Pensar_14_07_2012

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VITOR JUBINI

O TEMPO SEGUNDO A POESIA E A ARTE

Entrelinhas

ENSAÍSTA ALEMÃO DESCREVE O HUMOR PELO OLHAR DOS GRANDES PENSADORES.

Especialista analisa a mostra “Água Viva”, de Shirley Paes Leme, inspirada no livro de Clarice Lispector Páginas 10 e 11

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Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012

www.agazeta.com.br

REPRODUÇÃO

Letras

POEMA DE CECÍLIA MEIRELES REVELA AS INCERTEZAS DA VIDA. Página 4

Música

PESQUISADOR DESTACA VITALIDADE DOS ROLLING STONES, NOS 50 ANOS DA BANDA.

Página 5

Ilustração do livro “Géographie Universelle”, de Malte-Brun, um dos volumes do século XIX que integram acervo da Biblioteca Pública Estadual

Imprensa

O PAPEL DO VENDEDOR DE JORNAIS NA HISTÓRIA DA COMUNICAÇÃO. Página 8

Leituras provinciais ESCRITOR COMENTA OBRAS RARAS LIDAS PELOS CAPIXABAS ENTRE 1855 E 1889

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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012

quem pensa Williams Roosevelt Monjardim é servidor público e professor de Filosofia. wrmonjardim@gmail.com

Ricardo Salvalaio é professor e escritor. Publicou dois livros e escreve no blog www.outros300.blogspot.com Camilo Ceolin é administrador, professor universitário e pesquisador de blues, jazz e rock. camiloceolin@yahoo.com.br

Reinaldo Santos Neves é escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo. reinaldosantosneves@gmail.com

marque na agenda prateleira Encontro literário Ester Abreu participa do “Debate-papo”

A presidente da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras é a convidada deste mês do Projeto Debate-papo com o Escritor, com mediação de Renata Bomfim e Ana Quirino. No dia 18 de julho, às 19h, na Biblioteca Pública do Espírito Santo.

Artes plásticas Hilal abre exposição em São João del-Rey

A mostra “Sherazade”, de Hilal Sami Hilal, será aberta hoje e fica em cartaz até 12 de agosto, no Centro Cultural da Universidade Federal de São João del-Rey (MG). A curadoria é de Ricardo Coelho, que define a exposição como “uma delicada representação da vida que se mantém por um fio de encantamento”.

Jô Drumond é tradutora e escritora membro da AEL e do IHGES. jonund2@yahoo.com.br

Cauê Alves é mestre e doutor em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Aline Dias é jornalista e escritora. Publicou o livro “Vermelho”. alineocdias@yahoo.com.br Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam.

248 páginas. Claro Enigma. R$ 34

Outros Contos do Balé Inês Bogéa

88 páginas. Cosac Naify. R$ 49,90

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Cenas de Nova York e Outras Viagens Jack Kerouac

de julho

Orquestra da Polôni

Horacio Xavier é membro da Academia de Letras Humberto de Campos. http://horacioxavier2.blogspot.com

A autora pretende apresentar didaticamente a vida e a obra do maior poeta da língua portuguesa, com dados biográficos sobre o autor, o contexto da época em que Pessoa viveu e capítulos dedicados a seus heterônimos, entre eles Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

A bailarina e diretora de dança conta a história de cinco peças indispensáveis para qualquer companhia clássica: “A Sílfide”, “O Corsário”, “La Bayàdere”, “O Quebra-Nozes” e “O Pássaro de Fogo”. Acompanha fotos de espetáculos e companhias pelo mundo.

Gabriel Labanca é professor de Comunicação Social e doutorando em História. gabriellabanca@yahoo.com.br Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

Para Compreender Fernando Pessoa Amélia Pinto Pais

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em Vitória A Orquestra de Câmara polonesa Capella Bydg ostiensis se apresenta no Theatro Ca rlos Gomes, na próxim a sexta-feira, às 20h, dentr o da série Concertos Internacionais. Regência do maestro José Maria Florêncio. Mais informações: ww w.concertosinternacion ais.com.br.

de agosto

Pós-graduação em Artes abre inscrições

Estão abertas até 1º de agosto as inscrições para o processo seletivo de aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Artes da Ufes (PPGA). A ficha de inscrição está disponível no site www.artes.ufes.br.

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Os Desvalidos Francisco J. C. Dantas

Neste romance publicado originalmente em 1993, o autor sergipano retoma a tradição consagrada por Guimarães Rosa, ao mesmo tempo em que atualiza a cultura popular nordestina. 256 páginas. Alfaguara. R$ 39,90

coletivo.peixaria@gmail.com

José Roberto Santos Neves

BIBLIOTECA VIVA A biblioteca é muito mais do que um depósito de livros, já afirmaram acadêmicos e educadores. Trata-se de um espaço cultural vivo, de convivência social, onde se compartilham afinidades sobre literatura, cinema, música, artes plásticas e filosofia, entre outros ramos do conhecimento. É também o local onde se pode aprender sobre nossa história e identidade, e descobrir preciosidades até então inacessíveis ao público, como as obras raras comentadas por Reinaldo Santos Neves nesta edição. Escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo (BPES), Reinaldo pes-

A narrativa alucinante do escritor que personificou a alma beat está presente nesta edição da Coleção 64 Páginas, que destaca duas crônicas de viagens, a crônica “O vagabundo americano em extinção”, um poema e uma apresentação de Kerouac por ele mesmo.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

quisou o acervo da instituição com livros incorporados entre 1855 e 1889, durante o período da Província do Espírito Santo, e relaciona algumas curiosidades sobre o material disponível e consumido pelos leitores capixabas no século XIX. Uma delas diz respeito à expressiva quantidade de livros em francês, a maioria dentre os 275 volumes remanescentes, incluindo uma tradução em verso de “Os Lusíadas” (1876). Esse material estará disponível aos leitores assim que o projeto da Biblioteca Digital entrar em funcionamento no futuro portal da BPES. Bom sábado, boa leitura, bom Pensar!

