Pensar
VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE NOVEMBRO DE 2011
www.agazeta.com.br
FRANCISCO NETO/DIVULGAÇÃO
Entrelinhas
LIVRO REVELA MITOS E VERDADES SOBRE O REI DO CANGAÇO Página 3
Cinema
ARTICULISTA MOSTRA COMO A SÉTIMA ARTE ANTECIPOU A CIÊNCIA Página 4
Samba
REEDIÇÕES RESGATAM O CANTO REFINADO DE ROBERTO SILVA Página 5
Artigo
ESCRITOR ANALISA AS FANFICTIONS SOB O PRISMA DA INDÚSTRIA CULTURAL Páginas 10 e 11
Integrantes da banda Móveis Coloniais de Acaju no festival Música Livre, em Vitória: exemplo de ousadia na gestão da carreira
Música sem fronteiras ESPECIALISTAS ANALISAM OS CAMINHOS DE UMA INDÚSTRIA EM TRANSFORMAÇÃO
Páginas 6, 7 e 8
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE NOVEMBRO DE 2011
quem pensa
Roberto da Silva Rodrigues é jornalista da Editoria de Qualidade de A GAZETA. rsrodrigues@redegazeta.com.br
Marcos Veronese é jornalista, diretor de cinema e vídeo. marcosveronese@bol.com.br
marque na agenda prateleira Letras Jô Drumond eleita para a Academia Mineira
A escritora, membro da Academia Espírito-Santense de Letras, vai ocupar a cadeira nº 24 da Academia Feminina Mineira de Letras, que foi de Eny Guimarães, prima de Guimarães Rosa.
Música erudita Livro sobre Ofes ganha segunda edição
Olívia Bandeira de Melo é mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. http://labcult.blogspot.com/
O pesquisador Juca Magalhães lança “Da Capo – De Volta às Origens da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo” no próximo dia 11, às 20h30, na Sala de Concertos Alceu Camargo, na Fames (Av. Princesa Isabel, 610, Centro, Vitória). Entrada franca.
oonacastro@gmail.com
Júlio Diniz éprofessordoDepartamentodeLetrasdaPUC-Rio. www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/NELIM/index.htm
Flávia Dalla Bernardina é advogada, bailarina e escritora. www.tubodeensaios.com.br
Antonio Bezerra Neto é autor de 12 livros, professor e secretário de Cultura de Linhares. bezerrapoesia@gmail.com
O Prêmio Nobel de Economia de 1998 se volta para a filosofia política e a teoria da justiça, apontando as contradições das correntes jurídicas dominantes. Suas premissas consistem na percepção de que as pessoas, embora sejam iguais perante a lei, possuem necessidades, capacidades e desejos distintos. 496 páginas. Companhia das Letras. R$ 59
Vozes no Centro do Mundo Henrique Cymerman Um dos jornalistas mais influentes na cobertura do Oriente Médio reúne entrevistas com os mais importantes líderes da região e decifra o enigma que impede a paz entre Israel e Palestina. Prefácio de Fernando Henrique Cardoso.
Oona Castro é diretora executiva do Instituto Overmundo.
Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br
A Ideia de Justiça Amartya Sen
17
416 páginas. Almedina. R$ 89
Caminhos Cruzados Samantha Viz Quadrat (Org.)
de novembro
Animação inspirada em
Machado de Assis O curta “A Linha e a Ag ulha”, baseado no conto de Machado de Assis, será lançado no próximo dia 17, às 19h30, no Teatro Munic ipal de Vila Velha. A an imação de Délio Freire gira em tor no da fundação da prime ira escola de samba do Rio, a Deixa Falar, por Ismael Silva, em 1928.
Eduardo Selga da Silva é graduado em Letras-Português pela Ufes, professor e escritor. eduardoselga@gmail.com
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de novembro
Roberto DaMatta em Vitória
O antropólogo fala sobre o tema “O empreendedor como agente de transformação social”, na solenidade de entrega da Medalha Américo Buaiz, às 21h, no Le Buffet.
Relato de 11 histórias do exílio da América Latina, fruto das ditaduras militares que marcaram a região, sobretudo na segunda metade do século XX. Temas como luta por justiça, anistia, localização de familiares e de mortos estão presentes na obra. 300 páginas. Editora FGV. R$ 49
O Grande Gatsby F. Scott Fitzgerald A obra-prima do escritor norte-americano, publicada em 1925, tem como protagonista um generoso e misterioso anfitrião que abre sua luxuosa mansão às festas mais extravagantes, repletas de jazz, dinheiro, sexo e gim. Em sua prosa envolvente, o espírito de uma época. 256 páginas. Companhia das Letras. R$ 25
A MÚSICA MUDOU. E AGORA?
José Roberto Santos Neves
Na semana passada, Vitória foi palco do festival Música Livre, que reuniu três dias de shows e debates sobre o futuro da atividade musical diante das novas perspectivas de produção e distribuição. O evento passou, mas a discussão permanece, e deve se manter pelos próximos anos, com a construção de um novo modelo de negócio para o músico, capaz de contemplar o universo digital e as redes sociais como poderosos instrumentos de difusão. Nesta edição, os especialistas Olívia Bandeira de Mello, Oona Castro e Júlio Diniz apontam os equívocos criados em
Pensar na web
é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.
jrneves@redegazeta.com.br
torno dessa questão e destacam experiências bem-sucedidas, como a da banda Móveis Coloniais de Acaju (DF), que se tornou objeto de estudo acadêmico por utilizar as novas tecnologias e as transformações sociais a seu favor.
Confira vídeos do Móveis Coloniais de Acaju, faixas do CD “Descendo o Morro”, de Roberto Silva, trailers de filmes e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br
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De 07 a 27 de novembro, estarei de férias. Nesse período, as jornalistas Carol Rodrigues e Vilmara Fernandes comandam a edição do Pensar. Saudações literárias e até dezembro!
Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493
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entrelinhas
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por ROBERTO DA SILVA RODRIGUES
LAMPIÃO: MITOS E VERDADES DO CANGAÇO
O
s cangaceiros foram criminosos que promoveram terror e desordem no sertão nordestino, dos últimos anos do século XIX ao início dos anos 1940. De tão falados, esses bandoleiros entraram para a história e para o folclore brasileiros, sendo particularmente célebre Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1897-1938), que impôs seu reinado brutal no cangaço nas décadas de 1920 e 1930, em Estados como Sergipe, Ceará e Bahia. Baseada nessas histórias de crueldade, miséria, poder e corrupção, a socióloga e doutora em ciência política Isabel Lustosa, pesquisadora titular da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), escreveu “De olho em Lampião – Violência e esperteza” (110 páginas, Editora Claro Enigma), obra na qual analisou, de maneira bem didática, usando interessante acervo de imagens da época e reportagens de jornais, a biografia de um dos homens mais temidos de seu tempo, mito que inspirou um sem-número de romances, músicas e filmes. A biografia é bastante concisa, trazendo inicialmente um panorama da vida social e política do Brasil da chamada República da Espada até a implantação do Estado Novo, entrando a seguir na investigação resumida das origens humanas e sociais de Virgulino, que ganhou o apelido de Lampião por sua habilidade no gatilho: nos combates travados à noite, os disparos contínuos saídos da boca de sua arma pareciam uma chama que não se apagava, lembrando um lampião! A motivação desse bandido para o crime sempre foi pessoal. Ainda adolescente, com os irmãos, em Sergipe, se meteu em rixas com famílias rivais, vizinhos, fazendo os primeiros inimigos entre essa gente, que ele perseguiu (e pela qual foi perseguido) por toda a vida. A morte do pai, por policiais, foi mais uma razão para fomentar o ódio contra a sociedade. Sua trajetória de maldades, e as de outros cangaceiros, como Corisco, era alardeada na imprensa sensacionalista do Rio e de São Paulo e na literatura de cordel, manifestação cultural prestigiada no interior. Lendas foram, assim, criadas com a imagem dos cangaceiros. Também em “De olho em Lampião”, não poderia faltar um capítulo sobre a companheira de cangaço de Virgulino, Maria Bonita. O livro conta como foi sua entrada no bando, na segunda fase de sua vida, quando Lampião já estava na Bahia. As mulheres do cangaço raramente tomavam parte das batalhas, ape-
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DE OLHO EM LAMPIÃO – VIOLÊNCIA E ESPERTEZA Isabel Lustosa. Editora Claro Enigma. 110 páginas. Quanto: R$ 23
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Biografia do cangaceiro destaca o papel de sua companheira Maria Bonita (no alto)
TRECHO “A fama de invencível de Lampião foi se constituindo a partir dos inúmeros confrontos travados com tropas bem mais numerosas que a dele sem ser derrotado. O cangaceiro se valia da cultura sertaneja e sabia observar qualquer mudança na natureza que pudesse indicar algum perigo”. (Página 52)
sar de saberem atirar. Atuavam mais na retaguarda, com certa influência sobre os maridos: Maria Bonita impediu, inclusive, algumas execuções.
Coronelismo
O cangaço foi um fenômeno que surgiu devido ao descaso do Estado, à situação de abandono do sertão, onde os manda-chuvas eram os grandes proprietários de terras, que ditavam as leis e as executavam. Era a época dos chamados coronéis, do coronelismo, e a estes Lampião se aliava, sempre que possível, em troca de dinheiro, munições, proteção e promessas mútuas de que não se enfrentariam. A autora explica na obra que Lampião e seus “cabras” preferiam atacar pequenas
vilas e fazendas que não tinham grandes chances de defesa, já que as autoridades dos Estados onde atuaram se ocupavam em defender e desenvolver cidades litorâneas, e só se mobilizavam para combater o cangaço quando ocorria algo que virava manchete nos grandes centros. Outras razões para o sucesso de Virgulino foram sua ligação com as elites sergipanas; a incompetência, a falta de recursos e de unidades por parte dos governos e polícias; e, por fim, o egoísmo e a ganância dos latifundiários. Curiosamente, a saga de terror imposta por seu bando no Nordeste lhe trouxe fama de bandido amigo dos miseráveis, espécie de Robin Hood do Sertão, mas, na prática, era um verdadeiro coronel. Em vez de roubar dos ricos para dar aos pobres, torturou e matou as vítimas de seus roubos, incendiou fazendas e promoveu estupros e sequestros. Manteve ligações com chefões políticos do interior, foi ousado nas ações criminosas, e impiedoso contra soldados, delegados e policiais. Aos amigos, esbanjou generosidade, hospitalidade e proteção; aos inimigos, impôs as marcas de sua vingança. Contudo, a capacidade estratégica e tática de Lampião para manipular a conjuntura do universo da caatinga, um cenário de exploração e miséria, a seu favor e o conhecimento da natureza foram pontos que pesaram para manter seu longo histórico de crimes, saques, batalhas e fugas. O temido “Capitão” Virgulino Ferreira da Silva desenvolveu, basicamente, um esquema parecido com o dos mafiosos de Chicago na década de 1930: vendia proteção contra si mesmo...
