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VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

www.agazeta.com.br

Entrelinhas

POESIA DE WISLAWA SZYMBORSKA DÁ VOZ A SUJEITOS SILENCIADOS PELA HISTÓRIA. Página 3

Memória

PRESERVAR OS SÍTIOS HISTÓRICOS É CONSTRUIR A IDENTIDADE DE UM POVO. Página 8

Ensaio

UMA ANÁLISE DE “A NAU DECAPITADA”, ROMANCE DE LUIZ GUILHERME SANTOS NEVES. Páginas 10 e 11

Artigo

COMO A SÉTIMA ARTE SE TRANSFORMOU EM PODEROSO INSTRUMENTO POLÍTICO. Página 12

Azul da cor do jazz A HISTÓRIA E A MÍSTICA DO CLÁSSICO ÁLBUM “KIND OF BLUE”, DE MILES DAVIS

Páginas 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

quem pensa

Renata Bomfim é escritora, mestre e doutoranda em Letras pela Ufes. www.letraefel.com

Gilbert Chaudanne é escritor e pintor. Publicou os livros “A moça na janela” e “A busca do Santo Graal”, entre outros.

marque na agenda prateleira Vila Velha Bairro São Torquato é tema de livro

A jornalista Jussara Baptista lança, na próxima quinta, “Flores do Pântano – Histórias erguidas sobre o mangue de São Torquato”. A partir das 19h30, na Casa da Memória, Prainha.

Artes cênicas Fafi oferece oficinas gratuitas no verão

Rogério Coimbra é produtorcultural, pesquisador musical e autor do blog www.musicanasalturas.blogspot.com

Genildo Coelho Hautequestt Filho é arquiteto urbanista e mestre em Artes pela Ufes. genildocoelho@yahoo.com.br

Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

João Moraes é jornalista, músico e documentarista. joaopatuleia@superig.com.br

Jô Drumond é tradutora e escritora membro da AEL e do IHGES. jonund2@yahoo.com.br

As inscrições começam no próximo dia 5 de dezembro e vão até 5 de janeiro de 2012, na sede da Escola de Teatro, Dança e Música, e são abertas aos interessados em teatro, com ou sem experiência. Informações: (27) 3381-6921 e 3381-6922.

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de dezembro

A escritora Wanda Ma ria Alckmin toma posse na cadeira 30 da Academ ia Espírito-Santense de Le tras, anteriormente ocupad a pelo saudoso acadêmico Co elho Sampaio. A solenidade acontece na próxima ter ça, às 19h, no Auditório da Biblioteca Pública Est adual (Av. João Baptista Parra , 165, Praia do Suá, Vit ória).

professor e escritor. eduardoselga@gmail.com

Marcos Veronese é jornalista, diretor de cinema e vídeo. marcosveronese@bol.com.br

Com rigor acadêmico, o sociólogo e filósofo traça um retrato histórico da vida íntima dos brasileiros e conclui que vivemos, ao mesmo tempo, entre a luxúria característica de um povo miscigenado e o pudor herdado da Igreja em um país marcadamente católico. 448 páginas. Octavo. R$ 68

Budapeste Chico Buarque Edição econômica do romance que deu a Chico Buarque o Prêmio Jabuti de melhor livro de 2003. A história gira em torno de um ghost-writer em crise existencial que, meio sem querer, vai parar em Budapeste, onde buscará a redenção no idioma húngaro.

Nova acadêmica Academia de Letrna as

Eduardo Selga da Silva é graduado em Letras-Português pela Ufes,

Entre a Luxúria e o Pudor: a História do Sexo no Brasil Paulo Sérgio do Carmo

120 páginas. Companhia das Letras. R$ 26

O Último da Tribo – A Epopeia para Salvar um Índio Isolado na Amazônia Monte Reel

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de dezembro

Música instrumental no Sesi

O violonista e compositor Wanderson Lopez lança seu novo CD, “Violão em Concerto Vol. 1”, no Teatro do Sesi, em Jardim da Penha. Participações especiais do Baobab Trio e de Jeremy Naud.

O ex-correspondente do “Washington Post” na América do Sul conta o desafio de se chegar a um índio isolado, único sobrevivente de sua tribo, descoberto no norte de Rondônia pela Funai em 1996. 272 págs. Companhia das Letras. R$ 39

Cruz e Sousa Paola Prandini A biografia de Cruz e Sousa lembra os 150 anos de nascimento do poeta precursor do simbolismo no país e relata as dificuldades que o artista enfrentou por causa do preconceito racial. 136 páginas. Selo Negro. R$ 22

José Roberto Santos Neves

UM MARCO DO JAZZ Nenhuma obra entra para a história por acaso. Com “Kind of Blue”, de Miles Davis, não é diferente. O álbum gravado pelo trompetista em uma catedral, em Manhattan, em 1959, é considerado o grande marco da discografia do jazz, embora não seja unanimidade entre os amantes do gênero – o que representa mais um de seus méritos, como diria Nelson Rodrigues. A literatura musical conta com vários trabalhos a respeito da gravação que reuniu o sexteto formado por Miles Davis, Bill Evans (piano), John Coltrane (sax-tenor), Cannnonball Adderley (sax alto), Paul Chambers (contrabaixo) e

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Jimmy Cobb (bateria). Nas páginas 6 e 7, o pesquisador Rogério Coimbra destrincha o mais recente deles: “Kind of Blue – Miles Davis e o Álbum que Reinventou a Música Moderna”, no qual o jornalista Richard Williams utiliza o célebre álbum como mote para discorrer sobre a música pop dos últimos 50 anos. A edição de hoje destaca ainda os textos de Renata Bomfim, Gilbert Chaudanne, Genildo Coelho, Caê Guimarães, João Moraes, Jô Drumond, Eduardo Selga e Marcos Veronese, que brindam os leitores com diferentes abordagens sobre a cultura local e universal. Boa leitura, bom Pensar!

Pensar na web

Confira vídeos de Miles Davis, faixas do CD “Rheomusi”, de Fabiano Araújo, trailers de filmes e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

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por RENATA BOMFIM

A POESIA DO COTIDIANO SOB A MARCA DA DOR

A

poeta polonesa Wislawa Szymborska nasceu em 1923 na cidade de Bnin e aos oito anos se mudou para Cracóvia, onde reside até hoje. Conquistou variados prêmios literários, entre eles, o prêmio Goethe, na Alemanha, em 1991, o prêmio Herder, na Áustria, em 1995, e o Prêmio Nobel de literatura, em 1996. Aos 88 anos de idade a poeta busca preservar a sua vida privada, possui uma personalidade pacata, é discreta, e pouco afeita a viagens e badalações literárias. A obra poética de Wislawa Szymborska totaliza 12 volumes. A editora Companhia das Letras lançou em 2011 o livro “Wislawa Szymborska: [poemas]”, que reúne uma mostra da produção da poeta no seu idioma original, o polonês, com tradução para o português realizada por Regina Przybycien. Este lançamento agrega poemas recolhidos nos livros “Por isso vivemos”, de 1952; “Perguntas feitas a mim mesma”, de 1954; “Chamando por Yeti”, de 1957; “Sal”, de 1962; “Muito divertido”, de 1967; “Todo caso”, de 1972; “Um grande número”, de 1976; “Gente da ponte”, de 1987; “Fim e começo”, de 1993; “Instante”, de 2002; “Dois pontos”, de 2005, e “Aqui”, de 2009. Wislawa Szymborska integra uma safra de poetas que testemunhou as agruras da Segunda Guerra e o Holocausto. A poeta viu a terra natal ser ocupada pelos nazistas e repartida entre potências socialistas, acontecimentos que resultaram na morte de mais de seis milhões de poloneses, muitos deles judeus. Poemas como “Vietnã”, no qual ressoam muitos “Não sei”, e “Certa gente”, que desnuda o silêncio daqueles que “deixaram para trás certo tudo o que é seu”, e “quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia”, revelam o tom político de sua escrita. Para o eu poético szymborskiano tudo é político. Observemos um trecho do poema “Filhos da época”: “Somos filhos da época/ e a época é política. [...] Querendo ou não querendo,/ teus genes têm um passado político./[...] Não precisa nem ser gente,/ para ter significado político,/ basta ser petróleo bruto.” A inquietação e variados questionamentos, muitos deles de ordem filosófica, marcam a escrita poética de Szymborska. Poeticamente, o cotidiano, o passado, a sujeição do homem ao tempo, a vida precária e breve, são abordados entre outros temas. Malgorzata Baranowska ressaltou que o senso de humor da poeta é fruto de um “paradoxo filosófico muito refinado com uma linguagem extremamente simples, cheia de expressões do cotidiano”. Estes aspectos podem ser observados no

