso e se torna espelho. Encarem agora sua imagem refletida na ruína.

RIO ITAPEMIRIM por SERGIO DAMIÃO

Do livro Sou Mulheres, de Angela Togeiro

ESSA... Essa que me cuida sempre à noitinha, Toma e relaxa meu corpo cansado, Faz tranquilo o meu sono de soldado, O que chega ao ninho feito andorinha. Essa que vai comigo e que me aninha Se de guerra falam em qualquer lado, Cura a dor do meu peito desolado, Põe nele a esperança que a tudo alinha. Essa por todos é capaz de tudo. É a que põe luz nas trevas; sobretudo, Brilha no sonho que mais nos apraz. Essa vive de amor, toda ternura, Essa que se augura, que se procura, É Essa que se oferece ao mundo: a Paz

Todos os rios são iguais. Diferente é a maneira que o olhamos, maneira que o vemos e o descobrimos. Depende de quem o admira. Depende, também, do dia, mais ainda do momento em que estamos diante dele. Assim, depende de nós mesmos. Diante das águas de um rio a beleza encontra-se sempre presente. Quando caminho junto ao rio Itapemirim me surpreende as coisas que vejo e as coisas que ele me revela. A cada dia uma boa surpresa. O domingo, em dia de sol, pela manhã, é um momento perfeito. A calçada, quase vazia, nos deixa livre para o devaneio. O pensamento corre semelhante às suas águas: ora barrentas, ora cristalinas. Vejo o Itapemirim, o rio que mata minha sede e me alimenta, exalando jovialidade, enquanto envelheço. As pernas cansadas pelo tempo de caminhada contrastam com a força de suas águas. O que mais me espanta no

Itapemirim é o som emitido do seu leito. Caminhar junto ao seu leito e poder ouvir as mudanças dos seus sons são algo que transcende e apaixona. E nos faz pensar que é o rio mais desejado e cultuado. O mais belo de todos. Os sons se alternam a cada obstáculo que as águas do rio ultrapassam. Seguir o Itapemirim pelo centro da cidade é modificar-se também. O nosso rio emite sons por um longo trecho, mas por vários instantes reina o silêncio. De repente, uma calmaria em suas águas, nesse momento ele simplesmente vive e suas águas fluem, sempre em direção ao mar. Claramente mostram que nesses momentos de calmaria estão se fortalecendo para os obstáculos à frente. A natureza mostra o óbvio. Apesar das evidências, o ser humano não se deixa convencer, quer o novo. Aquilo que não conhece, prefere arriscar. A paixão e a ilusão pelo des-

conhecido afastam o amor e a razão das coisas estabelecidas. Nesse domingo, caminhei mais. Mesmo com um trajeto mais longo não enxerguei bem o que o rio tinha a dizer. Talvez eu não tenha desejado. Quem sabe não estava preparado. Volto em outros dias, é provável que veja as coisas que não enxerguei ou não desejei ver. Pena que o rio e suas águas não esperem. O rio não será mais o mesmo e eu posso ter perdido a mensagem das águas que passaram sobre as pedras. As pedras permanecerão as mesmas, as águas serão outras e diferente eu posso estar. É preferível assim, a monotonia no rio não existe e em nossas vidas ela também não pode persistir. Um rio corre em direção ao mar e nós em direção à felicidade. Cada um deve procurar as coisas que estão no fundo do rio e junto do coração.


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OS DISCOS E AS HISTÓRIAS DE QUEM VIVE A MÚSICA COM PAIXÃO Jornalista visitou um dos maiores conhecedores de jazz e Bossa Nova do Estado e ouviu dele fatos curiosos sobre ícones como Billie Holiday, Dizzy Gillespie e Vinicius de Moraes

VITOR JUBINI/ARQUIVO AG

Luiz Paixão no quarto onde acomoda seus inúmeros CDs, DVDs e parte dos muitos discos de vinil que veio adquirindo desde a adolescência: a música mora nele

T

elefonei às quatro e vinte da tarde para marcar um encontro para os próximos dias. “Por que não hoje?”– perguntou.

