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VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012
www.agazeta.com.br REPRODUÇÃO DO LIVRO “MATA”!, DE LEONENCIO NOSSA
Entrelinhas
CRÔNICAS TRAZEM OLHAR DE LYGIA FAGUNDES TELLES SOBRE A CHINA. Página 3
Cinema
NOVA SAFRA DE DIRETORES JAPONESES IMPRESSIONA PELO LIRISMO E SIMPLICIDADE. Página 4
Música
O DIA EM QUE CAETANO LANÇOU “CORES, NOMES” NO DOM BOSCO.
Página 5
Artes
ESPECIALISTA ANALISA AS PINTURAS DE ARTISTA ÍCONE DA GERAÇÃO 80. Páginas 10 e 11
No alto, fotos de guerrilheiros de um álbum usado por militares para trabalhos de identificação (o capixaba Arildo Valadão e sua namorada Áurea Pereira são os dois primeiros da esq. para a dir., parte superior); acima, moradores do Araguaia presos pelo Exército
Arquivos do Araguaia JORNALISTA REVELA HISTÓRIA DA ESQUERDA ARMADA QUE SONHOU CONQUISTAR O PAÍS
Págs. 6, 7 e 8
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012
quem pensa
Vera Márcia Soares de Toledo é professora de Literatura e História da Faculdade Saberes. veramarciast@terra.com.br
Carolina Ruas é jornalista e pesquisadora de cinema. carolina.ruasp@gmail.com
marque na agenda prateleira Festival
A Semana sem Fim Frederico Coelho
Vitória em Canto inscreve até 6 de julho
As inscrições para o festival promovido pela Prefeitura de Vitória estão abertas para compositores de todo o país. Serão mais de R$ 17 mil em prêmios. Edital e ficha de inscrição no site www.vitoria.es.gov.br/semc.php?pagina=vitoriaemcanto.
Literatura Lançamento da coleção Biblioteca Capixaba
Leonencio Nossa é jornalista e autor de “Mata!, o Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. leonencio@gmail.com
Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br
Jovany Sales Rey é dramaturgo e roteirista cinematográfico. sales.vix@terra.com.br
Márcia Selvátice Tourinho é formada em Letras, mestre e doutoranda em História. marciaselvaticetourinho@gmail.com
Fabíola Menezes é artista plástica, professora e mestre em Artes. fabiolavmenezes@gmail.com
Jobson Lemos é jornalista. facebook.com/jobsonlemos
Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam. coletivo.peixaria@gmail.com
Os 12 livros que integram a coleção serão lançados no dia 4 de julho, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual. Entre os autores, Francisco Aurelio Ribeiro, Vanda Luiza Souza Netto, Ercília Simões Braga, Geraldo Amâncio, Neuza Jordem Possatti, Fabiano Moraes e Yedda de Oliveira, Vitor Amorim de Angelo, Marco Aurélio, Luiz Guilherme Santos Neves e Silvana Pinheiro Taets.
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de julho
Carlos Bona comemora 30 anos de carreira
O cantor e compositor celebra suas três décad as de estrada com show na próxima sexta, às 20h, na Estação Porto. No repertório, o primeiro sucesso, “Lêro Lêro”, de 1982,e um pot-pourri de canções que marcaram os anos 80 no Estado, compostas por João Pimenta, Lula d'Vitória , Guto Neves e Carlos Pa pel.
Dentro das comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, o autor traça um paralelo entre o significado do movimento modernista para o Brasil em 1922 e a sua influência sobre as mais importantes iniciativas culturais do país ao longo do século XX e da atualidade. 144 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90
Os Cristãos e a Queda de Roma Edward Gibbon
Neste excerto de sua obra “Declínio e queda do Império Romano”, o historiador inglês Edward Gibbon (1737-94) aponta as causas do fortalecimento do cristianismo e sua disseminação do Oriente para o Ocidente a partir do século III d.C. 88 páginas. Companhia das Letras. R$ 10,90
Gil Vicente: Autos Cleonice Berardinelli
A estudiosa de literatura lusitana apresenta uma série de ensaios e uma compilação de peças daquele que é considerado o pai do teatro português, autor de enredos religiosos, tragicomédias e farsas de costumes populares escritos e encenados no século XVI. 512 páginas. Casa da Palavra. R$ 68
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de julho
Clube do Livro atrai escritores locais
O encontro mensal de aficionados por literatura será realizado no restaurante Outback Vitória, a partir das 16h, com sorteio de livros, intercâmbio de autores capixabas e compartilhamento de experiências literárias.
Cleo e Daniel Roberto Freire
O romance do psiquiatra, jornalista e escritor Roberto Freire (1927-2008) marcou os anos 60 por fazer um retrato dos sonhos de liberdade, sexo e conflitos daquela geração. 224 páginas. L&PM. R$ 16
A GUERRILHA CONTINUA
José Roberto Santos Neves
A Guerrilha do Araguaia foi brutalmente sufocada pelo Exército nos anos 70, mas os reflexos daquele conflito sangrento podem ser sentidos até hoje na sociedade brasileira. Essa é a percepção do jornalista capixaba Leonencio Nossa, autor do livro “Mata! - O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”. Vencedor dos prêmios Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (2009 e 2011) e Estadão de Reportagem Especial (2009 e 2011), entre outros, Leonencio pesquisou durante 10 anos a repressão a cem militantes e simpatizantes do PCdoB no Sul do Pará que sonhavam em
Pensar na web
derrubar a ditadura através da luta armada. Graças à obstinação de repórter, entrevistou mais de 150 testemunhas, em 15 Estados e no exterior, e teve acesso ao arquivo mantido em segredo por 30 anos pelo agente Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió. Nos artigos escritos com exclusividade para esta edição, destaca a participação de quatro capixabas e de uma mineira na guerrilha. “Nunca deixei de ter a convicção de que o Araguaia ajudava a explicar a barbárie que continuou no campo e, fragmentada, nas delegacias e favelas das cidades”, aponta o autor. Leitura obrigatória para Pensar.
é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.
jrneves@redegazeta.com.br
Galeria de fotos da Guerrilha do Araguaia, vídeos de Caetano Veloso, trailer do filme “O que eu mais desejo” e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br.
Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493
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entrelinhas
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por VERA MÁRCIA SOARES DE TOLEDO
RETRATO DA CHINA PELO OLHAR DA ESCRITORA
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012
PASSAPORTE PARA A CHINA: CRÔNICAS DE VIAGEM Lygia Fagundes Telles. Companhia das Letras. 112 páginas. Quanto: R$ 34
EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS
Crônicas escritas por Lygia Fagundes Telles trazem as impressões sensoriais e existenciais colhidas pela autora durante visita ao país de Mao Tsé-Tung, em 1960
“E
nfim, a China! Eram quatro horas da tarde quando a aeromoça avisou que devíamos apagar os cigarros e apertar os cintos porque dentro de alguns minutos íamos aterrissar. Fiquei emocionada, enfim a nova China tinha apenas onze anos de idade e a velha China tinha cinco mil anos, pátria dos antigos sábios e mandarins de roupa dourada e palácios de jade. Afinal, o que ficara daquela civilização milenar? Algumas lembranças de dourada sabedoria, mas e a miséria? Está claro que essa miséria não poderia ter desaparecido como num passe de mágica, sim, mas como estava essa nova China que íamos conhecer?” (p. 46) As agradáveis crônicas, reunidas neste livro, são resultado de uma viagem que a escritora Lygia Fagundes Telles fez em 1960. Foram publicadas, em primeira mão, no jornal “Última Hora”, pelo editor Samuel Wainer. Lygia integrou um grupo de brasileiros, dentre 72 delegações estrangeiras, em visita oficial à República Popular da China, para a comemoração do décimo primeiro aniversário da Revolução. No grupo brasileiro, estavam, além de Lygia, Peregrino Júnior, Sandro Polônio, Helena Silveira, Maria Della
Costa e Magalhães Júnior. Como reconheceu a própria autora, anos mais tarde, era um grupo eclético. Seu filho, Goffredo Telles Júnior, lhe perguntou, em certa ocasião, se a viagem havia sido inteiramente à vontade. Ela respondeu: “Só vimos o que nos foi permitido ver”. A resposta de Lygia afasta qualquer expectativa quanto a um caráter ideológico, favorável ou desfavorável à China daquele momento. Com isso, ela revela, de forma lacônica e sincera, que suas impressões envolvem um olhar pessoal sobre os caminhos que lhe foram abertos. A viagem da delegação inicia-se em 24 de setembro de 1960 e termina em 18 de outubro do mesmo ano. No dia 19 de outubro, os Estados Unidos decretaram o embargo econômico a Cuba e a Guerra Fria chegava a picos de intensidade. Estas crônicas seguem paralelas como um contraponto a esses acontecimentos. Falam de uma China oficial mas, não obstante, trazem uma realidade filtrada pelo sentimento, pela imaginação, pelo tom coloquial e pela observação arguta. A escritora está preocupada apenas em relatar a sua visão do que lhe apresentavam. Suas impressões são sensoriais, existenciais, prosaicas e detalhistas, e não políticas e partidárias. As marcas das crônicas, cujo
destino é a China (é também entrecortada por escalas em Dacar, Paris, Praga, Moscou, Omsk e Irkutsk), são: imaginação, sensibilidade e vivo interesse pelos detalhes que formam o cotidiano desses lugares. Na China mesmo, Lygia esteve em Pequim e Shangai. Foi a partir das duas cidades que construiu a maior parte de suas observações e relatos.
Contraste
Em Pequim, o que mais a impressionou e surpreendeu foi o contraste entre a velha e a nova China. A velha, dos palácios, da muralha, da Cidade Proibida, dos mausoléus das antigas dinastias e das fachadas enfeitadas com lanternas vermelhas, ainda pode ser vista em Pequim, até mesmo pelo vidro do táxi que cortou a cidade com a escritora a bordo. A nova China espelhava-se nas construções, nas ruas geometricamente traçadas e nas várias realizações urbanísticas patrocinadas pelo governo do camarada Mao. Era a Pequim da Praça do Povo, da Porta da Paz Celestial, dos altos edifícios, dos desfiles comemorativos da Revolução, dos habitantes uniformizados e das estátuas onipresentes de Marx, Engels, Lênin e do próprio Mao. Mas, na opinião de Lygia, uma China
singela e emocional pôde ser percebida em Shangai. Segundo ela: “Gostei muito de Pequim, mas foi a lendária Shangai que tocou fundo no meu coração.” (p. 67). Esta sensação foi dada pela forma arquitetônica menos padronizada e composta de prédios antigos, pré-revolucionários, pela informalidade mais expressiva de seus habitantes e pela beleza de seu porto fluvial com o rio Wang-Po sempre cheio de embarcações variadas e coloridas. Não há nenhuma pretensão neste relato, expresso em 29 crônicas de viagem, datadas e em ordem cronológica. O que há em “Passaporte para a China” é apenas um depoimento honesto, sensível e emocional desta escritora, que acabou de fazer 88 anos, com uma carreira literária consagrada por trajetória impecável e premiada nas letras brasileiras. Depoimento reforçado pela edição cuidadosa e primorosa da Companhia das Letras, que reedita as obras da escritora em capas com belíssimas reproduções da artista Beatriz Milhazes. Portanto, tudo coopera, neste livro, para encantar o leitor: a escrita livre, madura e segura de Lygia, a edição correta e agradável e a sensação boa de poder caminhar junto à escritora por lugares distantes, no tempo e no espaço, guiados por seu olhar manso e atento.
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cinema por CAROLINA RUAS
DRAMA VISTO PELO FRESCOR DA INFÂNCIA Em “O que eu mais desejo”, diretor Kore-Eda faz o espectador refletir sobre questões existenciais a partir do sofrimento de dois irmãos separados por conflitos familiares
A
superação das dificuldades individuais por meio do aprendizado da dinâmica coletiva do mundo, sem mágoas e ressentimentos, mas por puro exercício de consciência. É esse o caminho que “O que eu mais desejo” traça para apresentar personagens infantis em busca de uma compreensão de seus problemas. O longa de Hirokazu Kore-Eda, que infelizmente ficou apenas uma semana em cartaz no Cine Jardins (pouco tempo para uma obra tão bonita), poderia ser um drama pesadíssimo, sobre o sofrimento de dois irmãos separados por conflitos familiares. Ou mesmo poderia ser confundido com um filme de aventuras infantis do naipe daqueles que há anos figuram nas tardes da televisão aberta. De certo modo, há um pouco dos dois estilos, mas redesenhados com um pouco de filosofia oriental. “O que eu mais desejo” se torna um produto de filosofia que conversa com o drama de forma leve, e com a aventura, de forma sacralizada. Os protagonistas são dois irmãos que vivem separados desde o divórcio dos pais. Koichi, o mais velho, mora com a mãe e os avós em uma cidade pequena e empoeirada pelas cinzas de um vulcão em atividade e não vê a hora de conseguir reunir a família novamente. Enquanto Ryu, o mais novo, vive feliz com o pai, um músico de vida desregrada, em uma cidade ensolarada e moderna. Junto ao anúncio do trem-bala, Koichi escuta uma lenda que pode realizar seu desejo de reunir a família novamente, caso o pedido seja feito no momento do primeiro cruzamento dos trens. Com essa ideia em mente, as crianças seguem em uma jornada em busca do ponto ideal para realizar os pedidos. Com simplicidade e leveza, “O que eu mais desejo” fala de aprendizado e de crescimento e passa longe da pieguice, traduzido em enquadramentos hipernaturais e sem muitas firulas, enquanto que o roteiro é enxuto e despretensioso ao máximo. Kore-Eda quer, acima de tudo, falar sobre a beleza do cotidiano, do particular e comum, que é a vida em construção, por isso ele valoriza a natureza ingênua das crianças, frente à pretensa sabedoria dos adultos que na trama se encontram perdidos em artifícios que não se desprendem do trivial.