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POEMAS Wislawa Szymborska. Trad.: Regina Przybycien. Companhia das Letras. 168 págs. Quanto: R$ 39,50

UM POEMA VIETNÃ Mulher, como você se chama?? Não sei. Quando você nasceu, de onde você vem?? Não sei. Para que cavou uma toca na terra?? Não sei. Desde quando está aqui escondida?? Não sei. Por que mordeu o meu dedo anular?? Não sei. Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal?? Não sei. De que lado você está?? Não sei. É a guerra, você tem que escolher.? Não sei. Tua aldeia ainda existe?? Não sei. Esses são teus filhos?? São.

Wislawa Szymborska integra safra de poetas que testemunharam horror do Holocausto

poema “Primeira foto de Hitler”: “E quem é essa gracinha de tiptop?/ É o Adolfinho, filho do casal Hitler”! O crítico Nelson Ascher destacou que a escrita poética de Szymborska “é a da contenção”, da “economia”, aspectos que conferem “intencionalidade” a cada poema. O eu lírico szymborskiano repensa o mundo como quem reedita uma obra, ele dá voz a sujeitos subalternizados e si-

lenciados pela história abrindo espaço para “a fala dos bichos e das plantas”, deixando falar A mulher de Lot, personagem bíblica transformada em estátua de sal. O tempo, senhor onipotente, no universo poético de Szymborska “não terá poder sobre os amantes”, como descreve o poema “Repenso o mundo”, e o grotesco e o sublime buscam harmonia para embalar a morte, algo como “Bach/ tocado

por um instante num serrote.” Os poemas explicitam a transitoriedade da vida, “Cena sem ensaio”, texto imbricado no qual o viver é uma espécie de teatro “onde o mais sublime é o baixar da cortina”. O eu poético confessa não saber qual o “papel” que desempenha, apenas que ele é seu e é “impermutável”, como revelam trechos dos poemas “Impressões do teatro” e “A vida na hora”. Se “a vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua, mas também com a culpa mútua”, como afirmou o linguista Mikhail Bakhtin, Szymborska, no poema “Sob uma estrela”, toma sobre os seus ombros a culpa do mundo e se desculpa perante tudo e todos, especialmente “as grandes perguntas pelas respostas pequenas”, “por não poder estar em toda parte”, e “por não saber ser cada um e cada uma.” A obra poética de Wislawa Szymborska é rica de significados e, ainda, pouco conhecida no Brasil. Acreditamos que a poeta encontrará, cada dia mais, espaço entre os leitores da boa poesia.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

livros por GILBERT CHAUDANNE

PADRE ANTÔNIO VIEIRA, O SACRISTÃO DA CASA-GRANDE

ESSENCIAL Padre Antônio Vieira. Companhia das Letras. 760 páginas. Quanto: R$ 35, em média

Antologia com sermões, cartas e textos proféticos mostra que humanismo cristão de um dos mais influentes personagens do Brasil Colonial não resistiu a seus preconceitos raciais

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inha ouvido falar do Padre Antônio Vieira, mas nunca o tinha lido. Li e fiquei, na verdade, bastante espantado. Se não há dúvida que o estilo é dos bons, até grandioso em certos momentos, há certas opiniões de nosso padre, sobretudo a respeito de nossos escravos, que me deixaram simplesmente chocado. Antônio Vieira parece ter perdido sua carga humana quando fala desse assunto e seu espírito crítico analítico (em outros momentos presente ativo) desaparece. Ele usa com muita habilidade uma noção cristã: a dos Mistérios Dolorosos, que seria o apanágio e o favor feito aos escravos na dor da escravidão para chegar ao céu. Os senhores têm, é claro, os Mistérios Gozosos (outra categoria de mistérios segundo a mística cristã). A casa-grande é a catedral e a senzala é as catacumbas, mas os dois levam ao reino de Deus. Os escravos têm a sorte de poder praticar a “imitação de Cristo” pela via dolorosa: a senzala como escola de santidade. Ora, a experiência histórica mostra o contrário: a estrutura Casa-grande/Senzala não fabrica nenhum santo, seja pela via dos “mistérios gozosos”, seja pela via dos “mistérios dolorosos”. A estrutura Casa-grande/Senzala fabrica o homem perverso tanto na casa-grande como na senzala. É a dialética fedorenta do senhor e do escravo, e se essa estrutura desapareceu materialmente (ou quase), ela não desapareceu psicologicamente: é só observar o comportamento na relação dona de casa/empregada: um belo exemplo de perversão recíproca (mas não sempre). A revolta negra de Palmares é condenada pelo Padre Vieira, mostrando assim que seu humanismo cristão não resiste a seus preconceitos raciais: Palmares é a honra de homens torturados, humilhados, que, pela revolta, reconquistam seu Estatuto de Homem: “Je me revolte donc nous sommes”, escreve Camus (Eu me revolto, logo somos), uma libertação pelo “amor – de – mim”, e o amor do próximo (isso é cristão e não a escravidão) e a honra de ser quem eu sou. O Padre Vieira reflete perfeitamente a mentalidade da Europa da época, julgando-se a dona do mundo pela cruz e a

Pensamentos do jesuíta refletem o mundo escravista e dogmático do século XVII

+ sobre Padre Antônio Vieira Infância na Bahia Nasceu em Lisboa, em 1608, mas viveu grande parte de sua vida no Brasil. Passou a infância e a juventude na Bahia, onde se tornou jesuíta. Acompanhou as invasões holandesas e a tomada de Pernambuco, e descreveu em relatórios e cartas as vitórias e derrotas portuguesas, pregando em favor da resistência. Após um período em Portugal como conselheiro e diplomata de D. João IV, tendo lutado com veemência pela legitimação de seu reinado, viveu oito anos no Grão-Pará e Maranhão, entre 1653 e 1661.

