VIAGEM PELO BRASIL PROFUNDO Expedição dos irmãos Villas Bôas revelou um país desconhecido e destacou o respeito pelos índios Página 3
Cinema
MOSTRA DA ABD PREMIOU NOVOS TALENTOS DO AUDIOVISUAL NO ESTADO. Página 4
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VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2012
www.agazeta.com.br
Música
O ADEUS A UM DOS MAIORES CANTORES LÍRICOS DO SÉCULO XX.
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Ideias
FILÓSOFO ITALIANO APONTA CAMINHOS PARA PENSAR O MUNDO ATUAL. Página 8
Mercado
PRODUTORA CULTURAL ANALISA O POTENCIAL DA ECONOMIA CRIATIVA. Páginas 10 e 11
Uma justiça possível PROFESSOR DE HARVARD APLICA A FILOSOFIA POLÍTICA AOS DILEMAS DA VIDA REAL Páginas 6 e 7
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2012
quem pensa
Maninho Pacheco é jornalista, designer gráfico e publicitário. maninho.pacheco@uol.com.br
Paulo Gois Bastos é jornalista e produtor cultural. pgoisb@yahoo.com.br
Erico de Almeida Mangaravite é servidor público e frequentador de concertos e óperas. ericoalm@gmail.com
Joemar Bruno Zagoto é procurador do Estado e advogado. joemarzagoto@uol.com.br
José Antonio Martinuzzo é professor do Departamento de Comunicação Social da Ufes. martinuzzo@hotmail.com
Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br
Tavares Dias é jornalista, escritor e mestre em Estudos Literários pela Ufes. tavaresdiasjorn@gmail.com Maria Francisca dos Santos Lacerda é mestre em Direito e membro da Academia de Letras Humberto de Campos. franciscalacerda@uol.com.br
Aline Yasmin é presidente do Instituto Quorum Produções Artísticas e Culturais. alineyasmin.es@gmail.com
Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.
marque na agenda prateleira Campus Bolsas para áreas de Cultura e Comunicação
A Superintendência de Cultura e Comunicação (Supecc) da Ufes está selecionando bolsistas para projetos de extensão nas áreas de produção cultural, teatro, cinema, jornalismo e publicidade. Serão oferecidas 10 vagas, sendo seis para a área de Cultura e quatro para Comunicação. Inscrições até 1° de agosto. Informações: (27) 4009-7621.
O Rumor dos Cortejos – Poesia Cristã Francesa do Século XX Pablo Simpson
Música
Num período marcado pela falência dos ideais humanistas, os poemas desta antologia sugerem caminhos estéticos para além do desencantamento do mundo e outras visões da contemporaneidade que contemplem também a experiência da fé.
Márcio Neiva volta ao palco do Carlos Gomes
376 páginas. Fap-Unifesp. R$ 40
O cantor apresenta árias famosas e canções da MPB no espetáculo “Márcio Neiva, amigos e canções”, no dia 2 de agosto, às 20h, no Theatro Carlos Gomes. Ingresso na bilheteria: R$ 10.
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de agosto
Conferência sobre Drummond na Biblioteca
O Prof. Me. Danilo Barcelos Corrêa fala sobre o tema “As questões do tempo e do hábito no poema ‘Nosso tempo’ de Carlos Drummond de Andrade”, das 16h às 18h, no Auditório da Biblioteca Pública Estadual, em Vitória. O evento é promovido pela Academia Feminina Espírito-Santense de Letras.
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A Brincadeira Milan Kundera
Lançado na Tchecoslováquia, em 1967, o primeiro romance do celebrado autor de “A insustentável leveza do ser” aborda os dilemas de um estudante que é punido com anos de trabalho braçal, após enviar um cartão-postal ironizando o dogmatismo comunista. 352 páginas. Companhia das Letras. R$ 27
Aquecimento Global & Crise Ambiental Claudio Blanc
de agosto
José Miguel Wisni é atração de Colóquk io
O ensaísta, músico e compositor é um dos conferencistas confirmad os para o I Colóquio de Art ee Psicanálise, promovido pela Escola Lacaniana. O eve nto vai acontecer nos dias 17 e 18 de agosto, no hotel Golden Tulip, em Vitória, com o tema “A arte e a psicanálise no nosso século”. Informações sob re inscrições: (27) 3324-02 68 e lacanian.vix@terra.com .br.
O jornalista e escritor identifica as causas do aquecimento global e propõe a cada cidadão adotar escolhas conscientes em seu cotidiano para a melhoria da vida no planeta e a construção de uma sociedade sustentável. 208 páginas. Editora Gaia. R$ 37
Melhores Poemas Sosígenes Costa
Com organização de Aleilton Fonseca, esta coletânea destaca a riqueza da obra do baiano Sosígenes Costa (1902-1968), que, apesar do reconhecimento da crítica, permanece pouco conhecido pelo público. 224 páginas. Global. R$ 35
QUANDO O FILÓSOFO É POP
José Roberto Santos Neves
Seus livros vendem milhões de exemplares. As aulas do curso “Justiça” acontecem em um teatro lotado, com transmissão pela TV pública americana e acompanhamento pela internet. No Japão, ele é comparado a um astro pop; e na China, foi eleito o “estrangeiro mais influente do ano”. A descrição acima caberia perfeitamente a um ídolo da indústria do entretenimento. Mas o personagem que ilustra a capa desta semana obteve toda essa projeção internacional falando de filosofia política – ou melhor, sobre como aplicar as reflexões de pensadores como Aristóteles e Kant a dilemas morais da
Pensar na web
vida real. Este é o discurso de Michael Sandel, que chega ao Brasil na próxima semana, para uma série de palestras em Fortaleza, São Paulo e Brasília, entre 4 e 8 de agosto. Nas páginas 6 e 7, o procurador do Estado Joemar Zagoto comenta o best-seller “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, em que o badalado professor da Universidade de Harvard relaciona grandes interrogações filosóficas a problemas do cotidiano, como aborto, violência, desigualdade social, eutanásia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc. Conteúdo urgente para ler, pensar e agir. Boa leitura e até o próximo sábado!
é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.
