Caderno Pensar 1308

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O SOPRO QUE FEZ O CLARINETE CHORAR Livro narra a trajetória de Paulo Moura, um dos músicos mais importantes do país. Página 5

Entrelinhas

“SE UM DE NÓS DOIS MORRER” DESCREVE A ANGÚSTIA DE UM DOENTE DE LITERATURA. PÁGINA 3

Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

www.agazeta.com.br

Livro

GILBERT CHAUDANNE DESVENDA A POESIA DE FERNANDO ACHIAMÉ. PÁGINA 4

Ensaio

COMO A MODA DOS ANOS 90 DISSECOU O LADO OBSCURO DA SOCIEDADE. PÁGINAS 10 E 11

Memória

A OUSADIA SATÍRICA DO ESCRITOR MENDES FRADIQUE. PÁGINA 12

Aqui se faz cinema UMA GERAÇÃO QUE CONTINUA COM MUITAS IDEIAS NA CABEÇA. Páginas 6 e 7


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

quem pensa

Nelson Martinelli Filho é mestrando em Letras pela Ufes e autor do romance “A dupla cena”. nelsonmfilho@gmail.com

Gilbert Chaudanne é escritor e pintor. Publicou os livros “A moça na janela” e “A busca do Santo Graal”, entre outros. Rogério Coimbra é produtor cultural, pesquisador musical e autor do blog www.musicanasalturas.blogspot.com

marque na agenda prateleira Teatro

Microcosmos Claudio Magris

No palco, a história de Chico Xavier

A peça “Cândido, Francisco”, com texto e direção de Cristina Mascarenhas, apresenta a trajetória do famoso médium mineiro, dias 20 e 21 de agosto, às 20h, no Teatro Municipal de Vila Velha.

Café Literário Sesc João Felício dos Santos em debate

O autor de “Benedita Torreão da Sangria Desatada”, baseado na Insurreição do Queimado, é o tema do encontro da próxima terça, às 19h, no Centro Majestic. Participam Luiz Guilherme Santos Neves e José Augusto Carvalho, com mediação de Vera Márcia de Toledo.

Luiz Eduardo Neves é jornalista, publicitário e diretor de conteúdo do site Panela Audiovisual. www.panela.tv

Jorge Elias Neto é médico e poeta. Tem dois livros publicados. Blog: www.jeliasneto.blogspot

Célia Ribeiro émestreemEstudosLiteráriospelaUfes,artista plásticaearte-educadora. celialice2@hotmail.com

296 páginas. Companhia das Letras. R$ 46

A Massagista Japonesa Moacyr Scliar

Esta reedição, em formato pocket, reúne 35 crônicas de Moacyr Scliar escritas na década de 80, em que o autor pratica a grande arte de escrever sobre as miudezas da vida.

Milena Paixão é cachoeirense, poeta e professora de Língua Inglesa e Portuguesa. mizunda@hotmail.com

Brunella França é jornalista, escritora, colunista, fic-writer, blogueira. http://twitter.com//brullf

Escrito nos anos finais do século XX, durante a Guerra da Bósnia, “Microcosmos” é a elegia meditativa que o autor italiano dedicou a seu próprio tempo, a partir de sua percepção sobre as paisagens de sua cidade natal, Trieste, como quadros desgarrados de sua memória afetiva.

128 páginas. L&PM Editores. R$ 13

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Visões da Liberdade Sidney Chalhoub

de agosto

Confraria de composi

tores Anselmo Groove, Átila Val entim, Edivan Freitas, Jon ias Feli, Juliano Rabujah, Jr. Bocca e Zé Moreira (foto) celebr am o prazer da criação music al no show Papo de Comp ositor, na próxima quarta, às 20h, no Teatro do Sesi, em Jar dim da Penha. Informações sob re ingresso: (27) 8187-92 72.

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Silvana Holzmeister é jornalista e mestre em Moda, Cultura e Arte pelo Senac (SP). silvana.holzmeister@gmail.com

de agosto

Festa literária

Ana Maria Machado fala sobre a influência de Ceciliano Abel de Almeida em sua vida e obra, às 19h, no II Encontro Literário de São Mateus.

Francisco Aurelio Ribeiro é professor e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras. faribe@gmail.com

Ao recuperar aspectos da experiência dos escravos na Corte, nas últimas décadas do século XIX, o historiador mostra que as lutas em torno de diferentes visões de liberdade e cativeiro contribuíram para o processo que culminou com o fim da escravidão no Rio de Janeiro. 360 páginas. Companhia das Letras. R$ 26

Música, Mente, Corpo e Alma Monique Aragão

A pianista e compositora se propõe a explicar a função do intérprete na música e a influência de suas emoções na obra de um compositor, além de mostrar as diferenças entre talento e técnica e a importância de ambos na vida do artista. 120 páginas. Ed. Rocco. R$ 22

REFLEXO DA SOCIEDADE

José Roberto Santos Neves

Caros leitores, desde o primeiro número, o Pensar publica artigos, ensaios e críticas sobre diversos campos do conhecimento e das artes, e a tendência é ampliar cada vez mais este espectro de ideias. Nesta edição, a moda enquanto instrumento de representação social aparece pela primeira vez em nossas páginas. A jornalista e pesquisadora Silvana Holzmeister, que atua há 18 anos na área, mostra como a moda dos anos 1990 flertou com as subculturas e os excluídos, trazendo à tona temas como as drogas, a morte e o lado obscuro da sociedade. Em outra seara – a do audiovisual

Pensar na web:

–, o jornalista Luiz Eduardo Neves registra o aumento da produção de curtas e vídeos no Estado na última década, por meio de uma geração que demonstra ter criatividade e ambição para alçar voos mais altos. Na área musical, Rogério Coimbra destaca a técnica e a sensibilidade de Paulo Moura, o clarinetista que respirava música 24 horas por dia e que morreu literalmente nos seus braços. E ainda temos críticas literárias, crônicas, poesias, artes plásticas e o resgate da obra do escritor Mendes Fradique, no artigo de Francisco Aurelio Ribeiro. Boa leitura, bom sábado, bom Pensar!