“Hoje?” “Sim, pode ser agora.” Recebeu-me às cinco e meia da tarde daquela mesma quarta-feira, no portão

da casa na Joaquim Lírio, Praia do Canto, onde mora há 40 anos. Do portão me guiou pelo corredor comprido até a porta da cozinha e de lá a um cômodo exterior. É nesse cômodo que fica o quarto onde ele acomoda seus inúmeros CDs, DVDs e parte dos muitos discos de vinil que veio adquirindo desde a adolescência. E toda a aparelhagem necessária para ver e ouvir tudo isso, o que

ele faz repetidas noites, e lá se vão 87 anos, até alta madrugada. A casa, que resiste ao crescimento da cidade – “não vendo!” –, entrou no mapa “O melhor de Vitória 2010-11”, marcada como “acervo musical Luiz Paixão”. Não é à toa e muito tem a ver com o quarto no cômodo exterior. Impressiona a quantidade de itens que Paixão guarda ali e que não sabe

precisar quantos são. Apenas diz, referindo-se aos vinis: “Isso tudo que você vê mais aquelas caixas ali atrás e no sótão da casa”. E ele sabe buscar no lugar certo um CD ou um DVD que queira mostrar. Só às vezes se aflige para encontrar um ou outro entre os que estão sobre a mesa no centro do quarto, e que ele separou para ouvir e ver aquela noite.

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por MANUELA LOPES SANTOS NEVES

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

REPRODUÇÃO

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Luiz Paixão é assim: um aficionado sempre disposto a receber quem quer conversar e saber sobre música. É sensível aos timbres e acordes dos instrumentos e às entonações na voz dos intérpretes. Sabe muito e guarda tudo. Muitos músicos capixabas, e outros interessados, têm nele um consultor. Tento iniciar a entrevista, mas antes ele me pede atenção à voz de Oleta Adams, que interpreta “Embraceable you” no DVD que está gravando para Gumercindo, fiel companheiro de trocas musicais. Mais uma coletânea de músicas que selecionou e gravou para oferecer aos amigos. E assim foi durante todo o tempo que passei com ele, conversando e ouvindo música.

No ginasial

O amor pela música nasceu nos tempos do ginasial, cursado nos colégios Estadual e Maria Ortiz, entre as décadas de 1930 e 1940. Começou pela audição das orquestras dos principais bandleaders americanos, como Glenn Miller, Benny Goodman e Harry James. A música americana serviu ao aprendizado da língua inglesa, que ele ensinou para muitos. Foi sócio-fundador e professor do IBEU, primeira escola de línguas da cidade. Usou a música como recurso para melhorar vocabulário e pronúncia. E provavelmente as aulas também. O inglês fluente ajudou Paixão a conhecer grandes nomes do jazz americano. Era o intérprete dos que vinham a Vitória – e houve um tempo, na gestão de Sônia Cabral à frente da Fundação Cultural do Estado, que muitos vieram se apresentar no Teatro Carlos Gomes. “Art Blakey e Sarah Vaughan”, lembra. Confessa que alguns dos músicos que conheceu não foram muito simpáticos. Mas nem quer que eu conte. Prefere falar sobre os encontros que teve com aqueles que admirou pela música e pela simpatia. No quarto do cômodo exterior, Paixão guarda com todo cuidado os objetos que são lembranças desses encontros. Tudo bem protegido numa pasta azul, seu relicário. Antes de continuar a contar dos encontros, Paixão reinicia o DVD, agora já concluído. E como não se