DIVULGAÇÃO
Filme que valoriza a natureza ingênua das crianças representa mais um bom produto do cinema nipônico contemporâneo
Nova safra japonesa Naomi Kawase A cineasta japonesa é reconhecida como uma das mais importantes diretoras do cinema contemporâneo em todo o mundo, mas sua obra ainda é pouco divulgada no Brasil. Iniciando a carreira pelos documentários, tem mais de 30 filmes no currículo que representam um cinema sensorial. “Shara”, “Hanezu” e “Floresta dos Lamentos” são alguns dos prêmios de Kawase.
A essência de “O que eu mais desejo”, assim como o anterior “Ninguém pode saber”, se revela no frescor da infância e do ordinário como efeméride.
Kyoshi Kurosawa Um dos principais diretores do cinema japonês contemporâneo, Kyoshi Kurosawa tem seu trabalho geralmente associado ao cinema de gênero. Mas o conjunto da obra extrapola esse tema, como seu filme mais recente, “Tokyo Sonata”, exibido na Quinzena dos Realizadores de Cannes em 2010. Takashi Miike Dos mais prolíficos da safra contemporânea, Takashi Miike já chegou a fazer 14 títulos em um ano, a maioria sobre violência e sexo, enfatizando cenas bizarras e sanguinárias, como uma inspiração para Tarantino. “Audition” se destaca como o filme que o destacou na cinematografia mundial.
Sutileza
Como um bom representante da safra, Kore-Eda atua com sutileza na tarefa de fazer o espectador refletir
sobre questões existenciais e contemplativas. Um cinema cheio de reflexões e escasso de artificialismos é um pouco da estrutura dos diretores japoneses da nova geração. A cinematografia japonesa, apesar de reconhecidos gênios como Ozu e Kurosawa, continua a ser um mistério para os espectadores do Ocidente, e ainda assim é uma das cinematografias mais prolíficas do mundo – e não só em termos de quantidade, mas também no que tange à renovação da linguagem. No circuito de festivais e premiações, alguns nomes já despontam e nos dão a pista do que há de melhor no cinema nipônico. Em 2009, o Oscar de Melhor Estrangeiro para “Okuribito” (“A Partida”), de Yojiro Takita, chamou a atenção para outros excelentes diretores que já andavam dando as caras em Cannes, como, por exemplo, Naomi Kawase, Kiyoshi Kurosawa e Kenji Uchida.
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falando de música
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por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES
PORQUE O VINIL DÁ MUITAS VOLTAS
O
mundo dá muitas voltas – e os discos de vinil também. Em 25 de maio de 1982, eu tinha menos de 11 anos e Caetano Veloso voltava a Vitória após um intervalo de uma década para um show no Ginásio Dom Bosco. Era a turnê do álbum “Cores, nomes”, que estava estourado graças a “Queixa”, tema da novela “O homem proibido”. Esse não era o único hit do disco. “Meu bem meu mal”, gravada por Gal Costa, “Sonhos”, de Peninha, e “Sina”, em que Djavan inventou o verbo “caetanear”, corroboravam a boa fase do cantor. Para quem crescera ouvindo coletâneas como a “Arte de Caetano Veloso”, assisti-lo ao vivo era a realização de um sonho. Fui acompanhado do meu irmão, mas, na entrada, para minha decepção, fui barrado por ser menor de idade. Como ainda não havia a Terceira Ponte, a solução que Guilherme encontrou para não perder o show foi levar-me à casa dos meus avós, na Mata da Praia. E, assim, passei uma noite entristecido na biblioteca do Mestre Guilherme Santos Neves, sem ter noção da riqueza intelectual e afetiva daquele espaço do qual meu avô cuidava com tanto carinho. Sabia de sua devoção ao folclore, especialmente à cultura popular do Espírito Santo, mas somente anos depois entenderia o tamanho e a importância de sua pesquisa em torno do tema. Terminado o show, lembro-me apenas da sensação de uma criança voltando para casa frustrada. Trinta anos se passaram, o mundo deu milhares de voltas, ídolos morreram, quantas músicas nasceram, cresceram e desapareceram, e eis que “Cores, nomes” volta às minhas mãos de maneira inusitada. O professor universitário e poeta Paulo Sodré decidiu fazer uma doação de seus surrados LPs para o Clube do Jazz, do qual meu pai faz parte, e que se reúne nas tardes de terça, no Centro da Praia. Em meio aos bolachões de Milton Nascimento, Alceu Valença, Angela Rô Rô e Ivan Lins, encontrei este disco “renegado” do compositor baiano. Coloquei para rodar no meu Polyvox e, tirando um ou outro arranhão nas duas primeiras faixas do lado A, pode-se dizer que está em bom estado. Particularmente, não colocaria esse disco na galeria dos mais representativos de Caetano. Conheço gente que não ouve nada do compositor baiano desde “Cinema Transcendental” (1979). Mas boa parte do preconceito em relação a “Cores, nomes” se deve ao
CORES, NOMES Caetano Veloso. Universal. 12 faixas. Quanto: R$ 16,90
CARLITO MEDEIROS
sencontros amorosos e a intolerância religiosa. Uma tempestade de ideias recheada de frases emblemáticas como “política é o fim” e “a crítica que não toque na poesia”, com a amplitude e o inconformismo de quem parece tentar guardar o mundo de seu tempo dentro de uma canção. Mais à frente, o compositor retoma a inspiração religiosa em “Cavaleiro de Jorge” e “Gênesis”. Mas nada em Caetano é tão simples que possa ser interpretado com um único sentido. Talvez seja por isso que ele foi um dos primeiros a se encantar com Djavan, cuja “Sina” permanece até hoje indecifrável. Bem mais fácil é abordar o aspecto estético de “Cores, nomes”, em que a voz suave do cantor dialoga com a linguagem bossa-novista, resultando em temas intimistas como “Trem das Cores” (dedicada a Sônia Braga), “Sete mil vezes” e a releitura de “Coqueiro de Itapoã”, de Dorival Caymmi. O encantamento com a Bahia também está presente em “Um canto de afoxé para o Bloco do Ilê”, saudação ao bloco afro até então restrito a Salvador, com a participação do filho Moreno Veloso, que assina a parceria com o pai.