jrneves@redegazeta.com.br
Vídeos de Michael Sandel, interpretações de Dietrich Fischer-Dieskau, fotos do festival Espírito Mundo e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br
Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493
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entrelinhas
Pensar
por MANINHO PACHECO
ERA UMA VEZ NO OESTE
A MARCHA PARA O OESTE A epopeia da Expedição Roncador-Xingu Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas. Companhia das Letras. 672 páginas. Quanto: R$ 63
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ocalizado ao oeste, o planalto central do país sempre imantou uma áurea mística por conta de sua exuberância natural e mistérios insondáveis. Glauber Rocha fez todo um filme sobre a delirante saga da ocupação do Brasil Central: “A idade da Terra”, uma leitura glauberiana do sonho de Rondon. Uma remontagem poética do épico bandeirante. Até a primeira metade do século passado aquela região de cerca de um milhão de quilômetros quadrados, localizada entre os paralelos 15º e 20º, e profetizada pelo padre salesiano João Bosco como o futuro de uma grande civilização, era um mundo totalmente ignorado e que despertava lendas e mistérios. Muitos escreveram sobre o Brasil profundo, sertão e sertanejos. Guimarães Rosa fez desses elementos matéria-prima para “Grande sertão: veredas”. Euclides da Cunha partiu do brasileiro interiorano para conceber o monumental “Os sertões”. O padre Nando do “Quarup” de Antonio Callado se refugia no Parque Nacional do Xingu em busca de respostas sobre sua própria condição humana, em meio à barbárie e estupidez política que nos levaram ao Golpe de 64. Muitos foram os chamados para desbravar aquele desconhecido Eldorado, mas poucos os escolhidos. Os irmãos Leonardo, Orlando e Cláudio Villas Bôas estavam entre esses ungidos. Típicos pequenos-burgueses paulistas, os irmãos Villas Bôas estavam condenados à besta vidinha de São José do Rio Pardo e não viam a menor graça diante da medíocre perspectiva desse previsível destino. Tudo muda na virada do ano de 1937, quando o presidente Getúlio Vargas anuncia à população brasileira, através da Rádio Nacional, o projeto nacionalista de ocupação do interior “Marcha para o Oeste”, que seria o embrião da Expedição Roncador-Xingu (ERX). Criada em 1943 pelo Estado Novo e contada de forma pormenorizada, 47 anos depois, por Orlando e Cláudio (Leonardo morreu na década de 60), a ERX é a base do excelente “A marcha para o Oeste – A epopeia da Expedição Roncador-Xingu” (Companhia das Letras). Trata-se do diário de bordo de uma expedição concebida para desbravar e ocupar o interior, criar vias de comunicação e instalar campos de pouso e bases militares. Oportunidade ideal para os irmãos
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REPRODUÇÃO
Os irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas durante a Expedição Roncador-Xingu (1943-49): mergulho no Brasil profundo
Villas Bôas darem uma guinada em suas vidas. Incorporados à missão, chefiá-la passa a ser uma questão de tempo. A ERX termina oficialmente em 1951. Mas não para eles, que irão passar mais trinta e tantos anos nos rincões do país.
Alter ego
Tal como “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, ou em sua livre tradução cinematográfica “Apocalipse Now”, de Coppola, cujo alter ego do escritor (Marlow) e o do cineasta (capitão Benjamin, vivido por Martin Sheen) acabam se desviando de suas missões oficiais para embarcar em uma viagem pessoal de autoconhecimento no Congo e no Vietnã, também em “A marcha para o Oeste” temos uma paulatina subversão do propósito original do livro, que é retratar o lado formal da
missão varguista. Na medida em que a leitura avança e acompanhamos os Villas Bôas se embrenharem mais e mais em um Brasil desconhecido, o discurso oficial vai-se rareando e passam a tomar forma personagens periféricos como sertanejos, negros, cafusos, mulatos e... índios. Inicialmente um obstáculo a ser transposto, os índios transformam-se, progressivamente, no objetivo central do livro e que, de uma certa forma, traduz aquele que foi o principal legado da ERX - a demarcação do Parque Nacional do Xingu, área de 27 mil km² concebida pelos Villas e formatada pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Existem hoje no Brasil pouco mais de 817 mil índios. Quando os primeiros europeus chegaram aqui, eram cinco milhões. Em “O povo brasileiro”, Darcy nos relata sobre o encontro terrível daqueles tempos e suas consequências:
os massacres. O conflito entre europeus e indígenas se deu por etapas. A principal delas foi no nível biótico. O contato entre os dois povos contaminou nossos autóctones com doenças e pestes mortais. Houve, ainda, o massacre ecológico, perpetrado pelos europeus na disputa do território, matas e riquezas, e o massacre econômico e social, com a escravização desses povos. Em cinco séculos, reduzimos a população indígena de cinco milhões para menos de um milhão. Matamos um milhão de índios a cada cem anos. Eles nos deram um país. Nós retribuímos com brutalidade e genocídio. O trabalho dos Villas Bôas prova ser possível conviver com esses irmãos históricos de formação da nossa brasilidade sem ter que recorrer a livros como “A marcha para o Oeste” para se aprender que em algum momento do passado eles de fato existiram.
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cinema por PAULO GOIS BASTOS
BREVE PANORAMA DO AUDIOVISUAL CAPIXABA Oitava edição da Mostra Produção Independente – Janelas, realizada no Cine Metrópolis, revelou uma nova geração de realizadores locais, aponta jornalista e produtor cultural
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tecnologia digital e as novas formas de acesso a conteúdos possibilitadas pela internet impactam na produção audiovisual. A cada vez mais democrática capacidade de captação e edição de vídeos não garante, por si só, o domínio ou consciência da linguagem audiovisual. Mas não há como negar que a proximidade cotidiana com dispositivos de registro e de montagem tem possibilitado um volume de experimentações impensado em décadas anteriores. No contexto capixaba, a Mostra Produção Independente tem se afirmado como um espaço anual no qual é possível conhecer um panorama das diversificadas experiências audiovisuais locais. Promovido pela Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas do Espírito Santo, a ABD Capixaba, esse evento teve a sua oitava edição realizada entre os últimos dias 10 e 14 de julho no Cineclube Metrópolis (Ufes), em Vitória. Tradicionalmente, além de uma seleção competitiva de filmes locais, a mostra apresenta uma curadoria temática de produções nacionais. Este ano, a programação foi formada exclusivamente por curtas-metragens capixabas. Foram selecionadas 57 obras nos mais diversos gêneros que totalizaram 11 horas de exibição. Praticamente todas as sessões contaram com lotação máxima - uma demostração de que há público para a produção local. Outra novidade foram as premiações das obras por categorias técnicas e não apenas de acordo com gêneros e formatos (ficção, documentário e videoclipe). Tal mudança é uma forma de reconhecer as especificidades e a complexidade inerentes ao fazer cinematográfico que exige o conhecimento, a técnica e o trabalho de diferentes profissionais. A partir do resultado do júri e da própria seleção exibida nos quatro primeiros dias de mostra, podemos notar um amadurecimento e a crescente profissionalização dos realizadores locais. Ao mesmo tempo, ganharam destaque os trabalhos de diretores estreantes e a presença de muitas obras realizadas em oficinas de
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“Romance à la Nelson”, da estreante Mariana Preti: Melhor Direção e Melhor Ficção
Gente nova
Premiações Melhor Fotografia: Maíra Tristão, por “Além do Mar que Há entre lá e cá” Melhor Arte: Alex Vieira, Alexandre Brunoro, Guido Imbroisi e Raphael Araújo, por “Confinópolis”
Troféu Jaceguay Lins – Melhor Ficção: “Romance à la Nelson”, de Mariana Preti Troféu Jaceguay Lins – Melhor Documentário: “Espírito Santo Futebol Clube” (foto), de André Ehrlich Lucas e Lucas Vetekesky Troféu Jaceguay Lins – Melhor Videoclipe: “Mais Loko”, de Luiz Eduardo Neves Melhor Direção: Mariana Preti, por “Romance à la Nelson”
Ibero-Americano de Cinema, em junho. Filmado nas ruas de Muqui, o curta conta a história de Carrão, um garoto excêntrico que fica atordoado ao perder o seu carro imaginário roubado. Uma sociedade que vive sob regime totalitário, comandado por um tirano, e em permanente clima policialesco é o que conta “Confinópolis”, de Raphael Araújo. Originalmente publicado como quadrinho, nas três primeiras edições da revista “Prego”, pelo próprio diretor, essa produção levou o prêmio de melhor curta-metragem ficção do Fest 2012 Festival Internacional de Cinema Jovem, que aconteceu no início de julho, na cidade portuguesa de Espinho. No final de junho, o curta também foi exibido na 7ª Edição Cine MuBE Vitrine Independente, em São Paulo e, em agosto, fará parte da programação da 3ª edição do Espantomania – Mostra de Curtas de Horror/Fantástico de São Paulo.