Contra a Inquisição Já septuagenário, voltou à Bahia, onde viveu quase recluso, preparando a publicação de seus sermões, que representam a maior parte de sua vasta obra. Considerado por Fernando Pessoa o imperador da língua portuguesa, destacou-se por sua habilidade como orador sacro, missionário e político. Defendeu os cristãos-novos contra a Inquisição, condenou a rebeldia do quilombo dos Palmares e reprovou as reformas da capitania de São Paulo que favoreciam a escravização dos índios. Morreu lúcido aos 89 anos, em Salvador, em 1697. Fonte: Companhia das Letras

espada. Ainda hoje há missionários europeus que vêm ao Brasil com esse espírito de trazer a verdade absoluta aos “pobres caboclos”, com esse espírito saturado de orgulho, para “salvar o povo brasileiro”. Mas o povo brasileiro não precisa de salvador, a não ser a cidade de Salvador, grande centro da espiritualidade afro-brasileira. O povo brasileiro é bastante belo para reconhecer a beleza negra, a consciência negra, e deixar de correr atrás de salvadores de empreiteiras, esse povo toma conta de si nas danças sagradas, pensa por si e pelo seu corpo deixando de lado todos os padins. Isso não quer dizer que não há espiritualidade. Porque só há espiritualidade se houver liberdade, senão é apenas um devaneio, um consolo, uma prisão de medo com seus santos de gesso. Se foi possível vencer o “corpo negro” na batalha de Palmares, não foi possível destruir o espírito negro, e as “entidades” continuam vivas até hoje. Os deuses não morrem e os tambores tampouco. Lendo Padre Vieira há momentos em que questiono se ele está falando sério. E ele está. O que dá um resultado inusitado: a impressão de se estar diante de uma ingenuidade perversa como a da Lolita de Nabokov, marca registrada das Américas: uma espécie de imaturidade feliz por ser imatura, mas que no caso dos países latino-americanos se desdobra numa forma gozosa de sadismo. Não só se matou os índios, mas se fez isso com prazer, com gozo, não se torturou e se matou os negros, mas se fez isso com prazer, com gozo. O Cristo brasileiro é redentor apenas no Corcovado. Senão o Cristo brasileiro é o de Aleijadinho: “o Cristo de dor”. O Padre Vieira, naquela época, não podia pensar de outra maneira? Sim, porque “pensar é quebrar as estruturas, as estruturas do exército jesuítico também” (Teilhard de Chardin). Rui Barbosa destruiu os documentos sobre a escravidão e isso não é um ato de libertação, ao contrário, é um ato de amnésia nacional. E se há amnésia, não há identidade. É por isso que a guerra dos Palmares continua: Rocinha, Complexo do Alemão. A guerra continua. O que foi colocado por debaixo do pano ressurge do recalque, como diz a psicanálise, na perversidade, simplesmente.


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falando de música

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por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

EM HARMONIA COM O FLUXO DA CRIAÇÃO

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

RHEOMUSI Fabiano Araújo. Com Arild Andersen e Naná Vasconcelos. Tratore. 7 faixas. Quanto: R$ 20, em média. À venda na Vam Instrumentos Musicais e na Livraria Leitura. www.myspace.com/rheomusi

DIVULGAÇÃO

Em seu terceiro CD, “Rheomusi”, Fabiano Araújo (acima) conta com o acompanhamento dos renomados Arild Andersen e Naná Vasconcelos; trio produz música instrumental de alto nível, com harmonias e ritmos em favor de composições que sugerem um painel de imagens rico como a própria natureza

“H

á canções demais nesse mundo”, apontou Caetano Veloso durante o lançamento do disco “Cê”, em 2006. Naturalmente o compositor provocou polêmica, como é do seu feitio. Mas uma análise mais aprofundada sobre essa frase nos permite acrescentar: há, sim, canções demais no mundo, assim como há carros demais, prédios, gente (agora somos mais de 7 bilhões), armas, tecnologia, informação, fast-foods, programas ruins na TV, filmes blockbusters, celebridades instantâneas, oferta de produtos supérfluos. Há bobagens por todos os cantos, má religião, intolerância, desperdício, desamor. Reflexo do seu tempo, a música não poderia passar incólume a essa cultura do excesso. Invasiva, entra em todos os lugares sem ser convidada, “como uma musiquinha para animar o ambiente”, repleta de efeitos, overdubs, computadores que afinam os que cantam mal, misturas de gosto duvidoso, overdose de instrumentos. Felizmente, há compositores e instrumentistas que ainda assimilam a música como uma arte da ordem do sagrado. Entre eles está o pianista Fabiano Araújo. Seu terceiro álbum, “Rheomusi”, traz um afago

para a alma na forma de harmonias refinadas e arranjos elegantes que sugerem o contato com a natureza em sua forma mais pura, contemplativa, sem a pressa ou a explosão de notas que caracteriza boa parte da produção contemporânea. Esteticamente pode ser chamado de jazz, embora suas sete faixas não se prendam à célula rítmica original do gênero. Vai além dos rótulos e percorre uma viagem por paisagens europeias, por meio do contrabaixo do norueguês Arild Andersen, e pela percussão internacional, e essencialmente afro-brasileira, de Naná Vasconcelos.

Toque ancestral

Andersen é um dos contrabaixistas mais requisitados do jazz atual, tendo atuado ao lado de feras como Chick Corea, Sonny Rollins, Dexter Gordon e Don Cherry. Em 2010, recebeu o prestigiado prêmio Ella Awards, no Festival de Jazz de Oslo. Naná dispensa apresentações. É o ritmo em pessoa, a musicalidade aflorada, o toque ancestral do primeiro negro de mãos calejadas a bater no tambor como gesto de fé e esperança. Fabiano Araújo é um dos mais talentosos músicos em atividade no Espírito Santo. Sua estreia em disco, em 2006, com “O Aleph”, lhe rendeu o

reconhecimento da crítica pelo trabalho de alto nível de composições que transitam do choro ao jazz. Em 2009, lançou “O Calendário do som – 9 Dias”, releitura autoral da obra de Hermeto Pascoal e notadamente o seu disco mais técnico, com a participação de músicos europeus como Alex Frazão e o próprio Arild Andersen. Em “Rheomusi”, o pianista literalmente se deixa levar pela corrente de sons gerada pela força do trio. Rheo, em grego, quer dizer fluxo. Significa que os integrantes utilizam acordes e batidas para demonstrar seu mais profundo apreço pela entidade que dá sentido às suas criações – a música. Não há aqui notas desperdiçadas ou arroubos virtuosísticos; pelo contrário, o tom dominante é o do minimalismo, de se fazer “mais com menos”, uma das marcas da percussão de Naná. Todas as faixas são de autoria de Fabiano Araújo, com exceção de “Hyperborean”, de Arild Andersen. O pianista também gravou o acordeão, e Andersen eventualmente sobrepõe o baixo acústico sobre uma programação eletrônica para embelezar as harmonizações. Essa estética se traduz em uma música de ambição universal, mas com sabor brasileiro, a notar pelos títulos: “Yã”, “Anacã”, “Negro”, “Norte”, “Santa Marta”. É o legado indígena e africano a serviço do jazz, e

nesse ponto Fabiano Araújo segue as lições dos dois grandes alquimistas da música erudita e popular do Brasil, Heitor Villa-Lobos e Radamés Gnatalli. Essa busca pela brasilidade está evidente em “Yã”, no diálogo entre as notas do piano e o berimbau de Naná, e na faixa seguinte, “Hyperborean”, onde o baixo de Andersen e o acordeão de Fabiano transportam o ouvinte para uma atmosfera de lagos, horizontes, florestas. Em “P”, o toque de Naná funciona quase como um mantra para o pianista explorar seu conhecimento sobre o compositor austríaco Arnold Schoenberg, criador do dodecafonismo. “Anacã” traz um jogo de tensão ampliado pelas pausas, o ritmo não linear e a intensidade do piano. Em “Negro”, a faixa mais longa (tem mais de 10 minutos), a percussão de Naná emula os sons da chuva e as harmonias seguem uma linha crescente em meio à improvisação coletiva. Após a explosão de ideias da faixa anterior, “Norte” conduz novamente o ouvinte a um universo de relaxamento, com o piano em destaque. A viagem de “Rheomusi” termina com “Santa Marta”, onde o baixão de Andersen volta a se destacar, realçando a melodia com um solo etéreo sobre a base minimalista de Naná e as intervenções de Fabiano. É o fluxo da música em seu estado natural, como se deve ser.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