é editor do caderno Pensar, novo espaço para discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Confira vídeo de Paulo Moura, poesias de Fernando Achiamé, curtas e vídeos produzidos no Espírito Santo e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8323


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entrelinhas

Pensar

por NELSON MARTINELLI FILHO

QUANDO A LITERATURA VIRA UMA OBSESSÃO

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pós estrear na ficção com “Do amor ausente”, em 2000, Paulo Roberto Pires levou 11 anos para publicar o seu segundo romance, “Se um de nós dois morrer”. Esse hiato, porém, parece ser o ponto de partida para a construção desta obra, onde o fenômeno dos escritores que deixam de escrever e o paroxismo da presença da literatura na realidade, males esmiuçados por Enrique Vila-Matas, premiado autor espanhol, em “O mal de Montano” (2002) e “Bartleby e companhia” (2000), surgem como sustentáculos de todo o enredo. Contudo, tais distúrbios – nomeados “síndrome de Vila-Matas” – fazem com que o protagonista, Théo, se torne um escritor que rumina e regurgita suas leituras e, ao mesmo tempo, angustia-se diante da impossibilidade de voltar a escrever literariamente alguns anos depois de publicar o seu primeiro livro. A narrativa tem início na cerimônia de cremação do corpo de Théo, que, com uma quase macabra onisciência, faz chegar a sua ex-companheira Sofia uma série de cartas, delegando-lhe, entre outras coisas, a missão de entregar uma pasta, até então oculta, diretamente a Vila-Matas. Enquanto conhecemos paulatinamente o espólio, vão se revelando a nós, por meio de cartas, fichas, microensaios, diários etc., alguns traços e etapas de uma vida que se dissolve a partir de sintomas do mal de Montano e da síndrome de Bartleby. Assim, o diálogo com Vila-Matas se mostra tão íntimo que é recorrente notar as obsessões do próprio escritor espanhol na escrita de Pires: como se recusar a ver, por exemplo, no doutor Roberto W., que trata os males de Théo com o “método RW”, um eco de Robert Walser, autor constantemente citado nos dois romances de Vila-Matas, bem como a particularidade de engendrar características literárias, acadêmicas e diarísticas no corpo do texto? Essas formas distintas participam do esmerado jogo que embaralha informações reais e ficcionais, impossibilitando ao leitor firmar com segurança os pés sobre alguma conclusão sólida. Os dados empíricos retratam diversos fatos, eventos e personalidades (como a participação de Vila-Matas na Flip de 2005) e acabam desembocando na figura do autor do romance: desde fotografias até detalhes mais discretos, como referências a “Do

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

SE UM DE NÓS DOIS MORRER Paulo Roberto Pires. Romance. Alfaguara. 124 págs. R$ 29

TRECHO Era fevereiro e o Rio de Janeiro ardia como inferno de chanchada quando Sofia deixou o Caju com a urna acomodada no banco a seu lado no jipe. O que restava do homem que amou parecia, adequadamente aliás, um rescaldo de incêndio. Dias antes, os pouquíssimos amigos que, dentre os poucos amigos, estavam na cidade no meio do carnaval reuniram-se em torno do caixão fechado, resignados em cumprir o último compromisso com o morto, sempre cioso de planejamentos. Até o crematório, enfrentaram ruas interditadas por blocos, restos de alegorias queimando sob o sol no pico da manhã. Na Avenida Brasil, a indicação: Última Saída Caju Cemitério Em torno do prédio branco e asséptico que guarda o forno e duas salas de espera, nuvens de mosquitos zuniam sobre poças d’água, lembrando que, em menos de um mês, mais de vinte pessoas haviam morrido numa Paulo Roberto Pires descreve a angústia de um autor impossibilitado de escrever epidemia de dengue hemorrágica. Velório e cremação duraram pouco mais de quarenta minutos, insuficientes para que os presentes ouvissem a versão integral das Variações Goldberg, realização imperfeita de um dos chamados “últimos desejos” de um morto que não economizava amor ausente” e as iniciais da per- teral), essa presença post mortem não caprichos. sonagem PrP, que ricocheteiam no se assemelha à de eras pré-barthenome do autor, a presença de Paulo Roberto Pires é constante, apesar de velada. Essa sombra faz com que ele se integre à lista de autores que escrevem contemporaneamente nos moldes da autoficção. Se Théo deixa rastros de onisciência na sua espécie de “retorno do autor” (após a sua morte – mesmo que li-

sianas. Aqui, o sujeito, longe de ser o centro de sua obra, acaba atuando nas mais diversas esferas sociais e midiáticas devido ao crescente interesse pelo particular e pela biografia do escritor. Dessa maneira, “Se um de nós dois morrer” deixa-nos com a saudável curiosidade de saber até onde a vida se faz literária. E vice-versa.


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

livros por GILBERT CHAUDANNE

EM VERSOS, A CHAVE DE FENDA DO SER

NOVÍSSIMO Fernando Achiamé. Ed. Flor&Cultura. 230 páginas. Distribuição gratuita na Biblioteca Pública Estadual.

A poesia apresentada por Fernando Achiamé no livro “Novíssimo” pode surpreender o público pela objetividade e pela recusa do romantismo, como destaca crítico de arte

O

parentesco da poesia de Fernando Achiamé é bastante evidente: vizinho de Ezra Pound, de TS Eliot, Renato Pacheco e, de uma maneira mais atenuada, de Fernando Pessoa. E isto pode surpreender o público em geral, porque este tem uma noção da poesia fortemente marcada pelo romantismo – e através dele, pela filosofia platonicista. Ora, essa diz que este mundo tangível dos fenômenos é apenas a pele da realidade. O real profundo, o ser “está atrás” do mundo. Atitude espiritualista, essencialista e até mística. Mas há toda uma linha tanto na filosofia (fenomenologia de Husserl-Heidegger) como na poesia (Pound, Eliot, Auden, R. Pacheco) que bebe nessa visão do mundo sem interioridade, o que pode lembrar Fernando Pessoa e seu poema “Tabacaria” e também nessa coisa que é o que parece. E a poesia de F. Achiamé faz parte dessa escrita fenomenológica. Mas o que diz a fenomenologia? Ela diz que não há um mundo atrás do mundo. Ela diz que não é preciso furar a pele das aparências para alcançar a essência. Ela diz também que o eu subjetivo-romântico e seu lirismo de cegonhas lacrimejantes não alcança “as coisas como elas são” (E. Bishop). E das coisas, “sai” o ser, não do eu mesmo supostamente transcendental. Assim, temos um ambiente poético um pouco estranho para o leitor que muitas vezes, até inconscientemente, se segura no romantismo e seu espiritualismo. Isso, nesse lado fenomenológico dos poetas franceses do século XX: Francis Ponge e seu “parti pris des choses” (tomar o partido das coisas). As coisas falam mais sozinhas que com o espírito “atrás” delas ou dentro delas. Talvez a postura de Platão e Descartes e dos românticos carregue antigas preocupações animistas, quase totêmicas: “a alma das coisas”, enquanto que a atitude fenomenológica de F. Achiamé seria algo da ordem de um êxtase quase material (Le Clezio) ou pelo menos de um êxtase, paradoxalmente sem o aval de algumas transcendências. Uma recusa da divinização, dessa tentação. O poeta prefere ficar no meio das coisas e essas coisas não precisam ser rosas ou, ao contrário, latrinas. O poeta está entre as coisas como elas são. Daí, a poesia de F. Achiamé, que pode parecer