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audiovisual por MARCOS VERONESE
CINEMA: A MAGIA DO MOEDOR DE IMAGENS Especialista descreve a trajetória da sétima arte desde o seu advento com os Irmãos Lumière, na França, no final do século XIX, até os filmes de autores premiados nos festivais atuais
“Ando à procura de espaço, para o desenho da vida” Cecília Meireles
P
aris. Um trem aparece ao longe e entra na estação vindo em direção à câmera como se fosse atravessar a tela e atropelar a todos. Era 28 de dezembro de 1895 no Grand Café, no Boulevard des Capucines, na Cidade Luz. Não é por acaso que a palavra cinema é francesa. A expressão que dá nome ao título desse artigo foi dita por uma espectadora que reagiu assustada quando assistiu à primeira demonstração pública da imagem em movimento. O cinema já nasceu globalizado, palavra moderna que já encontrava eco na atitude pró-ativa do industrial Antoine Lumière e de seus dois filhos Auguste e Louis, que realizaram um feito de um século produzindo 50 câmeras e espalhando-as pelo mundo. Ao mostrar os seres vivos sob a forma de imagens em movimento, realizaram o sonho de pesquisadores, pintores, taumaturgos e cientistas de vários países. Esta história demonstra como o estudo da imagem não é algo simples e evidente tal como comprar um bilhete e um saco de pipocas. As primeiras potencialidades artísticas do cinema nascem pelas mãos de um ilusionista, criador da trucagem cinematográfica: o francês George Méliès, que ao parar a câmera e trocar os elementos de cena transformou seus filmes em espetáculos. Em 1902, Méliès já havia levado o público para além da Terra em “Viagem à Lua”, além de criar imagens para “Gulliver” e as “Aventuras de Robinson Crusoé”. De todos os diretores um dos mais importantes foi o americano D. W. Griffith, que estabeleceu os fundamentos da montagem alternando as dimensões do plano com a câmera e criando diferentes tensões dramáticas. Griffith dirigiu “O nascimento de uma nação” (1915) e “Intolerância” (1916). Nas décadas de 1910 e 1920, o cinema mudo já estava consolidado com “Ouro e maldição”, do austro-americano Erich Stroheim, e “O Encouraçado Potemkin”, do russo Sergei Eisenstein, ambos de 1925; “Fausto” (1926), do alemão Murnau; e “Metrópolis” (1927), do austríaco Fritz Lang. Do ciclo do cinema soviético
“Viagem à Lua” (1902), de George Méliès, e “Metrópolis (1927), de Fritz Lang: o cinema já nasceu globalizado
não se pode esquecer de citar Pudovkin e Dziga Vertov, integrantes do expressionismo alemão. Igualmente importantes são “Napoleão” (1925), do francês Abel Gance, “Sangue Mineiro” (1928), de Humberto Mauro, e “Limite” (1930), de Mário Peixoto, ambos do Brasil. Para os puristas, o cinema era a arte da imagem em movimento, e a transição do cinema mudo para o sonoro nos anos 20 não foi tranquila. O som transgredia sua natureza, mas um estúdio em dificuldades financeiras, a Warner Bros, apostou no processo e lançou o primeiro filme sonoro, “O cantor de jazz”, de Crosland. A inovação o salvou da falência. Mais tarde viria a cor, o cinemascope e o som estéreo. Se o som por um lado enriquecia o cinema, por outro obrigava a mudanças na linguagem. A montagem já não era mais o fundamento único do filme, e agora havia mais um elemento na composição fílmica: o diálogo, fato que provocou mudanças na concepção estética criando a função do roteirista, atraindo dramaturgos de peso como William Faulkner. Na Inglaterra, o primeiro filme sonoro é “Chantagem” (1929), de Alfred Hit-
chcock. Aproveitando a introdução do som, nos anos 30 os americanos lançam seus filmes de gângsteres e passa-se a ouvir o matraquear das metralhadoras em “Scarface, a vergonha de uma nação”, de Howard Hawks. Em 1941, Orson Welles lança “Cidadão Kane” e inova ao utilizar o flashback como novidade narrativa e ao introduzir novas técnicas: profundidade de campo, posições de câmera alta e baixa, troca de lentes, planos longos e a narração em off.
Neorrealismo
Na Europa, Roberto Rossellini filma “Roma – Cidade Aberta”, rodado nas estradas de Roma durante os últimos dias da ocupação alemã, dando início ao neorrealismo. Em seguida vêm “A terra treme”, de Visconti, e “Ladrões de bicicletas”, de Vittorio De Sica. O cinema italiano revelaria outros grandes gênios como Antonioni, Fellini e Pasolini. Na França, no início dos anos 60, as câmeras abandonavam os estúdios e uma nova geração saía para as ruas para colocar a teoria em prática, realizando uma revolução estética. Nascia a Nouvelle Va-
gue revelando nomes como o franco-suíço Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, François Truffaut, Jacques Démy, Alain Resnais, Jacques Rivette. Esses cineastas defendem a espontaneidade e a expressão de sua cultura na tela, incluindo o talento de autodidatas. Uma geração que deixou filmes inesquecíveis como “Acossado”, “Alphaville”, “Nas garras do vício”, “Os primos” e “Os incompreendidos”. O Brasil não fica indiferente, mesmo porque o Cinema Novo, principal movimento cinematográfico do país, tinha uma relação muito parecida ao fazer filmes baratos, rápidos e enérgicos, tendo como expoente Glauber Rocha. Apesar do modelo hollywoodiano, a indústria cultural se globaliza e o “cinema de autor” se renova pelas mãos de Steven Spielberg, George Lucas, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Brian de Palma, que se tornam responsáveis por industrializar o filme de autor. O novo formato ganha o mundo e festivais como Sundance e Berlim, lançando nomes como Todd Haynes, Hal Hartley e Nick Cassavetes. Mas isso, caríssimos leitores, é assunto para outro artigo.