Melhor Som/Trilha: Eduardo Yep e José Luis Oliveira, por “Os lados da Rua” Melhor Edição/Montagem: Lucas Bonini e Wayner Tristão, por “Pela Parede” Menções Honrosas: “Aleluia”, realizado por alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Marinete de Souza Lima, de Feu Rosa; e “O Jaraguá”, realizado por alunos da Rede Pública de Ensino de Anchieta “Tortoise e a Espeleosofia”, de Gabriel Albuquerque
Melhor Roteiro: Jovany Sales Rey, por “Como a Noite Apareceu”
“A História do Puteiro Mais Antigo de Vitória”, de Sidney Spacini
iniciação ou formação audiovisual. A qualidade de alguns filmes da 8ª Mostra Produção Independente – Janelas já havia sido reconhecida em outros festivais. É o caso de “Os Lados
da rua”, de Diego Zon. Essa ficção foi selecionada para uma mostra paralela do Festival de Cannes deste ano e premiada como o melhor curta-metragem do 22º Cine Ceará – Festival
O resultado da premiação da 8ª Mostra Produção Independente – Janelas mostra o quanto o cinema capixaba tem se renovado. É o caso de “Romance à la Nelson”, dirigido pela estreante Mariana Preti, premiado na categoria de Melhor Direção, além de ter levado o Troféu Jaceguay Lins de Melhor Ficção. Vinda do teatro e cursando o 4º período do curso de Audiovisual da Ufes, Mariana constrói uma narrativa inspirada na dramaturgia de Nelson Rodrigues e conta um desencontro amoroso envolvendo três personagens. O curta apresenta decupagem bem marcada, uso de planos fechados e um permanente jogo com os espelhos presentes no cenário quase único de um quarto. Uma das Menções Honrosas da mostra, “A história do puteiro mais antigo de Vitória” também conta com estreante na direção. Sidney Spacini usa a linguagem de um documentário expositivo tradicional para recriar a memória do Centro de Vitória. Os menos desavisados que assistem ao curta acreditam facilmente que se trata de uma obra documental, dado o tratamento impecável da direção de arte, o uso de imagens de época e a presença de depoimentos de populares.
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falando de música
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por ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE
A VOZ SOBERANA DO CANTO LÍRICO
Don Giovanni Ópera de Mozart. Direção: Carl Ebert. Gravadora Arthaus. 1961. DVD duplo, 176 minutos, em preto e branco. Importado. Quanto: US$ 35, em média
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lbert era um promissor cantor lírico, no início de seus estudos para se tornar um profissional. Gostava de passar o tempo livre montando espetáculos com marionetes para seu irmão, Martin, deficiente físico e mental. Nessas ocasiões, Albert interpretava todos os papéis, mostrando um talento inato para as artes dramáticas. Subitamente, o cantor foi convocado pelo Exército – afinal, era tempo de guerra – e teve que se juntar às tropas de seu país, em um dos lugares mais frios da Europa. Lá, passou a tomar conta de cavalos, que pereciam devido às condições inóspitas. Deixou para trás a mãe, viúva, e o irmão. Pouco tempo depois, Albert recebeu uma carta da mãe, relatando que o governo do seu próprio país enviara Martin para um campo de concentração, onde o deixaram morrer de fome. E mais: sua casa fora destruída em um bombardeio. Liberado para passar alguns dias com a mãe, Albert ajudou-a na mudança para a casa de amigos; os objetos que resistiram às bombas cabiam em um carrinho de mão. Resiliente, o jovem mantinha um diário, descrito como sua “tentativa de manter uma vida interior em meio ao caos”. Também frequentava, com a mãe, teatros e espetáculos musicais, “desafiando o mundo irracional”. Não bastassem tais tragédias, Albert foi mais uma vez enviado para o front: três dias antes do fim da guerra, foi capturado e enviado para um campo de prisioneiros. Muitos poderiam pensar que a história desse cantor terminaria aí. Entretanto, em 18 de maio de 2012, a imprensa de todo o mundo anunciou a morte, aos 86 anos, de um dos maiores cantores líricos do século XX: o barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau. Nascido Albert Dietrich Fischer, cuidou dos cavalos na Rússia e foi capturado na Itália. Com o fim da guerra, os soldados alemães começaram a ser enviados para casa. Porém, Fischer-Dieskau havia se tornado tão popular cantando para as tropas na carroceria de um caminhão que foi mantido prisioneiro até 1947. Uma vez liberto, voltou aos seus estudos musicais no Conservatório de Berlim. Nessa ocasião, a sorte dos esforçados bateu às portas do barítono: chamado às pressas como substituto em um concerto, virou uma celebridade da noite para o dia. Com o passar dos anos, o cantor se tornou conhecido pela versatilidade. Abordando desde Bach e Gluck, passando pelas óperas de Mozart e pelos mestres das canções alemãs Schubert, Schumann e Wolf, chegando até com-
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O barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, que morreu no último dia 18 de maio, aos 86 anos: timbre inconfundível
positores modernos como Britten e Reimann, Dieskau sempre tinha algo a dizer por meio de sua arte. Dono de um timbre inconfundível, enfatizava a clareza na pronúncia das palavras. Suas interpretações caracterizavam-se pelo refinamento e pela atenção aos detalhes.
Montagem
Artista multifacetado, Fischer-Dieskau foi professor, escritor e pintor. No campo da música, deixou muitas gravações. Um desses registros foi lançado recentemente em DVD: trata-se de uma montagem histórica da ópera “Don Giovanni”, de Mozart. Dirigida por Carl Ebert, foi concebida para a inauguração da nova sede da Ópera Alemã, uma vez que o antigo prédio, assim como a casa de Fischer-Dieskau, fora destruído durante a
guerra. O ano era 1961, e no pós-guerra a opulência não era bem-vinda. Ademais, o fatídico muro de Berlim havia sido erguido meses antes. Esse contexto se reflete na produção, sóbria e modesta. Os cenários são datados e alguns momentos da encenação deixam a desejar, como o duelo entre Don Giovanni e o Comendador, montado de maneira nada convincente. Além disso, a obra foi cantada em uma tradução para o alemão, e não no original italiano. Todavia, musicalmente os resultados são esplêndidos: Fischer-Dieskau encarna um Don Giovanni completo. Cínico no trio com Leporello e Donna Elvira, sedutor no dueto com Zerlina, enérgico na “Ária do Champagne” (não se atrapalhando com o andamento aceleradíssimo escolhido pelo regente) e arrogante nas cenas do cemitério e do banquete, quando é tragado
para as profundezas do Inferno, Dieskau deixou sua marca em um papel reconhecido por grandes interpretações (como as dos baixos Siepi e Ramey e do barítono Wächter). O tenor Donald Grobe canta as duas árias reservadas ao seu personagem (Don Ottavio) com perfeição técnica. Walter Berry (Leporello) empolga o público berlinense com a “Ária do Catálogo”, mantendo o bom nível ao longo de toda a récita. Quanto às mulheres, o destaque fica por conta da Zerlina de Erika Köth, em uma atuação de referência. Elisabeth Grümmer (Donna Anna) e Pilar Lorengar (Donna Elvira), duas cantoras de reconhecido talento, guardam o melhor de suas atuações para as árias do segundo ato. Regência atenta do húngaro Ferenc Fricsay. Um belo tributo, que nos faz pensar que Martin ficaria orgulhoso pelo sucesso do irmão.