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música

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por ROGÉRIO COIMBRA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

Autor analisa a estrutura musical do disco e descreve a função da palavra “azul” nas artes, na filosofia e na religião, mostrando como essa cor foi exaltada e ridicularizada através dos séculos

A OBRA-PRIMA DE MILES DAVIS

DIVULGAÇÃO

LIVRO CONTA COMO O TROMPETISTA REINVENTOU A MÚSICA MODERNA A BORDO DO ÁLBUM “KIND OF BLUE”

N

ão adianta, está na boca do mundo: “Kind of Blue”, de Miles Davis, é o grande marco da discografia do jazz. É difícil mudar, assim como convencionou-se que o quadro “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, é referência da pintura, ou “Cidadão Kane”, de Orson Welles, do cinema, “Ulisses”, de James Joyce, da literatura, “O Pensador”, de Rodin, da escultura, e assim por diante. Massificou, virou folclore, mesmo com um fundo de verdade. Mas tudo ocorreu com a ajuda da influente CBS e seu poder de marketing e de distribuição de discos. Então, mais um livro lançado sobre a famosa gravação de 1959, realizada em uma catedral transformada em megaestúdio da Columbia Broadcasting System (CBS), em Manhattan, Nova York. Com um título epopeico, “Kind of Blue – Miles Davis e o Álbum que Reinventou a Música Moderna”, Richard Williams, jornalista britânico, utiliza como mote a gravação do quinteto liderado por Miles Davis para discorrer sobre a música pop dos últimos 50 anos. Na verdade, o título original é mais condizente com o conteúdo do livro: “The Blue Moment – Miles Davis’s Kind of Blue and the Remaking of Modern Music”. Este livro é uma viagem literária a bordo do tapete mágico de “Kind of Blue”. O autor consegue ser envolvente quando de fato faz um apanhado sobre a função da palavra “azul” nas artes, na filosofia e na religião, e como essa cor foi exaltada e ridicularizada através dos séculos. Ele coloca o “azul” como a cor do equívoco e da incerteza, como l’heure bleu, o mo-

mento entre o dia e a noite, entre zonas da existência, entre um tipo de vida e outro. Evoca também o período azul de Picasso, o manto azul da Virgem Maria, o dos mantos de monarcas e cavaleiros dos séculos XII ao XIV, simbolizando coragem e virtude, ou mesmo os vistosos ternos azuis usados pelos poderosos detetives do FBI de Edgar Hoover, e a conotação do azul na cor da eficiência do século XX, principalmente entre executivos corporativos. Richard Williams cita “A Teoria das Cores”, de Goethe, e seu conceito sobre o azul, considerada por ele uma cor negativa, um resultado da fuga da luz de nós até a escuridão; e Rilke, que escreveu poemas de solidão e ansiedade sobre um papel azul: “A aparência dos objetos vistos através de um vidro azul é triste e melancólica.” Mergulhando no blue, Williams deposita a música de “Kind of Blue” no fundo de conceitos minimalistas, da introspecção, do melancólico e indica que o termo blue foi registrado entre os negros americanos pela primeira vez em 1860, para formar a expressão que hoje conhecemos como blues, uma música de queixas sociais ou de dores de amor. O autor ressalta, no entanto, que o termo blues devils havia sido usado 200 anos antes, na Europa, como sinônimo de depressão. Williams demonstra conhecimento de música (ele já tocou bateria e guitarra em grupos de R&B e já escreveu para o “Melody Maker” e trabalhou para a Island Records), sentindo-se à vontade quando analisa a música de “Kind of Blue”, sua estrutura modal, apontando os diversos modelos usados pelo grupo, como os gregos Dórico e Frígio e, ao menos, não

Não havia um negro àquela época que fosse tão imitado, respeitado e endeusado” —

ROGÉRIO COIMBRA Pesquisador de música popular

tira o mérito do papel relevante que o pianista Bill Evans teve na construção desse famoso álbum. Muitos dizem que “Kind of Blue” não existiria se não existisse Bill Evans. Quem conhece o estilo do pianista e ouve o disco, pode identificar sua marca. Miles Davis ficou famoso por saber reunir os melhores músicos, deixá-los trabalhar livremente, e, de certa forma, apropriar-se dos resultados. De fato, uma gravação que reúna além de Davis e Evans, John Coltrane, Cannnonball Adderley, Paul Chambers e Jimmy Cobb, atinge um precioso nível musical. Miles Davis era poderoso, rico, arrogante e genial. Não havia um negro àquela época que fosse tão imitado, respeitado e endeusado. Nascido em berço de ouro, era a vitrine para os negros pobres, tão ou mais geniais como ele, fosse pela direção que

desse à música, o modismo, fosse pelo comportamento. Bill Cosby, um showman muito famoso e conceituado, ligado ao mundo do jazz, não esconde em seu depoimento no documentário comemorativo dos 50 anos de “Kind of Blue” que todos queriam imitar Miles Davis. O terno, o carro, as frases (“So What” era um dos jargões de Miles e título de uma de suas composições), suas mulheres, seus relógios, seu estilo de vida. Miles era Miles. Ninguém era conhecido só pelo primeiro nome, só Miles. Na verdade, eles também tinham muito medo de Miles, seus repentes, suas críticas e mesmo suas pretensas porradas (seu hobby era o boxe). Descartava um músico com facilidade e sem temor. Foi assim quando trocou Philly Joe por Jimmy Cobb, Red Garland por Winton Kelly e esse por Bill Evans. Ele, além de sua personalidade, tinha uma máquina capitalista sustentando-o. Disco de Miles não ficava encalhado. Se Miles foi o luxo dos negros por suas atitudes, muitas delas geniais, Charlie Parker, mais respeitado pela sua arte, baixou a cabeça para si mesmo e destruiu-se. Curioso que, nessa áurea fase de produção, Miles só admitiu dois brancos em sua carreira, com nítida influência e contribuição musical, tendo ambos o mesmo sobrenome, Evans: Gil, o arranjador, e Bill, o mentor e pianista. Richard Williams, além de seus excessos pelo endeusamento de “Kind of Blue” (chega ao ponto de exclamar que uma música de rua executada com instrumentos primitivos de aborígenes australianos nas ruas de Barcelona, não seria possível se não existe o “Kind of Blue”), leva o leitor a uma inte-

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Genial e arrogante, músico ficou famoso por saber reunir os melhores instrumentistas, deixá-los trabalhar livremente e, de certa forma, apropriar-se dos resultados

ressante viagem pelo mundo dos vanguardistas do século passado, como La Monte Young, John Cage e Terry Rilley; John Cale e Lou Reed, do grupo Velvet Underground; Maunfred Eicher, fundador da ECM; e, claro, dos figurões do jazz dos anos 50 e 60, como Gerry Mulligan, Dizzy Gillespie, Winton Kelly, Charlie Parker ou Gil Evans, com histórias, depoimentos e revelações capazes de prender a leitura de qualquer jazzófilo. Richard Williams ludibria o leitor em sua proposta conceitual de introspecção, melancolia, quietude blue e modal em sua escrita, mas percebe-se que o livro é tônico, estridente e polifônico. Autor de livros sobre outros fenômenos da música como Phil Spector e Bob Dylan, Williams bem poderia interessar-se por outro disco que teve um impacto tão ou mais que o “Kind of Blue” em todo o mundo, lançado à mesma época, em 1959: trata-se de “Chega de Saudade”, de João Gilberto, inaugurando o estilo Bossa Nova que até hoje está vivo nos quatro cantos do planeta Terra. Essa, por sua vez, foi declarada azul pelo astronauta Gagarin: “A Terra é azul...” Boa leitura.