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falando de música
Pensar
por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES
PALMAS PARA O PRÍNCIPE DO SAMBA
A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE NOVEMBRO DE 2011
BILOGIA - DESCENDO O MORRO Roberto Silva Microservice. 2 CDs. 24 faixas Quanto: R$ 29,90
PEDRO CARRILHO/FOLHAPRESS
A LETRA CABELOS BRANCOS (MARINO PINTO/HERIVELTO MARTINS) Não falem desta mulher perto de mim Não falem pra não lembrar minha dor Já fui moço, já gozei a mocidade Se me lembro dela me dá saudade Por ela vivo aos trancos e barrancos Respeitem ao menos os meus cabelos brancos
O cantor Roberto Silva, hoje com 91 anos, diante da Pedra do Sal, no centro do Rio de Janeiro: lenda viva da música popular
S
empre que alguém se refere a Paulinho da Viola como o Príncipe do samba, o nobre portelense responde elegantemente, mas meio sem jeito, que ele não pode ser chamado dessa maneira, “porque o samba já tem um príncipe. E o nome dele é Roberto Silva”. De fato, Roberto Silva tinha menos de 30 anos quando recebeu este título do locutor Carlos Frias, da Rádio Tupi, para onde fora levado na década de 1940 por Paulo Gracindo para fazer parte do elenco da emissora. O radialista deve ter ficado impressionado com o suingue, o charme e a divisão impecável daquele então jovem cantor de sambas, que se espelhava no estilo romântico de Orlando Silva, o “cantor das multidões”, e trilhava seu caminho no mais popular dos gêneros musicais brasileiros emoldurando sucessos dos baluartes da Época de Ouro. Foram criações famosas desses compositores – entre eles Geraldo Pereira, Wilson Batista, Mário Lago, Ataulfo Alves, Braguinha, Alberto Ribeiro, Bide e Marçal, Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues – que Roberto Silva selecionou
para o projeto “Descendo o Morro”, gravado entre 1958 e 1959, sob a chancela da Copacabana Discos. Os dois primeiros álbuns da série, que reuniu quatro volumes, ganham agora reedição através da coletânea Bilogia, produzida pela Microservice, atual distribuidora do valioso acervo da Copacabana. No texto do encarte, o renomado crítico Lúcio Rangel conta que a ideia do projeto partiu do flautista Altamiro Carrilho, que viu em Roberto Silva o timbre perfeito para regravar sambas que já nasceram clássicos. No primeiro disco, estão, por exemplo, “Agora é cinza” (Bide/Marçal), “Falsa baiana” (Geraldo Pereira) e duas joias do samba machista: “Ai! Que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago; e a menos conhecida – porém tão bela quanto – “Emília”, de Wilson Batista e Haroldo Lobo, lançada em 1941, portanto um ano antes da “Amélia”, com uma declaração de amor que sintetiza o pensamento do homem do seu tempo: “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar/Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar/Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz/Emília, Emília,
Emília eu não posso mais”. Para quem ainda se ofende com essa apologia da mulher submissa (inadmissível para os dias de hoje), o troco delas vem no mesmo CD com “Oh! Seu Oscar” (Wilson Batista/Ataulfo Alves), sobre o trabalhador que chega em casa cansado do trabalho e logo é avisado pela vizinha que sua mulher partiu, deixando para ele um bilhete que assim dizia: “Não posso mais, eu quero é viver na orgia”.
Boemia
No segundo volume de “Descendo o Morro”, Roberto Silva expressa a crônica de sua época com voz empostada, em contraponto ao canto suave dos recém-chegados bossa-novistas. Estamos em 1959, e a boemia e a inevitável passagem do tempo ainda encantam nossos intérpretes e compositores, sentimento traduzido nas regravações de “Cabelos brancos” (Herivelto Martins/Marino Pinto) e na melancólica “Passei dos 32” (Jayme Silva/Cezar Lima): “Eu já não me considero mais moço/Passei dos 32, agora quero descansar/O tempo está tingindo os meus cabelos/Já treme a minha
Ninguém viveu a vida que eu vivi Ninguém sofreu na vida o que eu sofri As lágrimas sentidas Os meus sorrisos francos Refletem-se hoje em dia Nos meus cabelos brancos E agora em homenagem ao meu fim Não falem desta mulher perto de mim
voz... nem gosto de falar”. Na décima faixa, de um total de 12, o cantor esbanja malícia e malandragem ao contar a história do “Escurinho” de Geraldo Pereira, sobre o “escuro direitinho que agora está com essa mania de brigão”. O intérprete majestoso teve um suporte instrumental à altura, com destaque para o trombone de Raul de Barros e a flauta de Altamiro Carrilho. Completam o elenco Canhoto (cavaquinho), Meira e Dino (violões), José Américo (baixo), Jorge Silva (pandeiro), Gilson de Freitas (tamborim), Décio Paiva (afoxé) e Rubens Bassini (ganzá). Com um detalhe: todas as gravações foram feitas sem partitura, na base do feeling, como informa Lúcio Rangel no encarte. Essa opção estética confere espontaneidade às execuções, sem perder o rigor técnico – afinal, só havia fera no estúdio. E sequer a partida da mãe do cantor, em 1958, no momento em que Roberto Silva gravava “Agora é cinza”, da célebre frase “você partiu de madrugada”, tirou o brilho dos álbuns; pelo contrário: certamente a dor da perda ampliou o lamento sempre presente em seu canto. Porque, como ensinou Noel, “o samba nasce no coração”.