para alguns leitores como algo prosaico, seco, não muito poético, já que não há o voo lírico-romântico. A poesia de F. Achiamé seria uma poesia de chefe de estação de trem: objetiva, cuidando do destino dos trilhos, ocupado em reificar o espaço terrestre para não acontecer acidentes e que não pode se envolver demais com os passageiros (ou as passageiras). A lira de Orfeu pode ser uma chave de fenda E é isso que F. Achiamé diz: estou com a chave de fenda da poesia fenomenológica e com ela vou abrir as caixinhas dos seus segredos, caro leitor, segredinhos porque a gente quer que sejam segredinhos. Mas, no fundo, o segredo talvez é que não há segredo nenhum, e assim estamos diante de nossas vidas, despojados, nus, pobres e ricos ao mesmo tempo. A única complexidade da vida, às vezes, é de ser simples demais: nascer, amar, trabalhar, morrer. Trata-se aqui de uma poesia metafísica de um novo tipo. O ser é “embutido nas coisas”, como em Sartre, é uma ocorrência, um ocorrido e uma constatação, e não uma especulação sobre o “mistério das coisas”, porque o único mistério é que não há mistério nenhum (Fernando Pessoa). A poesia é como o trem, ela está do lado do trem e não das árvores, da natureza. A poesia é um caminho tecnológico – viver é uma técnica e o trem uma procuração poético-tecnológica. Mas essa poesia não é prosaica, porque a poesia pode estar num canivete ou numa chave de fenda. Há nessa poesia uma espécie de neutralidade suíça. O poeta não procura o Nome da Rosa, ele procura sua chave de fenda, para abrir a robusta mecânica do ser, ou sua lata de sardinhas.

Perfil

UM POEMA

FERNANDO ACHIAMÉ Nasceu em Colatina, em 1950. Historiador e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.

NA TERCEIRA VEZ

Livros: Publicou “Guia Preliminar do Arquivo Público Estadual” (1981), “Catálogo dos Bens Culturais Tombados no Estado do Espírito Santo” (1991, em coautoria), “A Obra Incerta” (2000), “O Espírito Santo na Era Vargas” (2010) e “Esquadro e Compasso em Vitória - Álbum da Loja Maçônica União e Progresso” (2010).

Na beira-mar de manhã nevoenta acariciei a saia dos seus pequenos lábios surdos. Com espanto, eles logo ouviram: – Para, não é por aí. Dentro de lenta tarde automóvel apertei a seda dos seus pequenos lábios cegos. Pasmos, eles logo enxergaram: – Por que essa tesão toda? Debaixo de um chuveiro noturno toquei firme os seus pequenos lábios mudos. Em espasmos, eles logo gritaram: – A duração do desejo é a mesma da vida!

Fernando Achiamé contempla sua obra: o poeta está entre as coisas como elas são ED SO N

CH

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falando de música

Pensar

por ROGÉRIO COIMBRA

PAULO MOURA, UM SOPRO DA ALMA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

PAULO MOURA - UM SOLO BRASILEIRO Halina Grynberg. Casa da Palavra. 240 páginas. Acompanha o CD inédito “Fruto Maduro”. R$ 55, em média.

MONALISA LINS/AE

Trajetória do clarinetista é contada em livro que reúne depoimentos cedidos por ele à sua mulher, a psicanalista Halina Grynberg

A

memória do músico Paulo Moura, falecido há um ano, é ativada através do lançamento do livro “Paulo Moura, Um Solo Brasileiro”, escrito pela psicanalista Halina Grynberg, casada com Moura por 26 anos e que também foi sua empresária e produtora musical. Trata-se de uma coleção de depoimentos cedidos à sua mulher, em forma de entrevistas. O seu conteúdo é rico e a narrativa revela os primeiros anos desse grande músico, seus primeiros passos profissionais, seu convívio familiar, sua evolução e seu conhecimento. Os depoimentos foram interrompidos infelizmente devido à doença que o vitimou em 12 de julho de 2010, aos 77 anos. O projeto gráfico é refinado, numa edição bilíngue presenteando o leitor com o CD inédito“ Fruto Maduro”, produzido pelo músico e parceiro André Sachs. É o resultado de gravações ao longo de cinco anos, consequência de um laboratório experimental que reunia semanalmente músicos como Cliff Korman, Daniela Spielmann, Zé Carlos Bigorna, Laudir de Oliveira, entre muitos, no estúdio de Sachs, no Rio de Janeiro. Há preciosidades harmônicas e meló-

dicas que bem demonstram o estágio musical em que se encontrava o clarinetista, inclusive com incursões à música eletrônica no estilo “fusion”.

Orquestras

Paulo Moura narra sua vida de forma envolvente, dede sua infância em São José do Rio Preto (SP), sua ida para o Rio de Janeiro, com a família, especificamente para o bairro Tijuca, onde criou amizade com João Donato, Bebeto Castilho e Pedro Paulo, suas participações em grandes orquestras das emissoras de rádio Nacional e Tupi, seu ingresso na Orquestra do Teatro Municipal, como primeiro clarinete, suas primeiras gravações, seus primeiros arranjos e sua entrada no mundo jazzístico com Sérgio Mendes, Edison Machado, Tenório Jr e Cannonnball Adderley. Também presentes em sua narrativa notáveis esclarecimentos sobre a técnica de execução de seu instrumento, desde o sopro ao dedilhado, análises musicais sobre harmonia, e interpretação. Ele não esconde seu entusiasmo pela música de John Coltrane, chegando mesmo a compará-lo ao compositor Wagner, e como ambos os músicos contribuíram para o desenvolvimento da harmonia.