guardado na pasta azul. Guardou também autógrafos de Dave Brubeck, a quem socorreu de uma quase insolação, comprando para ele pomada Senopó. O pianista que lançou e consagrou “Take Five” fora vítima do sol de Guarapari, uma de suas estadas naquelas férias que passou com a família no Brasil, em meados da década de 1970. “Ele não acreditou quando pedi que autografasse um exemplar que eu tinha do primeiro álbum que gravou.” De tão raro, Brubeck avaliou em 300 dólares o valor daquele exemplar. “Autografado, vale uns 500”, riu Paixão. Entre os trombonistas J. J. Johnson e Kai Winding nos EUA, nos anos 50

acanha, a primeira performance da coletânea gravada para Gumercindo é dele mesmo. Afinal, canta muito bem. “Sou bom no scat”, diz, sem falsa modéstia. Foi de uma apresentação que fez três anos atrás, numa noite no Jazz Café, casa de música vizinha a sua. Acompanhado por Andrea Ramos, Márcia Chagas e Victor Humberto na guitarra, canta e improvisa “You’ll never know”. Paixão é um notívago. Quando não está no quarto de seu acervo, ele está pela noite, nos bares da Praia do Canto, cantando ou ouvindo os músicos daqui. O WunderBar, na Avenida Rio Branco, é o lugar preferido. “É a minha segunda casa.” É lá e no Sabor do Canto, também na Joaquim Lírio, que vai para ouvir Victor, Márcia e Andrea, Kátia Rocha e Eliane Gonzaga. “Temos muitos talentos por aqui.”

Primeiros encontros

A conversa segue para 1955, ano em que Paixão foi para os Estados Unidos, aperfeiçoar o inglês na Universidade do Texas. Ali ele teve os primeiros encontros com artistas que já admirava. Houve uma noite que músicos de jazz se apresentaram por lá, como parte dos eventos que a universidade promovia para congregar seus estudantes. E ele foi. “Como a casa estava cheia, me levaram para trás do palco. O melhor lugar. Fiquei junto dos músicos.” Entre os que se apresentaram na-

quela noite, estava Dizzy Gillespie, um dos maiores trompetistas do jazz e já uma lenda. Esperando sua vez de ir ao palco, Gillespie pediu um parceiro para uma partida de xadrez. Como não se acanha, Paixão se ofereceu. E perdeu na terceira jogada. O músico reclamou e perguntou por que ele aceitou a partida, já que era tão mau jogador. “Porque você chamou e para poder contar para todo mundo que joguei xadrez com Dizzy Gillespie.” Paixão se atreve. Ele tem sempre um jeito de chegar perto de quem admira. Em geral, a aproximação se dá em conversas em torno da música. Mas nem sempre aconteceu assim.

Com Pepe no colo

Pepe, um chihuahua cheio de dengo foi logo conquistado pela atenção que Paixão lhe deu. A dona do cachorrinho se espantou. “Nossa, ele não vai com ninguém. Então, faz um favor, fica com ele enquanto eu canto.” E assim fez Paixão, que acolheu Pepe no colo enquanto Billie Holiday cantava. Aconteceu num café, um pequeno bar com palco, em Cleveland, Ohio, no final da década de 1950, pouco antes da morte da diva. “Eu estava em Cleveland e ela também. Não podia perder.” Pediu músicas e um autógrafo. E ela escreveu uma dedicatória e o endereço na capa do compacto que Paixão recebeu naquela noite de seu empresário. Está