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cidadania
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por JOEMAR BRUNO ZAGOTO
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Filósofo americano provoca o leitor a afastar posturas simplistas e radicais quando se trata de discutir a questão-chave da obra: como devemos nos organizar para alcançar uma sociedade justa?
UMA VISÃO HUMANISTA DA JUSTIÇA
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Aborto
LIVRO DE PROFESSOR DE HARVARD PROPÕE SOLUÇÃO PARA PROBLEMAS DO COTIDIANO A PARTIR DA FILOSOFIA POLÍTICA
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s cotas raciais nas universidades são realmente justas? É justo cobrar impostos mais altos dos ricos para ajudar os pobres? As leis podem nos obrigar a seguir a cartilha do “politicamente correto”? É justo que o jogador Neymar ganhe 1500 vezes mais que um professor escolar? Quais princípios o governo deve seguir ao decidir questões como aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo ou eutanásia? Essas e outras discussões vêm dividindo opiniões sobre o papel e significado da justiça na sociedade contemporânea. E o livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, do filósofo americano Michael Sandel, lança muitas luzes sobre elas. Professor da Universidade de Harvard, Sandel ministra há 30 anos um dos mais disputados cursos da história daquela instituição. A cada ano, centenas de alunos lotam o anfiteatro do campus para participar de suas palestras sobre “justiça”. O segredo do sucesso parece estar na capacidade de Sandel de ligar grandes interrogações filosóficas a problemas do cotidiano. E mais: em suas mãos, as ideias de Aristóteles, Kant e Rawls sobre o delicado tema da justiça tornam-se surpreendentemente acessíveis. Engana-se
GIVALDO BARBOSA/AG. GLOBO/2007
Manifestação contra o aborto em Brasília: tema também é discutido no livro
quem acha que se trata de um texto reservado aos círculos acadêmicos ou ao debate sobre a realidade norte-americana. Para se ter uma ideia, a obra já vendeu milhões de cópias no mundo todo. E olhe que estamos falando de um livro de filosofia moral e política... Além disso, Sandel, que já foi capa da revista
“Newsweek” como o estrangeiro mais influente na China, é recebido em países como Japão e Coreia do Sul como uma celebridade. O livro confronta nossas convicções morais com os princípios nos quais elas se baseiam. E ele faz isso a partir de situações intrigantes. Imagine, por exem-
gundo ele, à medida que o fosso entre ricos e pobres aumenta, as pessoas perdem a noção de que a vida em sociedade é um projeto comum. Além disso, Sandel retoma a tradição aristotélica, propondo uma “ética baseada na virtude”. Não nos realizamos plenamente como seres humanos vivendo apenas nossa “vida privada”, como pais, trabalhadores e consumidores. Ele acredita que podemos revigorar o discurso político e a vida cívica discutindo, como cidadãos, o que é - ou deveria ser - uma “vida boa”. E mais: dá para fazer isso garantindo a tolerância e o respeito mútuo. As pessoas não precisam chegar a um acordo; precisam aprender com as diferenças. Ele contesta o ideal do “Estado neutro”. Não há como resolver as questões sobre justiça e direitos sem tomar partido em controvérsias morais e religiosas; e, mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável.
plo, que você seja o condutor de um bonde desgovernado. Os freios não funcionam. À sua frente encontram-se cinco operários nos trilhos. Você tem certeza que, se os atingir, irá matá-los. De repente, você percebe um desvio, onde há apenas um operário que, se atingido, será igualmente morto. Você tem a alternativa de desviar o bonde. Qual a coisa certa a fazer? Os que optam por desviar partem do princípio de que é melhor sacrificar uma vida para evitar a perda de muitas. Mas imagine agora que um terrorista tenha instalado uma bomba no centro de uma grande cidade. Só ele conhece a localização dos explosivos bem como a forma de desativá-los. Se não desarmada, a bomba ceifará a vida de centenas de pessoas. Suponhamos também que a única forma de evitar a tragédia decorrente da explosão seja torturar a jovem e inocente filha do terrorista para fazê-lo falar. Você seria coerente e aplicaria o mesmo princípio que o levou a desviar o bonde?
Dilemas
Se você está com mais dúvidas do que respostas, não se preocupe. Afinal, esses são dilemas morais justamente porque evocam princípios conflitantes. A
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No best-seller “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, Michael Sandel relaciona pensamento filosófico com exemplos da vida real
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abordagem de Sandel nos faz refletir sobre eles como forma de afastar posturas simplistas e radicais quando se trata de discutir a questão-chave da obra: como devemos nos organizar para alcançarmos uma sociedade justa? O autor está ciente de que a filosofia política não pode “solucionar definitivamente” todas as discordâncias surgidas nas sociedades complexas e plurais dos nossos dias, marcadas não só por desigualdades de renda e oportunidades, como também pela diversidade de projetos de vida. Todavia, a filosofia traz “clareza moral para as alternativas com as quais nos confrontamos como cidadãos democráticos”. A obra se estrutura a partir da análise de três escolas de pensamento que têm dominado as discussões sobre a justiça. Cada uma delas dá respostas distintas à pergunta “o que é a coisa certa a fazer?”. A primeira escola é o utilitarismo, segundo o qual tudo depende de um cálculo de custos e benefícios: correto é fazer aquilo que maximiza a felicidade e o bem-estar geral. Assim, um utilitarista consideraria justo cobrar mais impostos dos ricos para ajudar os pobres. Em contrapartida, concordaria com a tortura da filha do terrorista, assim como poderia concordar com a supressão de minorias religiosas se elas perturbassem
a fé professada pela maioria... A segunda abordagem é a da tradição liberal, que vê a liberdade – e não a felicidade – no âmago da justiça. De um modo geral, os liberais enfatizam os direitos individuais, defendem a neutralidade do Estado e a livre escolha do indivíduo. Segundo eles, as pessoas são donas do próprio nariz. Não cabe aos governos induzi-las à virtude. Quem poderá dizer o que é uma “vida boa”? Pouco importa se prefiro ser hippie a dedicar minha vida à acumulação de bens materiais; se, tendo eu um plano de saúde privado, vou ou não usar cinto de segurança ao dirigir; se, sendo adulto e capaz, resolver me prostituir. Nada de paternalismo. Para os liberais, o risco da intolerância e da coerção está sempre à espreita quando se cuida de usar a força da lei para promover ideais morais e religiosos. Porém, na hora de decidir o que fazer para que as pessoas possam perseguir, por si sós, os próprios objetivos, o pensamento liberal se divide. Alguns são devotos do “Estado mínimo” e torcem o nariz para as intervenções do governo no mercado, especialmente para redistribuir renda e riqueza. Segundo eles, há desigualdade desde que o mundo é mundo; não cabe
aos governos tentar consertar o que a “natureza” criou. Outros, mais igualitários, saem em defesa não só das liberdades civis (religiosa, de expressão etc.), mas também dos direitos sociais e econômicos básicos, como saúde, educação e proteção contra o desemprego. Sustentam que as desigualdades são o reflexo de injustiças que se estabelecem desde o início das nossas vidas. Embora não defendam uma igualdade absoluta, consideram que só há justiça quando se permite que a vida das pessoas dependa do que cada um escolheu com autonomia, e não dos “acasos da natureza”, isto é, das “circunstâncias” que a cada um cabe viver, por sorte ou azar. Assim, o fato de ter nascido rico ou pobre, sadio ou doente, bonito ou feio não deve selar o destino das pessoas. Essa “distribuição natural” não é justa ou injusta; o que é injusto é o modo como a sociedade lida com tais circunstâncias. Sandel faz parte da terceira e última escola de pensamento, que se afasta do individualismo liberal. Apesar de também se preocupar com a desigualdade, ele o faz não só porque ela é resultado da injustiça com aqueles que nasceram em “desvantagem”, mas, sobretudo, pela preocupação com a “comunidade”. Se-