Ele admite ter sido influenciado por Benny Goodman. A apurada técnica ao clarinete foi revelada em 1956 quando gravou um 78rpm com a música “Moto Perpétuo”, de Paganini, num lado, e, no outro, “O Voo do Besouro”, de Rimsky-Korsakov, disco esse que o tornou conhecido junto ao público e aos músicos. Aliás, em certo momento de sua carreira, Paulo Moura quase que suplicava para que não pedissem que ele, depois de anos, voltasse a executar o “Moto Perpétuo”, tornando-se seu grande estigma. Seu primeiro prêmio em concursos de solistas foi um par de sapatos. “Paulo Moura, Um Solo Brasileiro” é um livro especial, envolvente para músicos e para todos aqueles que amam a música, e também para os que se interessam pela história de um período da nossa sociedade. Infelizmente ele não conseguiu sobreviver para descrever para o leitor o DNA da música brasileira que ele tanto demonstrava em suas gravações a partir dos 1970, uma dedicação às raízes tão variadas que estruturam essa música respeitada em todo mundo. Dois dias antes de falecer, na Clínica São Vicente (RJ), amigos como Wagner Tiso e

Daniella Spielman gravaram o último solo de Paulo Moura. Debilitado, mas com grande esforço para sobreviver, com seus costumeiros vivos olhos, arregalados e azuis, Paulo Moura anuncia sua partida. Apesar de melancólico, é um importante registro do último momento desse grande músico (o endereço no YouTube é http://youtu.be/U6thzv0n6Xc). Quem acompanhou a carreira de Moura através de seus discos pode bem perceber momentos de ruptura, tais como quando se afastou do jazz para aproximar-se mais do choro e, depois, da música popular urbana, e então para a mais miscigenada. Discos como “Confusão Urbana...” (1976), “Mistura e Manda” (1983), “Dois Irmãos” (1992), “El Negro Del Blanco” (2004), são alguns títulos emblemáticos, sem esquecer-se do delicioso “O Som de Dorival Caymmi” (1991) ou mesmo o “Gershwin & Jobim” (2000). Afinal, são mais de 30 títulos. Sobre eles o maestro não teve tempo de comentar. Seu legado fonográfico está no CD “Fruto Maduro”, encaixado no livro, no qual há o indicador de como fluía sua música nos últimos anos. Lamentavelmente o solo brasileiro de Paulo Moura foi interrompido.


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

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audiovisual

Pensar

por LUIZ EDUARDO NEVES

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

Obras produzidas ao longo dos últimos 14 anos ajudaram a moldar a forma de se fazer cinema no Espírito Santo, mas dependência do governo e gargalo da distribuição são entraves para o setor

O CINEMA QUER O SEU LUGAR

A GERAÇÃO DOS ANOS 2000 JÁ FEZ HISTÓRIA NO ESTADO E LUTA PARA VOAR MAIS ALTO

“M

arluce, tadinha, sempre foi lerda. Demora a arrumar emprego, namorado, quase não teve amiga, sempre foi a última. É um estrupício. (...) Essa menina só sabia andar pelos cantos chorando e mordendo a boca. Até que veio Olímpio.” Assim é descrita a personagem criada para o curta-metragem “Macabéia” (2000), inspirado na obra “A Hora da estrela”, de Clarice Lispector. A ficção, roteirizada por Erly Vieira Jr., recebeu diversos prêmios no Brasil, inclusive o de Melhor Curta-metragem em 16mm no Festival de Gramado, considerado o Oscar brasileiro, mais os troféus de Melhor Roteiro e Melhor Atriz (Janine Corrêa). A estória de Marluce reflete o atual cenário do cinema capixaba por ser um marco da geração de realizadores de uma das décadas mais fervorosas do nosso cinema, responsáveis por obras como “Baseado em Estórias Reais” (2002), de Gustavo Moraes; “Céu de Anil” (2003), de Lizandro Nunes; “A Sabotagem da Moqueca Real” (2003),

DIVULGAÇÃO

“Macabéia”, de Erly Vieira Jr., recebeu o prêmio de melhor curta em Gramado

de Ricardo Sá; “Observador” (2005), de Alexandre Serafini; “Anjo Preto” (2007), de Gui Castor; e “Agrados para Cloê” (2009), de Jefinho Pinheiro. Essas obras, entre muitas outras, ajudaram a moldar a forma de fazer cinema no Estado. Com exceção de Ricardo Sá, que milita no audiovisual desde os anos 80, seus autores são frutos do final dos anos 90 e dos primeiros anos deste século, período no qual a maioria estava na casa dos 20

anos de idade. Jovens com sede de dirigir, produzir, montar ou exercer qualquer outro envolvimento com a sétima arte. Tendo como base o livro “81 anos de Cinema no Espírito Santo” e os DVDs catálogo da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas do Espírito Santo – ABD/ES, percebe-se que o foco dessa geração, em primeiro lugar, é a ficção, seguida do documentário.

A ficção das antigas terras de Vasco Coutinho está permeada de lirismo em narrativas que envolvem paixão, romantismo, poesia, terror, assaltos, reflexões sobre a vida urbana, folclore, natureza, paisagens, costumes, acidez, leveza, enfim, várias histórias que, juntas, remontam a um imaginário só, às criações das cabeças que pensam o audiovisual. A identidade do nosso cinema ainda vive a sua fase de construção muito impulsionada por incentivos culturais do governo às grandes e médias produções enquanto o acesso à tecnologia permite o nascimento de mais e mais videomakers, tanto que cerca de 80% das produções exibidas nas mostras da ABD/ES são independentes. O cinema local renasceu junto com o cinema Brasil. E cresce como tal. Um dos grandes nomes do cinema local contemporâneo é Ursula Dart, diretora de documentários e figura fácil em produções de ficção e publicidade no Estado. Sua primeira obra no gênero documental foi “Na Parede, Na Toalha, No Lençol” (1997). No ano passado, lançou seu mais recente trabalho, “Uma Volta na Lama”, cuja maior audiência provém da internet, refletindo o possível rumo para tornar mais acessível o made in ES via streaming.

DIVULGAÇÃO

Cinco produções em destaque Na Parede, Na Toalha, No Lençol (1997). Direção: Ursula Dart Documentário sobre o movimento cineclubista capixaba, suas lutas e história. Primeiros passos de Lizandro Nunes, Luciana Gama e Ursula Dart como realizadores.

Manada (2005). Direção: Luiza Lubiana A ficção filmada em 35mm leva o espectador a Itaúnas para acompanhar a busca de uma moça por tambores e o amor. A apresentadora do programa “Conexão Geral” Tati Wuo aparece à la “garota perdida”.

