Pensar_28_04_2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

www.agazeta.com.br

Entrelinhas AS POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE O TEATRO E O PODER EM OBRA DE ESTER ABREU

Pág. 3

Livro

JÜRGEN HABERMAS E AS IMPLICAÇÕES DAS PESQUISAS GENÉTICAS PARA A MORAL Pág. 4

Música

O PIANISTA DAVID FRAY GRAVA MOZART DE OLHO NO PÚBLICO JOVEM Pág. 5

Artigo

COMO A PSICANÁLISE PODE CONTRIBUIR PARA A EDUCAÇÃO Págs. 10 e 11

Arte à francesa

A OBRA E O LEGADO DE RENOIR, MANET, LÉGER E CHAGALL EM EXPOSIÇÃO EM VITÓRIA Págs. 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

quem pensa Eduardo Fernando Baunilha éprofessor,escritorealunoespecialdodoutorado emLetrasdaUfes. mestrebaunilha@ig.com.br

Sergio Fonseca é historiador e professor.

marque na agenda prateleira Memória Centenário do café conilon no Estado

Quarta, dia 2, será aberta uma exposição com livros sobre a história do café, com curadoria de Sérgio Blank e Reinaldo Santos Neves, na Biblioteca Pública do Espírito Santo. Visitação de segunda a sexta, das 8h às 19h.

sbaptistadafonseca@yahoo.com.br

Exposição

Erico de Almeida Mangaravite é servidor público e frequentador de concertos e óperas. ericoalm@gmail.com

Nesta quarta, 2 de maio, será aberta a exposição “A Rádio Nacional e seus Ídolos de Auditório”, no Radium Hotel, em Guarapari, reunindo LPs, fotos , livros, CDs com prefixos dos principais programas e jingles. A mostra segue até 17 de maio.

Viagem pela história da Rádio Nacional

Maria D’Ermoggine é italiana, professora de História da Arte e curadora de exposições no exterior.

O Diabo & Sherlock Holmes – Histórias Reais de Assassinato, Loucura e Obsessão David Grann

Unindo rigor investigativo e talento literário, o jornalista norte-americano David Grann reúne 12 histórias extraordinárias e explora com maestria os territórios em que a realidade é tão inverossímil que parece ficção. 464 páginas. Companhia das Letras. R$ 55

Navegação de Cabotagem Jorge Amado

Nestas memórias escritas com a verve, o humor e a sensualidade que caracterizam sua melhor ficção, Jorge Amado passa em revista sua trajetória singular. Por trás de tudo, dois grandes temas perpassam estas páginas: o amor e o trauma da política.

Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com.

608 páginas. Companhia das Letras. R$ 89

Antonio Rocha Neto é economista, cronista e membro da Academia de Letras Humberto de Campos, de Vila Velha.

Tatiana Brioschi é poeta, contista e cronista. tatianabrioschi@gmail.com

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Fuga do Campo 14 Blaine Harden

Narra a jornada de Shin Dong-hyuk, que nasceu e cresceu no Campo 14, um dos complexos destinados a presos políticos da Coreia do Norte. Determinado a descobrir como é a vida do outro lado da cerca eletrificada, ele supera todo tipo de dificuldade e consegue deixar o país.

de maio

Conflitos entre mãe e

filha No próximo final de sem ana, de sexta a doming o, será apresentada a peça “Ve lha é a Mãe”, com Louis e Cardoso e Eliane Costa, no Tea tro Carlos Gomes, Centr o de Vitória. Na comédia, filh a e mãe (recém-divorci ada) trocam farpas e carinh os, por meio de diálog os ácidos.

Ítalo Campos é psicanalista e poeta. ifcampos@hotmail.com

Vinícius Lordes é professor, poeta e escritor. viniciuslordes@gmail.com

ColetivoPeixaria reúne amigos que desenham porque gostam. coletivo.peixaria@gmail.com

INVASÃO FRANCESA Primeiro, vieram os espanhóis. Agora é a vez de os franceses invadirem o Palácio Anchieta, com a mostra “Mestres Franceses”. É a chance de se apreciar de perto a obra de alguns dos nomes mais importantes da arte moderna e contemporânea mundial: Edouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, Fernand Léger e Marc Chagall. O contato com a obra desses artistas traz ao espectador, além da satisfação visual, uma bagagem repleta de referenciais que remetem às últimas décadas do século XIX e às primeiras do século seguinte,

232 páginas. Intrínseca. R$ 24,90

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Dicionário Crítico de Política Cultural Teixeira Coelho

de maio

Autoras capixabas

Em 7 de maio, a escritora Ana Maria Machado fará palestra, às 19h, na abertura do 3º Encontro das Escritoras Capixabas, que acontece até dia 9, na Biblioteca Pública Estadual, em Vitória.

Multiculturalismo, valor cultural, cultura objetiva e globalização cultural são alguns dos mais de 200 verbetes reunidos nesta nova edição, revista e ampliada. 448 páginas. Iluminuras. R$ 66

Carol Rodrigues e Tiago Zanoli

são editores interinos do caderno Pensar, espaço para discussão e reflexão cultural, que circula semanalmente, aos sábados.

cferreira@redegazeta.com.br tzanoli@redegazeta.com.br

com toda a efervescência cultural da Paris desse período. Nesta edição, a curadora da exposição, a italiana Maria D’Ermoggine, contextualiza a produção desses artistas com o tempo em que as obras estão inseridas, ressaltando como cada um deles soube captar as inovações de sua época, transformá-las em algo original e, assim, lançar luz sobre aqueles que vieram depois. Um oportuno guia conceitual para quem planeja visitar a exposição, que fica aberta até 10 de junho. Boa leitura!

Pensar na web

Confira galeria de imagens da mostra “Mestres Franceses”, assista a vídeo com o pianista David Fray e leia um trecho do livro de Ester Abreu no site www.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória-ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8323


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entrelinhas

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por EDUARDO FERNANDO BAUNILHA

O TEATRO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

O Teatro se Subjuga ao Poder? Ester Abreu Vieira de Oliveira. Academia Espírito-Santense de Letras. 112 páginas. Quanto: R$ 20, em média.