Pensar na web

Galeria de fotos de livros raros do acervo da Biblioteca Pública Estadual, vídeos dos Rolling Stones, poemas de Cecília Meireles e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por WILLIAMS ROOSEVELT MONJARDIM

PENSO, LOGO RIO: UMA FILOSOFIA DO HUMOR

DO QUE RIEM AS PESSOAS INTELIGENTES? Manfred Geier. Record. 302 páginas. Quanto: R$ 42,90

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DIVULGAÇÃO

Para o pensador alemão Manfred Geier, o riso tem uma perspectiva libertária

preconceito ou faz rir da miséria. Uma reação comum das pessoas diante da tragédia é se reduzir em dizer: “Só pode ser piada”, ou “é brincadeira...”. Por que associamos a miséria ao engraçado? Que consequências têm isso em nosso agir político? Para nós, a tragédia social costuma ser uma piada da qual rimos e continuamos a conviver com ela. Programas de humor transformam a tragédia em riso: o espectador ri, tende a um sentimento de superioridade e, logo em seguida, a um esvaziamento do poder de revolta. Isso nos põe diante de um impasse: se a realidade vem sob a forma de tragédia, constatamos a baixa capacidade de articulação das pessoas; se sob a forma de comédia, no riso apaziguamos tensões políticas e sociais. Que povo é esse que não reage nem pelo choro nem pelo riso?

mo chamam os cristãos. Sem medo dos deuses, Demócrito ria abertamente dos mitos e das pretensões humanas. O cristianismo satanizou o humor e valorizou o sofrimento. “Os fundadores da Igreja eram inimigos do riso para quem todos seus amigos só podem ser tolos ou até mesmo pecadores. Afinal, já a Sagrada Escritura dizia ‘ai de vós, os que agora rides, porque vos lamentareis e chorareis’.” (Lc 6:25). Jesus também nunca foi mostrado rindo, apenas sério ou chorando. Apesar de tudo, Demócrito sobreviveu. Cícero e Horácio se inspiraram em sua alegria; Erasmo fez-lhe homenagens explícitas; Rabelais, bebendo em sua fonte, considera o riso o “bem máximo do homem”.

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Ao longo de sua investigação, Geier ainda encontra-se com Diógenes, Montaigne, Descartes, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Bergson e outros. Mas, afinal, por que falar do riso? Para Geier, porque o riso tem uma perspectiva libertária, um é locus privilegiado onde o pensamento se liberta ao expor o ridículo das ideias oficiais. Ao elogiar a escrava trácia, diz que “em seu riso se descobre uma inteligência com a qual os sisudos filósofos jamais sonharam. É o riso libertador de uma mulher que, num instante fugaz, desmascara a mentira em que se baseia toda a filosofia europeia: que o amor à sabedoria necessariamente significa precisar se distanciar do mundo vivido”. Para mim, embora crítico, o humor se torna perverso quando caminha com o

Parceria

om as mortes de Millôr Fernandes e Chico Anysio ainda recentes, estamos diante de uma boa ocasião para pensar o humor. E Manfred Geier nos convida a isso em “Do que riem as pessoas inteligentes? Uma pequena filosofia do humor” (Record, 2011). Já no prólogo, uma provocação. “A filosofia existe quando se ri”. A partir daí, procura “pessoas inteligentes que não aceitaram que lhes proíba o riso”. E as encontra. A primeira delas foi uma escrava trácia que riu ao ver Tales cair num buraco enquanto investigava o céu. Sem achar o riso engraçado, Sócrates e Platão o condenaram. Para eles, “o rigor do pensamento e a profundidade intelectual do conhecimento cognitivo não suportam nenhum distanciamento causado pelo riso, nenhum divertimento brincalhão, nenhuma atitude efêmera”. E é curioso pensar que o método socrático se iniciava pela ironia. Sua filosofia fez Atenas rir dos “sábios”, quando os desmascarava em público. Platão não viu graça ao ver Sócrates ser morto por estes pseudossábios. Em sua República, idealizada mais tarde, o comediante foi completamente expulso. Aristóteles, por sua vez, entendeu que o riso fazia parte da natureza humana. Mas que se ria com moderação, pois se a capacidade de brincar pode ser uma “virtude relacionada à interação social, [...] quem persegue o ridículo a qualquer preço, fazendo continuamente anedotas que ninguém quer ouvir, é um mero ninguém, incapaz de manter uma conversa sociável”. Se devidamente tratada, a comédia possui uma espécie de potência negativa que, ao ressaltar comportamentos socialmente indesejáveis, pode melhor condená-los e assim constituir uma pedagogia moral. Também houve quem risse sem receios. Demócrito foi um deles e por isso foi perseguido ao longo da história. A razão de seu riso estava em sua doutrina que atribuía aos átomos e ao vazio a origem de toda realidade. Os átomos se agregam e desagregam fazendo surgir tudo o que conhecemos. Os corpos se decompõem e se recombinam em novas formas, numa perene mutação do mesmo. Nenhuma vida após a morte, nem deuses ou demônios a temer, apenas o eterno ciclo da natureza. Se tal filosofia prosperasse, toda construção metafísica ruiria peça por peça e, ao final delas, cairia a maior de todas: a ideia do Bem, como a chamava Platão, de Sumo Bem, como chamava Aristóteles, de Deus, co-

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012


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Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012

estudos literários por RICARDO SALVALAIO

OS PARADOXOS DA VIDA NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES À luz da filosofia, escritor analisa o poema “Motivo”, no qual o eu lírico criado pela autora oscila entre ideias contrárias e elege as incertezas como razão da existência

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m “Motivo”, o primeiro poema da obra-prima “Viagem” (1939), Cecília Meireles trabalha com a questão da metalinguagem, ou seja, o fazer poético. No entanto, o foco aqui é a análise do poema, à luz de Kierkegaard (1813-1855). “Ocorre que se o paradoxo é o lugar onde uma verdade se revela a nós, nossa situação não deixa de ser paradoxal. Não cessamos de aspirar a uma plenitude enquanto vagamos no meio de uma incerteza infinita, é com esta própria incerteza que nos devemos contentar como verdade”, revela o filósofo. Vejamos o poema “Motivo”, que é repleto de paradoxos:

O canto mudo

Motivo (Cecília Meireles) Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou edifico, se permaneço ou me desfaço, - não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada. E sei que um dia estarei mudo: - mais nada... No poema, o paradoxo está presente em vários versos: “Não sou alegre nem sou triste”; “Não sinto gozo nem tormento”. Entretanto, apesar dos paradoxos, o eu lírico realiza ações (vive) mesmo com todas as contradições da vida. É uma ironia da vida, em meio a tantas incertezas, o Homem querer sistematizar a vida. Desse modo, a realidade deixa de ser “realidade” e passa a ser “possibilidade”. A vida individual é irredutível a conceitos, pois todo sistema é insuficiente. Kierkegaard chega à conclusão que captar a realidade a partir da lógica é resolvê-la em mera possibilidade. Todos os paradoxos do poema indicam que o eu poético oscila entre

fato de que existe, que não se fecha na especulação abstrata. A existência é o momento de decisão e da paixão. No poema, vê-se que o eu lírico vive seus problemas existenciais, porém segue em frente, e no fim revela: “E um dia sei que estarei mudo: - mais nada”. Este verso, que é uma das certezas do indivíduo, parece remeter à morte, também uma certeza, pois, para Kierkegaard, não há reencarnação, só existimos uma vez. E a existência é movimento. Pensar e existir estão juntos na existência.