Prenda minha
Caetano na turnê de “Cores, nomes”, em 25 de maio de 1982, no Ginásio Dom Bosco
estrondoso sucesso que fez na época. Basta lembrar, por exemplo, que “Queixa” e “Meu bem, meu mal” tocavam tanto nas rádios quanto tocam hoje Michel Teló e Luan Santana.
Filosofia
Acompanhado de músicos talentosos como Tomas Improta (piano Fender), Perinho Santana (guitarra), Arnaldo Brandão (contrabaixo) e Vinicius Cantuária (bateria, autor de “Lua e estrela”), Caetano espalha
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amor nas 12 faixas do disco e expõe seu descontentamento com questões que até hoje permeiam seu discurso. A canção mais explícita dessa lavra é “Ele me deu um beijo na boca”, com letra construída a partir de um diálogo imaginário que perpassa o cristianismo, a filosofia, a política internacional de Margareth Thatcher e Menachem Begin, a Guerra Fria, as profecias sobre o fim do mundo, a crítica literária, a longevidade dos Rolling Stones, “apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks”, os de-
Mas a história não termina aqui. Dezessete anos depois da minha noite solitária na biblioteca de Mestre Guilherme, Caetano voltou a Vitória com o show “Prenda minha”. Já como repórter do Caderno Dois, passei duas semanas empenhado em entrevistá-lo para o jornal. Diante de tantas negativas, fiz uma matéria de capa com o título “Como querer Caetanear”, chamando a atenção para a sua longa ausência dos palcos capixabas. Ao chegar ao ginásio Álvares Cabral com a fotógrafa Helô Sant’Anna, novamente tentei conversar com o cantor. – Esquece. O Caetano não vai dar entrevista – disse-me um membro de sua equipe. Até que encontrei a sua produtora Beni e humildemente entreguei a ela o exemplar do jornal, com a esperança de sensibilizá-lo. Após alguns minutos, Beni voltou com a notícia que eu tanto esperava: – O Caetano vai dar entrevista, mas só pra você. Entramos no camarim, fizemos a entrevista exclusiva, o show foi lindo e, em junho de 2012, “Cores, nomes” voltou para as minhas mãos.
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luta armada
Autor do livro “Mata!”, Leonencio Nossa pesquisou a repressão a cem militantes e simpatizantes do
O ARAGUAIA QUE O BRASIL NÃO CONHECEU JORNALISTA REVELA A ATUAÇÃO DE CAPIXABAS NA ÚNICA GUERRILHA ESTRUTURADA PELA ESQUERDA BRASILEIRA
“M
ata!”, livro publicado pela Companhia das Letras, é uma história da política de extermínio do governo militar e, também, da Floresta Amazônica, onde ocorreu a única guerrilha estruturada pela esquerda brasileira. As Forças Armadas sempre tentaram convencer que os fuzilamentos sumários de barqueiros, garimpeiros e guerrilheiros com mãos amarradas nas margens dos rios Araguaia e Tocantins, nos anos 1970, foram combates de guerra. Por dez anos, pesquisei a repressão a cem militantes e simpatizantes do PCdoB no Sul do Pará. A síntese do trabalho está nas 512 páginas do livro. Dos 69 guerrilheiros mortos, 41 eram presos. O que ocorreu na Amazônia desfaz a versão cômoda para o jogo político atual de que o tempo da ditadura foi marcado por uma disputa entre radicais das Forças Armadas e da esquerda. É impossível ignorar o desrespeito à tradição de preservar o prisioneiro, garantida em convenções internacionais, e a existência de um Estado de terror que matou não apenas integrantes de movimentos armados, mas representantes de setores moderados.
REPRODUÇÃO
O guerrilheiro Arildo Valadão, à direita, e o irmão Altivo, de férias em Marataízes
As histórias do livro foram encontradas nos testemunhos de mais de 150 pessoas e no arquivo mantido em segredo por 30 anos pelo agente Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió. Ele só permitiu o meu acesso ao acervo particular depois de sete anos de insistência. O livro traça um perfil do agente, mas, na obsessão de repórter, tentei chegar ao limite da biografia e da reportagem. Tentei reconstituir a infância e a juventude de militares e guerrilheiros. Busquei raízes do episódio anteriores à guerra fria, em movimentos como Balaiada, Cabanagem e Canudos. Avaliei que o conjunto das árvores genealógicas de parte dos mais de mil personagens citados, sem os rótulos de coadjuvante ou protagonista, formava a narrativa. Ao receber o convite do Pensar para escrever este texto, lembrei especialmente dos quatro capixabas e de uma mineira que estavam na guerrilha. Um deles foi José Maurílio Patrício, o Manoel, de Santa Teresa, terra de “Canaã”, romance que descreve um duelo de palavras entre um humanista e um defensor da guerra. Manoel era estudante de Agronomia da Universidade Federal Rural Fluminense. No Araguaia, ensinava técnicas agrí-
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por LEONENCIO NOSSA
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o PCdoB no Sul do Pará e conta como o Exército massacrou guerrilheiros, barqueiros e garimpeiros
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colas para sitiantes. Manoel tinha 30 anos quando foi capturado por moradores recrutados como guias do Exército, os “mateiros”. “Você trouxe o pior passarinho”, disse um oficial para um dos guias, destacando a importância do prisioneiro. O guerrilheiro foi o último a ser fuzilado. A guerrilha começou a cair quando seus apoios nas cidades foram exterminados pela repressão. Um deles era o capixaba Lincoln Bicalho Roque, de São José do Calçado, liderança do PCdoB e professor de sociologia no Rio. O movimento armado no Araguaia não tinha mais ligações externas. A guerra virou caçada.
Homens e armas
A guerrilha necessitava de reforços humanos e armas. O arsenal era composto por revólveres .38 e espingardas de caçar passarinho, algumas delas feitas por Marcos José de Lima, o Ari Armeiro, um ferreiro introspectivo de Nova Venécia. Marcos chegou à selva com o primo João Gualberto Calatroni, o Zebão, outro jovem calado. Marcos e Zebão eram vistos por parentes como garotos que viviam trancados num mundo paralelo. Zebão sofria com as atitudes do pai, Virgílio, um agricultor alcoólatra. Marcos perdeu o pai, morto pela polícia depois de uma briga de bar. Marcos dizia ter um sonho. Num domingo, ele avisou à família que iria para Vitória realizar o sonho. O primo Zebão foi junto. “Vitória” era o Araguaia. Na selva, Zebão limpava um porco quando foi alvejado por militares. Ao saber da morte de Zebão, o primo se desesperou. Marcos foi encontrado por militares na recém-aberta Transamazônica. Morreu dias depois.