Opiniões sobre “Kind of Blue”: uma obra entre o amor e o ódio “Amantes presenteiam uns aos outros com ‘Kind of Blue’, de Miles Davis, ainda que sua atmosfera não lhes ofereça consolo, muito menos êxtase. Talvez estejam dizendo: se começar a gostar disso, temos alguma chance.” (Richard Williams) “Para muitas pessoas, esse é o único álbum de jazz na estante. Elas podem tê-lo comprado depois de ouvi-lo na casa de um amigo, em uma loja de discos ou em um restaurante.” (Richard Williams) “Há estudiosos de jazz, donos de vastas coleções, das que abrangem toda a história do gênero que, sem hesitar, citam ‘Kind of Blue’ como o item a ser salvo de um incêndio, caso pudessem escolher apenas um.” (Richard Williams) “Tenho que admitir que possuo uma cópia de ‘Kind of Blue’. É ótimo para ouvir à beira da piscina em um dia de sol ou como trilha sonora de um jantar entediante. Se eu tivesse um elevador colocaria esse álbum para tocar nos alto-falantes.” (Dom Joly, humorista inglês) “O disco de música ambiente mais supervalorizado que existe.” (Richard Cook, crítico de jazz)

“Quando você se apaixona por ‘Kind of Blue’, você não para de comprá-lo, um fato que os detentores de seus direitos autorais comerciais reconheceram há muito tempo. Quantas pessoas, em todo mundo, compraram o disco de vinil, substituindo-o quando seus sulcos se gastaram; adquiriram a fita K-7 para o sistema de som do carro; compraram o CD quando a tecnologia mudou e, depois, a edição remasterizada e, então a edição especial...” (Richard Williams) “É, nenhum disco de jazz vendeu tanto, a não ser talvez as porcarias de Kenny G. E até me arrisco a dizer que grande parte da putada que comprou ‘Kind of Blue’ também deve ter Kenny G em casa. Já não basta mitificar o músico e o disco, é preciso mitificar o local e o momento em que foi feito, e cada partitura, cada anotação, cada guimba de cigarro fumado durante as gravações. E tudo isso gera mais publicidade, mais exposição na mídia, mais artigos em jornais e revistas, mais vendas. Daqui a pouco essa merda terá vendido mais uns dois milhões de cópias, e será considerada, como música, mais importante que todas as sinfonias de Beethoven.” (Garibaldi Magalhães, analista de jazz)

Kind Of Blue – Miles Davis e o Álbum Que Reinventou A Música Moderna Richard Williams. Casa da Palavra. 288 páginas. Quanto: R$ 39,90


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patrimônio por GENILDO COELHO HAUTEQUESTT FILHO

A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE Tão importante quanto preservar os cinco sítios históricos tombados como patrimônio estadual, é conservar os usos, os costumes e as tradições daqueles que os edificaram

A

s sociedades vivem em espaços cujos traçados foram herdados de seus ancestrais fundadores. O papel da cultura, mais que desenhar, é reinterpretá-los. A cidade é consagrada pela constituição de um espaço simbólico que é edificado coletivamente, sendo composto por objetos materiais e imateriais. Com o passar do tempo, alguns objetos edificados – casas, igrejas, praças, edifícios públicos – são eleitos pela sociedade como ícones de um tempo que, mesmo já tendo passado, ainda tem importância para a cultura presente, por tratar-se da base sobre a qual ela foi edificada. Eleitos, os objetos arquitetônicos antigos que fazem referência ao passado deixam de pertencer única e exclusivamente ao presente, passando a ser fundamentais como legado que será compartilhado com as gerações vindouras. A forma como cada sociedade se apropria de seu território, fala da construção de sua própria cultura. Como a procissão pode prescindir da rua por onde ela passa? Como as solenes manifestações da fé poderão dispor de seus templos? Como o festival poderá acontecer fora do espaço da praça central? São esses os locais de memória que, consolidados pela história, merecem ser preservados. Mas, tão importante quanto preservar a materialidade local, é conservar os usos, os costumes e as tradições daqueles que os edificaram. A cidade, com sua arquitetura, é o mero papel onde são impressas as relações sociais humanas, essas sim, o grande objeto da preservação. Preservá-las é preservar a própria vida humana. O Espírito Santo conta atualmente

A arquitetura de um tempo GILDO LOYOLA

Sítio Histórico de Itapina: Fundada no final do século XIX por imigrantes europeus, a partir da chegada da ferrovia Vitória-Minas em 1907, a pequena vila passou por grande surto de ROSÂNGELA VENTURI

Sitio Histórico de Muqui: Fundada no final do século XIX na confluência de três importantes rotas de tropeiros que transportavam o café para o Porto de Cachoeiro de Itapemirim, a cidade ganhou grande impulso econômico com a chegada da estrada de ferro em 1902. Assim como Itapina, a estagnação completa deu-se a partir da década de 1960, após o Programa de Erradicação dos Cafeeiros Improdutivos. Sítio Histórico de Santa Leopoldina: O desenvolvimento da região somente ganhou impulso a partir da chegada dos primeiros imigrantes estrangeiros em 1857. Com o gradativo crescimento da produção cafeeira, que era exportada pelo Porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, a cidade transformou-se em um dos mais importantes entrepostos comerciais do Espírito Santo. Mais uma vez, o Programa de Erradicação dos Cafeeiros Improdutivos na década de 1960 foi responsável pela decadência de um promissor município capixaba.

desenvolvimento econômico, principalmente em função da produção cafeeira. O distrito entrou em decadência após o Programa de Erradicação dos Cafeeiros Improdutivos na década de 1960. GILDO LOYOLA

Sítio Histórico de São Pedro de Alcântara do Itabapoana: Região ocupada a partir da primeira metade do século XIX por posseiros provenientes de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. O grande desenvolvimento de São Pedro deu-se em função da produção cafeeira que era exportada pelos portos de Limeira e de Cachoeiro de Itapemirim. No ano de 1930, a comarca foi abruptamente transferida para a localidade de Mimoso do Sul, o que fez com que a cidade entrasse em grande declínio econômico. DIVULGAÇÃO

Sítio Histórico Porto de São Mateus: Os primeiros colonizadores chegaram à região em 1544, mas foi apenas após a inauguração do porto, em 1680, que a vila ganhou importância econômica no contexto estadual. No final do século XIX, o porto passou por grande desenvolvimento e modernização. Entre os anos 1920 e 1950, a região começou a entrar em declínio econômico que foi intensificado com a construção da BR 101.

com cinco sítios históricos tombados como patrimônio estadual. São reconhecidamente importantes por representarem o estilo arquitetônico de uma época. Mas, mais do que isso, representam os costumes, a cultura, a história de uma época. A história do Espírito Santo. Nas últimas semanas, as comunidades de quatro desses sítios – Itapina, em Colatina; Santa Leopoldina; Muqui; e São Pedro do Itabapoana, em Mimoso do Sul – estiveram reunidas no 1º Seminário de Educação Patrimonial, realizado pela Secretaria Estadual de Cultura e pelo Instituto Sincades. Esse ciclo se fecha no próximo dia 12/01, com o seminário no Porto de São Mateus.

