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VITÓRIA, SÁBADO, 12 DE NOVEMBRO DE 2011

www.agazeta.com.br

Entrelinhas

A HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DA ORQUESTRA FILARMÔNICA DO ESPÍRITO SANTO EM “DA CAPO” Página 3

Artigo

ANÁLISE DA BABYLON, DE ZECA BALEIRO, SOB A ÓTICA DA CULTURA DO CONSUMO Página 8

Música

A ARTE DE ZÉ MENEZES E SUAS DIVERSAS FORMAS DE FAZER MÚSICA Página 5

Ensaio

EM PLENO SÉCULO XXI JOANA D’ARC AINDA FASCINA LEITORES Página 12

O jovem “poetinha” ESCRITOR ANALISA DUAS OBRAS DO INÍCIO DA CARREIRA DE VINICIUS DE MORAES

Páginas 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 12 DE NOVEMBRO DE 2011

quem pensa

Juca Magalhães é blogueiro de crônicas, professor de música e produtor cultural. aletraelektronica@gmail.com

marque na agenda prateleira Show

Chatô – O Rei do Brasil Fernando Morais

Eternamente Sinatra

No dia 18, às 20h30, no Teatro do Sesi, em Jardim da Penha, com duração de 1h30. Ingressos podem ser adquiridos a partir do dia 16, no local, por R$ 20.

Ronald Mansur é jornalista, foi um dos criadores do Jornal do Campo, da TV Gazeta. ronaldmansur@gmail.com

Exposição

Fernando Duarte é músico e editor do site www.bandolim.net.

Hoje, na Galeria de Arte e Pesquisa (GAP) da Ufes, sob a curadoria da artista Shirley Paes Leme, professora do programa de pós-graduação da Faculdade Santa Marcelina, de São Paulo. Informações: www.gapvix.blogspot.com ou 4009-2586.

fernandond@gmail.com

“Lugares Outros”

Reedição da biografia do proprietário de um império de quase cem jornais, revistas, estações de rádio e de televisão. Figura carismática e intempestiva, Assis Chateaubriand teve uma trajetória indissociável da vida cultural e política do país entre as décadas de 1910 e 1960. 624 páginas. Companhia das Letras. R$ 42

Travessias Difíceis Simon Schama A obra atrela diferentes espaços do mundo atlântico no final do século XVIII com o objetivo de mostrar como os destinos da escravidão negra foram moldados por sujeitos concretos, de carne e osso.

Anaximandro Amorim é advogado, professor e escritor. www.anaximandroamorim.com.br

Ricardo Costa Salvalaio émembrodaAcademiadeLetrasHumbertode Campos. ricardosalvalaio@hotmail.com

Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes.www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com

17

512 páginas. Companhia das Letras. R$ 59

de novembro

Grafic (Petrobras)

Sonia Rita Sancio Lóra éescritoraemembrodaAcademiaFeminina Espírito-SantensedeLetras. sonia.lora@uol.com.br

Drama, comédia e desen hos se misturam na his tória de personagens que se exp ressam através de gráfic os. Em cartaz de 17 a 20 de no vembro, no Theatro Ca rlos Gomes. Ingressos a R$ 20, na bilheteria ou no site: www.ingresso.com. Inf ormações: 3222-7815 9964-4884

Núbia Célia Cardoso Santos é servidora pública e poeta. nubiacelia@ig.com.br

Renata Bonfim époeta,doutorandaemletraspelaUfeseautorado blogliterárioLetraeFel. www.letraefel.com Fabricio Fernandes é escritor, disponibiliza um livro de microcontos no blog http://oimpulso.wordpress.com

17

de novembro

“Matar ou não matar, eis a questão”

Palestra de Gilbert Chaudanne sobre Dostoievsky, no Tribunal de Justiça Federal, em Bento Ferreira, às 17h30.

Este livro reconstitui a vertiginosa história do Projeto do Genoma Humano, em que os bilhões de dólares inicialmente estimados para a decodificação do DNA se reduziram a pouco mais que o valor de um eletrodoméstico. 432 págs. Companhia das Letras. R$ 55

Márcio Gomes canta Francisco Alves Márcio Gomes Em seu segundo CD, o cantor se uniu a outros jovens músicos para prestar um tributo ao “Rei da voz”, Francisco Alves, que se destacou na primeira metade do século XX. 13 faixas. Microservice. R$ 12,90

Carol Rodrigues e Vilmara Fernandes

UM OUTRO VINICIUS A imagem que se tem de Vinicius de Moraes é de sua fase final, o parceiro de Antonio Carlos Jobim e suas letras e músicas maravilhosas. Na edição de hoje – páginas 6 e 7 – o escritor Anaximandro Amorim nos apresenta um outro poeta. Um jovem que, ao lançar seu segundo livro – “Forma e Exegese” –, já tinha o seu talento reconhecido. Um autor já maduro, aos 19 anos, mas marcado por uma profunda melancolia. Por outro lado era um homem que sempre trazia a tônica da sensualidade, como em “Ariana, a mulher”. A união

Seu Genoma por mil dólares Kevin Davies

Editoras interinas do Pensar, novo espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

cferreira@redegazeta.com.br e vfernandes@redegazeta.com.br

desses dois livros em um único volume, da Companhia das Letras, dá ao leitor a oportunidade de conhecer um poeta bem diferente do que o público costuma se lembrar em “Tarde em Itapoã” ou em “Soneto da Fidelidade”. Como relata Anaximandro, a impressão que dá é que o leitor está propositalmente de mãos dadas com um “jovem poetinha”, graças não apenas aos textos, mas à edição que conta, entre outros mimos, com fotos de um Vinicius de Moraes de cabelos bem pretinhos e de rosto comprido. Aproveite!