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mercado fonográfico
Blogueiros, fãs ou simples “amigos de redes sociais” desempenham papel cada vez mais relevan
MÚSICA NOVA, LIVRE E SEM FRONTEIRAS ESTUDIOSAS APONTAM DOIS EQUÍVOCOS E ALGUNS CAMINHOS PARA UMA INDÚSTRIA EM TRANSFORMAÇÃO
O
campo da cultura acompanhou na última década um debate protagonizado por duas teses centrais: a de que a indústria da música está em crise, impulsionada principalmente pela pirataria física e pela internet, e a de que as novas tecnologias da informação produzem a desintermediação da cadeia produtiva da cultura. De fato, de 2004 a 2009 o faturamento da indústria fonográfica mundial caiu 30%, queda não compensada pelo aumento em 940% da venda de música digital (1). No entanto, a crise a que assistimos é menos da indústria da música e mais dos modelos de negócios da indústria fonográfica vigentes na maior parte do século XX. Em primeiro lugar, hoje uma quantidade e uma diversidade de artistas e músicas estão disponíveis a um número grande e diverso de pessoas; só a rede social MySpace reúne mais de 40 milhões de músicas e 100 mil vídeos musicais. Em segundo lugar, os dados da indústria da música como um todo – e não só seu braço fonográfico – mostram
um lucro crescente: entre 2006 e 2009, o mercado global de música subiu de US$ 60,7 bilhões para US$ 65 bilhões (2). Parte do crescimento do faturamento deriva das receitas com shows, que aumentaram de US$ 16,6 bilhões para US$ 20,8 bilhões nesse período. No que tange à hipótese da desintermediação, é interessante notar a mudança no perfil dos intermediários: eles não desaparecem, mas se multiplicam. As fronteiras entre as figuras do criador, do crítico e do consumidor tornaram-se menos claras e rígidas. Os novos intermediários – blogueiros, fãs, divulgadores ou simples “amigos de Facebook”– desempenham papel cada vez mais relevante no sistema de recomendações, na formação de público e na divulgação de novos talentos. Também grandes empresas de internet se consolidam como agentes de intermediação, como é o caso do YouTube ao remunerar criadores com grande audiência ou ainda ao pagar ao Escritório Central de Arrecadação de Direito Autoral (ECAD) 2,5% do seu faturamento. Entender quem são e qual o papel desses intermediários é essencial,
A crise a que assistimos é menos da indústria da música e mais dos modelos de negócios da indústria fonográfica vigentes na maior parte do século XX”
principalmente em um cenário em que as novas mídias podem reproduzir o problema de concentração do universo da radiodifusão (3). Diante de novas práticas de circulação, bem como do surgimento de novos agentes na indústria da música, inúmeros conflitos derivam justamente do debate sobre as fronteiras entre legalidade e ilegalidade. Como conciliar o possível e desejável acesso a informações e bens culturais e a sustentabilidade do autor e do criador? Como garantir a continuidade do trabalho de novos agentes dentro da formalidade? Não existe um modelo – ou um modelo hegemônico – de produção, distribuição e consumo de cultura. Cada vez mais, para além das indústrias culturais, inúmeros produtores de cultura têm inventado novas estratégias para colocar o bloco na rua. Muitas dessas iniciativas surgiram em cenários de aparente escassez, ou seja, de ausência das instituições formais das indústrias culturais, como mostrou a pesquisa realizada pelo Instituto Overmundo para o projeto Open Business Models – América Latina,
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por OLÍVIA BANDEIRA DE MELO e OONA CASTRO
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nte no sistema de recomendações, na formação de público e na divulgação de novos talentos
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em parceria com o CTS (Centro de Tecnologia e Sociedade) da FGV Direito Rio e o apoio do IDRC – International Development Research Centre. Realizado em duas etapas – entre 2006 e 2007 e entre 2009 e 2011 – o projeto mapeou mais de 50 casos inovadores espalhados pelo Brasil. Como exemplos, temos as cenas musicais globoperiféricas formadas pela mistura de ritmos locais com a música eletrônica, como é o caso do tecnobrega de Belém do Pará, o funk da Baixada Santista, o reggaeton mineiro e o lambadão cuiabano. Os artistas dessas cenas têm sua rentabilidade baseada nos shows, e não em direitos autorais; para eles, pirataria é divulgação. Ainda no campo da música, muitos festivais têm feito circular bandas de todo o país, conquistando um público
crescente, como mostrou o II Festival Música Livre, que aconteceu em Vitória entre 27 e 29 de outubro. O Festival faz parte do Circuito Fora do Eixo, um conjunto de mais de 50 coletivos de diversos Estados brasileiros que usam largamente as redes sociais para divulgar seus eventos e debater políticas públicas; a sustentabilidade do circuito é baseada em suas moedas sociais – que contabilizam, por exemplo, as horas dos integrantes dedicadas a cada coletivo – e no tripé venda de produtos/editais públicos/parcerias com a iniciativa privada. Uma das estrelas do festival foi a banda Móveis Coloniais de Acaju. O segredo do sucesso da banda, segundo o relatório da pesquisa, é uma “combinação de autogestão, profissionalização, estreita ligação com os fãs, uso
intensivo de redes sociais, processo coletivo de criação, envolvimento direto dos músicos com as tarefas logísticas e administrativas e adesão a formas não-convencionais de distribuição e remuneração”. Esses casos mostram como mapear e diagnosticar o emergente campo da Economia da Cultura é fundamental. A cultura é um dos principais fatores de desenvolvimento para os países e deve ser, portanto, objeto de políticas públicas. No entanto, os raros dados históricos, o alto índice de informalidade do setor e o alto custo de realização de estudos abrangentes e confiáveis são grandes desafios hoje. Para que as políticas públicas atendam aos interesses do conjunto da sociedade e promovam o desenvolvimento cultural,
social e econômico de forma descentralizada, é necessária a produção de dados e indicadores amplos, que olhem para a realidade que extrapola as lentes da formalidade. A maior parte da produção cultural, extremamente informal, deve ser incluída nesses levantamentos, para serem consideradas geradoras de riqueza e desenvolvimento para o país, e para se tornarem alvo das políticas públicas. Essa importante tarefa precisa ser assumida como prioridade pelo poder público, em nível federal, nos Estados e municípios, com o auxílio de universidades e institutos de pesquisa, para que as políticas partam de uma compreensão adequada e clara da sociedade que temos e ajudem a transformá-la na sociedade que queremos.
1 – Emarketer: Global Music: Tuning Into New Opportunities. Disponível em: http://www.emarketer.com/Report.aspx? code=emarketer_2000428. 2 – IFPI Digital Music Report 2010. Disponível em: http://www.abpd.org.br/downloads/DMR2010 _UK_JAN2010.pdf. 3 – Em 2011, os 5 sites com maior audiência no Brasil, de acordo com o Ibope Netratings, eram Google, MSN, UOL, YouTube e Facebook. Na semana que se encerra em 22/10/2011, as duas redes sociais mais acessadas (Facebook e YouTube) nos EUA concentravam 84,66% dos acessos, segundo o site Hitwise.