A poeta (1901-1964) trabalhou as angústias do ser humano e a consciência da morte

ideias contrárias: triste/ alegre, gozo/tormento, desmorono/edifico. Assim sendo, o indivíduo vive (sente) as duas ideias, pois não há como ser o mesmo sempre. Ser indivíduo é eleger-se e apaixonar-se por si pró-

prio. Aqui, “os motivos” da existência são a inconstância e a incerteza. De acordo com as ideias de Kierkegaard, o existente é o Homem vivente, que dirige sua atenção sobre o

Nas estrofes há uma quebra de ritmo, seria uma tensão rítmica, pois as estrofes são constituídas de quatro versos, sendo três octossílabos e o último trissílabo. O ritmo do poema está ligado ao ritmo da vida, que é cheia de “quebras”. Geralmente, as certezas do eu poético estão acompanhadas do verbo “ser”: “Sou poeta”, “sei que canto”, “sei que estarei mudo”. A subjetividade é única nesse caso e a manifestação do eu lírico na cultura se dá aí, haja vista que um “ser existente” é um pensador subjetivo. “O indivíduo é a categoria através da qual devem passar o tempo, a história, a humanidade. A compreensão deve acontecer na existência e não fora dela. O Homem é uma união de contrários – de autoconsciência e de um corpo físico”, aponta Kierkegaard. Está aí, porém, o foco do terror, ou angústia do Homem. O ser humano é este paradoxo, tem consciência de sua individualidade, do terror do mundo e de sua morte. Em “Motivo”, apesar de cantar ao lado das individualidades e das contradições, o indivíduo tem a consciência de que um dia não poderá mais cantar, estará mudo (morto). A morte é, portanto, a maior e mais peculiar angústia do Homem. O ser humano está limitado pelo mundo e pelo seu espírito, então, experimenta angústia porque é esta síntese entre espiritual e corporal. O eu lírico parece saber de sua morte e parece não se importar, este é o estilo usado por ele para funcionar no mundo automaticamente. Assim, seu “motivo” de viver é a eterna busca do que ele não conhece.


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falando de música

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por CAMILO CEOLIN

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ERA UM GAROTO QUE COMO EU AMAVA MAIS OS ROLLING STONES

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inquenta anos depois de sua primeira apresentação ao vivo, os Rolling Stones confirmam o que o tempo lhes prometeu: ser a maior banda de rock’n’roll do mundo. No início da carreira, os Rolling Stones já cantavam o sucesso “Time is on my side” (o tempo está ao meu lado). Profético. Cinquenta anos depois de sua primeira apresentação oficial, no clube inglês Marquee, no dia 12 de julho de 1962, a banda liderada por Mick Jagger e Keith Richards sobreviveu ao teste do tempo e seus desafios. Se para alguns filósofos franceses “o tempo destrói tudo”, para esses ingleses o tempo correu a favor, construiu e aumentou a sua fama e fortuna, colocando-os definitivamente no posto de “a maior banda de rock’n’roll do mundo”. Essa história merece um tributo. Considero que um bebê manifesta o seu verdadeiro nascimento quando chora. Chorar, bradar ao mundo “eu estou aqui”, através de um grito primal, gutural e ensurdecedor, atesta com maior veemência o início da vida. Por isso, particularmente eu considero o dia 12 de julho de 1962 como a “data de nascimento” dos Rolling Stones. Estava tudo ali: um blues elétrico, bem alto, com Jagger arrebentando suas cordas vocais para se igualar ao volume das guitarras ensurdecedoras de Keith Richards e Brian Jones. Barulho é vida. Silêncio é morte. It’s rock’n’roll, baby! Eles são a epítome do rock’n’roll. O repertório dos Stones está no patamar dos songbooks dos maiores compositores da história da música mundial. “(I can’t get no) Satisfaction” é até hoje um hino da rebeldia juvenil, sempre lembrada como um dos cinco maiores clássicos do rock. O riff de guitarra de Richards é magistral. Aliás, já li em algum lugar que, se os Beatles possuem as melhores músicas do mundo, ninguém possui as melhores introduções de músicas como os Stones. Concordo plenamente. Não é à toa que Richards é o “Mestre dos Riffs”. Seu som é o amálgama de blues, country, gospel e soul – ou seja, rock’n’roll.

“Gimme Shelter”

A introdução de “Gimme Shelter” é sublime para que, logo depois, se derrame num cenário de catástrofe e horror. Como não se sentir elevado diante de uma canção tão bela e com uma mensagem tão linda como “You Can’t

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Os Rolling Stones, que completaram 50 anos nesta semana, em foto dos anos 60: o tempo está ao lado deles

Always get What you Want”? Como não sentir a ebulição dos hormônios ouvindo músicas sacanas como “Honky Tonk Women” ou “Tumbling Dice”? Como não desejar ir pras ruas e fazer uma revolução no braço ao ouvir “Street Fighting Man”? Dá pra ficar indiferente à genialidade de “Paint it Black” ou ao lirismo poético de “Ruby Tuesday”? Dá pra ficar sem dançar ao som de “Start me Up”? Sempre acreditei que tocar “Jumping Jack Flash” no volume máximo faria as caixas de som estourarem. E as baladas? Ah, as baladas... A metáfora do casal de amantes como cavalos selvagens faz de “Wild Horses” digna de se dedicar só àqueles amores extremamente especiais. “Angie” é delicada e bela. “As Tears Goes by”, melancólica e lírica. Confesso que hoje sinto calafrios ao ouvir “Gimme Shelter”. Pare pra pensar se a letra da canção não é um retrato do clima de violência que acomete a so-

ciedade contemporânea, incluindo, claro, nós capixabas: “Guerra, crianças, está a apenas um tiro de distância/Estupro, assassinato, está a apenas um tiro de distância”. “Gimme Shelter” é o hino de um apocalipse que se descortina debaixo dos nossos narizes. Aterrorizante. Paradoxalmente, não há nada de aterrorizante em “Sympathy for the Devil”, que é uma metáfora sobre a ganância e o poder, mas que se aproveitou do polêmico título e da sua letra para aumentar a fama dos Stones. Pra quem não sabe, Mick Jagger é economista e entende muito de negócios. “It’s Only Rock and Roll”, “Miss You”, “Can’t you hear me knocking”, “I’m Free”, “Let it Bleed”, “Dead Flowers”, “Happy”, “Mixed Emotions” ou “Saint of Me”... São dezenas de canções insuperáveis. São canções de uma vida. Cinquenta anos de vida.