“Baseado em Estórias Reais”, de Gustavo Moraes, relata duas histórias paralelas ocorridas durante a ditadura militar DIVULGAÇÃO

Distribuição

É exatamente na distribuição que está o nosso “calcanhar de Aquiles”, pois, fora os festivais e mostras, encontrar as produções citadas ao longo deste texto é tarefa para pesquisador por fazerem parte de acervos particulares, geralmente, de seus próprios criadores. Em baixas tiragens, são lançadas mídias de compilações de mostras e de trabalhos individuais distribuídos pontualmente em eventos, sem locais apropriados para a sua venda – as lojas de departamento que abrigam esse tipo de produto se negam a abrir espaço para independentes, ainda mais locais. Mesmo na internet, os filmes encontram-se pulverizados em plataformas como YouTube e Vimeo – salvo a tentativa recente de criação de um “museu da imagem e do som” virtual, o Panela Audiovisual. No endereço www.panela.tv, desde o último mês de março, estão disponíveis para visualização cerca de 30 curta-metragens. O objetivo do sítio é alcançar 100 produções até o final do ano. Mesmo com o crescente aumento de produções no cenário, o grande público ainda desconhece o potencial do próprio cinema, tal qual a tia de Marluce. Entretanto, assim como a personagem de Erly, cabe apenas ao nosso audiovisual seguir o século XXI enfrentando os estrupícios de sua própria existência.

Graçanaã (2006). Direção: Luiz Tadeu Teixeira Descreve o suposto retorno do escritor Graça Aranha às montanhas do Espírito Santo, onde viveu em 1890. Bela fotografia com paisagens do Estado, além de ótima oportunidade para ver Luiz Tadeu Teixeira no comando. Discípulo Sem Cerimônia (2009). Direção: Bento Abreu Videoclipe do MC Adikto para a sua música homônima, sob direção de Bento Abreu. Clipe com cara de “gringo” filmado com poucos recursos e editado com primazia.

O documentário “Anjo Preto”, de Gui Castor, mostra a trajetória de Edson Papo Furado: mais de 60 anos de devoção ao samba

Maicoun Diequison (2009). Direção: Ramon Zagoto e Natanael de Souza Fala sobre a morte do astro pop Michael Jackson ao retratar a vida de um garoto de periferia. Produção realizada por integrantes do Centro de Referência da Juventude de Vitória – CRJ. Ganhador da V Mostra da ABD/ES na categoria Melhor Vídeo Capixaba.


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

artes plásticas por CÉLIA RIBEIRO

METÁFORAS VISUAIS

PALAVRAS COMPARTILHADAS. Exposição de Rosana Ricalde (foto). Escola da Ciência Física, Rua José de Anchieta, s/n, Parque Moscoso, Vitória. (27) 3233-3556. Horário: 3ª a 6ª-feira, das 8h às 12h, e das 14h às 18h (finais de semana e feriados, das 14h às 18h). Até 15/09. Entrada franca.

Na exposição “Palavras Compartilhadas”, em cartaz na Capital, Rosana Ricalde cria obras a partir de leituras que a instigam

“[...] quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”. Sobre a Multiplicidade In CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio. São Paulo: 2ª Ed. Companhia das Letras, 1998.

A

artista Rosana Ricalde, reconhecida nacional e internacionalmente – sua produção já se fez ver na Argentina, Croácia, Espanha, França, Holanda, Japão, México, Porto Rico, Portugal e São Tomé e Príncipe – produz visualidades que dialogam com textos da história da arte do século XX, com obras da li-

teratura nacional e europeia e com ditados populares. Sua matéria plástica é a palavra. Ao fundi-las com imagens, Rosana desfaz fronteiras criadas no Ocidente entre duas ordens de produção de conhecimento, a sensível, representada pela visão, e a lógica, a partir do texto. Ela cria seus objetos a partir de leituras que a instigam. E no resultado surgem questões relacionadas ao espaçamento entre o texto e a sua recepção, entre o dito e o lido. E nesse espaçamento as possibilidades de apropriação, recriação, combinação do acervo cultural que temos à nossa disposição. Lúdica, a exposição “Palavras Compartilhadas” apresenta 24 trabalhos produzidos entre 2002 e 2007, agrupados em sete séries: Globo, Contrapoemas, Autorretratos, Provérbios, O Tempo Muda Tudo, Mares e Manifestos. A primeira série está representada pelo objeto Marco Polo, um globo envolto pelas frases do livro “As Viagens de Marco Polo”. Os Contrapoemas incluem duas obras.

Cada uma contém um poema de Manuel Bandeira, “Versos escritos n’água” e “Desesperança”, transcritos com letras pretas em vinil adesivo aplicado sobre vidro transparente, tendo ao lado outro poema construído por Rosana com palavras antônimas. As versões da artista encontram-se em letras brancas e podem ser lidas apenas na sombra que projetam na parede. Nos autorretratos, Ricalde apresenta cinco quadros com poemas com este título de Mário Quintana, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Augusto Massi e Graciliano Ramos. Os poemas foram reproduzidos com fita rotuladora e montados em tamanhos que remetem ao padrão dos quadros de artistas que fizeram seus autorretratos. Cada autor é trabalhado em uma única cor, de maneira que de longe vemos as cores emolduradas, como em obras minimalistas dos anos 60 do século XX, e ao nos aproximarmos percebemos e podemos ler os textos. Neste jogo de autorretrato em que apresenta o outro através de rótulos (fita rotuladora), a artista nos instiga a dialogar com a obra. Em Provérbios, nos deparamos com uma tela pintada com letras de forma em diferentes cores. À disposição dos visitantes estão dois óculos, um com lentes

vermelhas e outro azuis. Eles funcionam como filtros. Ao usá-los, sobressaem as letras mais fortes da cor não filtrada e podemos então ler um provérbio. Em O Tempo Muda Tudo, Rosana traz para a galeria três vidros com areia colorida que encomendou a artesãs cearenses. Cada um, além da tradicional paisagem, contém um trecho do título. Completam esta série cinco fotografias onde os vidros aparecem dispostos diferentemente. Mares é composta por dois desenhos realizados com a escrita cursiva da artista sobre papel artesanal azul. Na série Manifestos, também conhecida como Exercício das possibilidades, Rosana Ricalde apresenta seis trabalhos gráficos realizados a partir de manifestos artísticos emblemáticos da produção visual brasileira (Manifesto Antropófago de 1928, Ruptura de 1952, Neoconcreto de 1959 e o texto O objeto, de Waldemar Cordeiro, de 1956). Vale a pena entrar na galeria onde se encontram os trabalhos de Ricalde, como quem entra em um espaço povoado de metáforas visuais, permitindo-se ler/ver as obras com a mesma liberdade e alegria com que a artista dialogou com as referências culturais que acessa e plasma. FÁBIO V

ICENTIN

Na mostra, a artista plástica produz trabalhos gráficos que dialogam com poesias, clássicos da literatura nacional e europeia e com ditados populares

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poesias BALADA DA CARNE

crônicas IMPERMEABILIDADE DOS PARQUES – A JULIO CORTÁZAR

JORGE ELIAS NETO

por MILENA PAIXÃO

Já que o dia é par: falemos de amor.