CARLOS ALBERTO SILVA

A professora e pesquisadora Ester Abreu analisa, em seu livro, a relação que houve (ou não) com o poder em um país mergulhado na descrença e na corrupção

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mundo cultural e ideológico está sempre significando e ressignificando num processo sem fim. O teatro, como uma manifestação dentro desse mundo cultural, não está fora dessa dinâmica. Tendo como berço a Grécia, o teatro conseguiu, diacronicamente, transportar todos os seus objetivos, sobreviver a todas as formas de repressão e chegar a nossos dias com a mesma força que antes, cumprindo seu papel social de transfigurar as expressões exteriores de uma determinada sociedade, denunciando, por meio da linguagem, os conflitos, as alegrias, as mazelas, os desejos e as tristezas desta. Assim, ao colocar em pauta o que é real a todos, o teatro nos faz identificar e nos envolver nas si-

tuações, criando assim um lugar próprio onde a arte e a vida se entrelaçam, pois como diz Hall “o mundo real não está fora do discurso; não está fora da significação. É prática e discurso, como qualquer outra coisa”. E, como discurso, podemos pensar no teatro como um condutor de propostas sociais que podem nos incitar a repensar nossas práticas e, por meio destas, maximizar o desejo de possíveis mudanças; ou, se não isso, levar-nos a rir dos contextos pelos quais vivemos, entendendo que a força da ideologia corrompida que nos circunda não se rende a uma racionalidade que é subsidiada pelo bem comum, por ser egoísta e vil. Todavia, como diz Nietzsche, “temos a arte para não perecermos da verdade”, levando-nos a montar em nossa mente um conhecimento de que a re-

presentação tem um papel preponderante ao fazer renascer em nós a utopia que reside além da verdade que a realidade nua e crua transfigura. Sendo assim, ao apresentar ao público leitor sua obra “O Teatro se Subjuga ao Poder?”, Ester Abreu Vieira de Oliveira nos conduz a uma diáspora cuja temática nos embala a proclamar a arte teatral como uma estrutura dialogal que nos eleva do nível metafórico a um patamar mais elevado, que é o encontro da (ir)realidade, conclamando-nos a sorteá-la como um prêmio para uma alma que anela por diferentes ações, mas que sofre na esperança sempre tardia. É uma obra singular que tergiversa sobre a relação que essa arte tem ou não com o poder, visto que este a tratava como um empecilho para suas estratégias de “ordem” em um país mergulhado na descrença e na corrupção.

Porém, a boa notícia é que o teatro, mesmo em um terrível momento da história política e social do país, continuava acontecendo, mostrando que a arte não se rende a discursos criados para, coercitivamente, levar as pessoas a acreditarem que é necessário um poder maior para reger sua forma de pensar e, consequentemente, de agir. Enfim, como diz Garcia Lorca, citado pela própria autora, “o teatro, um dos mais expressivos e úteis instrumentos para a edificação de um país, é o barômetro que mostra a sua grandeza ou a sua decadência”. No caso do livro de Ester Abreu, o que se pôde abarcar foi a genialidade de um trabalho de pesquisa que se tornou uma obra de rara grandeza, ao contar e falar de um assunto tão grande quanto as palavras podem abarcar.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

livros por SERGIO FONSECA

QUANDO HOMENS DECIDEM BRINCAR DE SER DEUS

JÜRGEN HABERMAS O Futuro da Natureza Humana Martins Fontes. 168 páginas Quanto: R$ 36,50, em média

Historiador analisa o livro “O Futuro da Natureza Humana”, de Jürgen Habermas, que discute sobre as implicações das pesquisas genéticas para a integridade moral da espécie

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que devemos esperar moralmente da biotécnica? Eis um tema repleto de dificuldades e de problematizações morais e filosóficas. Esse é o assunto do livro “O Futuro da Natureza Humana”, que o filósofo alemão Jürgen Habermas publicou ainda em 2004. Desde então o interesse no tema só aumenta. A ciência dá passos largos no campo das reproduções humanas assistidas. E é isso o que deve ser refletido. Nascido em 1929, o autor atravessou as décadas mais sombrias do segundo pós-guerra ancorado na certeza do poder restaurador e emancipador da razão. Corrigiu a sua própria tradição filosófica, de Hegel a Marx, com um diálogo franco e aberto com outras correntes de pensamento, inclusive e sobretudo com o pragmatismo americano. Participou dos debates polêmicos sobre o legado e o peso do nazismo na cultura alemã. Reconstruiu o pensamento de esquerda, abandonando clichês autoritários e abrindo-se para o pensamento democrático inovador. Liderou as frentes de combate da razão contra o irracionalismo do pensamento pós-moderno. Continua hoje muito ativo e atento aos mais variados assuntos da modernidade. Recentemente entabulou uma bela discussão com o Papa Bento XVI sobre as relações entre razão e sagrado, o papel da religião num mundo laico. Reelaborou a teoria da colonização do mundo operada pela razão instrumental e os interesses da esfera sistêmica de vida. É também sua a famosa frase: “O paradigma não é mais a observação, mas a comunicação”. Um deslocamento kantiano do eixo do conhecimento do campo objetivista para o da experiência comunicativa na qual as certezas científicas não podem mais ser legitimadas por teorias epistemológicas correspondentistas. A verdade resulta do entendimento mútuo, daquilo que é acordado como sendo bom, justo e moralmente aceitável pela comunidade dos falantes. Oriundo da segunda geração da importante Escola de Frankfurt, Habermas tem trabalhado em defesa da razão e de uma modernidade esclarecida. Defensor rigoroso do Iluminismo, ele não abre mão da razão como o guia da modernidade.