Testosterona

Essas canções tocadas ao vivo revelam um ingrediente indispensável e abundante na música dos Rolling Stones: a testosterona. Sem testosterona a sua música e longevidade não seriam possíveis. Parece que quando entra no palco a banda quer justificar a sua fama de “maior banda de rock do mundo” a fórceps, esbanjando macheza e virilidade. Daí que suas apresentações ao vivo davam a sensação aos fãs de que Jagger deixava as suas vísceras em algum canto do palco, tamanha a intensidade das suas interpretações. Desculpem-me, juro que não sou machista, mas devo concordar com os Stones: rock’n’roll é coisa pra macho! Cinquenta anos depois, eles continuam ativos, firmes, fortes, divertidos e importantes. São craques na arte de fazer rock’n’roll. Coisas de quem joga nas onze e chuta com as duas. O tempo está ao lado dos Rolling Stones.


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memória

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por REINALDO SANTOS NEVES

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Ao pesquisar obras consultadas por idioma na instituição, autor constatou que, em 1886, lia-se muito em francês, além de volumes escritos em inglês, latim, italiano e espanhol

O ACERVO HISTÓRICO DA PROVÍNCIA

REPRODUÇÃO

ESCRITOR RESIDENTE DA BIBLIOTECA PÚBLICA ESTADUAL DESTACA COLEÇÃO DE OBRAS RARAS DO SÉCULO XIX

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Biblioteca Pública do Espírito Santo está completando 157 anos. Quem promoveu sua criação foi o escritor Brás Rubim, capixaba de nascimento, que ofereceu ao governo provincial um conjunto de 400 volumes como núcleo inicial do acervo, cabendo ao governo, em contrapartida, criar, instalar e manter a instituição. Maiores detalhes em dois artigos publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico (ns. 59 e 64): “Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo: memória administrativa, 1855-2005”, de Rogério Coimbra, e “O intelectual Braz da Costa Rubim e a fundação da Biblioteca Pública Estadual em 1855”, de Getúlio Pereira Neves. Os relatórios dos presidentes provinciais (consultados na página do Arquivo Público) dão conta das imensas dificuldades de funcionamento nos primeiros 25 anos. Diz Leão Veloso em 1859: “Não passa a biblioteca pública de, talvez, novecentos volumes, inclusive muitas brochuras, atirados a esmo sobre uma mesa, e pelo chão, entregues à voracidade das traças, e ao estrago da poeira.” E faz apelo, como fariam muitos de seus sucessores, à Assembleia (apelo,

REPRODUÇÃO

Folha de rosto dos livros “Encyclopédie moderne” (1848), “Tractado da cultura da canna de assucar” (1868) e “Biographie universelle” (1841)

à mesma fonte, que ainda hoje convém e é preciso que se faça): “Se entendeis que a província deve ter uma livraria pública, cumpre que a doteis dos meios de que há mister o núcleo que já temos, para que se possa desenvolver. [...] consignando-se, anualmente, alguma quantia por pequena que seja, ir-se-á gradualmente fazendo novas aquisições e assim acrescentando-se a livraria.”

Mais dramático, o bibliotecário refere que se chegou “a comprar 30 tábuas de diversas qualidades para mandar fazer uma ou duas estantes, embora toscas, mas nem assim puderam ser feitas por falta de dinheiro para pagamento da mão de obra”. Só na década de 1880 as coisas começam a melhorar. O relatório de Eliseu de Souza Martins, de julho de 1880, já

Mas quais dentre essas obras poderíamos mencionar aqui como especialmente raras e curiosas? A mais antiga delas data de 1793-1807 e é uma tradução portuguesa em onze volumes (de que restam cinco) da História eclesiástica: “Os séculos cristãos, ou História do Cristianismo no seu estabelecimento e progressos”. E mais: “Variedades sobre os objetos relativos às artes, comércio e manufaturas, consideradas segundo os princípios da economia política” (1814); “Teoria do direito penal aplicada ao código penal português comparado com o código do Brasil, leis pátrias, códigos e leis criminais dos povos antigos e modernos” (1856), em quatro volumes; “Manual dos juízes de direito ou Coleção dos atos, atribuições e deveres destas autoridades”, do capixaba Pereira de Vasconcelos (1861); “Estudos práticos sobre a administração das províncias no Brasil” (1865); “Breve notícia sobre a coleção das madeiras do Brasil” (1867); “Catálogo suplementar dos livros do Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro” (1870); “Teses sobre colonização do Brasil: Projeto de solução às questões sociais que se prendem a este difícil problema” (1875); “Apontamentos sobre o abaneênga também chamado de guarani ou tupi ou língua geral dos brasis” (1876); e “O Rio de Janeiro: sua história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades” (1877).

“Os Lusíadas”

traz uma nota de otimismo. “A Biblioteca vai tendo grande desenvolvimento pela continuada oferta de livros; sua freqüência, que excede em muito as previsões ordinárias, demonstra que ela veio satisfazer uma grande necessidade do espírito público nesta capital.” Até a linguagem oficial muda: a Biblioteca torna-se “utilíssimo estabelecimento” e “civilizadora instituição”. Os relatórios passam a ser mais detalhados, incluindo informações do número de leitores e de obras consultadas, estas por área de conhecimento e até por idioma. Em 1882 o acervo conta 2.942 volumes. Para ter uma estimativa do total no fim do período monárquico adicionamos a esse número as aquisições por compra e doação (quando) discriminadas nos relatórios subsequentes, e chegamos à soma de 4.353 volumes. É um cálculo grosseiro, pois não leva em conta números ausentes dos relatórios, como perdas por dano e furto e volumes não devolvidos, coisas então, como hoje, corriqueiras. Nenhum dos relatórios contém lista ou catálogo dos 400 títulos doados por Brás Rubim nem das incorporações posteriores. Quem sabe uma busca nos arquivos do Estado não exumaria

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Ilustrações do livro “Géographie Universelle”, de Malte-Brun, 1865, obra rara do acervo da Biblioteca Pública Estadual