Pensar na web

Vídeos de Zé Menezes tocando a trilha de “Os Trapalhões”, e de Zeca Baleiro apresentando “Babylon”. Veja ainda trecho de livro de Vinicius de Moraes no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8323


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entrelinhas

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por Juca Magalhães

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O TRIUNFO DA MÚSICA CLÁSSICA NO ESPÍRITO SANTO

“De um a dez tece-se a memória do mundo. Vinte e dois verbos conjugam a matéria. Tudo é vivo. Tudo é forma. Tudo é sujeito a transformação.” Jaceguay Lins

Conheça “Da Capo” – De Volta às Origens da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo Autor: Juca Magalhães “9ª Sinfonia de Beethoven” – Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (Ofes) Regência:Helder Trefzger Dias: Hoje, às 20h, e amanhã, às 18h Local: Theatro Carlos Gomes Livro: Será vendido a R$30

O

texto acima vem de uma curiosa obra de aforismos poéticos, intitulada “O Segundo Livro de Enoch”, de autoria do arquiteto sonoro Jaceguay Lins, falecido em 2004. Essas palavras servem de epígrafe, colocada às portas do texto que nos conduz a um panorama histórico do período em que se deu o processo de criação daquela que hoje é denominada Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (Ofes). Outros nomes e formações o grupo teve e regentes também, inclusive o maestro Lins, informação solta na memória do mundo. Embrenhar-se no passado na tentativa de desvendar suas transformações não é tarefa das mais fáceis, há que se ter uma boa razão. O texto original do livro “Da Capo” surgiu da necessidade de formatar a apresentação de um projeto para a Associação de Amigos da Orquestra, era bastante sucinto e pragmático, porém, cumpriu na época uma importante função. Hoje parece difícil acreditar, mas em 2002 não era possível encontrar documentos nem depoimentos que demonstrassem com clareza e segurança como e quando fora fundado o principal grupamento sinfônico do Estado.

dagem do tema veio através do maestro Vítor Marques Diniz, que não fora possível contatar na primeira edição. Diniz é um regente lusitano que veio para Vitória através de convite de Beatriz Abaurre, então diretora da Fundação Cultural do Espírito Santo. Sua chegada teve o efeito de um catalisador que reuniu potenciais musicais dispersos e proporcionou em 1977 a criação do Coro e Orquestra de Câmara da Fundação Cultural do Espírito Santo. Hoje aposentado, o maestro Diniz reside em Campo Grande no Mato Grosso do Sul, mas guarda vívidas lembranças de nossas terras o que valeu um tocante prefácio para a segunda edição do “Da Capo”.

Idealismo

Pesquisa

Para essa nova investida na história da Orquestra foi realizada uma pesquisa bem mais abrangente fornecendo um panorama da situação social e política dos anos setenta no Espírito Santo que fez o trabalho com música sinfônica surgir de uma demanda por acesso à cultura do povo capixaba e não por meio de um capricho de determinada elite como alguns afirmam. Curioso notar como essa demanda só faz crescer, hoje em dia não é mais fácil conseguir ingresso para os concertos da Ofes. Já dizia Joãosinho Trinta “o povo gosta de luxo” e é isso o que a nossa Orquestra é, mas, sobretudo, uma conquista que o cidadão capixaba quer e merece ter. O livro traz uma investigação mais profunda com relação à atuação de algumas personalidades dentro do processo de criação da Orquestra que foi

A Ofes surgiu a partir da demanda por acesso à cultura do povo capixaba

Origem Da Capo (do italiano “da cabeça”) É uma expressão musical que quando surge na partitura remete o intérprete ao início da obra. Hoje e amanhã, a Ofes vai apresentar a Sinfonia nº 9, Op. 125, de Beethoven, a chamada “Sinfonia Coral”. Essa é uma obra de peso que serve como ponto culminante de

uma excepcional temporada da Orquestra em 2011. As duas récitas da “nona” acontecerão no Teatro Carlos Gomes, o livro “Da Capo” poderá ser adquirido no local e de quebra o público poderá conseguir o autógrafo de várias personalidades desse importante momento histórico.

gradual, parcialmente oficial e envolveu opiniões e desejos divergentes. Observando a luta pela conquista de um espaço inexplorado, podemos perceber claramente como se constroem alguns

processos positivos e outros nem tanto, como é a falta de valorização do artista local, principal queixa de músicos desde os tempos áureos de Maurício de Oliveira. Ajuda importante nessa nova abor-

Os primórdios da Orquestra foram muito mais difíceis do que se pode imaginar. Em meados dos anos setenta, a iniciativa chegou a ser tratada como delírio por parte da imprensa e da classe política, mas graças ao trabalho idealista de músicos e professores como o casal Vera e Alceu Camargo, a Ofes haveria de vingar e é hoje vista como um patrimônio do capixaba. No prosseguimento dessa história se destacaria a figura da professora Sonia Cabral na luta por esse ideal que viria a se materializar em 1986 com a criação oficial da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses). Até hoje é fácil encontrar incógnitas algumas personagens desta saga nos concertos da Filarmônica, aqueles que lotam a plateia do Teatro Carlos Gomes nem sequer imaginam que o que estão vivenciando é muito em função do trabalho e dedicação deles. Para esses pioneiros da música sinfônica, a Orquestra é como um filho e sobre sua gênese cada um preserva sua forte impressão pessoal, afinal àquele trabalho dedicaram os melhores anos de suas vidas. O que talvez ainda falte seja o devido reconhecimento à importante obra desses músicos extraordinários, um trecho esquecido da história que livros como “Da Capo” têm o objetivo de resgatar.


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livros por Ronald Mansur

VESTÍGIOS DA HISTÓRIA SUL CAPIXABA EM 11 NARRATIVAS

Onde comprar Livraria Saber, em Cachoeiro de Itapemirim, ou na loja Hortifruti, Praia da Costa, Vila Velha. É possível ainda solicitar o envio pelo e-mail: vestigiosdahistoriasulcapixaba@ hotmail.com.

Coletânea de artigos científicos revela um outro lado da história de vários municípios do Espírito Santo, situados na Região Sul

N

ão é todo dia que tomamos conhecimento sobre a publicação de uma obra de real valor. Reconheço que elas existam, mas muitas das vezes permanecem anônimas nas gavetas e nos computadores dos seus autores. Ainda é difícil e complicado dar divulgação plena a trabalhos acadêmicos, muito embora a internet venha encurtando este espaço do vazio cultural. Editar um livro é muito complicado e penoso. Mas tem gente que não desiste. Quando soube que receberia um exemplar de “Vestígios da História Sul Capixaba em 11 Narrativas” e que o receberia pelos Correios, tive de aguardar por um tempo além do normal, a greve do pessoal dos Correios me retardou em alguns dias a sua chegada. Um trabalho coletivo que percorre o passado esquecido do cotidiano capixaba. Uma obra com grande dose de teimosia do pessoal do curso de História do Centro Universitário São Camilo. Não se conformando com o desleixo que a nossa cultura é submetida, resolveram nos brindar com onze textos que como muitos ficariam circunscritos ao ambiente acadêmico. Luz nas trevas. A publicação contou com recursos da Lei Rubem Braga da Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim.

com textos curtos, porém com precisão e objetividade. Para quem deseja prosseguir na busca de mais informações, lá esta a bibliografia de cada unidade – facilitador para outras caminhadas. Já do ponto de vista regional é também interessante e positiva a abrangência da obra, ao nos repassar o sul capixaba como um todo. Ás vezes a delimitação geográfica por município nos deixa sem uma visão de conjunto. A visão de território é mais interessante, porque mostra uma realidade que permeia as comunidades. Não somos uma ilha, somos um imenso arquipélago. Um quebra-cabeças simples para entender a região Sul do Estado, mas que às vezes passa despercebido.