Mediação

Esses seminários tocam numa questão fundamental: o envolvimento da comunidade local dos sítios históricos. O poder público é um agente importante, principalmente como promotor e indutor do processo de preservação, mas os moradores locais é que são o instrumento de mediação entre o passado e a herança cultural de todos os capixabas. Mas não apenas os moradores locais, todos nós capixabas somos, de alguma forma, responsáveis pela preservação do patrimônio. E para isso, precisamos nos sentir donos também. Além dos cinco sítios citados, nosso Estado possui outros dois que são pouco falados e ainda não foram tombados. São eles os Demétrio Ribeiro, em João Neiva, e Pendanga, em Ibiraçu. Conclamo a comunidade desses vilarejos, a sociedade capixaba e os poderes públicos municipais e estadual a olhar com carinho para esses patrimônios. Afinal, eles são de todos nós.


poesias

crônicas

TRIBUTO AO A MÁSCARA DO POETA BERREDO PALHAÇO SEM CIRCO DE MENEZES Por CAÊ GUIMARÃES (MOSAICO BERREDIANO) JÔ DRUMOND Sozinhando por alamedas desertas o encantador de palavras machuca o silêncio da madrugada em busca da poesia Nos descaminhos da noite nas trilhas indecisas da aurora o poeta acende escuros e tece tons do amanhecer Cabismudo vagueia pelas curvas do tempo. Busca em clarões metafóricos lume para a poesia. leme para a vida Pelos ermos da memória sobrevivendo com rações de lembranças o andarilho errante evita erosões semânticas assopra a poeira das palavras para reencontrar em cada uma o perfume da infância Na solidão inconseqüente de futuros outroras ciente de que o mundo é um caminho de nadas e de que a dor é uma estrada de inéditas lonjuras tenta viver intensamente seus “agoras” e descobre, em cada verso, o sol implume das palavras

Palhaços sempre me soaram emblemáticos. Eles não embalam o sonho de meninos agitados. O que vale é se imaginar trapezista, domador de leões, acrobata. Palhaços são atrapalhados, desastrados, excessivos. Sapatos enormes os afastam da velocidade. Roupas bufantes os alijam de mortais escarpados esculpidos no ar. A maquiagem, berrante, não pode borrar. Palhaços estão longe do ideal olímpico da antiguidade. Citius, altius, fortius. Mais rápido, mais alto, mais forte, condição impingida à educação masculina ocidental, oriental, acho que em todo mundo. Palhaços se vestem com retalhos da toalha do armistício. Na boca rubra grotesca trazem mensagem de paz. Genuína. Espontânea. Longe da competição fria do mundo. A deslealdade e a violência murcham na presença tola e sábia dos palhaços. E lhes basta fazer graça sem graça, esguichar água de uma flor na lapela, dirigir um calhambeque arrebentado e virar cambalhotas tortas. Desde moleque tenho fascínio pelo que a máscara esconde e revela. E como sempre gostei de circos

mambembes, pequenos, via as máscaras pintadas dos palhaços bem de perto. Ainda assim, nunca os havia entendido. O que faziam vagos no mundo fora do picadeiro? Qual rotina ordinária, qual conta e qual fila? Palhaços nunca se me deram a entender. Até semana passada, quando assisti a “O Palhaço”, de Selton Mello. O mundo precisa de mais Benjamins, palhaço criado, dirigido e interpretado brilhantemente por ele. Horas antes de ver este filmaço, rabisquei as linhas que seguem abaixo. Acordo. Levanto. Caminho até o espelho. Após lavar o rosto, maquio-me com as tintas do esquecimento. Não é a hipocrisia a mãe da amargura? Escolho, para tal ocasião, cores turvas. Não me preocupo em esconder sob o pó compacto, as rugas mais profundas. Desenho na face anônima a caricatura da alma atônita.

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Sobre um rosto desenho outro rosto. E sobre este, rascunho o primeiro. Só que roto. Ainda me espanta o rato enxergar vida no esgoto. Ainda me espanta sermos uma espécie que se condena à repetição. Saio à rua. No rosto pintado trago a expressão surpresa. Suspensa. Pendurada no ar. Como gancho de onde pende a carne no mercado. Como biruta tombada em noite sem vento. Como gol contra comemorado pela torcida errada. Pinto o rosto com as cores da cilada. E não há nada, nem lugar algum, ou tempo, que alivie esse achaque. Nem o amargo calor do meu conhaque. Volto, desfaço a pintura. Revelo no fundo do espelho a verdade mais dura e voraz. Após um rosto há outro, e na camada de baixo mais um. Difícil saber qual deles melhor me traduz. Apago a luz. E vou dormir quase em paz.

TEMPO DAS CHUVAS Por JOÃO MORAES

Com receio de que em breve sua vida não tenha mais “depois” busca no silêncio da noite nas pétalas do tempo na plumagem das palavras e no perfume de cada saudade vislumbres da eternidade

POEMÁTICA Na densa busca poética titubeio nas reticências resvalo no travessão e caio em torvelinho de letras no reino inaudito das palavras No vislumbre das entrelinhas cambaleio na embriaguês dos vocábulos na sinuosidade da sintaxe e curvo-me ao peso das sentenças Na travessia dos signos verbais embrenho-me em “florestas de símbolos” desbasto ramas lexicais descubro galhos sintagmáticos assisto o vicejar da oração “Meu verso é minha consolação” Poema premiado com o primeiro lugar no concurso literário da Academia Feminina Mineira de Letras (AFEMIL), em novembro de 2011.

O tempo está me comendo os cabelos e o viço. Sou de uma época em que era impossível voltar de uma visita a alguma roça sem trazer algumas dezenas de laranjas, mexericas, algum biscoito ou broa, e mudas de espada de São Jorge. Até pouso para viajantes ainda era ofertado nesse tempo meu de infância. Tenho na memória antiga, bem mais vívida do que a lembrança da tarde de ontem, o quintal generoso de onde eu sonhava um futuro sem planos. Desenho nos olhos fechados as árvores daquele quintal cujo mapa dos galhos e o segredo das texturas ainda me visitam. Quando em vez aparecem para uma conversa solta o velho coqueiro, o pé de abacate, as goiabas e a goiabeira, o pé de marmelo, tão sempre cheio de percevejos e joaninhas, o pé de figo, a saboneteira, as balieiras, gatos, cães e muitas, muitas galinhas; todas conhecidas pelo nome: Taliquá, Pescocinha, Espa-

nador, Asudinho, Cristalina, Rainha. Vejo ainda aqueles meninos encardidos com calções gigantes, feitos pela mãe precavida, sempre preocupada com o raquitismo do orçamento familiar. Íamos brincar no açude do Itabira, perto do pontilhão, passando lá pelo Corte Grande, um rasgo no morro velho, aberto para dar passagem às velhas locomotivas a vapor que tantas vezes vi passar pela Monte Castelo, com seus narizes pronunciados e o sopro de algodão. No final da primavera e início do verão corríamos atrás das tanajuras e montávamos o presépio e a árvore de Natal sempre fabricada por nós mesmos. Acho que nada é mais vigoroso em mim que a lembrança dos natais e as manhãs intermináveis pelas praias de Marataízes, frequentada por minha família já em um tempo de cintos pouca coisa mais folgados.