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documentos contendo essas informações preciosas para a história da nossa cultura no século XIX? No entanto, uma noção, embora parcial, da fisionomia desse acervo provém de pesquisa que fizemos, como escritor residente, no setor especial da BPES conhecido como Coleção Província, que reúne uns 8.000 títulos do período entre 1800 e 1950. Aí encontramos 275 so-

breviventes do acervo provincial, ou seja, incorporados entre 1855 e 1889. Foi fácil identificá-los: todos eles exibem o carimbo Biblioteca Pública – Província do Espírito Santo. É um acervo histórica e documentalmente precioso e, devido às encadernações mandadas fazer na época, em sua maioria em bom estado de conservação. Dá-nos uma boa amostragem

do material de leitura disponível e consumido pelos leitores provinciais. Exemplo: lia-se muito em francês, como se vê pela estatística de obras consultadas por idioma em 1886: 867 em português, 551 em francês, e outras em inglês, latim, italiano e espanhol. Não é pois de admirar que, dentre os 275 volumes hoje remanescentes, 137 sejam em francês, 112 em português, e 26 em outras línguas.

Em francês destacamos uma tradução em verso de “Os Lusíadas” (1876); e (traduzindo os títulos): “Quadro das revoluções da Europa”, de Koch, em três volumes (1823); “Dicionário racional dos termos de botânica”, de Le Coq (1831); “Dicionário de medicina, cirurgia, farmácia, ciências auxiliares e arte veterinária”, de Nysten (1840); “Biografia universal: Dicionário histórico contendo a necrologia dos homens célebres de todos os países, artigos consagrados à história geral dos povos, às batalhas memoráveis, aos grandes acontecimentos políticos, às diversas seitas religiosas etc. etc. desde o começo do mundo até os nossos dias” (1841), da qual restam três de seis volumes; quinze volumes da “Enciclopédia moderna: Dicionário abreviado das ciências, letras, artes, indústria, agricultura e comércio” (1846-60); e vários números da década de 1840 do “Journal des Economistes”, revista mensal de questões agrícolas, industriais e comerciais. Todo esse relicário de 275 volumes, e muito mais, pretende a atual gestão, comandada pela diretora Nádia Alcure Campos da Costa, reproduzir na Biblioteca Digital que integrará o futuro portal da BPES. São antigos tesouros de conhecimento que, graças aos novos mecanismos da tecnologia da informação, podem e devem ser recolocados ao alcance de leitores e pesquisadores no mundo inteiro.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2012

imprensa por GABRIEL LABANCA

O PAPEL DO GAZETEIRO NA CONSTRUÇÃO DA COMUNICAÇÃO Vendedor de jornais foi mais do que simples mediador entre jornalista e leitor, aponta acadêmico, que lembra estrutura montada por imigrantes italianos no início do século XX

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ão faz muito tempo, era comum ouvir a voz estridente de gazeteiros que anunciavam os jornais aos berros pelas ruas da cidade. Cada um com sua própria melodia, buscavam se destacar dos concorrentes através do único recurso publicitário que dispunham: a voz. Sem percebermos, acompanhamos a extinção dessa antiga profissão. Afinal, os gazeteiros teriam mais para nos dizer que apenas o nome e a manchete dos jornais? Há poucos anos, a maioria dos pesquisadores não perderia seu tempo no estudo de questões consideradas menores, como vendedores de jornal. Na construção de uma história da imprensa, parecia mais óbvio levar em conta jornalistas e editores, únicos personagens que aparentemente tinham condições de provocar alguma transformação relevante. Felizmente, esse cenário mudou muito nas últimas décadas e alguns antigos coadjuvantes têm roubado a cena nessa e em outras histórias. Na História da comunicação, o vendedor de jornais nunca foi apenas um simples mediador entre jornalista e leitor. Ele teve um papel muito maior como parte de uma estrutura organizada pelos imigrantes italianos no Rio de Janeiro do início do século XX. Em 1906, o célebre editor italiano Gaetano Segreto liderou 78 vendedores de jornais na fundação da Societá di Beneficenza e Mutuo Soccorso degli Ausiliari della Stampa. Associação mutualista, fundamental numa época sem previdência pública, seu objetivo principal era mais do que oferecer pensões aos inválidos. Ela organizava toda a circulação de periódicos do Rio de Janeiro. Desde finais do século XIX, italianos já dominavam a venda de jornais e revistas na cidade.

Sobrevivência

Sem capital ou capacitação, os imigrantes tiveram que se voltar para pequenos serviços urbanos: eram mascates, engraxates, garçons e vendedores ambulantes. Se não constam nos livros de história, em romances mais realistas do século XIX, como “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, os italianos são normalmente representados como mascates barulhentos e sem modos. A venda de

ARTE SOBRE FOTO DE AUGUSTO CÉSAR MALTA/MUSEU DA IMAGEM E DO SOM

Menino vendendo periódicos no Rio de Janeiro, em 1914: disputas por melhores pontos eram constantes e violentas

impressos, portanto, não era algum tipo de característica cultural, mas apenas uma das estratégias de sobrevivência daquele povo no novo país. Ainda sem as bancas que conhecemos hoje, as disputas pelos melhores pontos de venda eram constantes e violentas. A criação da Stampa foi uma resposta a esse cenário instável e à profissionalização dos jornais, generosamente financiados pelo novo sistema republicano. A virada para o século XX marca o início da estruturação de grandes empresas jornalísticas, bem diferentes da imprensa panfletária do século anterior. Dependentes da publicidade mais do que de convicções políticas, as folhas matutinas ou vespertinas precisavam alcançar o maior número de leitores para atrair anunciantes na mesma proporção. É nesse contexto que foi fun-

dada a Stampa. Com ações enérgicas, a organização aos poucos se afirmou, disciplinando a classe e harmonizando as divergências com a imprensa. Organizados, os italianos monopolizaram a distribuição de jornais e revistas da então capital política e cultural do Brasil por décadas. Nenhum periódico poderia sair às ruas se não fosse pelas mãos dos imigrantes. Essa estrutura fez a fortuna dos distribuidores, mais alto escalão da Societá. Chegavam a emprestar dinheiro aos jornais, como o “Mundo Esportivo”, de Mário Filho, bancado pelo distribuidor Vicenzo Perrotta. Cada distribuidor representava um jornal ou revista e determinava quantas edições cada jornaleiro receberia. Por esse trabalho, ganhavam uma boa porcentagem sobre a quantia distribuída. Sem passar pelos

italianos, portanto, um jornal não conseguiria circular pela cidade, talvez não pudesse sequer ser lançado. Com a pressão dos jornais e concorrentes, a Stampa foi perdendo a sua força em meados do século XX. As políticas nacionalizantes da Era Vargas também contribuíram para a diluição do grupo, principalmente com a Itália como inimiga durante a 2ª Guerra. A italianidade parecia ser o principal elemento agregador dos jornaleiros e, ao ser abandonada, abriu espaço para o domínio da atividade por outros grupos. Hoje o gazeteiro já não berra manchetes pelas ruas, mas sua voz pode ser escutada através da sua história, ainda por ser contada. Mais do que notícias, seu grito pode revelar detalhes sobre a formação da imprensa como a conhecemos hoje.