Escravidão

Registro

Mais uma vez temos de nos curvar diante das pessoas que realizam trabalho de tamanha envergadura e profundidade. Elas estão abrindo caminhos novos para que outros possam trilhar, contar e registrar a história, que não deve ser propriedade individual ou de grupos, ela é e deve ser de todos. “Vestígios da História Sul Capixaba em 11 Narrativas” é uma iniciativa pioneira e coletiva, a expectativa que é de não seja única, mas que seja seguida de muitas outras. Estarei sempre a postos para aplaudir e de pé. Do ponto de vista histórico o conjunto da obra nos leva a percorrer caminhos onde as informações do passado indicam uma boa parte do que somos hoje. É este mérito, dentre muitos, que “Vestígios da História Sul Capixaba em 11 Narrativas” nos oferece

Uma das narrativas analisa como o desenvolvimento da atividade cafeeira aumentou a mão de obra escrava em Cachoeiro de Itapemirim, entre 1870 e 1880

Pensar o hoje sem percorrer o passado escravagista é perder uma boa parte da história real. Os textos que falam da fase escravagista é como colocar tijolos numa construção que sabemos será imensa. O período da escravidão na terra capixaba é pouco documentado, porque o que sempre prevalece é a visão do ganhador e do dominante. Na época a sociedade era composta de dois grupos: branco, senhor de tudo e negro, o faz tudo. Os organizadores reconhecem que “não existe historiador que, em seu ofício, não ponha um pouco de si, e como historiadores que somos, estamos fadados a cometer tal desacerto, pois é impossível dissociar o homem de sua história, e os contornos de sua ação como pesquisador ou mesmo organizador de um trabalho trazem a carga histórica de sua vivencia, ainda que se busque a impessoalidade.” Todos os textos merecem destaque, mas o de Pedro Ernesto Fagundes “Coração vermelho: Guilherme Tavares e a Memória dos comunistas do Espírito Santo merece duas colocações. A primeira é o registro da luta e da convicção ideológica do ferroviário Guilherme Tavares. A segunda é a citação bibliográfica do texto do jornalista Luzimar Nogueira Dias, 1935: Integralistas e Comunistas - 50 anos depois, uma história de prisões e assassinatos.


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falando de música

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por Fernando Duarte

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ZÉ MENEZES: TALENTO SOB AS BÊNÇÃOS DO PADRE CÍCERO

E

m 1930, os comerciantes de Juazeiro do Norte, no Ceará, compraram um cavaquinho para que o pequeno José Menezes de França mostrasse uma composição sua para o Padre Cícero. O religioso ouviu atentamente e vaticinou que aquele garoto um dia seria um grande músico. Hoje, aos 90 anos de idade e mais de 80 de carreira musical, Zé Menezes repete, bem-humorado, que ainda batalha para que a profecia se concretize. O cearense faz parte de um grupo muitas vezes esquecido da música popular: o dos grandes instrumentistas que fazem carreira como profissionais de estúdio, acompanhando, gravando e fazendo arranjos. Multi-instrumentista (toca violão, guitarra, bandolim, cavaquinho, banjo, violão tenor e qualquer instrumento de corda), trabalhou com as figuras mais importantes da música brasileira, de Pixinguinha a Roberto Carlos. A partir sua convivência com músicos como Garoto e Radamés Gnattali (com quem viajou para a Europa para uma série de concertos) nos anos 40 e 50, desenvolveu um estilo sofisticado, que traz o legado dos mestres do passado aliado a uma constante ânsia de renovação. Além das inúmeras gravações como solista e acompanhador, Zé Menezes formou na década de 60 o grupo “Os velhinhos transviados”, em que exercitava suas habilidades de arranjador e multi-instrumentista misturando sucessos da época (como Beatles e Bossa Nova) com antigos maxixes e dobrados. Foi ainda diretor musical da Rede Globo, onde arranjou e compôs vinhetas e aberturas, como o tema do

programa “Os Trapalhões”, certamente a sua composição mais conhecida. Vivo, em plena forma técnica e tocando música instrumental, Zé Menezes não parece o candidato usual a homenagens e lembranças, mas o lançamento da caixa “Zé Menezes autoral” corrige eventuais esquecimentos e é um marco na valorização do músico brasileiro. O trabalho realizado com apoio do Ministério da Cultura e patrocínio da Petrobras traz as composições de Zé Menezes em três discos (com diferentes formações instrumentais, passando pelo tradicional regional de choro, orquestra de gafieira e combinações inusitadas à la Radamés Gnattali) além de um CD com informações biográficas, fotos, vídeos e partituras. É emocionante assistir ao depoimento do compositor afirmando: “Agora me orgulho de ser um músico

brasileiro reconhecido”. E como não poderia deixar de ser, outro destaque é a primorosa seleção de músicos que participa das gravações. Para registrar as composições muitas vezes virtuosísticas e os arranjos elaborados foram convocados os melhores de cada instrumento: Yamandu Costa no violão, Hamilton de Holanda no bandolim, Cristóvão Bastos no piano, Oscar Bolão na bateria, Proveta no clarinete, Marcos Suzano no pandeiro, e muitos mais. Ainda na rotina de gravação, shows e estudo, de seis a oito horas por dia, certamente Zé Menezes teve pouco tempo para olhar para trás e avaliar sua carreira. A caixa “Zé Menezes autoral” registra a trajetória deste batalhador incansável, passando por composições de choro, samba, frevo, baião, gafieira, prelúdios, estudos, tocatas e as mais diversas formas de se fazer música, mas sempre sem perder o humor do garoto do interior do Ceará. Aliás, uma das faixas presentes no trabalho é “Meus oito anos”, aquela que o garoto Zé Menezes tocou no seu cavaquinho para o Padre Cícero.