O caso do aborto é um bom exemplo. Os favoráveis à proibição alegam que não se pode tirar a vida de um ser humano inocente. Outros discordam desse ponto de vista porque reconhecem que a definição do “status existencial” do feto envolve grande carga moral e religiosa. Argumentam que o debate político sobre o direito das mulheres ao aborto não pode entrar nessa discussão: a política deve ser neutra. Para Sandel, contudo, esse posicionamento é equivocado porque, na verdade, ele recusa implicitamente a concepção moral do catolicismo de que o feto é um ser humano desde a concepção. Reconhecer essa premissa não significa defender a proibição do aborto. Significa apenas que a neutralidade, aqui, é impossível. Por outro lado, não são apenas questões como o aborto ou a homossexualidade que despertam divergências morais. Devemos superar certa tendência de empobrecimento do debate político, limitando-o a assuntos “gerenciais” e “tecnocráticos”. Muitas das questões econômicas que nos são apresentadas como “técnicas”, por exemplo, suscitam grandes indagações em termos de justiça. E, ao discuti-las, não podemos deixar de lado nossas convicções éticas, morais e espirituais. É claro que há muitas sutilezas e complexidades nesses debates. Não é por isso, porém, que devemos nos acomodar às nossas certezas. Afinal, como diz Sandel, “meditar sobre a justiça parece levar-nos inevitavelmente a meditar sobre a melhor maneira de viver”.
JUSTIÇA - O QUE É FAZER A COISA CERTA Michael Sandel. Civilização Brasileira. 352 páginas. Quanto: R$ 31,90
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2012
ideias por JOSÉ ANTONIO MARTINUZZO
PARA PENSAR? SEJA CONTEMPORÂNEO!
O QUE É O CONTEMPORÂNEO? E OUTROS ENSAIOS Giorgio Agamben. Argos, 2010. 92 páginas. Quanto: R$ 19
Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, o caminho para se refletir a atualidade passa por quebrar o tempo linear e ir além da superfície para tentar “responder às trevas do agora”
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á alguns anos, o psicanalista francês Charles Melman observou um paradoxo destes tempos de comunicação, e quase tudo mais, sem limite: “Há uma formidável liberdade, mas ela é estéril para o pensamento. Nunca se pensou tão pouco”. Melman assinalava que é o “obstáculo” que produz o trabalho do pensar. Mas, se estamos numa planície de fácil acesso a possibilidades de satisfação imediata e recorrente por objetos redentores, o que nos levaria à aventura ou à fadiga do pensar? Um olhar atento indicaria que motivos não faltam. Mas não é de razões para pensar que aqui se falará. O tema é o modus operandi do pensar, parte decisiva inclusive para se descobrir no que pensar criticamente. A nos guiar, o professor de Filosofia Teorética do Instituto de Arquitetura de Veneza Giorgio Agamben, com seu livro “O que é o contemporâneo? e outros ensaios” (Argos, 2010), cujas observações estão na origem do I Colóquio de Arte e Psicanálise, que a Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória realiza nos dias 17 e 18 de agosto. Como assinalado, o autor não enumera razões para pensar, mas aponta, entre outras discussões, um caminho para o pensar: na sua visão, é preciso ser contemporâneo. Aonde se vai chegar, ou sobre o quê pensar, é por conta e obra de cada “contemporâneo” que assim se fizer. A análise de Agamben é constituída em função da necessidade de seus alunos se aproximarem de textos que, na linha do tempo, eram de passados remotos e até remotíssimos, além daqueles produzidos no presente. Nesse contexto, se pergunta: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que é ser contemporâneo?”. Para discutir tais questões, o autor se ampara no exame do fazer poético, da moda, da Literatura, da própria Filosofia. De pronto, afasta-se a interpretação do senso-comum: ser contemporâneo não equivale a ser moderno ou atual. Muito pelo contrário. Dialogando com a Filosofia, o primeiro aspecto: o contemporâneo é o intempestivo. “É verdadeiramente contemporâneo a seu tempo aquele que
DIVULGAÇÃO
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros.” (p. 62). Giorgio Agamben Professor de Filosofia Autor propõe aos leitores interrogarem o passado com as perguntas do presente
não coincide perfeitamente com este, nem está adequado a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” (p. 58). O autor avança na sua definição em diálogo com o fazer poético, tirando duas conclusões: ser contemporâneo é ser capaz de perceber, apontar ou promover fraturas no tempo, para agenciar um encontro de eras e gerações. Também: ser contemporâneo é instalar-se como observador e experimentador das obscuridades do seu tempo. “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é
capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (p. 62). Ou seja, ao contemporâneo, são as trevas que lhe concernem, que não cessam de interpelá-lo, mas que lhe fogem eternamente à plena compreensão. Assim, Agamben dá mais um passo, permitindo entrever que o contemporâneo é ainda um corajoso e persistente, pois sua posição implica “ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia infinitamente de nós” (p. 65).
Marca
Falando de moda, e sua temporalidade peculiar, Agamben assinala uma outra marca do contemporâneo: ser descompromissado com a linearidade do tempo. O autor segue na viagem “irregular” na linha da cronologia para assinalar que ser contemporâneo é
também buscar perceber no presente as indeléveis marcas do arcaico. “Somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode ser dele contemporâneo. [...] A origem (...) não cessa de operar, como o embrião que continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança que continua a agir na vida psíquica do adulto” (p. 69). Enfim, para Agamben, ser contemporâneo é descolar-se do atual, desviando-se de suas luzes e mergulhando-se nas suas trevas, liberto de suas convicções e verdades, perscrutando na escuridão dos seus fundamentos. É quebrar o tempo linear para perceber relações, interfaces, possibilitando-se ler de modo inédito a História. É interrogar o passado, ou junto ao passado, com as perguntas do presente, sem, no entanto, ser exitoso por completo. É focar nos obstáculos e nos obscuros do atual para enfrentar suas facilidades hipnóticas e pasteurizadoras. É usar a liberdade para pensar. Ir além da superfície para tentar “responder às trevas do agora”. É ser o que mais falta à atualidade.
poesias REFLUXO DA NATUREZA MARIA FRANCISCA DOS SANTOS LACERDA
crônicas MULHERES DE ATENAS
por CAÊ GUIMARÃES sombra projetada na parede da caverna por uma fogueira ladeada por pedras, contamos e recontamos assombro e deslumbramento. Somos os inventores de cada momento, porque à guisa de garras, cascos e venenos potentes, e no lugar de asas, guelras ou couraças, vestimos a mais vasta armadura, o equipamento natural que nos foi dado sabe-se lá por que mistério, acidente biológico, determinação divina ou tudo isso forjado na mesma têmpera, dois metais nobres que combinados se tornaram nossa marca no estar no mundo, e que comungam permanência e evanescência no mesmo pote: a capacidade inventiva e a memória. A mitologia grega inventou tudo antes de tudo ser inventado. Em suas narrativas, a luta de classes surgiu antes de Marx e a psicanálise surgiu antes de Freud. No panteão helênico, Mnemosyne, de onde vem a palavra memória, é uma deusa filha
Não sei se vês e se pensas, És hoje esfíngica, enigmática. Todos ao teu redor, perplexos, Aguardam o teu despertar, Neste vale de lágrimas. E todos num mesmo pensar.