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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE NOVEMBRO DE 2011
+ artigo de capa por JÚLIO DINIZ
AS MÚLTIPLAS FACES DA LIBERDADE Para ensaísta, há em músicos, poetas, artistas plásticos, atores, malabaristas, bailarinos e nos provocadores em geral, o desejo de trazer do subsolo a potência criadora da invenção
A
liberdade, segundo o senso comum, é um direito inalienável de todo ser humano. Mas a luta para que ela seja valor imprescindível nas relações sociais, políticas e econômicas é um exercício que se perpetua na contemporaneidade. É impossível para o (e)leitor de nosso momento histórico conceber a arte submetida a regimes estéticos, mercadológicos e ideológicos autoritários. A liberdade, além de ser um segredo, como diz Clarice Lispector, tem uma densidade uma oitava acima de qualquer tom. Contar uma história, para mim, é sempre um exercício em liberdade. Não consigo entender como, diante dos impasses do presente, as narrativas individuais e coletivas possam ser controladas e/ou orientadas por forças externas a sua fundação como discurso. Estar diante do outro e falar para o outro do outro que habita em si é o grande gesto político, artístico e ético que o artista contemporâneo pode fazer num mundo de descasos e banalizações. Há quem ainda acredite e perpetue a ideia de que o autor morreu. Parece que alguns pós-quase-modernos de plantão não leram bem ou passaram apressadamente os olhos pelos textos de Foucault e Barthes que discutem essa questão. Como falar de morte do autor num momento de histeria coletiva diante do conceito de intimidade e da proliferação das narrativas do eu, das autobiografias e das autoficções? As narrativas urbanas que moldam o corpo textual e sonoro do artista de nosso tumultuado presente formam um contínuo e caudaloso rio que contempla margens e penetra territórios que vão da família à rua, da solidão ao encantamento, da loucura à memória, do controle à ruptura radical. Paixões, preconceitos, violência, sexo, espanto, desejo e dor são tratados em liberdade por vozes que narram vozes em trânsito, corpos em suspensão, discursos entortados pela potência da vida. Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberdade aprisionante do espaço branco do papel, da imobilidade do corpo como máquina desejante, do silêncio imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo, os criadores de nosso
DIVULGAÇÃO
João Gilberto: exemplo de artista que rompeu e corrompeu tradições
Há, sim, uma crise de gêneros – musicais, textuais, discursivos, sexuais – crise extremamente fértil para se pensar impasses e caminhos. Não está exclusivamente no minimalismo clean da Bossa Nova e no hiperbólico colorido tropicalista a essência da nossa raça”
mais-que-presente, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam num complicado e brutal jogo de tensões. O grande desafio é traçar os caminhos do meio, reforçando a ocupação dos espaços públicos que se privatizam e buscando experiências de criação e produção sob o signo do cooperativismo. São as possíveis experiências do mundo livre das armadilhas fetichizantes que o consumo do supérfluo, o mercado monopolizado e o capitalismo cognitivo impõem como padrão estético. O lugar das redes sem lugar acelera propositivamente a discussão sobre modos de fazer, modos de sentir, modos de haver. Acredito muito na potência da figura e da ação dos artistas-da-ação-presente diante da amnésia imposta pelo capitalismo cognitivo para vender a memória como mercadoria. Estão todos ao lado da vida. Há nos músicos, poetas, artistas plásticos, malabaristas, atores, palhaços, bailarinos e em toda sorte de vagabundos provocadores que erram pelas cidades, um desejo de trazer do subsolo das reminiscências das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São corpos que resistem na
contemporaneidade ao descaso com a história dos afetos e das narrativas que a liberdade nos provoca. Esse convite à trepada, à trapaça, à invenção de um outro, tem um forte aliado nos cenários em ruínas das cidades do nosso tempo. Imagens, textos e vozes em dialogia e em rotação contínua. A liberdade, antes de tudo, é um jogo de seduções. Como revelar as múltiplas faces da liberdade até agora? Como o artista no/do Brasil do século XXI pode se transformar no lugar da resistência e de afirmação da precariedade humana? Como os (e)leitores de nosso tempo lidam com a vontade que potencializa o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópicos nos reservam? Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas de desejos e dúvidas, de fome e sede, da vontade inegociável de devorar. Há, sim, uma crise de gêneros – musicais, textuais, discursivos, sexuais – crise extremamente fértil para se pensar impasses e caminhos. Não está exclusivamente no minimalismo clean da Bossa Nova e no hiperbólico colorido tropicalista a essência da nossa raça, nem o samba pode sofrer de fetichismo identitário. A mama África sonhada por Gil arrumou um trabalho provisório nas Casas Bahia, como constata Chico César. Do outro lado, a periferia cordial inventada por algumas ONGs e pelo sorriso mercadológico das atrizes globais é quase uma nova pindorama, entre barracos, valas negras, crianças nuas e mulheres violentadas, todos sorrindo para as lentes do “Fantástico” ou para documentários dos humanistas de plantão. Como afirmam os Racionais MCs, “periferia: corpos vazios e sem ética / lotam os pagode rumo à cadeira elétrica”. Aproveito as comemorações dos 80 anos de aniversário de João Gilberto para usar este esplêndido personagem da nossa música popular como lugar histórico definido e definitivo para afirmar a necessidade de corromper tradições e romper traduções de tradições. Literalmente, chega de saudade dos corpos emoldurados na foto em branco e preto e integrados ao banquinho e ao violão; chega de saudade das calçadas de fundo preto e branco da Copacabana, princesinha do mar. Outros corpos violentam a sonoridade para mostrar que ser desafinado não é atributo, é processo.