O casal de físicos
O major Curió no tempo de cadete, em Fortaleza: militar abriu arquivo secreto
O Exército descobriu a existência da guerrilha em 1972. Quatro anos antes, o físico José Leite Lopes retornava dos Estados Unidos, onde trabalhou com Pauli e Einstein, para desenvolver a energia nuclear no Brasil. No campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele montou um grupo de estudantes para implantar um acelerador de partículas. Arildo Valadão, de Cachoeiro de Itapemirim, e a namorada, Áurea Elisa Pereira, da mineira Areado, faziam parte da equipe. Leite Lopes foi afastado da universidade pela ditadura. Arildo e Áurea se engajaram no movimento estudantil. Eles se casaram e caíram na clandestinidade. Áurea aproveitava os jogos da Seleção na Copa do México, quando as ruas do Rio estavam vazias, para encontrar amigos. Logo, o casal estava na guerrilha no Araguaia. Antes de viajar, Arildo escreveu à mãe, Helena: “Querida mamãe! ...nem sempre tudo sai como desejamos. As coisas vão acontecendo assim como a Terra vai girando ao redor do Sol, o elétron ao redor do núcleo e, como sabemos, a maioria das
coisas acontecem independente de nossa vontade pessoal”. O estudante informava que tinha abandonado o curso de Física e ficaria um tempo fora e prometia voltar vitorioso, recorrendo, possivelmente, a uma metáfora de arma: “Quando menos esperar apareceremos por aí com os ‘canudos’ debaixo do braço”. Helena morreria no leito de um hospital perguntando pelo filho que não mais voltou. Arildo construiu um barraco, a poucos metros do rio Araguaia, para Áurea dar aulas. Um dos relatos mais emocionantes que ouvi foi de Beca, um agricultor de Patuá, São Geraldo do Araguaia, um lugar que até pouco tempo não tinha energia elétrica. Ele contou que, numa noite, 14 guerrilheiros chegaram a sua casa para dormir. Pela manhã, eles se dividiram em dois grupos. Arildo foi para o grupo que iria para um castanhal e Áurea, para a serra das Andorinhas. Arildo ficou estático por muito tempo, se apoiando com a mão no rifle fincado no chão e olhando para a antiga companheira, que seguia outro rumo. “Era um olhar piedoso. Fiquei com pena. Arildo ficou olhando a Áurea, olhando, até o grupo dela desaparecer no caminho que fazia uma volta antes de terminar na mata”, relatou o agricultor. Dias depois, Arildo sofreu uma emboscada de mateiros contratados pelo Exército. Um tiro acertou o peito do guerrilheiro. Sinésio Ribeiro, um dos mateiros, relatou: “Nos aproximamos. Era o Ari, que eu conhecia. Ele estava com uma roupinha, a barba meio grande. Não tem homem que resiste a um chumbo de espingarda no coração.” Daí para frente foi barbárie pura. Áurea foi presa numa casa onde costumava pedir farinha. Petronilha, a moradora, delatou a guerrilheira para o Exército, que pôs dois mateiros de tocaia. Esse foi o trecho do livro mais difícil para ser escrito. Em momentos extremos, o homem simples e gentil é capaz de mostrar uma face terrível. Áurea travou diálogo com um de seus algozes. “Menina, como é que você entrou num lugar assim?”, perguntou um mateiro. “Por amor”, respondeu a guerrilheira. Ela contou como conheceu Arildo. “É duro gostar”, comentou o mateiro. O homem ainda quis saber: “Você não é do estrangeiro?” Chorando, Áurea concluiu que iria morrer. “Pior não fica”, disse o mateiro. Ela foi torturada numa base militar e depois executada. Em tempo de TV em cores, o país fazia mais um refluxo no tempo.
MATA! – O MAJOR CURIÓ E AS GUERRILHAS NO ARAGUAIA Leonencio Nossa. Companhia das Letras. 512 páginas. Quanto: R$ 45.
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+ artigo de capa por LEONENCIO NOSSA
LEGADO DA GUERRILHA EXPLICA O PAÍS Para autor de “Mata!”, desfecho do Araguaia ajuda a entender a barbárie que continuou no campo, nas delegacias e nas favelas das cidades, na retomada da democracia no país DIDA SAMPAIO
A
história dos guerrilheiros terminou na mata. Mas a história dos oficiais que comandaram a repressão continuou fora do Araguaia. O oficial que decidiu pela execução de Áurea e de outros presos seguiria sua carreira, sem ser citado por grupos de direitos humanos. Com o fim da ditadura, o oficial ajudou a montar o Ministério de Ciência e Tecnologia. O Brasil da democracia não estava interessado em desenvolver pesquisas. A nova pasta tinha a função de dar emprego para uma geração de oficiais que estivera numa guerra de guerrilhas. Vez ou outra alguém fala de números, diz que o total de homicídios nas capitais em um dia é superior ao de mortos na guerrilha. Nunca deixei de ter a convicção de que o Araguaia ajudava a compreender os caminhos tomados pelo país e a explicar a barbárie que continuou no campo e, fragmentada, nas delegacias e nas favelas das cidades. A desastrada política de segurança do Rio nos anos 1980 e 1990, por exemplo, foi elaborada por oficiais que estiveram no Araguaia. A falta de diálogo, marca da formação ou da repressão à guerrilha, sempre surge nas Câmaras, nas Assembleias, no Congresso. Nunca me senti diminuído por apostar na história da guerrilha.
galos. Os investimentos em ciência são pífios. Os investimentos em escolas representam entre 5% e 5,5% do PIB.