Tocadores China (1888 – 1927) – Irmão de Pixinguinha, foi o primeiro a usar o violão de sete cordas, ainda na década de 10. Adaptou o instrumento para substituir o acompanhamento da tuba e obter melhor resultado em estúdio, onde o sistema de gravação antes dos microfones elétricos dificultava o equilíbrio entre instrumentos de volumes diferentes. Garoto (1915 – 1955) – Começou sua carreira como Moleque do Banjo e logo assumiria o nome artístico de Garoto, enquanto estendia seu domínio para outros instrumentos de corda. Foi sucesso ao lado de Carmen Miranda nos Estados Unidos e suas composições modernas influenciaram a criação da Bossa Nova. Laurindo Almeida (1917 – 1995) – Violonista, foi para os EUA no fim da década de 40 acompanhando Carmen Miranda e não voltou. Ganhou seis prêmios Grammy, gravou inúmeros discos e fez longa carreira no cinema. Além do violão, tocou vários outros instrumentos em estúdio. É dele o bandolim do tema de “O poderoso chefão”. Dino Sete Cordas (1918 – 2006) – De Carmen Miranda a Zeca Pagodinho, passando por Raul Seixas e Marisa Monte, Dino foi sinônimo de violão de sete cordas. Responsável pelo estabelecimento do instrumento no panorama da música brasileira, acompanhou chorões, sambistas, cantores de todo estilo, trabalhou em rádio e deu aula em lojas de música tradicionais do Rio de Janeiro. Heraldo Monte (1935) – Multi-instrumentista pernambucano, começou seu estudo com o clarinete e logo passou para os instrumentos de corda. Fez parte do seminal Quarteto Novo (ao lado de Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Théo de Barros), que acompanhou Edu Lobo e gravou como grupo instrumental. Hélio Delmiro (1947) – Trabalhou com grandes estrelas da MPB (Elis Regina, Milton Nascimento, Tom Jobim), além de ter gravado importantes álbuns instrumentais, como “Samambaia” (1981), em duo com César Camargo Mariano. Hoje passa por dificuldades financeiras, problemas de saúde e se queixa de preconceito do mundo musical por ser pastor evangélico.

LUIZ ROCHA/DIVULGAÇÃO

Zé Menezes faz parte de um grupo muitas vezes esquecido da música popular: o dos grandes instrumentistas que fazem carreira como profissionais de estúdio


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literatura

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por Anaximandro Amorim

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Carioca, Vinicius de Moraes foi diplomata, advogado, dramaturgo, jornalista, músico, cronista, poeta, além de um dos maiores letristas da música brasileira e parceiro de Antonio Carlos Jobim

OS PRIMEIROS PASSOS DE UM POETA

DIVULGAÇÃO

Sugestões “Forma e exegese” e “Ariana, a mulher” Os dois livros foram reunidos em um só volume pela Companhia das Letras. Nele o leitor tem acesso a um caderno de imagens que reproduz manuscritos e datiloscritos – parte do longo trabalho do poeta para chegar à versão final dos poemas –, além de fotografias e outros documentos.

“O caminho para a distância” (1933) Livro de estreia de Vinicius de Moraes, mostra um jovem autor já consciente do seu fazer poético. Os versos, ainda contidos no tamanho, trazem as mesmas questões existenciais que seriam trabalhadas, com mais extensão, em “Forma e Exegese” e em “Ariana, a mulher”.

VINICIUS DE MORAES AOS 19 ANOS JÁ ERA UM AUTOR MADURO E COM SEU TALENTO LITERÁRIO RECONHECIDO

É

sempre difícil escrever sobre Vinicius de Moraes (1913 – 1980). Diplomata, advogado, dramaturgo, jornalista, músico, cronista, poeta; ou, melhor, “poetinha”, como era carinhosamente chamado. Sua obra é profícua, composta de muitos livros que, felizmente, estão sendo reeditados pela Companhia das Letras, dentre os quais “Forma e Exegese” (1935) e “Ariana, a mulher” (1936). Lançados em uma única edição, eles revelam um Vinicius meio diferente daquele de que o público costuma se lembrar em “Tarde em Itapoã” ou em “Soneto da Fidelidade”, por exemplo. “Forma e Exegese” é o segundo livro de Vinicius. Lançado aos 19 anos de idade, mostra um autor espantosamente maduro e marcado por uma profunda melancolia (algo, no mínimo, estranho, em se tratando de um jovem recém-saído da adolescência e já com seu talento literário reconhecido, por esta obra, com o prêmio Felipe d’Orleans). Um exemplo está em “O olhar para trás” (eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha

fatalidade/ sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente); as temáticas, aliás, variam nesse tom, como os da religiosidade em “O bom ladrão” (Olha! a teus pés Jerusalém se estende e dorme o sono dos pecadores); da morte, em “Variações sobre o tema da essência” (Do amor como da morte (Gotas de sangue sobre a neve...)); dos símbolos, em “A criação na poesia” (Eu sonho a poesia dos gestos fisionômicos de um anjo); e, é claro, da mulher, em “Ilha do Governador” (Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos). Tudo bem ao sabor da cartilha da chamada “Geração de 30”, que retomou todas essas temáticas.

Sensualidade

“Ariana, a mulher”, no entanto, traz a tônica da sensualidade. Publicado originalmente em separata de “Forma e Exegese” e inteligentemente reeditado junto deste, a obra pode ser encarada como uma evolução temática do anterior. O clima também é melancólico (Tristemente me brotou da alma o branco nome da Amada e eu murmurei – Ariana!), mas já denota um assunto

Um assunto que seria recorrente na obra do poeta: o da mulher, que tanto fora cantada por ele em prosa e verso” —

Anaximandro Amorim Advogado, professor e escritor

que seria recorrente na obra do poeta: o da mulher, que tanto fora cantada por ele em prosa e verso. Obra de um poema só, Ariana pode ser considerada não como “a mulher”, mas como todas elas juntas. Depois de passar pelas questões existenciais de “Forma e Exegese”, Vinícius se atira nos braços de Ariana que encerram alegria e tristeza, dia e noite, amor e ódio (Se

Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida?). Ele parece gostar do palíndromo “Ana” (mais tarde, três de suas quatro filhas se chamariam Susana, Georgiana e Luciana), mulher, de trás para frente, sem escapatória. Nada mal para um homem tão apaixonado em vida... É uma delícia ler “Forma e Exegese” e “Ariana, a mulher” juntos. A impressão que dá é que o leitor está propositalmente de mãos dadas com um “jovem poetinha”, tudo isso graças não apenas aos textos, mas à caprichada edição que conta, dentre outros mimos, com fotos propositalmente colocadas de um Vinicius de Moraes de cabelos bem pretinhos e de rosto comprido. Além disso, o leitor mais detalhista tem também o prazer de descobrir as influências literárias do poeta, mormente de autores franceses como Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, muitos dos quais citados nas epígrafes de vários poemas. O livro também traz a reprodução de manuscritos, capas originais e fotos de época, tudo para fazer “entrar no clima” e mostrar que, jovem ou velho, Vinicius de Moraes é sempre uma boa pedida.