DIVULGAÇÃO

Habermas atravessou as décadas mais sombrias do segundo pós-guerra ancorado na certeza do poder restaurador da razão

A discussão do livro é sobre as implicações das pesquisas genéticas para a integridade moral da espécie. “O Futuro da Natureza Humana” aborda esse tema de forma muito peculiar, pois vai ao encalço da problemática que vincula a reflexão sobre o Iluminismo aos destinos da razão ocidental na base da técnica programada para assistir a seres humanos. É evidente que o campo moral se torna aqui todo especial na medida em que estamos falando da criação de uma “colônia humana”, de um “parque de humanos” (termos de Sloterdijk), no qual os critérios de configuração determinam a própria compleição física de nossa natureza. Na Alemanha, esse tema vaza historicamente das ficções totalitárias de “raças” superiores, de uso apavorante de cobaias humanas em experimentos científicos, da ideia de que o super-homem pode resultar de uma criação ex-nillo das mãos limpas da ciência. Filósofos como Heidegger, Nietzsche e

Sloterdijk, cada qual à sua maneira, estão implicados no debate. Agora, Sloterdijk é o cara que defende abertamente os ganhos sociais oriundos de uma tal revolução técnico-científica. Sobretudo ratificou o fim do humanismo, reservando para a técnica genética a função pedagógica de criação do novo homem e do “parque genético”. Sem dúvida, tudo isso é muito polêmico! Os valores do humanismo que Sloterdijk deplora, são bem vindos em Habermas, porque oferecem lastros para decidirmos para onde queremos ir, se a técnica de manipulação de protótipos humanos puder alterar a nossa natureza. A técnica genética pode fazer com que os apelos por um mundo melhor e um novo homem sejam efusivamente interpretados a partir de uma linha de produção de protótipos humanos administrada pelo mercado de ações financeiras ou por um eventual Estado político totalitário. De que somos capazes quando te-

mos disponíveis poderes e técnicas nunca antes imaginados? Eis os temas do debate filosófico oriundos da grande explosão atômica nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. O que temos agora em pleno século XXI é a disponibilidade de técnicas genéticas que podem alterar de forma pré-fabricada os conjuntos humanos. Doravante, entramos perigosamente num horizonte de época no qual a ciência permite aos humanos brincar de Deus, isto é, permite que a nossa própria natureza seja reproduzida de modo livre e infinito, contando apenas com a vontade e o dispor técnico-científico. Mas Habermas pegunta, perplexo: será que a disponibilização dessa técnica de reprodução humana não afetará negativamente nossa autocompreensão ética? Será que temos o direito de projetar seres humanos e, assim, privá-los de suas escolhas reais, uma vez que decisões genéticas, ao contrário de influências do meio, são irrevogáveis?


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falando de música

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por ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE

ERUDITO EM EMBALAGEM POP

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té o final da década de 1990, o público consumidor de discos de música clássica obedecia a um padrão: era composto em sua maioria por homens que já haviam superado a casa dos trinta anos. Dois terços dos ouvintes do Reino Unido se enquadravam nesse perfil. Nos anos seguintes, mudanças significativas ocorreram na indústria discográfica: os meios virtuais de divulgação de gravações e a concentração do mercado nas mãos das grandes redes de comércio acarretaram o fechamento de numerosas lojas de discos – somente nos EUA, cerca de três mil lojas independentes cerraram as portas entre 2000 e 2010. As gravadoras que possuíam selos especializados em música clássica precisaram sacudir a poeira. Assim, empresas até então tidas como tradicionalistas, que contavam exclusivamente com circunspectos artistas de meia-idade em seus quadros, lançaram no mercado nomes com um perfil mais compatível com o do público jovem. Nesse cenário, surgiram as Mediaeval Baebes, moçoilas especializadas em música vocal da Idade Média cujo visual lembrava algo próximo do encontro entre as Spice Girls e o Conde Drácula, e a violinista finlandesa Linda Brava, protagonista de dois feitos bastante díspares – foi contratada por um grande selo clássico e posou nua para uma revista masculina. Outras iniciativas semelhantes foram tomadas, priorizando a exploração da representação visual dos artistas, ainda que ocasionalmente (ou mais que isso...) em detrimento da qualidade musical.

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Mozart – Piano Concertos 22 & 25 David Fray. 6 faixas. Gravadora: EMI. Quanto: R$ 30 (em média).

JEAN-BAPTISTE MONDINO/DIVULGAÇÃO

Os resultados não foram tão satisfatórios quanto se esperava e muitos discos acabaram perdidos em algum lugar obscuro, provavelmente um cantinho entre as seções de música clássica, pop e world music. Reduziu-se a seguir a influência da imagem, mas manteve-se a busca pela junção entre o visual e o conteúdo. Prova disso é que, em 2005, o regente venezuelano Gustavo Dudamel, à época com apenas 24 anos, celebrou um contrato de exclusividade com uma prestigiada gravadora alemã. Um artista jovem, carismático, de cabelos esvoaçantes, gestual cheio de estilo e dotado de inequívocos talentos mu-

sicais demonstrados à frente de grandes orquestras resultou em vendas mais que satisfatórias. Dudamel até hoje se sustenta no mercado como exemplo de músico que une popularidade a méritos artísticos. Foi nesse último contexto que o pianista francês David Fray chegou ao mercado. Suas primeiras gravações foram colocadas à venda quando ele estava na casa dos 20 anos, amparadas por um crescente trabalho de marketing. A imagem do artista foi – e ainda continua sendo – explorada à exaustão. No disco “Mozart – Piano Concertos 22 & 25”, temos fotos de Fray em diversas poses: olhar perdido no espaço; pensativo; em aparente transe ao conduzir uma orquestra imaginária. Todas assinadas por Jean-Baptiste Mondino, fotógrafo de moda e diretor de videoclipes de artistas como Madonna, Sting, David Bowie e Björk. É caso de se perguntar: e a interpretação das composições de Mozart, como é que fica no meio disso tudo? David Fray é um pianista a ser levado a sério ou é um produto fabricado visando a um público específico, nos mesmos moldes que se divulga uma nova marca de margarina ou um carro esporte? Felizmente, a formação de Fray foi bastante sólida: estudou no Conservatório de Paris, sendo orientado por Jacques Rouvier, um dos responsáveis