Uma pista falsa
A escolinha
Viajei de lancha para Boa Vista, povoado na margem esquerda do Araguaia. A escolinha de Áurea foi reconstruída com tijolos. Ali estudam 300 crianças. O ensino é precário. Vale a generosidade de professoras mal remuneradas. Nessas viagens à Amazônia, no entanto, percebi uma revolução no comportamento provocada pela melhoria da renda, expansão da telefonia e chegada das lan houses. Numa revolta recente de peões das obras da usina de Jirau, em Rondônia, os trabalhadores mostravam imagens tiradas do celular do início do conflito para provar que não eram criminosos. Eram homens sem tutela dos velhos sindicalistas da agora desgastada esquerda. Quarenta e quatro anos depois de Lopes Leite deixar de dar aulas para Arildo e Áurea, a educação e a ciência continuam sendo nossos principais gar-
LEONENCIO NOSSA
No alto, o prefeito Curió na festa dos 20 anos de Curionópolis (em destaque acima), no Pará, cidade que leva o nome do major que virou lenda na região
Quem apura uma história encontra pessoas que não aceitam conversar e segue pistas falsas. Após viajar a 15 Estados e ao exterior, fui ao Colégio Estadual do Espírito Santo, onde fiz o ensino médio, para confirmar se Marcos José de Lima tinha estudado ali nos anos 1960. Penha, a responsável pela secretaria, abriu o arquivo. Em pilhas de livros e pastas, encontrei registros de estudantes do “gymnásio”. Por curiosidade, folheei as fichas do científico de 1936, da garota de tranças, do garoto de olhar adulto. Talvez foram alunos de Maria Stella de Novaes, uma historiadora à moda antiga que apresentava o passado a partir das memórias de famílias, tradição varrida da academia nos anos 1970 pela corrente marxista. Encontrei a ficha de Marcos José de Lima, mas era um homônimo do armeiro. O Estadual, no tempo de estudante do guerrilheiro, era um colégio para os filhos da classe média alta. Não era o caso do armeiro do Araguaia. Fiquei tentado a abrir as pastas dos estudantes de 1992. Naquele ano, os alunos pintaram a cara, pularam o muro para chegar à avenida e dali chegar ao centro da cidade, na onda de manifestações contra Collor. Na época, diziam que a massa de jovens não tinha consciência política e estava influenciada por uma minissérie da TV. Depois de hesitar, tirei da pasta a minha própria ficha - relembrei o movimento cara-pintada e pensei nas diferenças de épocas. Muitas gerações faziam parte de um único arquivo. Mas o tempo e a visão política as afastavam. As minhas lembranças do tempo de estudante tornavam, porém, menos difícil entender a vontade dos veteranos em desafiar o futuro. Era um livro tomado por sentimento de aventura, sem verdades, sem perder a dimensão do crime de guerra e sem recriminar erros da vida experimentada com intensidade, que sempre propus apresentar. A política, matéria-prima no dia a dia de repórteres como eu, e o tempo não explicavam o Araguaia. Era o momento de entregar os originais para a editora.
poesias PARA NÃO MORRER DE DOR MÁRCIA SELVÁTICE TOURINHO Se a tua alma doer, corpo meu cansado e suado, Sublima sua existência com um soluço de arcabouço E abraça sua sina como uma oração piedosa e leve. Se já, corpo ao acaso, seu encanto te abandonar, alma indócil, Chora, comemora, o pior já passou, O fogo já deixou de arder e fazer doer. Ainda assim, se seu coração bater, corpo desumano, Se afoga em sangue, que lembrar é mitral. Ser imortal é soberbo e não garante a paz Na calada do poema, se o pensamento persistir, Alma penada, Corre e abraça a vida, porque ela não consegue te esquecer.
crônicas CARRER DEL MARINADA, NÚMERO INFINITO Para Joana Castells, minha amiga e tradutora.
por CAÊ GUIMARÃES Há um lugar onde tudo escorre lento. Inclusive o tempo. E sua maleabilidade de granito. Há um tempo menos aflito onde a velocidade do vagar se assoma a tudo em que acredito. Há um castelinho bonito. E um número deitado que representa o infinito. Carrer del Marinada. Tudo e nada. E um texto que reescrevemos, atentos e soltos, desde o princípio dos tempos. Há catalães e mouros. Oliveiras milenares. E um mar que nunca muda de lugar. Há também um cavalo de fogo. Corisco, rasga o céu aflito. Como se o tempo fosse explodir a ampulheta. Como se o rastro de certezas grafasse no céu um risco. Definitivo. No espaço siderado de um grito. Cavalgo, vento e fogo, o
testemunho aflito. Cavalgo, espanto e fúria. E tanta ternura, que vazo para o lado de lá. Enquanto o mundo gira, aqui a poesia fica. Definitiva. Cravada em devaneio e perspectiva. Carrer del Marinada. Um lugar que você encontra é sempre um lugar que foi perdido. E se perder está previsto em todo contrato de risco. O incêndio começa da fagulha. Rolha, fora da boca, torna espessa a garganta do auxílio. E Ventalló é um pequeno e potente satélite a girar. Uma serena e contente alegria ao chegar. Uma rosa deixada para trás, ao seguir. Uma rosa escura, como minha moldura. Uma flor que fecha e abre sem fim. Uma rosa que ao doer dói em mim.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012
Há muralhas que nunca terminam. E cabos com cruzes. Fios de bambus cortados, a navalhadas, formando desenhos no ar. Há uma terraza que abraça o universo e sua curva. E minha irmã, com a pele como a minha. Escura. Clara, de tão turva. Há, na rua do vento marinho, vinho. Tinto, como é rubro nosso sangue. E branco, como é alva nossa alma em sumo e suma. Estanques. O mundo nos é avesso. Como ave só, em seu começo. Sem voo, tropeço. E no voo, incesto. Ensaio de voo à beira do precipício. A queda vertiginosa no sorriso. E o tal abrigo na garganta grave do amigo. Carrer del Marinada, duas paralelas, e mais nada. Encontram o fim em seu início. À meia-noite em meio ao corpo outra badalada. Sinos avisam a hora mais surda e a mais destra. Sinos dobram como dobramos os papéis onde escrevemos um poema. Sinos poesias anunciando que aqui, ninguém vai para o céu. Vamos seguir aqui. Assim. Perscrutando os espaços vazios. Preenchendo o que foi tirado do cenário por um Deus incoerente. Com poesia cravada nos dentes. E o infinito como escolha e destino.
VIVENDO DA BOA MENTIRA por JOVANY SALES REY
MAKE BELIEVE Sim, tudo nesta vida pode ser mágoa ou comemoração. Escuta, só uma coisa não vinga nem fica: a condição do amor que a cumplicidade urge. Reza, e vivendo possibilidades reais Sinta e acaricie a areia com as mãos, mesmo sabendo que ela nunca vai camalear terra. Afasta o que te faz sofrer com passos largos e visão de ancestrais. Sinta o gosto do que a vida pode e te dá, e não eternize a imaginação do gosto do que a ilusão só promete.
ATÉ QUE VOCÊ ME ALCANCE Danço a mais remota música Ensaiando o mais lúdico passo Tango sem arco Compasso de uma existência risível Transparente, invisível para qualquer coração latente Intocável para todo olhar atento e, mesmo assim, Alvo de uma sobrevida insistente. Não começo, nem findo, e ainda assim me arrasto e sinto.