Essa chuva que não passa enquanto escrevo está molhando as velhas roupas penduradas no varal. Ouço até minha mãe gritando: – Corre menino, vai recolher as roupas e tira também o lençol do quarador. Contemplo pela janela a tarde branca e embarulhada pela chuva teimosa; observo as calhas cuspindo o canudo de água escorrida dos telhados. Vou pensando como a vida é tão parecida com a chuva; vai se realimentando dela mesma num precipitar permanente de repetidas águas. Hoje mesmo chove muito aqui dentro do velho peito e muita coisa vem boiando no caudal do tempo; um cheiro de bolo assando no forno, o café fresquinho no coador de pano, borboletas cor-de-abóbora voando no canteiro de dálias; e meus olhos cheios, na correnteza mansa dos dias, transbordam.


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por EDUARDO SELGA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE DEZEMBRO DE 2011

BRUNO MIRANDA/ARQUIVO AG

A NAU DECAPITADA: ESTRANHEZA E FASCÍNIO

A NAU DECAPITADA Luiz Guilherme Santos Neves. Publicado originalmente em 1982 pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida da Ufes. Edição esgotada.

Nesta obra publicada há quase 30 anos, Luiz Guilherme Santos Neves constrói enredo ficcional a partir de um fato histórico ocorrido no Espírito Santo em 1840

E

m 1982 lançou-se às águas da literatura produzida no Espírito Santo uma de suas naus capitânias, “A nau decapitada”, novela em que Luiz Guilherme Santos Neves lança mão, eficientemente, da estratégia narrativa de construir personagens e enredo ficcionais a partir de um fato histórico que, embora ignorado pela população capixaba porque a nossa história é escassamente difundida, está documentado num relato de viagem do presidente da Província do Espírito Santo, Sr. José Joaquim Machado de Oliveira, incluso num apêndice à obra. Trata-se da chegada dessa autoridade política em terras capixabas para assumir seu cargo no ano da graça de 1840, que nos é narrada por major Marcelino. Contudo, não é esse o elemento essencial da narrativa, e sim o percurso da embarcação, a partir da qual os personagens se movem. Ao mesclar numa só correnteza os discursos histórico e ficcional, ambas as faces são robustecidas exatamente porque diluem-se os limites entre elas e instala-se um saboroso diálogo, que o senso comum e o pensamento positivista, essa religião, reputam herético porque inaceitável. Essa intransigência em negar os tons dessa conversa é um equívoco, conforme é possível constatar, por exemplo, nos capítulos que narram o itinerário de Joaquim Machado rumo à capital a partir de Piúma, a cavalo e em companhia do narrador-personagem (major Marcelino) e, já em Vitória, sua rápida palestra com o presidente provincial que lhe passará o cargo. É a ficcionalidade, por meio da verossimilhança, “autenticando” fatos reais e fazendo supor “verdadeiros” episódios fictícios mesclados a eles. Até certo ponto, o leitor pouco afeito à história do Espírito Santo pode entender não estar lendo um enredo ficcional, antes uma crônica histórica cujos personagens, todos eles, teriam existido do modo exato como se fazem mostrar. É assim, mesmo no caso do estereotipado contramestre Simão Boncarneiro, a encarnação da perversidade demoníaca

ILUSTRAÇÕES DE ORLANDO DA ROSA FARYA

comandando ilegitimamente o brigue Vinte e Nove de Maio, uma espécie de inferno flutuante a lançar à terra firme, de âncora em âncora, seus anjos corrompidos por ordem do amotinado contramestre (contra o Mestre?). Não à toa, “Boncarneiro” parece alusão ao “bom cordeiro” do cristianismo, sarcástica na medida que seu comportamento é oposto ao que sugere seu sobrenome. O que não elide a referência a “bucaneiro”, pirata hispano-americano do século XVI e XVII. A embarcação rebelada, se é um verdadeiro covil enquanto infla suas velas a partir da enseada de Piúma rumo ao norte, movimento que remete à ideia de subida ou ascensão, junto com toda a carga semântica positiva que o senso comum lhe concede, quando a embarcação “desce” em retorno ao litoral capixaba está “purificada”. Seja pela radical mudança na “tripulagem”, seja porque “foi a embarcação submetida à lavagem e benzimento com água benta e de cheiro para livração de tantos males e más influências”.

Humor dos ventos

Ao inverter o itinerário, diluem-se as substâncias que remetem à ideia do sofrimento que flutua daqui para ali, ao humor dos ventos e até mesmo da calmaria. Sem torná-la inválida, entretanto. É que “Lúcifer” permanece, mesmo excluído do seu “inferno original”. Comandante agora de outro navio, a sumaca Boa Viagem, Boncarneiro, “que tinha partes com o Demo”, convence o ex-grumete da nau decapitada, Nico Querubinho, “a única novilha que se salva”, a abandonar o narrador-personagem, com quem vivia então muito sossegado em terra, e acompanhar o contramestre no Boa Viagem. É a mesma lábia que a tradição cristã atribui ao Anjo Caído, o verbo instrumentalizando-o no intuito de arrebanhar 1/3 dos anjos do Paraíso, num verdadeiro motim contra o Criador, do que a sublevação sem atos violentos comandada por Boncarneiro no Vinte e Nove de Maio é analogia. Ou seja, aqui o verbo atua de modo invertido ao fiat lux divino, porquanto destrói. É o que faz com a

mostra insistentemente sugerida, na parte final da novela, o pragmatismo típico do discurso masculino mantém-se. A partir do momento em que as emoções vêm à tona a objetividade do major bordeja à esquerda e à direita. O afeto insinuado provoca uma estratégica alteração na discursividade narrativa, com a presença abundante de vocábulos que denotam carinho. Assim, o grumete é o “pródigo filho adotivo de minh’alma” que “me proveu com a maior boa afeição, demonstrando-me por gestos e palavras, notável consideração e apego”.

Pervertido

Escritor desenvolve sua narrativa a partir do percurso de uma embarcação rebelada, sobre a qual seus personagens se movem

esperança e a boa fé de Esmeraldina Especiosa, estereótipo da indígena “apática de vontade e afeita a fazer apenas o que lhe fosse mandado”, e também com o doce relacionamento “cheio de gorjeios e assovios” do narrador-personagem com o grumete Querubinho. E não é que temos um interessante diálogo intertextual com “Bom-crioulo” (1895)? Neste romance naturalista brasileiro de Adolfo Caminha também há um grumete, Aleixo (ou o Bonitinho), cujas características físicas lembram a pureza de Querubinho (observe-se o diminutivo em ambos). Ele se relaciona sexualmente, mas sem afeto, com outro marinheiro, Amaro. Este equivaleria ao contramestre, inclusive no fato de seu ingresso na vida maruja ter ocorrido um tanto por acaso. A personagem correspondente ao major Marcelino seria a antiga prostituta Carolina, alguém que, por sua carência afetiva e instinto maternal, se apaixona pelo Bonitinho e o seduz. Sedução que redunda em sofrimento, pois Amaro consegue retirar o grumete da convivência dela. Boncar-