No encarte, o pianista encarna o astro pop pelas lentes do fotógrafo Jean-Baptiste Mondino, que tem Madonna e David Bowie no currículo

pela formação de outros jovens de reconhecido talento como Hélène Grimaud e Arcadi Volodos. Isso lhe confere aptidão técnica para encarar o desafio de gravar duas obras de peso. Ambas fazem parte de um espantoso ciclo de doze concertos compostos em menos de três anos e se caracterizam, nas palavras do escritor Attila Csampai, por “traços nítidos de resignação, desconsolo, solidão, alheamento interno” e pela “tristeza universal e serena do Mozart tardio”. Não se nota o compositor fanfarrão, conforme retratado no fantasioso filme “Amadeus”, mas sim o lado mais sombrio da personalidade do artista, capaz de discorrer profundamente sobre a morte nas cartas que enviava ao pai. São obras cuja aparente simplicidade de escrita pode levar o músico à enganosa impressão de que é possível encará-las adotando ampla liberdade de interpretação. Ledo engano – Mozart não permite grandes desvios, sob pena de soar ou banal demais, ou pesado em excesso. David Fray, sabiamente, opta por uma visão conservadora: amparado por uma orquestra de qualidade e por um regente reconhecido nos meios musicais pela sua competência, o instrumentista ornamenta algumas passagens com parcimônia e usa com moderação certas liberdades no fraseado e nas dinâmicas. Na maior parte do tempo, opta por caminhos seguros, seja no que tange à intensidade do som, seja na escolha dos andamentos. O resultado disso tudo é uma boa gravação, vendida no mercado nacional a preço acessível e que vai satisfazer principalmente aqueles que começam a formar uma coleção de discos de música clássica.


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artes plásticas

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por MARIA D’ERMOGGINE

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Edouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, Fernand Léger e Marc Chagall são alguns dos artistas que marcaram indelevelmente o caminho da arte moderna e da arte contemporânea mundial

GRANDES IMPRESSÕES DA FRANÇA

DIVULGAÇÃO

A MOSTRA “MESTRES FRANCESES” TRAZ A VITÓRIA A VANGUARDA DA ARTE NA VIRADA PARA O SÉCULO XX

I

magine viver em Paris na virada do século XIX para o XX. A cidade era uma verdadeira metrópole, avançava em todos os setores e celebrava as descobertas científicas e tecnológicas nas Exposições Universais. Após as grandes reformas do prefeito Haussmann, sob o impulso de Napoleão III, Paris vivia um processo de grande modernização e expansão, que mudou sua estrutura sócio-econômica, e posteriormente, o modo de fazer arte mundial. A cidade era o coração e o motor da cultura europeia, e é justamente nesse caldeirão cultural que nasceram e se espalharam pelo mundo os principais movimentos internacionais. A nova Paris do século XX, com seus subúrbios industriais-operários de um lado e seu centro elegante e burguês do outro, era o lugar perfeito para as gerações de artistas de todo o mundo, que chegaram atraídos pelo charme da metrópole. Não apenas a capital francesa, a chamada “Ville Lumière” – em português, a “Cidade Luz” –, mas também as pequenas aldeias de Pont-Aven, Barbizon e outras regiões do país como Provença e Costa Azul acolheram os artistas, que contribuíram para fazer da França o país mais vibrante e inovador

em termos de cultura do mundo, por um longo tempo. É lá, nesse cenário de construção que, contrastando com as regras rígidas das academias, nasceu o movimento do impressionismo, com a sua pintura do “instante” e a metodologia “ao ar livre”. O movimento pavimentou o caminho para as vanguardas do século XX: fauvismo, cubismo, expressionismo, futurismo, construtivismo e dadaísmo.

Revolução

Em toda a Europa, na primeira década do século XX, há o nascimento e disseminação de muitos movimentos de vanguarda que procuravam novas formas e rompiam com as tradições do passado. Os artistas desse século produziram manifestos, declarações políticas e organizaram eventos, muitas vezes provocativos. A busca por novas formas de olhar, combinada com a necessidade de eliminar os preconceitos e as convenções, gerou também outra forma de expressão da arte: o abstratismo, que simplifica e estiliza totalmente as formas. Paris continuava a ser o teatro mais importante dessas novas realidades artísticas, pois na “Cidade Luz” todas as

experiências europeias de arte eram experimentadas, tornando-a o polo fundamental do mercado da arte moderna, que não era apenas centrado nas exposições clássicas dos salons, mas propunha, muitas vezes, estruturas alternativas e locais incomuns e fortuitos. A criatividade desses anos sofreu uma parada drástica com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, evento que pôs fim a um período longo e ininterrupto de progresso e prosperidade na Europa. Muitos pintores e escultores, apesar de terem em conta as experiências da vanguarda, se colocaram em um clima geral de retorno à “ordem”, ao classicismo e ao realismo.

Novos caminhos

Os cenários mudaram, e países como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, assumiram o papel de produtores de arte, mas a França não perdeu sua posição de país catalisador da efervescência artística. Na capital francesa, muitos artistas da época, unidos por suas condições de exilados e ligados pela afinidade moral e espiritual, reunidos sob o único nome de “Escola de Paris”, ficaram ativos até depois da Segunda Guerra Mundial.

A partir desse cenário, a mostra “Mestres Franceses” tem como objetivo agregar em um evento único e extraordinário, pela primeira vez com uma abordagem diferente, alguns dos artistas que marcaram indelevelmente o caminho da Arte Moderna e da Arte Contemporânea mundial: Edouard Manet, Pierre-Auguste Renoir, Fernand Léger e Marc Chagall. Oposto das mais tradicionais exposições de pinturas, a mostra leva em consideração apenas obras gráficas, publicadas pelos amantes da arte da impressão, que no final do século XIX começaram a experimentar um enorme sucesso entre os próprios artistas, muitos dos quais entenderam a eficácia desse meio para atender às demandas de um público cada vez mais exigente que, com os avanços da tecnologia, tinha-se tornado mais e mais refinado e especializado.