Ladeira da Piedade

Mas não é só a canção americana que cabe no coração de Luiz Paixão. É um apreciador da música popular brasileira, apaixonado pela Bossa Nova, que viu surgir. Conviveu de perto com Vinicius de Moraes, amigo e colega de sua irmã Sônia Paixão, na época que a Bossa Nova acontecia. Foi na casa dos irmãos, na ladeira da Piedade, final da Rua Sete de Setembro, que Vinicius se hospedou quando veio a Vitória, em 1962. “Lá em casa ele mostrou o ‘Samba em Prelúdio’, que tinha acabado de compor com Baden Powell. Éramos eu, Sônia, minha mulher Terezinha, Evanildo Silva e Moacir Barros como primeiros ouvintes daquela canção.” A casa de Luiz e Sônia foi um dos pontos de encontro da turma que gostava e fazia Bossa Nova em Vitória, entre o final da década de 1950 e início da década de 1960. “Cariê Lindenberg, Marien Calixte, Reynaldo Brotto, Marinho Carlos apareciam sempre”, lembra Paixão. A casa recebeu e ouviu também Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, Bené Nunes e outros que vieram se apresentar na cidade por aquela época. Meses depois de passar por Vitória, Vinicius autografou e enviou para Paixão um dos raros exemplares do álbum “Sinfonia da Alvorada”, composta por ele e Tom Jobim, a pedido de Juscelino Kubitschek, em comemoração à inauguração de Brasília. “Para Terezinha e Luiz por muitos motivos sempre lembrados. Abraço do amigo Vinicius.” Está guardado.


12 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012

memória por MILSON HENRIQUES

O PAI NOSSO DO HUMOR E DA FILOSOFIA Cartunista descreve o impacto que as criações de Millôr Fernandes provocaram no Brasil dos anos 40 e 50 do século passado, quando “O Cruzeiro” era a principal publicação do país TASSO MARCELO/AE

O desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor, que morreu no último dia 27 de março, aos 88 anos: gênio na arte de fazer sorrir e, principalmente, pensar

J

á publiquei aqui neste caderno–oásis um artigo dizendo como a difícil arte de fazer humor é menos valorizada pela dita intelectualidade. Millôr Fernandes não foi só um grande humorista, foi um grande filósofo. Se antes de suas frases geniais alguém escrevesse “segundo um filósofo grego...”, elas seriam ensinadas nos colégios mais austeros do país. Da mesma maneira que escolhi Vitória para ser minha cidade, desde cedo escolhi Millôr Fernandes para ser meu guru, meu pai espiritual, aquele que eu iria seguir os ensinamentos para o resto da vida. Mais ainda, depois que descobri que ele era para ser chamado Milton, virou Millôr por um erro, fiquei todo metido a besta, já que Milson nada mais é que também um erro do Milton que eu seria. Os anos 40 e 50 do século passado, ao contrário dos decantados “anos dourados”, foram os anos mais “idade média” do Brasil. Duas décadas vividas nas trevas de um moralismo tacanho, idiota (moralismo idiota é pleonasmo), onde o homem que ousasse usar camisa que não fosse branca, creme ou azul claro, que não usasse cabelo cortado rente igual aos militares (“homem que usa topete só se compromete”, dizia uma marchinha de carnaval), que ousasse usar a expressão “linda” para elogiar outra forma de beleza que não fosse a mulher, era considerado “mariquinha”. Já a mulher que fumasse, usasse calça comprida, entrasse em bar, a mulher desquitada, a secretária (“secretária que faz serão, senta no colo do patrão” era um dístico da época), as que perdiam a “santa vir-

gindade” ainda solteiras, eram varridas do meio social. Pois foi no meio dessa escuridão que a inteligência de Millôr começou a iluminar e, é claro, incomodar. A revista “O Cruzeiro” representava para o Brasil o que o programa “Fantástico” da TV Globo representa hoje: tudo aquilo que ela publicava era tido como crível, todo país comentava e respeitava. Apesar de a revista seguir e até ditar o moralismo cerceador da época, seus editores renderam-se ao talento do nosso gênio. Contratado, Millôr passou a escrever duas páginas de humor, o Pif-Paf, sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo. Foi onde eu o descobri, maravilhado. Mas a genialidade, o tiro certeiro, o invulgar talento de definir numa pequena frase o que outros faziam em uma página, o antidesenho fantástico, tudo isso começou a iluminar demais, sua luz era tanta que incomodava, cegava os olhos acostumados à penumbra de mediocridade e do falso moralismo das senhoras pudicas.