poesias PALAVRÓRIO HORACIO XAVIER Palavra é ponto de partida É mostra de saída É meio de expressão Mesmo que na despedida Palavra é mais que alucinação É mais que dor partida É mais que solidão Mesmo que em si, perdida Palavra é um lamento É jeito de sentir É jeito de ser, é tormento Palavra é uma arma, um instrumento

REMINISCÊNCIAS Eu ando tão distraído Perdido em meus pensamentos Lembrando tempos de amor Mesmo com ditadura, porrada e rancor Eu ando tão delicado Perdido em meu passado Lembrando tempos de paz Mesmo com bomba, molotov e gás Nada que me fez perder a graça Nada que me trouxe a inocência roubada Nada que me fez ser menos feliz

crônicas CARTA AOS NOBRES E PUROS por CAÊ GUIMARÃES

Vocês ocupam as grandes internas do bom mocismo sereno. Vocês tornam o ph ácido em teor ameno, sem ao menos entornar no chão a quota metafórica da proteção. Vocês validam quem os rege, rangem os dentes só à noite, mergulhados no torpor inconsciente. Vocês rezam e oram até esfolar joelhos e inflamar amídalas, mas não se livram de nada do que julgam ser indecente. Porque são gente. Tomam aspirina porque é bom para o coração. E aspiram a sentimentos elevados, desde que não sejam seus os cobertores selecionados para encobrir o frio alheio. Vocês paralisam ante qualquer receio. E para não errar, sempre optam pelo caminho do meio. Separam as meias brancas das coloridas. E têm medo, muito medo de expor as próprias feridas. Conduzem a vida com elegante e falsa suavidade.

Mas abdicam das memórias contidas. Passam por ruas e avenidas com medo, muito medo da tal indecência, cronometrados na agulha dos ponteiros sem saber, ou sequer intuir, que a única indecência existente é a violência. Vocês comem, bebem e riem, ridentes, com todos os molares e caninos à disposição do cliente. Embriagam e ficam tontos, mas não sentem ou sequer suspeitam das iluminações que os espreitam. Contorcem e entopem garganta e intestino. E a cada faca na carne, a cada angústia no gesto, a cada gaguejar no olhar, calam o bem guardado segredo e matam, por covardia, o menino que ainda lhes deveria habitar. Quando o que surge é o contrário, o primeiro gesto é arbitrário. Quando algo emperra, sentam e berram. Quando o vento sopra de um lugar insuspeito, protegem o peito. E na gar-

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ganta morta, na hora torta e tola em que se deparam com a própria imagem no espelho, carregam nas maquiagens por puro zelo. E olham de soslaio, apenas para confirmar se a máscara de Laio coube milimetricamente na face enrubescida. Laio, queridos, é a antevéspera da ferida, a víbora que inocula um veneno com prazos a perder de vista. E a cegueira cabe a quem lhes segue. Com todos os estigmas. Não há, houve ou haveria outra forma de perceber o quanto tudo é vasto e potente? Uma mirada diferente da oferecida nas gôndolas dos pegue-pagues da vida? Qualquer coisa que anule essa forma baleada de sorver a bebida que o universo serve? Ou algo que seja maleável e venenoso, como o rabo perigoso da arraia. Libertem dos frascos os comprimidos de sorrir, liberem os fracos do esforço que é acionar a mola arrebentada da serventia. A vida é uma grande e movimentada aurora. Não se ocupem em entender de que lado vocês estão. Apenas deslumbrem-se. Não há dentro ou fora. Tudo é dentro. E estamos todos dentro da mesma jaula.

O HÁBITO DA LEITURA por JÔ DRUMOND

Sábio é o tempo, curador de cicatriz

A ÚLTIMA CARTADA Reúno todas as forças Aquelas loucas que me restam Para aplacar a dor Reúno todas as energias Aquelas poucas que me cercam Para enfrentar o dissabor Reúno todos os prazeres Aqueles doidos que me infestam Para atiçar o despudor Reúno todos os amores Aqueles soltos que me encantam Para realçar o rubor Abarrotado de sentimentos Exalo raios, Mil laços de um sedutor

Há quem culpe a internet pela evasão dos leitores, mas é provável que se leia mais, hoje em dia, no mundo virtual, mesmo que seja em “internetês”, pois a língua escrita é largamente usada nesse tipo de comunicação. Na Europa, é usual que cada cidadão tenha sempre em mãos um livro, uma revista, um jornal ou algo similar, nas mais diversas circunstâncias do cotidiano, seja em transportes coletivos, salas de espera, cafeterias ou praças públicas. O fato é que cada um carrega consigo algo escrito para momentos ociosos. Recentemente, cenas inusitadas, envolvendo leitores, atraíram minha atenção. No desembarque, em Munique, o operador da ponte móvel, após o término de sua tarefa, abriu um livro e pôs-se a ler, atentamente, de pé, indiferente ao fluxo dos passageiros. Era como se o entorno não existisse para ele.

Em Paris, presenciei uma cena curiosa, ao flanar sob arcos da rua Rivoli. Um mendigo, deitado placidamente no passeio público, indiferente aos passantes, parecia usufruir da leitura de um bom livro. Seu boné fora colocado displicentemente ao lado, para eventuais óbolos. Todavia, as misérias da vida não lhe diziam respeito. Absorto no tempo e no espaço, parecia não se dar conta do constante tilintar de moedas. Seu estratagema era duplamente eficaz: primeiramente porque, sendo ou não leitor voraz, a encenação poderia render bons proventos, considerando que os amantes da leitura (que são muitos na Europa) não deixariam de dar um adjutório àquele infortunado com quem aparentemente teriam alguma afinidade. Em segundo lugar, porque para o esmoler, talvez seja mais cômodo fazer uma boa ação livre do constrangimento da

abordagem “face a face”. Percebe-se que os passantes quase sempre evitam o olhar dos desvalidos. Não se sabe se por comiseração, por pressa, por desprazer... talvez pela incoerente fusão de sentimentos difusos, ou até mesmo pela sensação de impotência diante das dores do mundo. De qualquer forma, aquele pedinte (que não pedia) se fazia merecedor de ajuda, tanto pelo provável gosto da leitura quanto pela perspicácia da mendicância. Citando Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”. Realmente, a ficção, muitas vezes, pode ser mais verossímil que a realidade. Embrenhando-se nas aventuras de um bom livro, o leitor escapa da faina do cotidiano e do tempo cronológico. Ao entrar no tempo mítico, pode vislumbrar novos horizontes, conhecer novos mundos, viver outras vidas... enfim, driblar as agruras, as tristezas e os desamores que porventura surjam no dia a dia.