Verídico, ocorreu-me às três da tarde. Cruzava um parque no centro da cidade, com a ingênua intenção de percorrer a distância entre dois compromissos. Caminhava, objetiva, pelos caminhos abertos entre as árvores. Algumas poucas pessoas estavam por ali, ociando com seus jornais e cones de sorvete, enquanto um punhado de pombos arrulhava sobre suas migalhas, indiferentes à minha existência estranha naquele lugar. Quando dei por mim, havia estado parada já não sabia há quanto tempo. Olhei, assustada, para os próprios sapatos, um pouco empoeirados do curto percurso sobre a areia da trilha – ou pelos séculos que eu havia passado parada naquele exato ponto – e admiti o fato

Já que à frente sempre restará o horizonte: não me enterrarei além dos olhos. Já que é no vazio insalubre da cura que se percebe a alma evanescendo: tragam-me uma taça. Já que eu disse sim: limitem os convidados presentes à minha embriaguez. Já que a palavra é uma puta: rasguem o poema. Já que a rima é farta e o poeta um estorvo: que se recompense o primeiro idiota a me cortar a carne.

de que o parque havia se entranhado no âmago da minha segunda-feira. Busquei o banco mais próximo, com as pernas bambas e as palmas das mãos suadas pela descoberta. Coloquei a maleta de lado e fiquei esperando por algo. Algumas pessoas se voltaram para mim, percebendo minha tensão. Poderia jurar que me repreendiam com o olhar, por ter violado, com meus passos rápidos e com minha maleta abarrotada de trabalho, o acordo tácito de manter o domingo dentro dos parques. Peguei uma revista entre os papéis pra fingir um momento de descanso e as letras se embaçavam diante de meus olhos. À minha esquerda, a uma distância inalcançável, eu conseguia ver os carros que tran-

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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

sitavam normalmente pela segunda-feira que me havia sido roubada. Não escutava o ruído dos motores, uma buzina ou outra soava de maneira quase inaudível, sem conseguir traspassar a cúpula de silêncio que, classicamente, protege os parques. Silêncio é produto residual da fotossíntese, pairando ao redor de todas as árvores. Alguém sabia disso e inventou os parques, alguém que tinha um segredo terrível. Um domingo implacável se impunha sobre todos os meus sentidos e minhas pernas estáticas. Deixei-o que o fizesse, e me pus a observar um cachorro que dormia sob o banco à minha frente. Escutando meu olhar fixo, ele acordou e cobrou-me que o deixasse dormir, com um sobressalto de orelhas. Desviei os olhos e ele baixou a cabeça novamente. Aproveitei pra tirar os sapatos e fugir. Tive que fugir devagar, pé-ante-pé, pra passar invisível ante ao perigo. Quando cheguei à calçada, chovia. Alguém me pediu as horas, lhe respondi que não.

FRANGO COM METEOROLOGIA FAROFA Por BRUNELLA FRANÇA

No fim de semana estendo o pano xadrez no céu de pólvora; arregalo o olho para entrar o cisco; uso a cara de bobo e ignoro o vício; O pano xadrez – início; o cisco no olho – chuvisco; na cara de bobo – o riso.

A PRAZO Levem-me as horas para os caprichos mundanos! Já destaquei a etiqueta. Tomei posse do indivíduo. Será que não veem no meu antebraço o carimbo de “pago”?

BEIJO Quero comer a tua boca, para misturar nossas palavras. Quem sabe assim, com as frases embaralhadas, voltemos a criar caminhos.

Fui assaltada ontem. No meio da tarde, quando saía à procura de uma Coca-Cola, fui abordada por um vigoroso vento sul. Desses de levantar vestidos até a cabeça das vítimas. Meu caso. Já que o estrago estava feito mesmo, segui em busca do refresco. Refeita do susto, passei a estudar o céu procurando sinais daquela repentina mudança de tempo. Logo me lembrei de minha avó materna, dona Maria, no auge de seus 95 anos de lucidez. Foi com ela que aprendi a ler o tempo. São bem vivas as memórias das tardes em que, intrigada, via vó Maria encostada no portão, olhando o céu. E eu ia sempre chegando de mansinho, querendo desvendar o que ela tanto observava. – É... Vai chover – dizia ciente de minha presença. Permanecia ali, querendo ver se choveria mesmo. E lá vinham os pingos dágua me colocar para dentro de casa e

fazendo aumentar minha certeza de que minha avó era, na verdade, a “moça” do tempo. Vó Maria não passou da primeira série escolar. E não consegue pronunciar metereologia corretamente. Mas ela nunca errou na previsão. Mãe de doze filhos, é a maior responsável pelas grandes reuniões familiares. É como se não pudéssemos (nem quiséssemos) ficar muito tempo longe da barra de sua saia. E quando organizamos o tradicional churrasco, a vó fica sempre “de butuca”. – Bota a lona que aí vem chuva – avisa. Ninguém ousa duvidar. E bota a lona. De tantas vezes me apresentar como espiã de seus estudos pelas tardes – fizesse sol ou chuva – acabei por receber algumas aulas sobre o tempo. Aprendi, por exemplo, que o vento sul, meu assaltante, só traz chuva se com ele vier o “mururu”. Percebida a

mudança no vento, minha avó olhava para a direção do sul. Se aquele lado do céu apresentasse, mesmo ao longe, um aglomerado de grandes nuvens, dessas que parecem algodão, era o mururu. Chuva, portanto. – É... vem temporal por aí – informava-me apontando para nuvens num formato “rabo de galo”. E eu corria a preparar as velas. – Ih, vai dar é sol – sentenciava mostrando verdadeiras “plantações de repolho” no céu. E eu entristecia pela ausência de chuva. Nomenclaturas como cúmulos, nimbos e cirros nunca fizeram parte do vocabulário dela. Desnecessárias. E eu aprendi desde cedo que quando o mistério é grande demais, a gente não ousa desobedecer. Ou desconfiar. Resolvi aceitar o mistério de vó Maria. Mas sigo desconfiando daquele azul que ela tem nos olhos e que nubla junto com o céu.