“Cinco elegias” (1945) Um Vinicius de Moraes maduro, que brinca com as palavras e até mesmo com os espaços da página do livro, marca essas “Cinco elegias”. Obra de grande sucesso, escrita entre Brasil e Inglaterra e editada também em francês, traz um contraponto entre o estilo da “Geração de 45” e antecipa vanguardas concretistas, denotando a versatilidade do autor. “Poemas, sonetos e baladas” (1946) Contém muitos dos mais famosos sonetos de Vinicius, tais como “Soneto da Fidelidade”, “Soneto da Despedida” e “Soneto do Amor Maior”. Aqui percebe-se o cuidado com a musicalidade poética, uma das marcas registradas de Vinicius de Moraes. “Livro dos Sonetos” (1957) Para quem gosta de sonetos, a obra é uma boa pedida, pois além de trazer a reedição de alguns dos mais famosos, conta com inúmeros outros, sempre com a mesma precisão e belez a poética. “A Arca de Noé – poemas infantis” (1970) Esse é para quem tem mais de 30 anos e certamente ouviu musicados poemas como “A foca”, “O pato pateta”, “A pulga”, dentre outros, no disco “A Arca de Noé”, dos anos 1980. Um verdadeiro mergulho na nostalgia.

Livro revela um Vinicius meio diferente daquele de que o público costuma se lembrar em “Tarde em Itapoã”


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> artigo por Ricardo Salvalaio

“BABYLON”, DE ZECA BALEIRO: MINHA RELIGIÃO É O CONSUMO Escritor analisa a canção lançada em 2000 pelo cantor e compositor maranhense sob a ótica da cultura de consumo exacerbado de bens materiais e simbólicos

M

uitos teóricos da pós-modernidade vão acentuar que nossa sociedade vive a cultura de consumo, onde o homem tem como uma das atribuições do capitalismo o consumo exacerbado de bens materiais e simbólicos. Desse modo, tudo se relaciona ao consumo, que é um mecanismo global que molda as relações dos indivíduos na contemporaneidade. Destarte, neste artigo, vamos nos ater em analisar sociologicamente a canção “Babylon” (2000), de Zeca Baleiro: Baby! I'm so alone Vamos pra Babylon! Viver a pão-de-ló E möet chandon Vamos pra Babylon! Gozar! Sem se preocupar com amanhã Vamos pra Babylon Baby! Baby! Babylon!... Comprar o que houver Au revoir ralé Finesse s'il vous plait Mon dieu je t'aime glamour Manhattan by night Passear de iate Nos mares do pacífico sul... Baby! I'm alive like A Rolling Stone Vamos pra Babylon Vida é um souvenir Made in Hong Kong Vamos pra Babylon! Vem ser feliz Ao lado deste bon vivant Vamos pra Babylon Baby! Baby! Babylon!... De tudo provar Champanhe, caviar Scotch, escargot, rayban Bye, bye miserê Kaya now to me O céu seja aqui Minha religião é o prazer... Não tenho dinheiro Pra pagar a minha yoga Não tenho dinheiro Pra bancar a minha droga Eu não tenho renda Pra descolar a merenda Cansei de ser duro Vou botar minh'alma à venda... Eu não tenho grana

FOTO: MARCOS HERMES

Na Babylon de Zeca Baleiro, tudo se relaciona ao consumo que molda as relações dos indivíduos na contemporaneidade

Pra sair com o meu broto Eu não compro roupa Por isso que eu ando roto Nada vem de graça Nem o pão, nem a cachaça Quero ser o caçador Ando cansado de ser caça... Ai, morena! Viver é bom Esquece as penas Vem morar comigo em Babylon... Na primeira estrofe, o eu lírico evoca a amada a irem para Babylon, já que ele está muito só. O convite é argumentado pelas comidas privilegiadas da elite (pão-de-ló e möet chandon) a fim de provar que Babylon é um lugar ideal para se viver feliz. O poeta retoma o convite na segunda estrofe, mostrando um possível modo de vida que não se preocupa com o amanhã (carpe diem). Interessante notar, quanto ao título, que o termo baby (amada) é radical da palavra inglesa Babylon. O título em inglês e as outras expressões em francês já apontam para a mundialização dos produtos culturais. Babylon seria um “símbolo de entidade plausível”, símbolo do poder econômico globalizado. É inevitável não reconhecer na canção a figura da Babilônia, a grande prostituta, descrita por São João no livro de Apocalipse como “cidade forte e grande, habitat de mercadores enriquecidos e de reis devassos”, como aponta Cristian Santos

em “Babel (Confusão ou salvação?): religiosidade, secularização e mercado em Babylon, de Zeca Baleiro” (2009). O primeiro verso da terceira estrofe traz consigo a tônica da canção (prazer em consumir). O eu poético pode comprar o que quiser, dá adeus a ralé e elenca outros prazeres. Aqui, notamos que Babylon é o lugar do prazer imediato, este centrado no consumismo exacerbado. De acordo com Zygmunt Bauman em “Modernidade Líquida” (2001), o indivíduo pós-moderno utiliza-se do ato de comprar para se livrar do mal e assim sentir-se bem.