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artes plásticas

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por CAUÊ ALVES

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BRUNO COELHO

“ÁGUA VIVA”: UM INSTANTE ENTRE SHIRLEY PAES LEME E CLARICE LISPECTOR A noção do tempo e a fluidez literária da obra da escritora, publicada em 1973, serviram de inspiração para a artista realizar a mostra homônima, que vai até 12 de agosto, no Museu Vale

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gua viva é a forma como são chamadas as águas que brotam de uma nascente. Aquelas que jorram num fluxo incessante. O livro “Água Viva”, de Clarice Lispector, publicado pela primeira vez em 1973, é elaborado de modo que cada nova frase aparece como um jorro desconhecido que flui entre as páginas brancas. Shirley Paes Leme parte de algumas sentenças dessa espécie de poema em prosa de Clarice para realizar suas pinturas e toda a mostra “Água Viva”. A matéria viva de Shirley, além do livro de Clarice, é composta da água do mangue, que, ao ser fervida, torna-se mais concentrada, criando um tipo de resina. Uma invenção que ressignifica o conhecimento das paneleiras locais, que selam as panelas de barro com essa mesma substância. Clarice segue “o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra” e Shirley usa a água tingida pelas raízes do mangue, cozinha-as e transforma-as em pintura. Isso acontece num processo de sedimentação, num tempo lento de secagem e de formação da espessa resina avermelhada. O tempo parece ser o elemento fundamental em “Água Viva”. Segundo a escritora, “O instante é semente viva... é um pirilampo que acende e apaga, acende e apaga”; é uma abertura para o futuro. E continua: “[O] presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado”. A continuidade e circularidade do tempo é o que está implícito nessa imagem: o tempo é fluxo constante, e vivo como um vaga-lume. “Água Viva” é uma tentativa, não de representar, mas de captar o “instante-já”. E aí está a dificuldade, uma vez que ele escorre entre os dedos e não se deixa apreender facilmente. Passa antes que se consiga agarrá-lo. E se pudéssemos agarrá-lo já não seria mais o instante imediato, mas algo que já se foi e não é mais. De acordo com a escritora: “Novo instante em que vejo o que vai se seguir. Embora para falar do instante de visão eu tenha que ser mais discursiva que o instante: muitos instantes se passarão antes que eu desdobre e esgote a

LEONARDO FINOTTI

Para especialista, mais que esboços, as palavras contidas na sala espelhada que integra a mostra são constituintes da pintura e de todo o espaço expositivo DIVULGAÇÃO

Instalação dá ao visitante a ideia de caminhar sobre as águas; artista vislumbra sentidos pelos quais jorra sua “Água Viva”

complexidade una e rápida de um relance”. O “instante-já” é puro movimento que só pode ser vivido de dentro e de modo distraído. Pode ser apreendido não pela visão especializada, tampouco pelo discurso, mas pelos ouvidos, mesmo que por um barulho silencioso e etéreo tal como desenha Clarice: “Ouço o ribombo oco do tempo. É o mundo surdamente se formando. Se eu ouço é porque existo antes da formação do tempo. ‘Eu sou’ é o mundo. Mundo sem tempo. [...]” O trabalho de Shirley, como o de Clarice, também se pergunta sobre a natureza do tempo e sua necessidade. O que a artista faz é tatear em torno de uma intenção de significar. Em “Água Viva”, ela se reencontra consigo mesma. Retoma a tradição das paneleiras, mas a deforma e institui uma nova coerência e outros sentidos, ou não sentidos, que certamente serão incorporados e retomados pelo que está por vir.

Expressão

“Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto.” —

Clarice Lispector Escritora

A personagem central do livro “Água Viva” é uma pintora que escreve para alguém determinado, abordando frequentemente a relação entre o tecer da palavra e o traço do pincel. Trata-se da própria dificuldade da expressão, da insatisfação constante de um artista em busca de algo que não se deixa fixar: “Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra.” Shirley de fato fabrica a cor com a água do mangue e, artesanalmente, tece suas palavras no mar em que habita sua “Água Viva”. Não há separação entre aquela que pinta e seu corpo. O que a artista faz é transformar suas ações em pintura. A palavra nunca consegue, como a

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pintura, expressar completamente o que se passa no interior de quem a escreve ou pinta: “O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa”. É por isso que não nos cansamos de reler o livro que gostamos ou de voltar num museu para rever aquela mesma obra que já conhecemos. Cada vez que estamos diante dela é possível ir além, ver algo que não havíamos visto. Ou, ainda, ver a mesma coisa e atribuir a ela outro sentido, ou não desvendar qualquer sentido. Ou, como reflete Clarice: “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a”. As coisas se escrevem do mesmo modo como as pinturas se pintam por

VITOR JUBINI

Clarice Lispector: relação entre o tecer da palavra e o traço do pincel

Shirley faz as palavras pulsarem como se estivessem frescas, recém-escritas

elas mesmas. É no contato entre quem vê e o que é visto que o sentido se dá. “Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido. E o que é proibido eu adivinho. Se houver força. Atrás do pensamento não há palavras: é-se.” Mesmo que, segundo Clarice, as palavras não possam exprimir todas as coisas, é por elas que compreendemos não apenas essa insatisfação, esse hiato entre elas e o mundo, mas aquilo que está além das palavras. É do indizível e do invisível que surge o dizível e o visível. É o silêncio que torna possível a expressão e a invenção de novos sentidos. No caso de Clarice, ela não precisa inventar novas palavras porque torce as que já existem para que elas signifiquem o que não significavam em seu sentido estrito, aquele do dicionário. As palavras