Franceses

Assim, os “revolucionários” e intensos personagens de Edouard Manet (1832-1883), escolhidos na vida real ou em livres interpretações de mestres do passado, ganharam forma nas águas-fortes e águas-tintas realizadas entre 1859 e 1882 e publicadas em

>

Obras de (da esq. para a dir., em sentido horário) de Léger, Chagall, Manet e Renoir integram a exposição

1905 por Ströling. Destaca-se, entre as obras expostas, a impressionante presença da Olympia, realizada a partir do quadro original do Musée d’Orsay, obra que marcou a ruptura definitiva com as regras

acadêmicas, causando escândalo e controvérsia. A obra gráfica foi retratada pelo artista para ilustrar o livro de Émile Zola dedicado a ele e publicado em 1867. Na mostra, há também, Pierre-Auguste

Renoir (1841-1919), “o pintor dos aspectos serenos da vida”, especialista em retratos, cenas da vida cotidiana e figuras nuas arredondadas e rechonchudas, tributo à vitalidade e ao entusiasmo pela

vida. Renoir foi o primeiro dos impressionistas a experimentar um verdadeiro sucesso de público e produziu suas impressões justamente por isso, ciente da eficácia dessa ferramenta para espalhar “democraticamente” a sua arte. A maioria das reproduções, na verdade, foi criada depois de 1900, enquanto ele ainda estava vivo, e agrupadas em livros e portfólios produzidos por Theodore Duret, o biógrafo-chefe dos impressionistas, e Ambroise Vollard, marchand de Renoir e apaixonado pela arte da impressão. Na exposição, são apresentadas 11 litografias e águas-fortes, realizadas pelo autor entre 1892 e 1910. Um grupo de serigrafias em cores e em preto e branco, publicadas por Tériade e impressas por Mourlot em Paris, apresenta a obra-prima gráfica de Fernand Léger (1881-1955). “O Circo” é dedicado a um dos temas mais amados e tratados pelo artista. Aparecem acrobatas, malabaristas e outros personagens circenses: uma produção na qual o mestre francês se confronta com as pesquisas artísticas de seu tempo e extrapola os princípios de sua arte e de sua vida definidos pelos críticos como “tubismo”, por sua preferência pelas curvas. Ele compara a vida à do acrobata e considera a curva e o círculo como as formas por excelência. Na verdade, Léger encontra no circo a forma perfeita e a representação do movimento e da ação realizada com cores vibrantes e brilhantes. Depois do “realismo” alegre e dinâmico de Léger a mostra apresenta a poesia e a busca espiritual de Marc Chagall (1887-1985) com as delicadas litografias a cores que retratam as Histórias do Êxodo, impressas em 1966 por Fernand Mourlot. Um assunto bíblico, já desenvolvido pelo artista 25 anos antes, quando ele trabalhou as gravuras para ilustrar a Bíblia. Na época, porém, o artista não tinha conseguido usar as cores que ele tanto amava, por falta de laboratórios especializados em impressão litográfica e, portanto, a proposta de seu amigo Mourlot foi acolhida com grande entusiasmo. A exposição “Mestres Franceses” enriquece o conhecimento sobre a história artística da França que ao longo dos últimos dois séculos contribuiu mais do que qualquer outro país no desenvolvimento da arte moderna. A exposição de quatro de seus “filhos”, de nascimento ou por escolha, ressalta a importância dos movimentos culturais nascidos após a arte deles. Renoir, Manet, Léger e Chagall, artistas mais representativos de uma geração, operaram em sintonia com o seu tempo, sabendo interpretar os aspectos inovadores e originais das rápidas mudanças da época, conseguindo assim, orientar seu seguidores à evolução da arte contemporânea. Mestres Franceses Visitação: de terça a sexta, das 9h20 às 17h; sábado, das 10h às 17h; domingo, das 10h às 16h. Palácio Anchieta, Salão Afonso Brás, Praça João Clímaco, Cidade Alta, no Centro de Vitória. (27) 3315-7071. Até 10 de junho.


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poesias MOMENTOS FABRICIO COSTA Momentos de ócio, momentos de sentimentos dúbios, momentos de peças encenadas no palco quebrado de nossas vidas. A vida e seus momentos, dias, dias de consolo dos sentimentos inconsoláveis, minutos, minutos de conversas, de desabafos. Desabafos são conversas controversas, conversas controversas são breves instantes, são momentos, longos momentos, são curtos momentos, são indefiníveis, são demais, são pequenos e são demais. Há momentos de momentos, momentos de medo, momentos de desalentos e momentos felizes, momentos felizes são de fato momentos, mas, não momentos longos, quem dera fossem! Felicidade é momento de momento, é um curto desalento, pois, momentos são movimentos, alegrias são instantes que escorrem em alguns momentos dos dias, são vidas que passam à porta e são vistas pela janela, são canetas que rabiscam papéis rabiscados, canto a canto, momentos são momentos e movem-se demais.

crônicas SOBRE AEROPORTOS E SAUDADE por ANTONIO ROCHA NETO

Gosto muito de ficar zanzando em aeroportos. Lugar de chegadas e partidas, acolhimentos, despedidas, lágrimas de quem parte e de quem fica, de quem regressa, abraça, beija, chora e se espanta: “Como esse menino cresceu!” “Como você está linda!”. Faixas de boas vindas, de felicitações por conquistas, tudo isso me entretem, me diverte, me emociona e me leva a pensar na dádiva de nossa constitutiva e abençoada finitude. Sim, abençoada. Imaginemo-nos imortais: como seriam os saguões de embarque e desembarque dos aeroportos se, por exemplo, quando um filho nosso vai estudar noutro Estado ou país, não nos assaltasse aquela estranha angústia de perda, aquele inquietante sentimento de “talvez úl-

tima vez”. É a consciência de nossa finitude que nos emociona nas despedidas e nos enche de alegria a cada retorno que se realiza, e justamente porque está se realizando algo cuja realização era desejada, sonhada, esperada... mas incerta. Num mundo de imortais, perderíamos as mais sublimes cerimônias de encontros e despedidas. Perderia força o sentimento da saudade, pois nenhuma perda seria definitiva. Saudade, um dos mais nobres de nossos sentimentos, que nos faz sofrer, mas também nos faz sonhar, nos faz compor as mais belas canções e escrever os mais lindos versos. O que seria da poesia sem o motor da saudade? Amaríamos com a mesma intensidade aquilo que jamais corrêsse-