No século XIX, ser reconhecido como alguém que nutrisse sentimentos amorosos por outrem do mesmo sexo equivalia a ser visto de esguelha pela sociedade” neiro causa essa mesma dor da separação, mas não por meio do homicídio como fez seu “duplo literário”, e sim através do “sequestro” de Querubinho. Não apenas o Vinte e Nove de Maio e sua similitude com o inferno

É a ficcionalidade, por meio da verossimilhança, ‘autenticando’ fatos reais e fazendo supor ‘verdadeiros’ episódios fictícios mesclados a eles” flutuam. Também o discurso do major Marcelino, narrador-personagem, é calmaria, é temporal. Até o instante em que a homoafetividade dele em relação ao grumetinho, que possuía “cabelos encoscorados e cara oblonga de querubim”, não se

No século XIX ser reconhecido como alguém que nutrisse sentimentos amorosos por outrem do mesmo sexo equivalia a ser visto de esguelha pela sociedade, sujeitando-se a habitar sua margem, pois se acreditava que o indivíduo fosse doente ou um pervertido moral. Para um militar de formação religiosa, como o major Marcelino, a imagem social estaria seriamente comprometida se houvesse exposição pública desse carinho. É sintomático e alegórico, portanto, que a percepção da saudade motivada pela ausência do grumete já embarcado no Boa Viagem ocorra pelos olhos de Esmeraldina Especiosa, mulher e índia, portanto estigmatizada por um duplo silêncio imposto pela sociedade. Tamanho mutismo, a sociologia nos diz, provoca a elocução de proibidos modos de sentir o mundo. Ora, Esmeraldina conhece o vocabulário do não-dito e do subtexto. Por isso, solidariamente (e os excluídos são solidários entre si, por questão de sobrevivência), diz ao narrador-personagem: “Major, não arrepara no que vos digo e não leve a mal o meu dito. Mas arreda pé desse chão de areia e cuide da vida que Querubinho está de todo perdido”. Estranheza e fascínio, deslocamentos do espírito que a obra literária esteticamente relevante em geral causa, nós os encontramos em “A nau decapitada”, nas antíteses discursivas e no modo como a linguagem, enfunando suas velas, as torna harmônicas.


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cinema por MARCOS VERONESE

A REVOLUÇÃO PELO OLHO DO DRAGÃO DA IMAGEM Dos expressionistas alemães às produções atuais de Lars von Trier e Terrence Malick, a sétima arte nos ajudou a entender o passado, a refletir o presente e a projetar o futuro

DIVULGAÇÃO

“Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror” Charles Chaplin

P

or que temos necessidade de contar histórias, por que gostamos de enigmas, por que o interesse por ideias e fatos, por que buscamos certezas e verdades, por que a teodiceia, esse viés para entender a maldade, o sofrimento e o mal-estar do mundo? Por que, por que, por quê? Ora, sabemos que todos os conceitos deixam de existir quando deixamos de defendê-los. A arte, caríssimos, é uma forma de conhecimento tão potente quanto a ciência, quando nos permitem expressar algo. O cinema nos ajudou a entender o passado, a refletir o presente e a projetar o futuro. É um meio de comunicação poderoso, de grande influência na sociedade e na política. Foi assim na Alemanha, que dele se utilizou para a ascensão do nazismo, e os Estados Unidos o utiliza até hoje para se impor sobre os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O construtivismo levou o cinema a retratar as etapas da Revolução de 1917 e a difundir seus ideais. O cineasta, teórico, matemático e engenheiro Serguei Eisenstein (1898–1948), diretor dos filmes “A Greve” (1924) e “Outubro (1928), é o seu principal representante. Seus filmes não contavam histórias, mas apresentavam ideias para discussão. Seu filme mais importante, “O Encouraçado Potemkin” (1925), é uma obra de propaganda para comemorar os 20 anos do levante russo de 1905, tornando-se dessa forma o precursor da revolução pela imagem.

Alemanha

Nos anos 20, a Alemanha devastada pela guerra produzia filmes de forma sombria e pessimista, com cenários fantasmagóricos e atuações exageradas dos atores. Robert Wiene filma “O Gabinete do Dr. Galigari” (1919). Em seguida vem “Nosferatu” (1922), de Friedrick Murnau, “Metrópolis” (1926) e “M., O Vampiro de Dusseldorf” (1931), de Fritz Lang, filmes que revelaram uma expressão fascinante e obscura da alma alemã. Esses filmes marcam a criação do Expressionismo, traduzindo as frustrações e angústias de um país mergulhado em uma

Os filmes do cineasta e teórico russo Serguei Eisenstein não contavam histórias, mas apresentavam ideias para discussão, a exemplo de sua obra mais importante, “O Encouraçado Potemkin” (1925), baseada nos 20 anos do levante russo de 1905

crise econômica e social. Com a ascensão de Hitler, o nazismo destrói o cinema expressionista e passa a produzir filmes de propaganda nazista. No leste europeu, nasce um cinema de oposição ao regime do Führer. Entre os cineastas dessa região destacam-se o polonês Andrzej Wajda com “O homem de ferro” (1981), o húngaro Istvan Szabo com “Mephisto” (1981) e o sérvio Emir Kusturica com “Quando papai saiu em viagem de negócios” (1985) – não confundir com "O ano em que meus pais saíram de férias", de Cao Hamburger. O cineasta russo Dziga Vertov era documentarista por excelência. Em 1921, cria o grupo Kinoglaz (cinema olho). Suas principais obras são “A sexta parte do mundo” (1926) e “Um homem com uma câmera” (1929), antecipando o que seria o cinema-verdade dos anos 60. Caríssimos leitores, o conhecimento científico é cartesiano e está sempre em busca de excelência e precisão. O olho desse dragão chamado cinema é um jogo

de perspectivas que, enquanto arte, se esquiva da responsabilidade de oferecer uma verdade precisa. O que importa na sétima arte é contentar-se com a liberdade de interpretações. Na “Genealogia da moral”, Nietzsche diz: “Quanto mais olhos soubermos utilizar, tanto mais completo será nosso conceito, nossa objetividade. Aquele que quer conhecer e se coloca diante do mundo com uma pluralidade de olhares é, ao mesmo tempo, um ser pertencido a esse mundo e, nessa condição sente, experimenta e transforma”. O mesmo acontece com quem lança mão da arte como forma e modelo de vida, na medida em que se recusa a ser rebanho e busca o entendimento de sua própria vida e habitat, além de acreditar na ficção e acreditar que a máquina da vida pode ser explicada pela lógica e pela retórica. Chega de senso comum; a comunicação é o império do consenso, o acordo imediato é sempre óbvio, assim como a

interpretação rasa de quem enxerga tudo pela ótica do poder. Os enigmas obrigam o pensamento a levantar voo. Recentemente estrearam dois excelentes filmes: “Melancolia”, do diretor Lars von Trier, e “A árvore da vida”, de Terrence Malick, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2011. Ambos os filmes sustentam suas abordagens nas origens do pensamento cristão ocidental, em como o homem convive com a dor, a solidão, a morte e as tragédias reais e possíveis, e nas crenças que o acompanham desde os primórdios, que reforçam suas dúvidas e o aterrorizam diante do silêncio cósmico e da metáfora de um Deus onipresente. “Melancolia” e “A árvore da vida” trazem astros de peso como Brad Pitt, Sean Penn, Jessica Chastain, Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland. É a dica para fugir do entretenimento vacilante e industrial de Hollywood, sempre oscilando entre o artificial, a realidade e o encantamento.


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