MEMÓRIAS DE PORTO E DE MAR
Querias tomar conta, participar, Davas ordens, nem sempre seguidas. (As ordens das mães são assim). Vigiava as chegadas e as partidas De todos, e dos netos, enfim. Aonde vais, menino? Demoraste, hein? Eram tuas frases preferidas. Sempre ignoradas, jamais sentidas. Vejo-te, hoje, nessa cama, esquálida, Cadavérica, quase ridícula.
Acorda, vem mandar, és sábia. Podes tudo falar, participar. Pedimos perdão pelo choro Que te fizemos amargar.
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 28 DE JULHO DE 2012
de Urano, o céu, e Gaia, a terra. Ela é irmã de Chronos, o tempo, de onde deriva a palavra crônica, que é o que faço agora, e de Okeanos, o oceano. A memória é então filha do céu e da terra, irmã do tempo e do mar. Metáforas da infinitude. Insatisfeitos com essa invenção absurdamente linda, os gregos foram além e deram uma filha para a memória. Calíope, mãe e musa da literatura e das artes, onde também se incluía a ciência, que por sua vez é mãe de Orfeu, um dos primeiros e grandes poetas pré-homéricos. Ao personificar memória e invenção em corpo e almas femininas, mãe e filha que comungam o tal carbono 14 e a espiral infinita, a cosmogonia grega amarrou uma sinapse potente do comportamento feminino com a propriedade de conservar e criar. Permanecer e ir além. E essa profundidade, cheia de certeza e intuição, vem sendo amordaçada pela futilidade da máquina de moer carne do mundo. Um sistema que quer nos empacotar como salsichas. Que nos anestesia no torpor de um presente contínuo. E que de forma sutil e inarredável nos torna, paulatinamente, órfãos dessas mulheres de Atenas, que pacientemente aguardam pelo nosso despertar.
Somos todos irmanados por uma molécula de carbono 14 que se torna mais e mais complexa e de longe – ou bem perto – tem o formato de uma espiral de matéria orgânica a qual chamam DNA. Somos também irmanados por confiança e medo, lucidez e delírio, fome e apatia. Somos, de resto, o que deu errado – certo? – na linha fina do luzir de um novo dia. E se seguimos condenados à repetição, como as abelhas e os ratos, temos também a imensa possibilidade do devir, de construir fato e artefato. E de inventar pintura e poesia quando é cartesiana e concreta a valia. Também somos, ou ao menos deveríamos sê-lo, o retrato mais concreto – abstrato? – das máscaras de Deus na superfície do planeta. Por isso inventamos signos, lendas, mitologia. Pintamos na mesma caverna escura o que nos assombra lá fora, ainda que estejamos todos dentro da jaula. E à
Vejo-te, com os olhos da mente, Em câmara lenta, solenemente, Numa foto antiga, em branco e preto, O olhar nos fatos presentes, Como se olhasse o bordado desfeito.
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por TAVARES DIAS
É muito tarde, estás apática. A ternura não sei se percebes, Não sei se vês e se pensas. És hoje esfíngica, Enigmática.
ANJO-OPERÁRIO Venham ver os meninos, Venham ver os divinos. Todos trabalham e têm fome, Mas não têm teto nem nome. Não têm escola nem vida, Têm escravidão não nascida. Não têm terremotos nem guerra, Mas todas as tristezas da Terra. Têm cabeça-corpo de criança, Mas de adulto a desesperança. Fazem tênis, carvão, rede, riqueza, Mas ninguém vê sua tristeza. Venham ver esses meninos, Venham ver esses divinos...
Sabiá passa pelo buraco da fechadura. Ganha o mundo. É um sonho sonhado dormindo. De manhã, menino ensina na escola, na hora do recreio: sabiá é um canto mágico vestido de pena. Fininho assim. Se cismar, passa até em buraco de agulha. Domingo de tarde, menino vai com o pai ao zoológico. Tem muita gente espiando a onça pintada. Tirando fotos. Contando mentiras de caçador. A onça se aporrinha, solta um esturro. A terra treme. Menino treme junto. Aprende: onça pintada é um rugido tremendo que mora escondido entre bigodes, dentes e pintas. E não gosta de história que não tem dia da caça. Também tem manhã bonita. Sonho sonhado acordado. Na beira do rio. O Sol ainda se espreguiçando. O olhar alumia morno. Lambari chega feliz na flor-d’água. Vê o claro do Sol. Salta um palmo acima do rio. Menino vê o Sol nas
escamas molhadas do peixe, o espectro multicor. Não conta pra ninguém: peixe é um cristal que tem fosfato dentro e que a gente come pra ter boa memória quando crescer (essa parte é a mãe quem fala, na hora do almoço). Menino mora em corpo de pré-adolescente. Caminha pra casa, na volta da escola. Soninha também. Calha de andarem juntos por infinitas três quadras e uma praça. Conversa miúda, toda hormônios. Rubores e gaguejos. Menino escreve numa folha de caderno, de noite: coração deve de ser um poeta que mora no peito da gente e bate asa querendo cantar feito um galo quando a gente vê os olhos de Soninha. Guarda o papel. Bem dobradinho. No fundo da lata de estilingue, bola de gude e pião. Enterra no jardim. Menino muda pra corpo de adulto. Conhece mulheres. Encantos. Desfruta de noites de gemidos pares, madru-
gadas de ganidos ímpares. Parcerias geniais. De fazer amor fazendo declaração de amor. De se perder nos olhos da amada. Faz poeminha apaixonado: no trança-trança/de pernas e gritos/me deslimito/vago num fora de eu/me acho num descomum/me encontro no dentro seu/te aperto que estamos/me abraça que vamos/porque agora eu somos/você todinha amamos/en la ventana la luna/corisco varre a coluna/o enquanto de um grito plana/milênio em que o nós é um. Menino de porto e de mar. Danado de andejo - já reside em corpo de sessentão. Amansa. Aprende que existe um tal de o outro - irmão. Também dito o semelhante, o próximo. E faz amizade com livros. Com a boa música. Com o silêncio. Com pessoas serenas e com as que buscam a serenidade. E tem filhotes doces que só favos de mel. Sorri: a maior riqueza da vida é ela mesma.