poesias
crônicas
ANUNCIAÇÃO A PRÓXIMA FOLHA ANTONIO BEZERRA NETO EM BRANCO desculpe a estocada: dizem que em geral escrevo bem sobre realidades campestres tolices as aves que falo em meus poemas são flamingos (apenas estampas postas num jardim zen)
ALPENDRE DA MARIA BONITA
por CAÊ GUIMARÃES Mais uma vez me deparo com uma folha em branco. Ainda é uma folha, mesmo que impressa momentaneamente no fósforo da tela do laptop. Pensemos que falo de uma folha, o que ela virtualmente é. Para aprisioná-la em meus arquivos, preciso apenas apertar um botão ao alcance da mão. Para apagá-la, eliminando todos os vestígios do que nela grafei, ou tentei, há outro botão. Fácil. Acessível. Obediente. Preenchê-la são outros quinhentos. Há assuntos de sobra. Corrupção endêmica, ditadores sanguinários sacrificados como porcos, terremotos, maremotos, acidentes de motos, lençóis contaminados importados. A colha de retalhos que nos cobre dos pés ao queixo é vasta, madame. Nela, cabe tudo. Inclusive a esperança. Mas a opção pode ser outra. Tirar os
olhos do painel composto pelos fatos no mundo e mirar o mundo dos traços, concretos ou abstratos, que desenhamos no pensamento. Os temas seriam os mesmos que nos movem há milênios. Amor. Ódio. Esperança. Cobiça. Fraternidade. Inveja. Amizade. Traição. Vida. Morte. Mudam cenários e ferramentas disponíveis. Mudam as falas e os vestires. A trilha sonora e a banda larga. Mas a essência é a mesma. Ao escrever, seja a passos claudicantes ou com velocidade e destreza, o ser humano desfolha a mesma flor que jaz e renasce a todo instante. No meu caso, como o moto perpétuo do relógio de parede do meu avô em Vila da Penha nos anos 70. Para cada um, uma representação. Qual será a sua, mordomo? Olhar uma folha em branco e tentar preenchê-la, fazer com que o texto vaze para além do seu limite retangular e alvo,
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é como um jogo de distensão das extensões. Pelos filamentos, as sinapses nervosas bolem. Sinais elétricos percorrem um caminho intrincado até a ponta dos dedos. Estes batem nas teclas utilizando o código que nossos antepassados nos legaram, e de forma ordenada esse código cresce sendo revelação. Constrói-nos e constrói-se a um só tempo. Como uma torre inconclusa que tenta atingir o céu. E que pode ser vista de qualquer lugar onde estejamos. Mas há dias, como hoje, em que tudo, até a arte que mais toca olhos ou ouvido, se esvai e carece de sentido. Há dias, como hoje, em que o ruído da máquina de moer carne do mundo se torna distante, mas também inaudito. Nessas horas tudo se adensa. A memória acelera para depois escorrer lenta até os teclados negros, gastos por tantos dedos, tantas prosas, tanta coragem e medo, tanta reclusão e valentia. Há momentos em que a vida se concentra em um espanto. E na certeza de que, nela, não há sentido. Apenas a possibilidade, que abraço convicto, de viver a experiência de estar vivo.
entre a parede alva a rede e os arroio do rio
PROTEJA-ME DA FORMA por FLÁVIA DALLA BERNARDINA
quase morto uma impossibilidade para o poema: (uma sílaba caiu no fosso)
HORAS DE VERÃO sobre a mesa puseram uma manta de lã angorá – não era inverno [provavelmente um presente para velhos] ainda sobre a mesa um livro imenso sobre Cézanne ainda sobre a mesa restos de peças de Degas pensei feito um louco: que tal uma garrafa de conhaque Courvoisier? afinal a França estava logo ali incapaz de coisas maiores
Estou chorando. Tudo se banha à minha volta, umedecendo o chão que passa sob meus pés. Num ato de deliberada desobediência, decido que tudo obedecerá o seu próprio tempo. Até mesmo o elevador, que fechará (ou abrirá) sua porta sem pressa, sem que nenhum botão seja apertado, a não ser o do andar que pretendo chegar. Penso nas pessoas que se deslocam, errantes ou não. Elas seguem porque fogem ou porque são chamadas. Mas qual a diferença entre fugir de algo e ser chamado por algo? Penso também na morte e na gentileza dos que elaboram sua potência antes de partir. Muito claramente compartilham seus registros quando sabem que vão partir, embora nunca saibam quando partirão de fato. A verdade. Sei que você traz dentro
de si uma versão absoluta dos fatos, crenças e gestos arraigados. A verdade não me interessa, se ela já está aí. Porque se ela me interessasse significaria ter que correr atrás dela. Por isso ela me acalma – por não exigir que eu me movimente para tocá-la. Não quero correr, não quero nem mesmo enxergar, mas apenas sentir, ainda que à distância de corpos separados, ainda que ela seja uma obra de ficção. Proteja-me de mim e de tudo o que posso criar ao meu redor. Permita-me fazer por mim, independente do que digam. O que me alimenta nem sempre me remunera. Deixe-me mais confortável no lugar de solitário. Pode ser que eu nunca fique sozinho de fato, mas solidão maior que a multidão não há. Garanta que as quinas do meu he-
xágono nunca sejam lapidadas, para habitar triângulos pré-moldados. Me convide para fazer algo interessante. Não me chame para cumprir protocolos ou para ter boas maneiras. Embora eu as conheça, as regras de etiqueta não me servem, por hora. Quando a vida está perfeita nos importamos com bobagens. É preciso estar imperfeito para seguir o essencial. Nesse meio tempo, sonho que danço contigo, mas na realidade só danço. Você está apenas na cena, tão ou mais solitário que eu. Eu poderia ter dito, feito, contado, mas viajei, ao invés. Ofereci à forma sua total desproteção, constituindo a sua natureza de inexistência. Que alívio: equivoquei-me. Tudo está úmido e viscoso ao meu redor. Possibilidades nascem da terra como árvores frutíferas. Estou chovendo.