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mos o risco de perder? Acredito que não. Estou convencido de que, certamente, não. A mortalidade desempenha um papel mais importante em nossa condição humana do que podemos imaginar. Somos no horizonte de nossa constitutiva finitude. É tendo-a em mente que estamos abertos a um sentimento como a saudade. A verdadeira saudade é aquela que me atrevo a traduzir como “um medo de nunca mais”, nas separações temporárias, podendo ainda manifestar-se, de forma mais aguda, como “um sentimento de nunca mais”, ou de “até um dia, talvez...”, nas separações definitivas. Não sei se há um Deus, mas sei que, se há, Ele, na verdade, não pode tudo: Deus, em sua onipresença, não pode sentir saudade! Felizes de nós, meros mortais, por podermos senti-la, e mais felizes ainda aqueles que são capazes de provocá-la! Morrer é não ser objeto de saudade. Morrer é ser esquecido, bata ou não o seu coração...

A SOMBRINHA AZUL por TATIANA BRIOSCHI

TEOREMAS Desfazer-se em pedaços, escancarar palavras doces, romper de amor e arder no desamor, descompor o amor, viver a dor de sonhar sonhos irreais, causar medo, ter medo de sentir medo, buscar palavras sutis e falar entre dentes, contentar-se para não tornar-se doente, cair em tentações e erros incipientes, entrar em vidas como se faz em ambientes, sair de lugares fechados e abrir-se em palavras, deslocar-se em teias, perder o sangue das veias, reduzir sentimentos a poemas e procurar a resposta dos dilemas, resumir-se em teoremas.

Meios-fios cheios de guarda-chuvas tentando desviar-se uns dos outros, e eu passo com minha sombrinha azul de sóis amarelos. É um espanto que esta dure mais, que continue com o pano costurado em todas as ferragens, que resista às costumeiras seis chuvas. De quando em vez vejo uma sombrinha meio torta, desconjuntada, com cara de guardada, aquelas que só são despertadas de seu sono quando ocorre uma chuva boa, torrencial, sim, porque não é toda chuva que merece uma sombrinha dos meus compatriotas, não mesmo, garoas e chuviscos merecem no máximo uma capa velha, um jornal ou até uma sacola de supermercado na cabeça. Para usar-se uma sobrinha tem de descer dos céus um toró, daqueles de alagar as ruas, entupir bueiros, enlamear os sapatos. Chuvas assim

deixam os lojistas meio desnorteados, sem saber se colocam panos ou papelões nas soleiras, afinal provavelmente nada vai evitar as pegadas molhadas no assoalho limpo. Desvio-me das goteiras das marquises com meus sóis a sorrir para as nuvens cinza: céu dramático. A ventania vira a sombrinha ao contrário, expondo-me às gotas de água para desvirá-la outra vez. Ah, quem dera se esse vento fosse aquele mágico da Mary Poppins a carregar-me com uma maleta pelos telhados... mas pensando bem não seria bom voar em dias de chuva: até os pássaros ficam quietos à espera da estiagem. Olho as plantas e sinto um cheiro forte de terra encharcada, o jardim do colégio ficando mais verde sem a poluição nas folhas. A bromélia re-

tém todas as gotas que pode, as oiticicas pingam por inúmeras fontes, os cerca-canteiros ficam mais e mais tenros. Um dia de chuva é um dia fértil, que enche os rios e garante a fartura. Puxo a bolsa de encontro ao corpo para evitar que molhe mais, subo no ônibus e fico sem saber se seguro na barra de metal, se abro espaço, se seguro a sacola, se fecho a sombrinha. Bom mesmo é tomar algo quente e ver a chuva pela janela, olhar as gotas que caem de cima empurrando as de baixo, a abrir um caminho torto que se esvai no meio de mais água. Minha sombrinha azul está ali, aberta a secar, pronta para mais uma. E quem sabe na próxima vez consigo ver aquele arco-íris que aparece por tão pouco tempo, instantes em que o sol encontra a chuva e colore o dia.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

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por ÍTALO CAMPOS

E ASSIM NOS TORNAMOS HUMANOS

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

AP/ARQUIVO

Por meio da psicanálise, uma visão de como a educação pode expor limites e limitações, revelando assim que, como humanos, estamos no mesmo barco, nas tristezas e nas alegrias

E

mbora sejam campos distintos a psicanálise e a educação, a primeira pode contribuir com a segunda com seus conhecimentos desde Freud, que dedicou alguns estudos aos aspectos educativos e à vida em grupo e na sociedade. A certa altura de sua obra, Freud se refere às missões que são impossíveis de se realizar. Dentre elas destacou a missão de educar. Essa constatação, antes de nos acomodar, deve nos lançar à procura de alcançar sua realização, mesmo sabendo-a “impossível”. A escola vem sofrendo transformações através dos tempos. A escola na Idade Média não diferenciava crianças, adultos e idosos. É no final do século XVII e no início do século seguinte, período de grandes transformações culturais e de costumes caracterizado por uma passagem da Idade Média para a Modernidade, que os educadores começam a distinguir a criança do adulto, compreendendo-os em sua especificidade e privilegiando a criança e o adolescente em espaços especiais adaptados para a finalidade de educá-los. Nesta época é que se cria a noção de infância.