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economia criativa
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por ALINE YASMIN
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INTERNACIONALIZAÇÃO DA CULTURA: UM CAMINHO COM VÁRIAS FACES Produtora cultural destaca vocação do Espírito Santo como exportador de talentos artísticos e intelectuais, elencando ações efetivas para construção da imagem do Estado no exterior
INSTITUTO QUORUM
conforme citação da professora Dra. Ana Carla Fonseca, em recente curso de Economia Criativa e Emprendedorismo que circulou por diversas capitais brasileiras. A própria Embratur, instituição máxima do setor no Brasil, cita em carta de apoio ao Instituto Quorum, assinada pelo Sr. Marco Antonio de Britto Lomanto, diretor de Produtos e Destinos, a importância de se atrelar a estratégia internacional como forma de atratividade e motivação do público estrangeiro, conforme Relatório 2012 Brasil Business Monitor International, que aponta como atração-chave a diversidade cultural para a promoção da imagem do país.
Negócios
Banda JoeZee em residência artística no festival Espírito Poitou, na França, com a banda francesa Coup d’Marron e a Babilak Bah (MG): projeto continua em 2012
O
processo histórico dos últimos 20 anos convergiu esforços e fatores que levaram o Brasil a um novo patamar no cenário internacional. Respeito passou a ser a ordem do dia no que tange à forma como o mundo nos vê e como se relaciona conosco. Deixamos de ser um país subdesenvolvido, visto aos olhos estrangeiros como um exótico cenário com praias e palmeiras, rodas de batucada em cada esquina e mulatas com trajes mínimos, reconhecidos por nossa alegria a toda prova e uma desorganização tida até então como endêmica, para nos tornarmos uma economia sólida, capaz de reverter o tsunami de 2009, se não em marolinhas, mas em ondas que não abalaram nossa estrutura econômica, política e social. Fatores que nos levam a sobreviver ao novo maremoto que naufragou Portugal, Grécia e Irlanda e, agora, deixa à deriva milhões de espanhóis. Todos olham para o Brasil não mais como a distante Ilha de Vera Cruz, mas como uma nação sólida e atrativa para negócios. Acabamos de sediar a maior reunião da ONU em todos os tempos, durante a Rio + 20. Soma-se a isso o fato do país estar a
um ano e meio de sediar uma Copa do Mundo e a quatro das Olimpíadas do Rio de Janeiro, e nos vemos na boca de cena dos grandes eventos internacionais. Este cenário nos coloca na rota de nos tornarmos um dos maiores destinos do mundo em todas as áreas do turismo – cultura, lazer, negócios, ecológico, esportivo e de aventura. O instrumental para consolidar este momento e potencializar ao máximo o fluxo de estrangeiros que nos visitarão, e que aqui deixarão divisas, gerando emprego e renda, passa pela colocação no mercado internacional de produtos que o Espírito Santo já exporta de maneira pioneira e reconhecida no mercado nacional. Uma indústria não poluente, que gera divisas, conhecimento, cidadania e divulgação do nosso Estado como potencial destino, em especial por sua riqueza: a arte e a cultura.
Intercâmbio
Nosso país tem balança comercial equilibrada, estabilidade monetária, inflação controlada e mercado interno vitaminado. Deixamos de ser exportadores de matérias-primas para enviar ao mundo o que temos de melhor nos meios produtivos.
Dados da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos (APEX Brasil) mostram que, desde 2000, as exportações para a Europa aumentaram 5,03%. Criado em 1988, com a participação de vários países que na geopolítica da época eram denominados como “em desenvolvimento”, onde se incluía o Brasil, o Sistema Global de Preferências Comerciais entre Países em Desenvolvimento (SGPC) conta hoje com 43 participantes outorgantes. O intercâmbio de concessões comerciais entre seus membros promove e amplia os laços comerciais entre os países, não somente em benefício próprio, mas também em benefício do comércio global. No que tange à economia criativa, nosso Estado já aponta como um importante exportador de talentos artísticos, culturais e intelectuais, graças à mobilização do próprio segmento. Cabe perguntar e propor uma resposta sobre o tema das indústrias criativas e a internacionalização da cultura brasileira, não apenas como possibilidade de fomento dessa indústria, não poluente e de baixíssimo custo, mas também como ferramenta de divulgação do destino Brasil. Nossa experiência de meia década à frente do Espírito Mundo, conjunto de fes-
tivais realizados nas cidades de Celles sur Belle e Aix-en-Provence (França), Birmingham (Inglaterra) e Madri (Espanha), com a participação de mais de 100 artistas e técnicos do Espírito Santo, de 2008 a 2010, e também de profissionais de outros Estados, a partir de 2011, nos inseriu em importantes expedientes de guias turísticos de regiões francesas, como a de PACA – Provence, Alpes e Cote d´Azur,que representam um dos eixos prioritários de relações internacionais para o Brasil. Isso nos leva a algumas reflexões. É preciso fortalecer a imagem do Brasil e do Espírito Santo no cenário internacional, posicionando-os fora do estereótipo caricato ao qual fomos submetidos por tantos anos, conforme citamos na abertura deste artigo, muitas vezes incentivados por instituições que apoiaram a imagem do Brasil que rebola e ri da própria miséria. Quem abre este caminho fora do mainstream são os artistas emergentes, cujo trabalho autoral não é beneficiado pela mídia convencional e por produtoras especializadas no segmento entretenimento. Tais produtos habitualmente não são foco das empresas patrocinadoras brasileiras, já que a contrapartida em
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Ilustração de Rodrigo Britto inspirada no shopping Bullring, de Birmingham: registro da edição britânica do Espírito Mundo
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imagem não é de alcance vultoso, embora os investimentos também não o sejam. Optam, portanto, por projetos associados a grandes nomes ou ditos em ascensão, todos, sem dúvida, ligados a um movimento de entretenimento que gere retorno em bilheteria e na grande imprensa internacional. A política de fortalecimento em torno dos artistas independentes torna-se então fundamental para ampliar as possibilidades de se mostrar a verdadeira cara do Brasil, que perpassa estilos e manifestações que vão do erudito ao contemporâneo, não ignorando a cultura popular de fato. A quem caberia então apoiar os artistas que saem das universidades, coletivos, comunidades e periferias, cuja possibilidade de investir em um intercâmbio internacional seja ainda um sonho distante? E
por que investir numa carreira internacional?, perguntariam os céticos. O governo federal assinou em outubro de 2011 um programa conjunto na área de cultura com a Comissão para Educação, Formação, Cultura e Juventude da União Europeia, no âmbito da 5ª Reunião de Cúpula Brasil/União Europeia. Em pauta, a internacionalização da cultura e alguns acordos bilaterais para integrar este movimento, em ebulição no Brasil, e pela própria demanda dos países que querem reconhecê-lo por sua inteligência, produção e difusão artística. Os planos e ações efetivas que compõem esse programa não se “capilarizaram” para os Estados e nem integraram os projetos já implantados pela sociedade civil. A resposta cabe então nas duas pontas: para o artista, criar e produzir são pro-
cessos infinitos. O intercâmbio não pode ser mensurado por “apreensão”, mas por um resultado empírico que vai colaborar subjetivamente com o processo criativo. As trocas de saberes e tecnologias (abarcando aqui o sentido da tekhne) são fundamentais para o criador e para o homem. Em um mundo marcado pelo discurso da mundialização, pelo contato cada vez mais próximo com o outro e por todas as evoluções tangíveis, o artista deve ter, no seu âmbito de escolha, a expansão de suas possibilidades como um mecanismo do próprio desenvolvimento criativo. Na outra ponta, indicadores do turismo afirmam que o fluxo qualificado turístico é essencialmente fomentado pelo interesse na arte e na cultura de um país, apontados pela Organização Mundial do Turismo e Fórum Econômico Mundial,
A gama de negócios advindos ou a advir da abertura do Brasil no exterior posiciona positivamente os centros ditos periféricos do país no momento de oferta do destino Brasil diante da Copa e das Olimpíadas. Neste caso, temos outra vantagem competitiva. Sobre o primeiro evento, estamos na região com maior número proporcional de sedes de jogos do Mundial (Rio, São Paulo e Minas Gerais). E a Bahia, nossa divisa ao norte, também sediará partidas. No caso das Olimpíadas 2016, podemos absorver uma gama de delegações e equipes que procurem um local próximo à sede dos jogos para o último polimento antes das competições. Para que possamos gerir este momento como oportunidade de crescimento, é preciso regionalizar a imagem e os destinos a partir da cultura e dos movimentos artísticos, o que trará benefícios para toda a economia capixaba. É tempo de debater institucionalmente qual cara queremos dar à nossa imagem no mundo. E como construí-la. Há de se compreender que fora todos os argumentos, não somente pela otimização dos eventos iminentes que irão oportunizar negócios, temos que nos ater aos pontos de crescimento e enriquecimento artístico numa experiência e vivencia com público, técnicos e artistas de outras culturas. E para além da importância da arte e da linguagem nesse intercâmbio no aspecto antropológico e filosófico, abre-se um espaço para nos tornarmos finalmente quem verdadeiramente somos, cuja imagem demonstrará nossa identidade – plural atrelada a um discurso coerente.