Na maioria das profissões, é complicado imaginar a mentira como rotina e parte integrante do ofício. Um médico diz que vai operar o apêndice e extrai as amígdalas? O piloto avisa que o avião está decolando para o Ceará e aterrissa no Paraguai? O pipoqueiro vende cachorro-quente em vez da pipoca que anuncia? Nunca! O descrédito, o olho da rua, o hospício ou a cadeia aguardam o profissional que agir assim. Mas existem nesse mundo três ofícios em que se mente, muito, publicamente e com beneplácito social. Um deles é a política, que deveria ser exercida com a sinceridade do sacerdócio, em nome de uma causa maior, o que ocorre raríssimas vezes ou mesmo nenhuma. Outro é o Direito, onde a mentira, cínica, escancarada, é tolerada em nome da justiça, segundo dizem, mentindo, os advogados. O terceiro ofício é a arte de inventar e contar histórias, própria do escritor, do dramaturgo, do roteirista e do poeta, esse resguardado em seu nicho
onírico. O crime não entra na lista por não ser um ofício estabelecido na mentira. Mente-se em algumas de suas modalidades, o conto do vigário, por exemplo. Mas quando o assaltante diz “perdeu!”, não está mentindo. A vítima perde de fato. A bolsa, a vida ou, no mínimo, a paz de espírito. Eu poderia ter escolhido a política ou o Direito. É sabido que costumam ser ofícios rendosos. Não só hoje. Historicamente. Ao contrário, poucos contadores de história enriquecem. A grande maioria sequer sobrevive com dignidade, muitos foram e são perseguidos, alguns perdem a vida no processo de criação ou por causa dele. E não só historicamente. Hoje também. Condenado a morte por fanáticos muçulmanos, Salman Rushdie é a evidência mais atual. Entretanto, se mal paga a conta de luz, o ofício de escrever remunera de forma especialíssima não só pelo encantamento que reproduz nos encantados, mas principalmente pelo encanto que produz no en-
cantador. É algo indescritível, que alimenta, sustenta, garante vigor eterno em qualquer idade, mesmo ao escritor velhinho cujo corpo desenganado dispensa força para findar.Mas não confundam. Não estou a defender a miséria para quem escreve. Longe disso. Preciso da adimplência, até para não ter que escrever no escuro. Apenas... celebro minha escolha. Viver da boa mentira, da arte de suspender a descrença para me entreter e proporcionar o entretenimento alheio, pode não ser viver no paraíso, mas passa perto. “Pensar é especular com imagens”, dizia Giordano Bruno. Eu especulo. Vivo disso. Com mérito ou sem mérito, pouco importa, questão de ponto de vista. Cercado ou não de fama, também não importa, é até preferível a pequenez prudente, pois porco esperto não engorda. Então, o dia que tiver que ir embora, irei sorrindo, tendo na ponta da língua a resposta para aquela que dizem ser a primeira pergunta de Deus: “O que você fez com o talento que eu te dei?”.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012
resenha
E PARA VOCÊ? A HIPOCRISIA ATRAPALHA O DESENVOLVIMENTO DA ARTE? Especialista comenta a “pintura crítica” de Victor Arruda, artista da Geração 80, cuja obra é marcada pela conotação erótica, presença cromática e temáticas despidas de falso pudor
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ara Victor Arruda, desenhista, pintor e professor de História da Arte, sim, a hipocrisia atrapalha o desenvolvimento da arte e, por isso mesmo, ele a utilizou em sua pintura desde o começo da sua carreira, com a intenção de dialogar diretamente e sem subterfúgios com a sociedade. O livro “Victor Arruda”, lançamento da Editora Casa da Palavra, em versão bilíngue, apresenta em suas 300 páginas a trajetória do artista plástico, cuiabano por nascimento, em 1947, e radicado no Rio de Janeiro. Victor Arruda é reconhecido como o primeiro artista a fazer referência às revistas de Carlos Zéfiro, famoso desenhista de cunho pornográfico. Integrou o movimento artístico conhecido por “Geração 80”, cujas pinturas pretendiam exercer a expressão e a afirmação do homem como sujeito anulado através da ditadura, e participou de exposições no Brasil e exterior. Organizado por Adolfo Montejo Navas, crítico de arte, curador e poeta, o livro traz ainda as assinaturas de Frederico Morais, Paulo Sérgio Duarte, Eucanaã Ferraz e Chaim Samuel Katz. Os dois primeiros, curadores e críticos de arte, e os dois últimos, poeta e psicanalista, respectivamente. A pintura de Victor Arruda é definida por Adolfo Montejo Navas como “uma pintura crítica” e, por sua vez, crítica em três níveis: no sentido artístico, no sentido sociocultural e no sentido da recepção estética. Para Navas, a pintura de Arruda “(...) questiona o cânone estético mais formalista, seja de marcadas senhas construtivas, informais ou figurativas; também é crítica em seu imaginário semântico, no código de informações que a sua visualidade aciona; e ao mesmo tempo, e talvez como consequência direta dos dois aspectos anteriores sofre de nítida incompreensão sociocultural (...).” O trabalho de Arruda não se enquadra numa leitura legitimada pela estética do gosto; pode parecer, de certo modo, agressiva, pertencente a um submundo no qual a sociedade em geral opta por não ver ou finge não
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existir, e, portanto, não reconhece como parte de seu próprio contexto.