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moda

A IMAGEM INTOXICADA PELO IMAGINÁRIO SOCIAL

O ESTRANHO NA MODA Silvana Holzmeister. Editora: Estação das Letras e Cores. 132 páginas. Quanto: R$ 54

Livro de jornalista mostra como a moda dos anos 90 dissecou até as últimas consequências o lado obscuro da sociedade, incorporando o submundo e os excluídos

ANDREA GIACOBBE/CUBE MAGAZINE

As siamesas clicadas pelo italiano Andrea Giacobbe em 1998 misturam criatividade, ficção científica e manipulação de imagem com foco no masculino-feminino

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nício dos anos 90. Nessa época, já havia sido repórter das editorias de Turismo e Cidades de A GAZETA, e estava há pouco tempo no Caderno Dois, quando fui designada para cobrir moda. Sempre adorei roupa; na infância passava horas brincando com paper dolls e na adolescência vivia redesenhando peças que via nas revistas de moda. Apesar do “background” não demorou para eu compreender que precisaria de muito mais discernimento para falar de desfiles, campanhas e coleções com o mesmo nível de informação que escrevia sobre outras áreas. Foi assim que comecei a devorar os poucos livros disponíveis em livrarias e muitas, muitas

revistas nacionais e importadas, e a me apaixonar por esse universo. É um mundo curioso, que se vale das borbulhas do champanhe para movimentar uma gigantesca estrutura econômica, que é muito mais complexo do que o ir e vir do comprimento da saia. A semana de moda de São Paulo – então Morumbi Fashion – capitaneada por Paulo Borges estava sendo criada. Moda era assunto quente e a interseção entre moda e arte começava a ser discutida no país. Ao longo da década, desfiles unindo música, performance e vídeo sustentados por temas polêmicos tomavam conta da passarela e de catálogos das marcas mais badaladas. Heroin-chic, sexo, ciborgues, deficien-

tes físicos, desastres... Era o oposto de toda aquela exuberância da década de 80. No lugar das supermodels Cindy Crawford, Linda Evangelista e Naomi Campbell, tínhamos um time de modelos mais magras do que Twiggy, capitaneadas por Kate Moss, a inglesinha raquítica alçada à fama pela fotógrafa Corinne Day. Walter Benjamin, sabiamente, já afirmava na década de 20 que a moda é feita de extremos. Essa nova realidade fashion era, ao mesmo tempo, repugnante e fascinante. A pergunta que estava no ar era: “Precisávamos ir tão ao fundo do poço para vender roupa?”. O tempo passou, avançamos pelos anos 2000. Gisele Bündchen, geração

saúde, tudo mudava novamente. Por causa das aulas que comecei a ministrar na UVV, entrei para a primeira turma do mestrado de Moda, Cultura e Arte recém-criado pelo Senac São Paulo. De pronto, já sabia o que estudar: a imagem de moda dos anos 90. Foi assim que nasceu “O Estranho na Moda”, lançado no final de 2010 pela Estação das Letras e Cores. O livro é um convite ao leitor a abrir uma janela, já que sua proposta é mostrar caminhos para a compreensão do porquê de a última década do século passado ter flertado com as subculturas, privilegiando o que até então a sociedade havia “escondido debaixo do tapete”. Tudo

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por SILVANA HOLZMEISTER MICHAEL BAUMGARTEN

PASCHOAL RODRIGUES

O início da carreira do estilista Alexandre Herchcovitch foi marcado por polêmicas estéticas, como na roupa feita de látex em tom de pele criada em 2000

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

CHRIS MOORE

Vestidos estruturados com partes que se movimentavam por controle remoto deram o tom futurista à coleção Before Minus Now, primavera-verão 2000 do estilista cipriota Hussein Chalayan

CINCO PERGUNTAS PARA A AUTORA - POR THAIZ SABBAGH

“O estranho passou a ser desejado” 1 – No show business, no qual a moda também se inclui, Lady Gaga, Zumbi Boy e o modelo andrógino Andrej Pejic são novas referências de estranheza ou são pontos isolados, ainda muito recentes para se enquadrar numa proposta? São expressões da modernidade. O Andrej Pejic é o rosto da nova androginia: não é crossdressing, mas a aparência que pode ser tanto de um homem quanto o de uma mulher, e a ausência de preconceitos quanto ao gênero e ao sexo. Zumbi Boy se enquadra um tanto aqui, mas ele vai além por causa das tatuagens. Lady Gaga encontrou no ato de chocar a fórmula para o sucesso – a moda é o principal instrumento para a composição dos seus personagens estranhos, já que ela permite criar personagens.

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isso respaldado por um pessimismo crescente à medida que se avançava em direção ao final do século e do milênio. A moda, reflexo que é dos humores da sociedade, captou a energia da década transformando-a em imagem e tendo como suporte o corpo para a criação não só da roupa, mas da imagem intoxicada pelo imaginário social. Hoje, ainda olho com curiosidade para a imagem atual de moda. Enxergo nela a herança dos anos 1990. Mas, afinal, a moda é feita de idas e vindas. E cada retorno vem revigorado pelo novo mantendo acesa a vontade de saber, novamente, o que há embaixo do tapete.

Bonecas e modelos estão lado a lado no ensaio Dolly Mixture, fotografado por Michael Baumgarten para a revista “The Observer”, em 2000. O resultado leva à reflexão sobre o papel feminino na sociedade

2 – A primeira década do século XXI foi marcada pelas revisitações de outras décadas. Diante do quase tudo dito e feito, hoje é mais difícil chocar ou surpreender na moda? Acho que são novas formas de olhar para o antigo. Os revivals não são caricaturais, porque a maneira de olhar o mundo hoje faz com que eles fiquem diferentes, a um passo à frente do que foram no passado. Como está sendo a nova androginia, por exemplo. 3 – Com a proximidade do mundo digital, o desconhecido da passarela passou a frequentar as telas do computador das nossas casas. O dito conceitual de passarela está mais assimilado pelo público comum? A crise econômica mundial de 2008 e a possibilidade de outra crise bem grande estão fazendo com que as marcas arrisquem menos. Então, as passarelas

estão bem mais comerciais. Mas como show é show, a fantasia mora ao lado. O resultado é uma ousadia comedida. 4 – No seu livro, você destaca a estética das drogas, dos ciborgues, das bonecas e até da morte como leituras de moda dos anos 90. Esses, porém, continuam sendo assuntos tabus. Pode-se dizer que a moda hoje está numa zona de conforto, saculejada apenas aqui e acolá por algumas mentes ditas perturbadas? Não diria mentes perturbadas (rs). Prefiro ver como mentes criativas, que buscam maneiras mais extremas de chamar a atenção. A moda aparece quando capta a atenção (vide o case Lady Gaga...). Os tempos são outros, mas continuamos reverberando a imagem de moda que surgiu nos anos 90. As revistas de vanguarda, como “Love”, “Visionaire” e “Purple”, são o nicho que melhor trabalha esses temas. No circuito comercial o momento é da mulher real, que conversa e inspira a leitora, o que também não significa uma imagem sem emoção. Tudo depende do olhar do fotógrafo combinado ao make e ao styling. 5 – No seu livro, você analisa que os padrões do belo e perfeito se relativizaram e passaram a chamar a atenção para a imperfeição como uma forma singular de manifestação da beleza. Hoje, porém, a obsessão pela perfeição está tão intensa que chega a ser assustadora. O belo é uma amálgama? Nos anos 90, o feio ganhou espaço em meio ao boom da cirurgia estética. Já havia o desejo pela perfeição (a humanidade sempre esteve em busca dela, né?). Por outro lado, o estranho passou a ser desejado justamente por ser o contraponto e, se observarmos, não deixou de existir. De lá para cá, já tivemos a ode às magras (que culminou na crise de anorexia em 2005), os dentes com falha de Lara Stone, o rosto masculino de Freja Beha Erichsen e, agora, a transexualidade de Lea T. Tudo isso faz parte da sede interminável da moda por novidade.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 13 DE AGOSTO DE 2011