Da violência

As descobertas da psicanálise demonstram que a criança não será mais um adulto pequenininho, não mais um poço de ingenuidade, não mais um ser sem nenhum desejo, não mais apenas um objeto. Além disso, as pesquisas clínicas e históricas de Freud o levam a demonstrar a ruptura que se opera entre o que é a natureza e o que é humano. O ser humano não nasce; o que nasce é um punhado, um “naco” de carne, no qual vai se imprimir a marca e a orientação que o adulto que dele cuidou, transmitiu, por meio de palavras, gestos e pensamentos. Se esse “naco” for abandonado a sua própria sorte ele não sobrevive. Somos todos fadados a ser alienados. Não nascemos, portanto, humanos! Nós nos humanizamos na re-

lação com o adulto, com quem nos cria, com o grupo, com a sociedade. Não podemos, portanto, admitir um ser humano fora do social, como também não podemos admitir um ser humano fora da linguagem, da história. Não somos mais natureza. A civilização criou barreiras para nossos impulsos e pulsões, que ficam represados em nome da convivência comum, em nome da civilização. Leis, regras, limites foram introduzidos para a espécie humana. Eles deixam um “mal-estar” constante, com o qual temos que conviver. Há, no entanto, um momento da vida individual e da vida social em que as barreiras são rompidas, como nas guerras e em alguns episódios de grupo, brigas de gangues, de torcida, e outros. A família patriarcal, burguesa e contemporânea foi, a meu ver, a grande impulsionadora das transformações, que não se fazem sem custos e sem ônus. A lei e o limite são adquiridos aí. Esta é a aceitação de que “há um pai”. Um pai que proíbe o incesto, regula a prole e a remete para a exogamia. O pai é uma construção simbólica necessária para a construção civilizatória, sem a qual voltaríamos à barbárie ou ao mundo natural dos animais, onde o filho transaria com a mãe, como os cachorros. A lei paterna é o que vai demarcar a ruptura deste recém-nascido com a natureza. Poderíamos dizer que a mãe dá a vida e o pai dá a cultura e, assim, a humanização. A criança experimenta seus primeiros reconhecimentos do mundo entre os seis e os dezoito meses, período denominado de “estádio do espelho”. Observamos como a criança se chama na terceira pessoa, como bate e diz que é batida, como morde e diz que é mordida, ainda numa indistinção entre seduzir e ser seduzida. Nesse período em que a criança confunde a parte do outro como sendo a sua própria, e em que seu interesse diz respeito ao que for do interesse ou do desejo do outro, funda-se a estrutura do ser humano. Funda-se a estrutura do ser humano junto com a agressividade.

A ambiguidade de amor e ódio é característica, pois, da relação dos indivíduos entre si em qualquer grupo. Apesar do imperativo do amor e da disciplina em relação às pulsões sexuais, à civilização resta sempre uma agressividade, uma ferocidade nas relações humanas. A prova disso é a insistência no mandamento “Ama teu próximo como a ti mesmo”, que nunca será conseguido, pois o amor e o ódio germinam da mesma semente.

Da sociedade

Vivemos um momento de grande transformação social nas relações humanas,

especialmente nas famílias. Aquilo que até pouco tempo tinha um formato com a presença de um pai do sexo masculino, uma mãe do sexo feminino, mudou. Vemos hoje famílias constituídas apenas da mãe e do filho, de casal homossexual com filho e outras modalidades de família que certamente influenciarão e formarão novas subjetividades, com diferentes caminhos de estruturação psíquica. Talvez não vejamos mais, em breve tempo, as grandes neuroses, as grandes histerias, as grandes narrativas. Talvez tenhamos o predomínio das psicoses e das perversões, derivadas de um novo posicionamento e da falta de eficácia da função paterna. Já se vai longe o

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tempo em que dizíamos “nem tudo é possível”. Isso se evaporou nesta nossa sociedade da velocidade, na ultrapassagem de limites do que era proibido e impossível. Hoje tudo é possível. A todo momento um objeto que viria satisfazer nossos desejos, que viria realizar nossa incompletude, insatisfação e “mal-estar” é oferecido. A morte é banida. A sua negação é paralela a uma inflação narcisista, a uma recusa ao “não”, ao limite. Hoje, o que se busca é o excesso. Ao invés de aprendermos a lidar com a perda, queremos sempre mais, o que é correspondente à negação da castração. Vivemos na overdose de bens, de consumo, de cocaína,

Pai e filho sul-coreanos se juntam à homenagem às vítimas do massacre na Universidade Virginia Tech, em 2007: “O Pai é uma construção simbólica necessária para a construção civilizatória”

de crack, de medicamentos. Alguns adolescentes têm demonstrado que a violência e o terror são o que lhes confere alguma singularidade e, poderíamos dizer, até alguma humanidade.

Há prevenção?

O bullying, a toxicomania, a bulimia, a anorexia, a depressão, as síndromes do pânico e outros chamados sintomas modernos foram nomeados de “doen-

ças da alma”. Os consultórios médicos e os templos religiosos, nem sempre honestos, estão lotados por essa causa. Vivemos tempos sombrios. A primeira questão a ser lembrada como contribuição da psicanálise é o de que o ser humano é formado na relação com o outro e, assim, a formação familiar, a influência da família, cria as condições mentais, psíquicas, com as quais a criança e depois o adolescente e o adulto vão se relacionar, inicialmente consigo mesmos, e depois com a família e com a sociedade. Ter alguém que cuida e que queira, verdadeiramente, uma criança é fundamental. Outra observação é a de que os fenômenos humanos se situam em