Signos

Nas três estrofes seguintes, o poeta revela que vive como uma pedra a rolar e que a vida é uma lembrança de Hong Kong que não tem valor algum. Ele reúne um número de costumes, comidas, objetos da elite, que ele pode usufruir e de novo se esquiva da ralé. Na pós-modernidade, a estetização da vida e o triunfo do signo mostram a subordinação da produção ao consumo sob a égide de marketing, com uma ascensão muito grande da concepção de produto, do design e das ferramentas de comunicação do marketing. O eu lírico sugere que sua religião é o prazer. Babylon seria uma espécie de “Pasárgada” para o poeta. Um lugar em que ele pode tudo: “[...] a grande fissura

no pensamento do poeta não está em reconhecer a possibilidade de entrar num ‘mundo de prazer’, pois o cristianismo e outras religiões já se incumbiram disso”, revela Santos. Nessa estrofe, o discurso religioso, outrora muito poderoso, não tem força alguma na atualidade. Com isso, a ética do eu poético é moldada somente pelo sistema capitalista, que dita modas, os costumes, e que, sobretudo, consegue vender um discurso mais atrativo que a religião e/ou a ciência. Nas estrofes seguintes, o eu lírico apresenta negativamente o seu mundo. Essa também é uma forma de argumentar a favor de Babylon, lugar do prazer imediato. Basicamente, as duas estrofes versam sobre a falta de dinheiro do eu poético, que também não tem droga, merenda nem boas roupas. O sujeito cansa da vida sem poder aquisitivo e revela que vai por a alma à venda. Os versos reforçam a ineficiência do discurso religioso na pós-modernidade e afirmam a força do sistema capitalista nos nossos dias. A nona e última estrofe retoma à problemática da primeira estrofe. O poeta tenta convencer a amada que viver é bom e também solicita que a amada esqueça as penas. Essa estrofe reafirma as seis primeiras, nestas o poeta positivamente descreveu Babylon. Por fim, o sujeito reafirma a vida chamando a amada para morar no paraíso do consumo.


poesias

crônicas

SÓ AMOR

AO CÃO

NÚBIA CÉLIA CARDOSO SANTOS

por Nayara Lima

Amores possíveis e que me dizem... me enchem de carinho e me fazem acreditar. Amor verdadeiro. Amor que não se acaba. Amor que não estraga. Amor que se entrega. Amor que é maior. Amores possíveis. Amores inteiros. Amor que só completa. Amor que sabe ficar. Amor!

Quando dei por mim eram duas da manhã e eu estava com meu carro na Avenida Antônio Gil Veloso, seguindo um cão. Que não se espante o meu leitor, ou se espante, se for inevitável. É que da varanda de casa vi este cão caminhar pela calçada, e ele parecia filhote, e ele parecia perdido. Precisei dar três voltas pelo quarteirão, encontrá-lo, seguir com as quatro rodas do carro na velocidade das quatro patas que, embora parecessem perdidas, eram íntimas do chão. Enquanto caminhávamos, cada um em si, eu no meu carro velho, ele no pelo escuro, muitas coisas deviam estar acontecendo no universo. Mas não pensei nelas. Aquele cão ocupava todo o meu instante, o meu impulso, os meus olhos. De perto pude ver que não era filhote como eu imaginava, embora da varanda parecesse pequeno. Pude ver também

PORTO E MAR Meu coração quer pousar. Um pouso seguro, um porto, um lar. Meu coração quer amar. Ele bate forte, sereno, ele quer se dar... num abraço gostoso ou no cheiro do mar.

AMORES MIL

que se tratava de um vira-lata, porque de todas as raças (re)conhecidas, não consegui enquadrá-lo em nenhuma. A cada segundo mais eu estava perto dele e ele de mim. Não éramos um indiferente a presença do outro. Mas duas vidas soltas, até um pouco doloridas, até um pouco livres, na avenida. Quando enfim ele atravessou e caminhou na calçada à beira do carro, decidi parar. Algum pensamento de trazê-lo pra casa adentrou no mar de infinitas dúvidas que me fizeram abrir a porta do carro. Minha voz saiu sem que eu a reconhecesse, e fez num tom ao mesmo tempo infantil e maternal: “psiu, cachorrinho”. O que faz o bicho homem seguir o bicho cão enquanto todos dormem, enquanto homens caminham nas calçadas como cães vira-latas e enquanto cães de raça dormem nas casas feito homens de

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gravata? O que faz o corpo humano se render à vida a tal ponto que se permite à difícil e boa tarefa de existir? Psiu, cachorrinho. Ele me olhou por tempo indeterminado. Não latiu. Pôs nos olhos a voz do mundo. Pôs em mim estas conclusões. Que o cão esquecido na rua, depois de anos, esquece dos homens. Não crê mais neles. Os olhos brilham se vê algum que para. Mas não se rendem. O cão esquecido na rua se desiludiu do amor, ainda que o sinta quando foge dos carros sem conseguir ter raiva das buzinas. O cão esquecido na rua me fez o seguir com ternura. Quando chamei, me olhou, mas não veio. Continuou. O olhar parecia de um homem idoso, que já sabia das coisas da vida, que já sabia mais do que eu. Senti-me criança, um pouco envergonhada, ergui meu corpo como uma adolescente muda que respeita o avô. O cão foi embora e não me lembro se ele olhou para trás. Parecia mesmo um velho sábio, deixando a marca de suas patas no mundo, ainda que sem nome. Mas pisava com tal intimidade que entendi o que era. O cão esquecido na rua era o dono do mundo.

DOCE ÔNIBUS DE ALGODÃO Por Sonia Rita Sancio Lóra

Você que chega mansamente e tão profundamente me toma. De coração ao vento e grande, onde um amor não é o bastante, tem seu amor multiplicado na dose mais perfeita. Precisa amar e seu amor é tanto, que seu encanto já seduz. Você que tem alma leve e energia a transbordar, é feliz só por amar!

CONSENTIDO Estás aqui dentro de mim, e na minha pele. Sinto tua falta. E quando não te vejo, o meu amor, ainda assim, se acumula...

INCONSTÂNCIA Te amar é navegar em águas perigosas. É se perder num mundo desconhecido que são teus olhos. Te amar é te ter. É viver numa constante aventura, onde cada momento é único e significativo. Te amar, meu amor, é uma dura realidade. É a certeza de ter toda paz acompanhada de toda dor.