memória por FRANCISCO AURELIO RIBEIRO

MENDES FRADIQUE, AUTOR SATÍRICO CAPIXABA Usando o humor para refletir sobre o país, o escritor Madeira de Freitas obteve projeção nacional durante o Modernismo; hoje, seu nome só é lembrado como rua na Praia do Canto

“No Brasil, em que pese aos nativistas, o traço humorístico é a essência do senso comum, o caráter específico da coletividade, contra o que não podem contrastar nem sobressair, as sutilezas do humorismo literário e artístico. [...] Mendes Fradique. Humorismo In: Contos do Vigário, 1922)

de humor “D. Quixote” e onde publicou, semanalmente, em capítulos, seu primeiro livro, a “História do Brasil pelo Método Confuso”, sucesso de público e de crítica, pois teve sete edições sucessivas, de 1920 a 1927. Emílio de Menezes, poeta satírico de renome, introduziu seu pupilo capixaba no grupo dos boêmios escritores e artistas cariocas, cujas estrelas-mores eram Olavo Bilac e Coelho Neto, foi seu padrinho de casamento e o levou, também, a São Paulo, em 1915, quando foi convidado por Oswald de Andrade para as comemorações do primeiro aniversário da revista de humor “O Pirralho”. Lá, enquanto Emílio proferia conferência, no Conservatório Dramático e Musical, onde Mário de Andrade lecionava Teoria Musical, Madeira de Freitas ilustrava-lhe as pilhérias. Foto da época registra o jovem e franzino Madeira de Freitas, ao lado do gordo e bigodudo Emílio de Menezes, no centro da foto, rodeado pelos artistas e intelectuais paulistas, dentre os quais Oswald de Andrade e Monteiro Lobato, em primeiro plano.

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ra 1922, ano do centenário da Independência do Brasil, e, em fevereiro, tinha ocorrido, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna, a primeira manifestação coletiva de arte moderna no país, reunindo representantes da música, da literatura e das artes plásticas, com uma agressividade raras vezes vista no imponente templo da burguesia paulistana. Apesar de o Rio de janeiro ser, na época, o centro da cultura, da política e das decisões econômicas nacionais, por ser a capital federal, São Paulo já se destacava como o centro financeiro e econômico do país, tornando-se um mercado propício para a arte acadêmica e de gosto burguês, onde artistas estrangeiros e nacionais, sobretudo os cariocas, vinham vender suas obras. O Modernismo nasceu em São Paulo, liderado por Oswald e Mário de Andrade, com o apoio econômico do latifundiário e comerciante de café Paulo Prado e político do governador Washington Luís, mas não teria tido o alcance nacional que teve sem o apoio do grupo de escritores e intelectuais cariocas. O primeiro a aderir à bandeira futurista, como era chamada o que, mais tarde, seria convencionado como Modernista, foi Graça Aranha, um dos nomes de peso da Academia Brasileira de Letras. Contactados pelos paulistas foram, também, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros, escritores e artistas preocupados com novas vanguardas estéticas como as que surgiram na Europa desde o “Manifesto Futurista”, em 1909. O médico capixaba José Madeira de Freitas (1893-1944), pseudônimo literário Mendes Fradique, pertencia ao grupo de Emílio de Meneses e Bastos Tigre, com quem colaborava na revista

Textos de Mendes Fradique “Eu sou um poeta pobre como Jó/ Em matéria de chiste e de arte fina,/ E, como a desgraça não vem só,/ Fizeram-me doutor em medicina./ Na estante os livros enchem-se de pó,/ E alheio a tudo quanto o mestre ensina,/ Sou da poesia um tímido coió,/ Mais irrisório que um coió de esquina./Maldita seja a musa que me inspira./Cheio de amor e cheio de piedade,/Bendito seja o ouvido que me atura./Enforquem-me na corda de uma lira./Sou o contrabando de uma faculdade/E o pinta-monos da caricatura.” Madeira de Freitas - Espírito Santo (Soneto do livro “Hipocratéa”)

“Língua é um músculo chato, muito móvel, com uma ponta presa e outra solta. E aí é que está precisamente o grande mal da humanidade; se a língua tivesse as duas pontas presas, quantos males se não evitariam, no gênero humano? Mas é tão radicado no homem o ter a língua com uma das pontas soltas, que, quando a natureza opera o prodígio de fazer nascer alguém com a língua presa, logo corre o pai da criança ao médico mais próximo, a fim de que este corte o freio à língua do inocente. Donde se tira e conclui que a língua, para não ser o flagelo que é, devera ter sempre as duas pontas presas ou as duas pontas soltas”. (“Gramática pelo Método Confuso”)

Contos e crônicas

Em 1922, o ano da polêmica Semana de Arte Moderna, Mendes Fradique lançou seu terceiro livro, “Contos do Vigário”, após o lançamento de “Hypocratéa”, sonetos-caricatura, em 1917, e estando já a “História do Brasil pelo Método Confuso” na 4ª. ed., conforme a página de créditos dos “Contos do Vigário”. Esses, na verdade, não são todos contos, mas alguns intercalados com crônicas, num total de 15 textos, excluindo o prefácio “À Vítima”. A partir dele, Mendes Fradique também publicou: “Feira Livre - Antologia Nacional pelo Método Confuso”, em 1923; “A Lógica do Absurdo”, contos e crônicas, em 1926; “Dr. Voronoff”, romance, 1926; “Gramática Portuguesa pelo Método Confuso”, 1927, e “Ideias em Zig-Zag”, contos e crônicas, em 1928, quando se encerrou sua carreira bem-sucedida de escritor satírico e humorístico e iniciou sua carreira política como líder integralista, o que, de certa forma, o aniquilou como escritor. Somente Rubem Braga, posteriormente, teria o reconhecimento nacional tido por um escritor capixaba como Madeira de Freitas, nome hoje só lembrado como rua na Praia do Canto.


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