três dimensões, descritas por Lacan como o Real, o Simbólico e o Imaginário, numa articulação em nó borromeano que se equivalem e que estão amarrados pelo Nome do Pai, pelo sintoma. A dimensão Real é aquela para a qual não há palavra; é a morte, o não sentido. A dimensão Imaginária é aquela produzida pelos efeitos do espelho, da imagem, sem fronteira, é o sentido. A dimensão Simbólica é a que nos fornece o significante, o código, a riqueza do deciframento; é o campo da linguagem com os seus limites e possibilidades, seus vazios. A dimensão simbólica é esta que situa o sujeito numa historicidade e numa história, por meio das quais se faz conhecer e reconhece o outro como semelhante. Por meio dela se reconhece a diferença. Tomando apenas essas contribuições da psicanálise, podemos pensar em estratégias de cuidados, de ações, de atitudes, de mudanças, de valores, que podem ser aplicadas nas relações de grupo, na sociedade e na escola, que podem facilitar a convivência, só assim será possível ao sujeito se ver mais livre, mais autêntico, mais criativo, independente do outro, fazendo laço social, para odiar, mas também amar. A escola não está separada da sociedade, ao contrário ela é o reflexo desta. Uma escola será necessariamente um lugar de produção de conflitos e crises e estes não devem ser negados mas enfrentados como condição de crescimento, o exercício do diálogo, a insistência em colocar em palavras aquilo que muitas vezes ainda não está simbolizado, mas apenas em angústia, deve ser o objetivo do professor e da escola, transmitindo para as gerações as diferenças entre elas, a diferença entre o sexo. Não deve ser abolida assim como as diferentes percepções e sentimentos que ocorrem em cada ser humano. É importante transmitir ao aluno a nossa própria castração, nossos próprios limites e limitações, revelando assim que, como humanos que todos somos, estamos no mesmo barco, erramos, sofremos o mesmo mal-estar. A tarefa da vida é árdua, cabendo a cada um a sua cota de responsabilidade na dor e no prazer de viver.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE ABRIL DE 2012

conto por VINÍCIUS LORDES

[O RESTO SÃO DETALHES QUE ME LEMBRAM DE VOCÊ]

À

s vezes ela me mostrava suas unhas pintadas. dizia que pintava daquela cor só para mim. e seus cabelos eram de um castanho claro quase louro. que às vezes me confundia. me lembrava dela sempre que ouvia um poema ou lia uma frase interessante. “nunca escrevi cartas” ela dizia para mim, “nem para amigos nem para amantes”. nós éramos dois amigos que se sentiam só quando separados pelas horas, as distâncias, os medos, as pessoas. sentíamos a falta das palavras que duravam semanas. às vezes, como era de costume, sentíamos falta dos silêncios que nos ensurdeciam e consumiam as nossas tardes. o sol se pondo num borrão de tinta amarelo-anil. nuvens e um vento de outono que nos lembrava de tantas coisas que queríamos falar. a gente se olhava e as reticências eram como romances inteiros. poemas. dilemas dados no piscar dos olhos para conter as lágrimas que algumas vezes surgiam. eu mostrava alguns dos meus segredos a ela. cartas. poemas inacabados. mapas de cidades inventadas. invisíveis. escritos perdidos de um tempo em que as esperanças faziam sentido. a paixão. as sinceridades escritas. as horas. mostrava um pouco do meu infinito. perdido entre os restos de infâncias em mim. éramos jovens. éramos um tempo onde estávamos juntos. não sei se ainda guardo os dias que passei sem vê-la. nem se eles existiram para mim. não sabíamos o que éramos. não conhecíamos o amor. não conhecíamos palavras bonitas. nem poemas. nem poetas. “eu adoro pés” confessei certa vez a ela. “anel no dedo dos pés e unhas pintadas”. uma surpresa. íntima. confessa. nova sensação para mim. entre nós sempre havia um medo de que um dia nos perderíamos de nós. talvez em nós. naquela cidade entre ruas e janelas de madeira. pintadas de um azul colonial e umas casas velhas a figurar nos nossos escritos. nas nossas palavras. ela olhava para mim pedindo que a noite nunca se acabasse. nós desconhecíamos o que éramos naqueles tempos. quando estávamos nós a sós. o mundo parecia dormir de um sono imenso e profundo de nunca acordar. a sensação traduzida em palavras que nunca dissemos. em olhares que trocávamos sem ninguém perceber. sentíamos que o tempo era nosso. éramos jovens demais. um dia num bilhete dobrado e amassado. desses

COLETIVO PEIXARIA

como as crianças embrulham seus presentes e oferecem aos seus pais. “quando conheço as coisas e seus nomes mais secretos me desinteresso delas e dos seus nomes... mesmo os mais secretos”. um recado em forma de poesia. uma língua que inventamos. não era o amor. não era o mar. não era uma língua estranha. sagrada. profana. era um escrito urgente. feito às pressas como as manhãs de inverno. um escrito rápido naqueles dias desorganizados. jovens. irresponsáveis. não havia a preocupação com a responsabilidade. a experiência da finitude ainda era matéria de romances para nós. havia em nós uma saudade. uma sensação que não conseguíamos nominar ainda. a

coisa quando ainda não é nominada não é coisa. é uma espécie de desencoisamento da coisa. as casas foram testemunhas dos nossos passos. das noites que passaram por nós. o tempo foi testemunha do que um dia fomos. os olhares. os poemas. as palavras. os silêncios. o que não dissemos. o que nunca será dito. as noites. os dias. as unhas. os olhares. o medo. o amor. o que éramos e o que nunca fomos. as verdades inventadas. os cabelos claros ao sol de sempre existir. a irresponsabilidade. o mundo foi ficando tão pequeno naquela cidade. cabia no bolso da minha jaqueta. com uns escritos. umas palavras. as lembranças. os medos novos que aparecem com o tempo. a sensação daqueles ou-

tonos. enquanto leio estas palavras diante do pôr-do-sol na igreja de são josé me lembro dela. que um dia me entregou um bilhete e nós ficamos tão pequenos que cabíamos naquela dobradura rabiscada. o que restou de nós foi aquele inacabado escrito e as lembranças menores que agora tento encontrar por debaixo dos tapetes da memória que vem me encontrar de quando em quando naquelas ruas que hoje passo sem reconhecer que um dia foram o meu lugar. ela e eu. uma foto monocromática. uns sorrisos. a lembrança do que dissemos. e sumimos na gaveta do tempo como as cartas que recebemos. e guardamos. e esquecemos. os nomes. as coisas. os silêncios.


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