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história por MILSON HENRIQUES
O DEDO NA FERIDA DAS NOSSAS HIPOCRISIAS
ORIGEM DA IMORALIDADE NO BRASIL Abelardo Romero. Ilustrações: Percy Lau. Editora Conquista. 239 páginas. Ano de publicação: 1967. Quanto: de R$ 19 a R$ 50 (sebos virtuais)
Cartunista comenta livro publicado por Abelardo Romero, em 1967, que identifica na formação do Brasil Colonial a origem dos desvios éticos e morais presentes na sociedade
Q
ualquer estudioso sobre o porquê do Brasil ser um país de moralidade tão depravada e preconceitos tão numerosos, sempre encontra duas alegações – o clima quente que indispõe ao trabalho, excita a luxúria, e uma religião baseada na adoração e no medo. Mas não são apenas causas climatéricas, religiosas ou étnicas. A maior causa é a falta de ética. O livro de Abelardo Romero (1907-1979), “Origem da Imoralidade no
Brasil”, começa pela desmistificação do infantilismo inocente dos nossos índios, a quem ele chama de “devassos no paraíso”. Assim que nossos selvagens perceberam o ávido interesse dos portugueses pela nudez das índias, “facilitaram” todo contato daqueles com elas, com o consentimento e aprovação das cunhãs, sempre “muito vaidosas e namoradeiras”, segundo os próprios jesuítas. A poliandria era quase tão igual à poligamia e muitas índias possuíam vários maridos. O homossexualismo também existia em grande número, sendo que padre Nóbrega chegou a
Não perca o XIX Festival Internacional de Inverno de Música Erudita e Popular de Domingos Martins. Serão diversas apresentações de orquestras, recitais, corais, danças folclóricas e show musicais com Dominguinhos e Falamansa, tudo gratuito nos palcos da cidade. Também serão oferecidos cursos de instrumentos e prática musical com professores de renome nacional e internacional como Daniel Guedes, Fabio Zanon, Fábio Presgrave, Fernando Dissenha e Robertinho Silva. Visite Domingos Martins, de 20 a 29 de julho, e faça parte desse espetáculo. Confira a programação completa em www.festivaldomingosmartins.com.br
escrever que “muitos colonos tinham índios por mulheres, segundo o costume da terra” (pág. 149), e alguns montavam suas tendas de maneiras femininas, prontas para receber homens. Por conhecerem bem a terra natal e nunca terem trabalhado, só se esforçando para conseguir seu alimento, os indígenas aceitavam tudo, menos a escravidão. Aí vem a mais longa e vergonhosa mancha desse Brasil. Longa porque durou desde a descoberta até 1888, já que os portugueses estavam acostumados a essa prática em sua terra há mais de meio século e desde os primeiros colonos trouxeram escravos. Outra das vergonhas que existem desde o nosso início é a censura governamental. Na página 161, encontramos que o país “era fechado à visitação estrangeira e pelo espaço de 315 anos, só podiam entrar e viver no Brasil os que viessem com o propósito de enriquecer, catequizar, escravizar ou matar. Os que vinham observar, pesquisar, estudar, tinham de ficar de quarentena, como empestados, ou, quando desciam a terra, inspiravam desconfiança, recebidos com má vontade, observados e perseguidos. Alguns ainda não chegavam às fronteiras e já se expediam ordens terminantes de prendê-los como portadores de ideias subversivas”. Em sua defesa, os fazendeiros diziam que, ao contrário de outros países escravocratas que mantinham os negros longe das casas dos “senhores”, aqui, nós
éramos “piedosos” e os escravos podiam entrar e até conviver com seus “donos”. Mas, na página 171, Abelardo Romero acha que “pior que a sevícia do negro foi, mediante sua compra, tê-lo separado da mulher e da filha, reduzindo ambas a amantes ou prostitutas, além de procurar distraí-lo e enganá-lo com mil folgas e festejos, cultivando nele a indolência, o vício, a superstição, a licenciosidade em numerosos feriados e dias santos de guarda, privando-os da liberdade política, cívica e moral do homem”. Ao contrário dos Estados Unidos, colonizado por famílias que já levavam instrumentos de trabalho, cultura, civilidade, sólidos princípios morais e religiosos, nossa colonização foi feita pelo indivíduo solteiro, pelo aventureiro em busca de ouro, de pedras preciosas, de fazer fortuna e voltar logo para sua terra, ou mandado para cá contra sua vontade, como castigo numa prisão em terra distante. Na expressão do poeta Gonçalves Dias, o Brasil foi colonizado pelo rebute de Portugal (seja lá o que isso quer dizer, coisa boa não é). Quanto à moral, segundo o livro, a libertinagem imperava. Se os padres em geral tinham suas amásias, por que não as teriam também os casados? Um certo padre Canto, tendo quatro filhos mulatos, vendera dois como escravos. Assim, era perfeitamente normal o fato de um homem casado, pai de família, ter quantos filhos quisesse com suas negras, nunca legitimados. Ninguém estranhava, nem autoridades, nem a igreja. Como bem se justificou um fazendeiro: “Se cada senhor reconhecesse os filhos que lhe dão as negras, prejudicaria, por outro lado, a parte da herança que compete aos filhos legítimos. O que seria odioso. Só um mau cristão ou um mau pai cavaria desse modo a ruína dos próprios filhos”. Como se vê, o nosso falso moralismo, a nossa falta de vergonha e dignidade vem desde os nossos primórdios e continua muito atual. Para terminar, a dissolução dos costumes, muito citada na Bahia, Recife e Rio de Janeiro, também sobrou para nós capixabas. Um tal Wilberforce, citado no livro, fala que na região de Guarapari surpreendeu um casal em pleno coito, durante o dia, numa rede armada na varanda, com uma criança brincando sob a rede. Isso, lá no comecinho desses Brasis de muitas histórias...