“Como posso ter uma vida contigo se eu tenho outra vida?” (Vendedor de algodão-doce) Não fico reclamando o que passou; eu não sou a única que já viveu experiência dolorosa. Passou, passou! Cheguei à conclusão que a perfeição do tempo é mesmo incrível. Pessoas que amavam demais, valores imensuráveis e sorrisos que faziam questão de receber se afastaram e hoje são sombras; esqueci como eram as suas feições. Nos últimos dias aprendi a usar moedas! Eu sempre gostei de moedinhas. Meu sobrinho comprou uma máquina de lavar roupas com elas. Fantástico, isso! Aprendi a dar-lhes valor para meu uso pessoal e não para distribuí-las, como eu fazia. Com elas paguei dezenas de trechos de passagens de ônibus. Lotados, suados ou com pessoas caladas demais ou outras que falam muito.

Neles encontrei solidariedade, sorrisos verdadeiros, gentilezas, pessoas de caras muito fechadas e eu também tive medo. Queria deixar o tempo agir e esquecer aquele menino com o revólver na minha cabeça, que virou minha vida de pernas pro ar em segundos. Vou andar de ônibus, todo mundo anda, vou usar moedas, vou comprar picolé e quem sabe, até um algodão-doce! Nosso parceiro de algodão-doce entrou no ônibus lotado e sentou-se atrás de minha poltrona, ao lado de uma moça bonita, de óculos escuros, com um fone de ouvido. Estava claro que ela não queria contato com o mundo exterior. O rapaz, baixinho e muito simples, disse um “Bom Dia” que, sinceramente, eu teria respondido. Era um Bom Dia feliz e de bem com a vida. Foi aí que ele começou a contar a dele para a moça, que não se mexia. – Tenho cento e vinte contos, da venda do meu algodão-doce. Tô le-

vando pra casa; a minha filha de quatro anos tá me esperando. Prometi que vou dar uma boneca que ela viu na televisão. Mas não a boneca de Papai Noel! Sou eu mesmo! Ó!!! Oia os calos da minha mão! Ó! Oia os meus pés cheios de bolhas de asfalto quente que nem água fervendo! Mas deixa eu oferecer alguma coisa, deixa! Quer, eu compro um refri... – Quer não? Água, então! – Pepsi! Todo mundo gosta de Pepsi! – Não quer? Mas eu quero lhe oferecer alguma coisa. Mas a senhorita não quer, né? – Então vou fazer versos. Eu sou poeta. – Não posso ficar triste que faço versos. Rola de tudo enquanto eu choro. – Como eu posso fazer parte da sua vida se eu tenho outra vida? Sem resposta, virou-se para o lado, enquanto segurava com força os seus algodões tão doces quanto a vida; mesmo que seu rosto me mostrasse que havia chorado.


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Ensaio por Renata Bomfim

AS MÚLTIPLAS FACES DE JOANA D’ARC Ela materializa o desejo humano de liberdade, é justa e guerreira. Mas também dá forma ao oposto: mulher insuportável e incômoda, que tanto atrai e fascina quanto assusta e ameaça

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oana, que se faz chamar de donzela, mentirosa, perniciosa, sedutora do povo, falsa fiel da fé de Jesus Cristo, vaidosa, idólatra, cruel, dissoluta, invocadora do demônio, apóstata, cismática e herege”. Eis o texto dependurado em um poste ao lado da fogueira de Joana D’Arc, revelador da inquietação que esta jovem do século XV trouxe aos seus compatriotas. Seja considerada charlatã, patriota enganada, camponesa sexualmente confusa, herege, heroína, louca, feiticeira, santa, o fato é que, Joana D’Arc continua exercendo grande fascínio sobre leitores e críticos literários em pleno século XXI. Joana D’Arc é um personagem que se atualiza e dialoga com a contemporaneidade, especialmente em um momento de crise das identidades e ameaça do desaparecimento de variados saberes culturais pelas potências que orientam o processo de globalização. Do ponto de vista arquetípico, Joana D’Arc materializa o desejo humano de liberdade, ela é justa e guerreira, pronta para defender aqueles que ameaçam a soberania de sua cidade e o seu povo. Mas não se enganem, pois esta representação também constela o seu oposto, e dá forma a uma imagem feminina insuportável e incômoda para o patriarcado, que tanto atrai e fascina quanto assusta e ameaça, demandando, portanto, ser combatida e eliminada, a da bruxa.

Julgamento

A história de Joana D’Arc possibilita uma reflexão sobre a condição da mulher na história. Joana, assim como muitas mulheres, pagou um preço por reivindicar para si prerrogativas masculinas, foi vítima do ódio, foi traída por aqueles a quem defendia e acreditava, morrendo de forma cruel após ser condenada em um julgamento fraudulento. Dessa forma, torna-se impossível ignorar na sua história o seu sexo, bem como o preconceito, a patologização, a perseguição e o aniquilamento, temas comuns no universo das mulheres que ousaram desafiar o poder. Joana D’Arc foi silenciada a partir do conluio formado pelas ins-

DIVULGAÇÃO

Milla Jovovich interpretou no cinema a guerreira que acabou se tornando um personagem que sempre se atualiza

tituições pilares do patriarcado: a igreja, o governo e a ciência. Luiz Guilherme Santos Neves, no romance de 1986 intitulado “As chamas na missa”, explora as múltiplas faces de Joana D’Arc e nos assombra e enternece com personagens como a poderosa meretriz Maria capa-homem e a viúva Joana Norberto (a Joaninha). Maria capa-homem foi traída e condenada a ser queimada viva pela inquisição sob variadas acusações, dentre elas a de ser “rogadeira de pragas, de má condição, com gênio terrível e por chamar os varões com os quais se relacionava de São Cosmezinho e São Damião”. Joana Norberto, ou Joaninha, viúva jovem que, sob feitiço (do velho Candinho), se entregou ao mascate Bernardo Queixada, foi humilhada e avexada, transformada em chacota na vila

onde morava. A pena de Joaninha foi vestir o Sambenito (traje verde-louro com as chamas do fogo pintadas às avessas), pelo resto da vida, como sinal do perdão da fogueira. Na dramaturgia encontramos, entre centenas de peças produzidas sobre Joana D’Arc, a de Bertolt Brecht, escrita entre 1931-1932 e intitulada “A santa Joana dos matadouros”. Esta peça ambienta-se nos matadouros de Chicago na época da grande depressão americana. Brecht nos apresenta uma Joana D’arc militante, idealista e aplicada na propagação do evangelho de Cristo.