que existem podem expressar aquilo que ainda não existe, assim como uma tinta informe extraída da água do mangue vai muito além de sua materialidade e diz algo do indizível, faz ver o invisível. O mesmo ocorre com a pintura: em vez de ser uma imagem ou ideia que ocorre fora da tela, ela é aquilo que vemos, é o modo como se apresenta. A pintura de Shirley é como a escrita de Clarice, é feita ao correr da mão, como se a escritora e a artista não mexessem mais no que a mão escreveu e no que já foi pintado. A expressão flui direta, como a tinta escorre na tela controlada pelo ângulo desta em relação ao chão. “Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e eu: ajo no âmago do próprio instante”, diz a autora em “Água Viva”. A defasagem estaria no retorno: uma segunda escrita mudaria o sentido, tornaria mais artificial aquele instante genuíno, assim como o retoque da pintura que já

não se dá mais naquele “instante-já” em que a obra se realiza. A escrita, o discurso, não é o fim, é uma espécie de aquecimento para a pintura: “Comecei estas páginas também com o fim de preparar-me para pintar”, escreve Clarice. E continua: “Mas agora estou tomada pelo gosto das palavras, e quase me liberto do domínio das tintas [...]”. Shirley, também livre das tintas, escreve com sua pintura, tanto quanto Clarice pinta com as palavras. A artista vislumbra sentidos pelos quais jorra “Água Viva”. Mais que esboços, as palavras são constituintes da pintura e de todo o espaço expositivo. Shirley é Clarice porque ela vive suas palavras de dentro, com toda a sua existência muda e inconclusa. Ela as faz pulsar como se estivessem frescas, recém-escritas, profanas, vivas como numa fonte natural, como se estivessem sendo pronunciadas no “instante-já” pela primeira vez.


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ficção por ALINE DIAS, COM ILUSTRAÇÃO DO COLETIVO PEIXARIA

A RODA DA FORTUNA E O REI DE PAUS Enquanto sorteava as cartas a serem postas na mesa, Madama Carlota deixava um cigarro aceso no cinzeiro. Adalgisa, personagem principal deste conto inédito, tossia

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sala era fumaça pura à meia-luz. Um cheiro forte de incenso e cigarro e uns olhos pretíssimos, pintados com kohl. Adalgisa, mesmo vendo muitas cores na cartomante, achava que nos olhos estava o principal. Quis, logo de cara, aquele negrume para si. Sentou-se tímida, afoita, desatada e destrambelhada – desesperada de primeiro amor. Não disse nada além de boa noite e do nome perguntado de cara pela cartomante. Madama Carlota tinha sido recomendada pela faxineira da escola. Era grande, gorda, colorida, espalhafatosa e de uma doçura quase maternal. Enquanto sorteava as cartas a serem postas na mesa, deixava um cigarro aceso no cinzeiro. Adalgisa tossia. – Quantos aninhos você tem, minha flor? – Quinze. – Tem cara de até menos. Vamos ver o que o futuro te traz, queridinha. Quero que pense numa pergunta a fazer para as cartas. Se concentre nela enquanto corta o baralho, sim? – Eu quero saber como vai... – Não precisa me dizer, sim? Guarde a pergunta com você e se concentre nela. Mas fique calminha. Não precisa ter medo de Madama Carlota. – Tudo bem. – Tão pequenininha, você. Estou vendo aqui a roda da fortuna e o rei de paus. Vamos ver... vamos ver... queridinha! Você está apaixonada? – É pra eu falar? – Ô queridinha! O tarô não mente nunca! Trate de ficar mais calma, florzinha. O acaso é uma força muito grande que dá sempre um jeito de avisar pra nós o que ele vai aprontar. Esse baralho aqui é uma das vozes do acaso e você não chegou à toa em Madama Carlota. Acalme este coraçãozinho. Vejo muita força aqui no seu futuro, sim? – Força como? – Florzinha, você vai ser uma mulher muito forte. Uma imperatriz. Veja cá a imperatriz. Mas, olhe. Não leve a mal o que Madama Carlota vai dizer. Esse garoto aí que você gosta. – Sim. – Este garoto é um atraso de vida. Ele te prende ao seu passado e não deixa

você virar a imperatriz do futuro. – Tudo isso o tarô está dizendo? – Sim, florzinha. Ele também vai ser um homem muito bom, sim. Mas, me diga. Esse garoto te ama, florzinha? – Era isso que eu queria saber, Madama. – Ô, florzinha, deixe isso de lado, sim? Você pode ter muitos e muitos garotos novos e uns bons homens. Está

tudo aqui, nas cartas. Você precisa crescer mais tempo longe dele. – Mas eu gosto dele! – E ele sabe disso. – E como o tarô sabe disso? – É o acaso, sim? O acaso sabe tudo. É uma força enorme, queridinha. Uma força maior do que Madama Carlota e do que você e do que o ônibus que atropelou uma moça um dia desses.

Você viu no jornal? – Quanto tempo? – Quanto tempo o que, minha flor? – Quanto tempo eu tenho que ficar longe do menino que eu gosto? – Dez anos exatos. – Não posso nem falar com ele, Madama Carlota? – Pode sim, queridinha. Mas o amor precisa desse tempo para amadurecer. Você precisa virar antes uma grande imperatriz. – Mas Madama Carlota, dez anos é quase minha vida toda! – E com tanta vida assim pela frente, pra que você vai ter pressa, queridinha? – Mas eu estou toda descompensada, Madama Carlota. Ele encostou essa semana o joelho no meu joelho no refeitório da escola e eu senti umas coisas quentes que eu nunca tinha sentido! E o olho dele, Madama Carlota! Ele tem os olhos mais bonitos do mundo! – São verdes? – Castanhos. – Arrume uns olhos verdes primeiro, sim. Você é muito bonitinha, Adalgisa. Bote na frente os olhos azuis, depois os verdes, depois os pretos. Arrume uns pretos grandes e fortes que te ensinem como ser abraçada. Você vai longe, queridinha. Mas se afaste desse moço, sim? – Mas vai dar tudo certo? – Só daqui a dez anos. Mas não se afobe, você tem muito ainda o que amar. E Adalgisa foi para casa com o coração na mão, acabadíssima. Mas no dia seguinte apareceu um menino loiro vindo de transferência com duas grandes bolebas azuis no lugar dos olhos. E na outra escola veio um de cabelo de anjo. E na faculdade vieram infinitos meninos – e até meninas. E Adalgisa formou-se mulher esquecida daquela afobada primeira paixão. E quando se passaram dez anos, ela nem lembrou da data. Só por acaso encontrou na farmácia aquele garoto primordial. – Mas olha, eu gostava tanto tanto de você. – Eu também. Madama Carlota sentiu alguma coisa no peito sem saber de onde vinha.


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