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FANFICTION: A PLATEIA AINDA APLAUDE E PEDE BIS Na visão de escritor, fenômeno conhecido como “ficção de fã” reafirma a estética da repetição e reproduz os estereótipos de ícones da sociedade de consumo e da indústria cultural
C
om a efetiva admissão, pela lógica capitalista, das manifestações culturais de consumo imediato, após a Segunda Guerra, as relações do indivíduo com o seu meio social transformaram-se a tal ponto que ele, também um produto cultural, construído a partir da interação com o ambiente, tornou-se, em maior ou menor grau, tão industrializado quanto, por exemplo e metáfora, um CD de Michel Jackson ou um show “sertanejo” de Bruno & Marrone. Ou seja, falamos de indústria cultural. Ela, página de rosto de um livro cuja leitura é complexa, colabora sensivelmente para a pasteurização do espírito humano, pois seus produtos caracterizam-se por transportarem alguns conceitos que tornam possíveis a certos valores ideológicos uma “vida eterna” no senso comum. Isso ocorre por meio da estratégica reiteração levada a efeito por essa faceta do poder econômico, composta por elementos supostamente neutros da chamada cultura pop. Assim, por trás de um “ingênuo” samba na Sapucaí enaltecendo aspectos do nosso “passado glorioso”, ou de uma estorinha do Batman, estão presentes diversos subtextos, formando em seu todo um discurso político muito eficaz porque oculto, no mais das vezes, à leitura superficial. O enclausuramento de um sem-número de consciências em cadeias invisíveis exige trabalho em equipe. Por isso, a tietagem, essa instituição, ocupa espaços relevantes na mídia. Sua existência é estimulada para se obter em escalas industriais a fundamental e cega conivência do público em relação ao mecanismo do espetáculo, pois, como nos diz Gonzaguinha, “a plateia ainda aplaude, ainda pede bis/A plateia só deseja ser feliz”. Mais: a conivência fã vem a reboque de produtos meramente comerciais maquiados como se fossem valorosíssimas obras artísticas. Neles, o aspecto estético é secundário quando não desdenhado: pretende-se apenas vendam a si mesmos e todos os licenciamentos consequentes do estupendo sucesso. Sim, pois a fama, em si, é pouco mais que nada: é preciso seja extraordinária, no
mínimo. O fã, condicionado a ser incondicional (e, portanto, irrefletido) em sua relação com o ídolo, pleno de entusiasmos em sua verdadeira profissão de fé pelas ruas sem saída do pensamento dogmático, não percebe a existência desses mecanismos. Aceita ser encantado pelo cantor melodramático que “sente a emoção” da música, pela atriz “incorporada” na personagem e, assim, ele se torna cúmplice, presa facílima dos valores ideológicos que, subliminarmente, são transmitidos por meio do produto cultural industrializado em larga escala e exposto na vitrine do best-seller, do disco de ouro, do Oscar. Não percebe, por exemplo, que festejar extasiado e sem ressalvas os episódios de o Homem de Ferro, significa também aplaudir o tecnologismo, dizer que o chamado progresso está, por certo, sempre e necessariamente, ao lado do “bem” e da virtude. Com o senso estético prisioneiro de um horizonte amiudado, construído por padrões pouco flexíveis, o fã quer não apenas descobrir-se no
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A saga “Crepúsculo”: uma das campeãs em fanfictions, segundo o site www.fanfiction.net
O fã quer fugir com ele (o personagem) como quem se esquiva da sociedade e de suas piores dores, as que exigem enfrentamento”
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por EDUARDO SELGA DA SILVA
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A série de TV “Supernatural”, cujo roteiro é reproduzido por milhares de admiradores
personagem, mas também vivenciá-lo, embarcar nele (porque “navegar é preciso, viver não é preciso”?), fugir com ele como quem se esquiva da sociedade e de suas piores dores, as que exigem enfrentamento. Apetece-lhe também conduzi-lo, quase do mesmo modo pelo qual o personagem, por meio de mecanismos discursivos, faz com ele.
Criador e criatura
O fenômeno fanfiction (ficção de fã) parece demonstrar isso. Na textualidade típica desta manifestação pós-moderna, fundamentada no vínculo entre criador (se considerarmos que o fã legitima e dá sentido ao produto cultural) e criatura, o tiete busca estruturar enredos nos quais esteja protagonista e sempre vencedor seu amado herói. Essa atitude, além de pertinente ao absolutismo fanático que é a adoração ao personagem pop alçado à moda pela Marvel, DC Comics ou pela TV, reafirma a estética da repetição por meio do eterno “retorno ao idêntico”. O que não é gratuito: alvo da
Alvo da indústria e embutido na filosofia dela, o consumidor de mercadorias culturais é tão bajulado quanto o cliente que tem sempre razão em qualquer empório”
indústria e embutido na filosofia dela, o consumidor de mercadorias culturais é tão bajulado quanto o cliente que tem sempre razão em qualquer empório (“obrigado, volte sempre”), e esse mimo faz com que ele fique risonho na medida que, certeza absoluta, haverá o “final feliz” exatamente da maneira como deseja ou supõe “justo”. Em ambos os casos, sempre muito influenciado pelos valores promovidos pelo herói, visíveis ou não. Por isso, não surpreende nada o fato de o texto veiculado nas fanfictions estar, modo geral, conforme a estereotipia do super-herói. Assim, reforçando o “sempre mais do mesmo”, que manobra o leitor para uma zona de conforto – ainda que em se tratando de aparentes subversões narrativas que na verdade são rearranjos dos mesmos elementos cultivados pela indústria cultural e empregando, por assim dizer, uma “inspiração adestrada” nesses parâmetros –, os horizontes narrativos não conseguem avançar muito. Sabemos, por exemplo, que o Homem-Aranha, sangue-frio e cálculo, sempre diz
um amontoado de frases pretensamente espertinhas ou espirituosas ao mesmo tempo em que combate o ignóbil vilão. E isso se repete nas fanfictions nas quais, em regra, é escassa uma característica da literariedade: o trato linguístico. Pode-se, é claro, argumentar não se pretende literatura com fanfictions, senão o prazer de elaborar o texto. Ainda assim, estamos falando de produção textual, um modo estratégico de se inscrever no mundo e para ele se insinuar. Logo, não é um ato sem consequências, mesmo se houver ingenuidade do autor. Reiterar na escrita, manter vivos personagens que, por sua vez, refletem valores de uma sociedade que não admite ver-se refletida sem interferências na imagem, e por isso usa estereótipos simplificadores como os super-heróis, é postura estética que nutre a manutenção do imaginário típico da forma como a sociedade é construída. Os fãs, ao aplaudirem e retextualizarem esses ícones da sociedade de consumo e da indústria cultural, muito mais que apenas produzem um texto.
Na versão dos fãs, de uma maneira geral, o Homem-Aranha repete suas frases espirituosas, e Harry Potter se mantém na zona de conforto com desfechos previsíveis
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