Novo olhar

Joana, integrante do grupo dos boinas pretas, acabou se tornando joguete

nas mãos dos poderosos e, ironicamente, as ações que realizou buscando promover a paz resultaram na sua ruína. Joana acabou se tornando bandeira do grupo contra o qual lutava (querem algo mais contemporâneo que isso?). Ela diz: “Causei desgraça aos desgraçados e trouxe alívio aos exploradores”. No final da peça a heroína é encontrada agonizando no pátio de um matadouro e, levada para o quartel do Boinas pretas, tenta narrar a sua agonia, mas logo é advertida: “Seja santa! Cale a boca!” É consenso entre os pesquisadores que novos olhares precisam ser lançados sobre o personagem Joana D’Arc, tanto em função das múltiplas possibilidades de leitura, quanto das novas fontes em latim e francês que foram recentemente descobertas.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 12 DE NOVEMBRO DE 2011

conto por Fabricio Fernandes

ENCONTRO COM UM CLARO E PROFUNDO AZUL Um conto livremente inspirado na canção “Homem ao Mar”, do álbum “Futurismo”, do grupo Kassin+2

E

le se debatia estirado sobre a cama. As mucosas ressecadas, a garganta de quando em quando engolindo quase nenhuma saliva. Seu corpo refém daquela secura era como se suplicasse ventos úmidos. E os punhos ah!, esses estavam vigorosamente a pulsar, e o sangue talvez o conduzisse ao que não seria preciso captar naquele instante. Ele seria homem ao mar, se lançaria num para sempre mar. De súbito ele se levantou da cama e num impulso manteve-se de pé. Em seguida deixou seu quarto e foi mergulhar no mar. Segundos depois ele já se consistia num simples homem ao mar. E o mergulho sibilante com ele de olhos entrefechados e ardidos fez com que se sentisse mais arejado. O vaivém das ondas, ele sem dizer nada apenas sentindo tudo a sua volta. Aquele encontro com um claro e profundo azul, uma cegueira momentânea enquanto estava submerso. Depois de emergir daquela água fria, ele então voltou caminhando. A distância entre seu quarto e a praia era uma questão de no máximo vinte passadas, bastava atravessar a rua. Aí ele seguiu andando, o corpo enregelado e molhado, a pele suarenta e salgada ardendo ao sol. Era um dia quente de verão.

COLETIVO PEIXARIA

Sorriso

Paredes

De volta àquele seu espaço reduzido, quatro paredes erguidas em concreto branco, ele postou-se de pé. A água salgada escorria por suas pernas e formavam poças d’água no piso do quarto, os pés cansados e encharcados. – E se eu me deixar secar sem fazer nada ou apenas secar, será que conseguiria mudar alguma coisa no trajeto de volta à praia? – pensou. Foi quando ele notou que subitamente uma fumaça espessa e azulada foi entrando pela janela, invadindo tomando o espaço apertado do quarto; e aí as poças d’água que haviam se acumulado no chão começaram a se avolumar e a se expandir em sentido vertical, e num movimento ondulante elas, de repente, passaram a se consistir como que em bloco e vigas a se liquefazer – eram paredes d’água.

gem que se irrompia agora era a de uma volumosa nuvem que recebia reflexos de cor azul celeste. A nuvem crescia de tal modo que vinha toda puxada por uma forte ventania que começara naquele instante. E rajadas de vento e areia de praia explodiam contra seu corpo e atingiam a sua íris como se lhe rasgasse os olhos.

Ele ficou ali imóvel e aturdido. E foi se deixando encerrado entre paredes d’água iluminadas pela luz do sol. Bem lentamente ele deu um passo e começou a adentrar na parede liquefeita que estava a sua frente, os olhos trêmulos chispavam na travessia. Ele vivenciava agora um incorpóreo instante ao trespassar, atravessar, furar aquela parede d’água. – Fui atravessando, furando, mas não quero falar se o sol brilha, pois sei que amar é quase um sol que me cega, amar é solar depois da noite, e falo de sono sem noite sem sonho, você me entende? Ele foi seguindo à diante até que de novo tornou-se homem ao mar. Estava de volta à praia. E depois de submergir

do mergulho, sentiu-se bastante zonzo. Quando uma espuma suave e gelada de uma onda o lambeu na face, ela o lançou violentamente para frente. Foi então que ele pisou na areia quente da praia e avistou um cara desconhecido estirado na areia esbranquiçada da praia e descansando sob o sol. O cara estava com o peito nu e seus pelos tinham uma cor amarelada e cintilante. Ele via os pêlos do cara se movimentar de um lado a outro ao serem tocados pelo vento. Os pelos do cara... Bem, depois ele parou de olhar o cara deitado e projetou sua visão mais ao fundo. A linha que divisava a bancada de areia entre uma praia e outra simplesmente desaparecera. E a ima-

Ele então voltou a olhar o dorso do cara deitado sobre a areia da praia. De súbito o cara ergueu a cabeça um pouco pra cima, virou o rosto para o lado e lhe ofertou um sorriso amarelo, repuxando o canto da boca. O cara também lhe mostrou os dentes, a boca deveria estar encharcada de areia, a testa brilhando. E os lábios vermelhos dele certamente seriam macios e úmidos ah! – E se eu convidasse esse cara pra mergulhar comigo, será que no mar seríamos um só homem ao mar? – ele se perguntou. – Não, não seríamos. E dali de onde estava, a poucos metros de distância do cara deitado na areia, ele resolveu dar com a mão, movimentando os lábios: – Então cara, vem bater um papo aqui comigo, vem – disse-lhe de longe. Mas o cara fez que não o viu, que não percebera a movimentação dele, foi virando a cabeça para frente até que voltou o olhar na direção do mar, e antes mesmo de o cara recostar a cabeça na areia de praia, ele notou que o cara foi desaparecendo do seu campo de visão, e uma forte ventania começou a soprar, eram rajadas de vento e areia e nuvem macia de uma cor avermelhada, uma vermelhidão tal qual a cor do sangue dele que agora descia pelo pescoço braços pernas todos os membros trêmulos, parte do corpo estirado no chão do quarto, as costas recostadas na parede de cor azul, poças de sangue a se formar ao seu redor, e de repente o sangue dele começou a escorrer como num rio e foi desaguar no mar misturando-se à água salgada... foi quando de um jeito desengonçado ele abaixou o braço ao ver que o cara o ignorou sem mais nem por que, e agora ele sentiu que seu corpo parecia um pouco mais pesado, por isso ele seria novo homem ao mar, e não havia nada mais a ser feito.


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