Ateísmo

Nesse meio tempo, eu, pré-adolescente, discutia meu ateísmo com meu pai espírita, minha mãe católica e os mestres do Colégio Batista de Campos, onde estudava. O pai usava o argumento: “Quem é você, uma criança ignorante, mau aluno, que tira zero em matemática, não consegue ter amigos, para se dizer ateu, negar a existência de uma divindade, indo contra todos os grandes homens do mundo que possuem uma religião?” Foi então que Millôr, por pressão dos leitores e anun-

ciantes, foi despedido da revista ao lançar a debochadíssima “A Verdadeira História do Paraíso”, onde ridicularizava ainda mais todo o ridículo da história de Adão, costela, Eva, serpente, paraíso, maçã e outras invencionices para mentes infantis. Pronto! Eu estava salvo! Aquele gênio que eu lia com fervor, que eu admirava incondicionalmente, pensava igual a mim! (aliás, eu é que pensava igual a ele). Foi aí que o “adotei” definitivamente como pai, que fez renascer a crença na minha descrença, e minha autoestima, que andava baixa, voltou. Ficou marcado em mim um episódio. No Pif-Paf existia uma irônica seção intitulada “Ministério de Perguntas Cretinas”. Nossa capixaba Dora Vivacqua era a “musa da vez” no Rio, com o nome artístico de Luz del Fuego, causando furor com sua espetacular nudez – foi expulsa do baile carnavalesco do Theatro Municipal por sua fantasia de Eva, que constava apenas de uma serpente enrolada no belo corpo. Entre as tais perguntas cretinas, Millôr lançou essa: “La Luz del Fuego te gusta?” Ao me ver rindo, meu pai apanhou a revista, leu e disse: “Não entendi!” E mostrou para minha mãe, que também não entendeu e fez apenas um comentário, ao qual, aliás, eu já havia me acostumado a ouvir: “Você esquece que esse menino é doido?” Daí a “esse menino” fugir de casa, foi um pulo. Nessa altura, a saída de Millôr da revista – que logo após começou a entrar em decadência – não lhe fez falta, já que era brilhante não apenas no humor, além de inteligente era culto (inteligência e cultura

são coisas distintas) e começou também a fazer, na minha opinião, a função intelectual mais difícil: a de traduzir livros e peças clássicas, o que ele fez magistralmente, de Shakespeare a Brecht. Escreveu no “Jornal do Brasil” na época da grande virada de um jornal vetusto para um mais moderno e atraente, arrastando toda a imprensa brasileira. Logo depois, Millôr tentou criar uma revista usando o nome Pif-Paf, das antigas páginas de “O Cruzeiro”, mas a já crescente censura militar, imbecil e medrosa como toda censura que não suporta a inteligência, principalmente em forma de deboche, “cassou” a publicação depois do terceiro número. Sempre acompanhei de longe meu guru, mas infelizmente nunca o conheci pessoalmente. Em 1969, época da criação de “O Pasquim”, eu já estava em Vitória, colaborei com algumas charges e duas vezes fui ao Rio para entregá-las, mas ele não estava na redação. Depois fui jurado num festival de música em Cachoeiro, onde a turma do jornal era convidada. Vieram Henfil (outro gênio) e Jaguar, ele não. Pelo que eu lembre, Millôr esteve em nosso Estado duas vezes, mas em nenhuma pude comparecer. Tenho grande admiração por sua genialidade, que influenciou gerações que escrevem e desenham humor, o humor que faz sorrir e principalmente pensar (“ser pobre não é crime, mas ajuda muito a chegar lá”). Uso muito seus ensinamentos no meu dia a dia (“viver a vida é como desenhar sem poder usar borracha”) e, agora, mais que nunca, entendo sua frase – “A velhice é fogo, mas faz muito frio”.


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