Divisão
Obra “Retrato de Mário de Andrade”: referência ao Movimento Antropofágico
O livro traz uma divisão cronológica por décadas. Optamos por destacar as imagens dos anos 70 pela forte conotação erótica, além de uma intensa presença cromática, cujo tema divide-se em obras que referenciam ao antropofagismo de Tarsila do Amaral a Mário de Andrade, como em “Tarsilinha”, de 1975, e “Retrato de Mário de Andrade”, de 1974, assim como as pinturas-desenho que remetem ao trabalho de Carlos Zéfiro, onde além de imagens de sedução, falos eretos e casais copulando, há a inserção de pequenas narrativas que explicitam o caráter sexual e erótico de seus trabalhos. Há, ainda, as obras que conferem estreita ligação ou fazem uma alusão aos aspectos relacionados com a ditadura militar, através de pinturas como “Máquina de Choque” e “O Hipócrita”, ambas de 1974. Em “Máquina de Choque”, pintura monocromática de 50x73 cm, o artista representa uma maca com correias e uma máquina aparentemente ligada, que distribui aleatoriamente correntes elétricas que preenchem todo o espaço superior da composição. Em “O Hipócrita”, obra de mesma dimensão que a anterior, o artista divide a composição em dois planos ou duas cenas, das quais a maior e localizada à esquerda da pintura apresenta o que parece ser um amontoado de corpos dilacerados com tons de vermelho, marrom e bege, que se destacam da monocromia do fundo em preto e branco, causando um contraponto com a cena à direita, que mostra um homem engravatado, demonstrando sua superioridade e impassibilidade em relação à cena ao lado. As pinturas dos anos 90 dão continuidade sobre a temática, embora no conjunto de imagens que inicia o capítulo representem além das figuras humanas, agora menos distorcidas, planos com degraus e abismos que se abrem diante das figuras e dos olhos do espectador/leitor,
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por FABÍOLA MENEZES
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como nas pinturas “O Pintor” e “O Sedutor”. Em 2000, suas obras retomam a intensidade cromática através de planos de cores que são sobrepostos por desenhos figurativos com a temática erótica em destaque. O livro traz também uma conversa com Victor Arruda, o que contribui para uma maior aproximação do leitor à obra e ao pensamento do próprio artista. A voz do artista se destaca através de perguntas sobre o uso de suportes variados e que ultrapassam o formalismo acadêmico, como, por exemplo, o uso de caixas de remédio e bulas. A autonomia do artista Victor Arruda se desvela através da escolha de seus suportes, da liberdade do fazer-pensar, assim como, ou não somente, das escolhas de suas temáticas, por vezes brutas e despidas de falso pudor. Segundo Adolfo Montejo Navas, suas escolhas fizeram com que “(...) seja patente também certa indefinição, ou deslocamento estético, em relação às coordenadas artísticas nacionais e internacionais. Como se estivesse fora de lugar, em território sem pares próximos (...)”. Porém, Navas também reforça que talvez por isso mesmo, o trabalho de Arruda alcance uma internacionalidade, porque sua pintura dialoga através da estranheza com um “acervo imagético ecumênico”, como em Picasso e o cubismo, a antropofagia no Brasil, o pop, a arte brut, entre outros. Este é um livro que, além de visualmente rico em imagens, cores, gestos e atitudes, também revela traços e palavras que reforçam a pergunta do título: “E para você? A hipocrisia atrapalha o desenvolvimento da arte?”
Em “O Sedutor”, Arruda explora planos com degraus e abismos que se abrem diante das figuras e dos olhos do espectador
VICTOR ARRUDA Adolfo Montejo Navas. Casa da Palavra. 300 páginas. Quanto: R$ 130
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ficção por JOBSON LEMOS, COM ARTE DO COLETIVO PEIXARIA
A ENTREVISTA “Nem eles me contratariam”, murmurou de cabeça baixa o personagem deste conto, às voltas com a tensão que envolve uma seleção de emprego diante de um chefe especial
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ropeçou e caiu ao chão. E cada tombo merece um olhar a depender da idade. Quando muito pequena a criança, os pais correm para ver se tudo está bem. Quando muito velho, mesmo os estranhos socorrem. Na adolescência, o vexame se espalha pela escola, pelo prédio e vira história repetida à exaustão. Mas ele estava na parte da vida na qual teve de levantar só, bater a terra da pele arranhada e perceber os olhares que desviavam ao serem notados. A roupa suja seria um problema a mais na entrevista de emprego. A insegurança só crescia. Pensava na queda e se deveria ou não mencioná-la. Achou melhor não. Seria patético descrever a cena em detalhes. E ele só sabia contar histórias assim. Mudou de ideia. Talvez no processo de seleção se apiedassem e compreendessem ao ouvirem toda a desventura. Parecia uma boa estratégia falar. O ônibus demorava. Tentou limpar e aumentou a mancha. Alternou mentalmente várias vezes entre explicar aquilo e o calar. Até entrar no veículo, esteve envolto neste jogo de bem-me-quer-mal-me-quer. Conseguiu um assento próximo da porta de saída e viu as gotas começarem a cair. Mais próximas umas das outras a cada instante, formaram em segundos uma cortina através da qual nem se podia ver a calçada. Como havia feito calor e o céu estava limpo e claro quando saiu de casa, não ocorreu em nenhum momento levar um guarda-chuva. O ponto de desembarque se aproximava. A água não parava de atingir com vigor a janela. Ventava forte e frio. Ouvia o som dos pneus cruzando poças. Pensava no quanto chegaria encharcado pelo açoite da chuva. Tentou manter a calma, em vão. Desceu com o envelope do currículo sobre a cabeça. Percebeu que era ridículo, aquilo não protegia nada. Molhou os sapatos, as meias e a barra da calça ao atravessar a avenida. Os sinais de trânsito para pedestres não ajudaram. A demora pelo verde o irritava. Sentiu a camisa colar ao corpo até ficar transparente. Parou diante do prédio da companhia. Faltava meia hora para
o que, naquela situação, era certo e inevitável. Pensou que já nem valia o esforço. A humilhação das contas atrasadas bastava. Aquele dia não precisava existir e nem tampouco ser acrescentado à lista de constrangimentos. Decidiu tomar um café no boteco ao lado e pensar. Sentou no banco mais próximo da parede de azulejos amarelos e mais distante possível de qualquer pessoa. Secou as mãos e o que mais pôde com os guardanapos do balcão. Fez uma pilha deles rapidamente. Notou os olhares de censura dos funcionários. “Nem eles me contratariam”, murmurou de cabeça baixa. “Quem? O pessoal daqui?”, perguntou o dono do bar ao ouvir a lamúria. “Quando comecei, minha família disse que eu era maluco e agora me chamam de esnobe por ter
comprado casa e carro”, completou, recolhendo os papéis úmidos. Estava certo o comerciante. O que de pior poderia acontecer? Na dúvida, subiu pelas escadas até o escritório do superintendente. Era certo que o elevador daria problemas antes do oitavo andar. Suou frio. Arfou muitas vezes. O exercício e a ansiedade se somavam sem deixarem espaço nos pulmões para o ar. E havia a espera. O horário marcado só vale para quando se chega atrasado. Do contrário, existe a demora para ser recebido. Olhou para o sofá de tecido claro encostado na parede verde. Não soube o que fazer. Ficou pouco à vontade de pé. Percebeu a secretária lamentando antecipadamente caso ele decidisse marcar o móvel. A tensão durou pouco. O telefone tocou. “Pode entrar.”
Abriu a porta da sala e caminhou lentamente. Mirou os olhos do entrevistador que mal se levantou da cadeira para cumprimentá-lo. “Gostei muito da sua voz”, disse o homem de terno. “E pelo que ouvi tem experiência com equipes.” E prosseguiu sem tirar os óculos escuros. Ele, por sua vez, conversou tímido, sentindo-se à vontade a cada resposta, até finalmente notar que o chefe era cego. Ficou cheio de confiança. Passou a descrever sua experiência, seus feitos. Contou uma piada. Ambos riram. As voltas que a vida dá são impressionantes, pensou durante o sorriso compartilhado. “O emprego é seu”, sentenciou o patrão ao estender a mão para a despedida. Ele quis gritar ao ouvir, comemorar. Não teve tempo. “Mas, por favor, quando começar, venha mais arrumado.”