PensarCompleto1802

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SITE ESQUIZOFIA/DIVULGAÇÃO

Entrelinhas CRÔNICAS TRAZEM A VISÃO DE MACHADO DE ASSIS SOBRE A TRADIÇÃO CULTURAL. Página 3

Cinema

EM “A SEPARAÇÃO”, IRANIANO PROVOCA REFLEXÃO SOBRE DRAMA MORAL. Página 4

DESVENDANDO A HISTÓRIA DO SAMBA

Encontro de intelectuais e sambistas articulou a hegemonia da mestiçagem na sociedade brasileira. Página 5

Seleção de bambas: da esq. para a dir., J. Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana, Ismael Silva e Alfredinho do Flautim

Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

www.agazeta.com.br

Letras

UM ENSAIO SOBRE O LIVRO QUE REVELOU JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. Páginas 10 e 11

Artigo

PESQUISADOR DESCREVE COMO RAUL SEIXAS SE TRANSFORMOU EM MITO. Página 12

Quadro “Gilles-Pierrot”, de Antoine Watteau

A ilusão do carnaval OBRA DE PINTOR FRANCÊS INSPIRA ARTIGO DE ESPECIALISTA SOBRE A FESTA POPULAR

Págs. 6, 7 e 8


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

quem pensa

Williams Roosevelt Monjardim é servidor público e professor de Filosofia. wrmonjardim@gmail.com

marque na agenda prateleira Campus Doutorado para professores da Ufes

Vão até 27 de fevereiro as inscrições para o doutorado interinstitucional em Ciência da Informação Ufes-UnB, voltado para professores da Ufes. Mais informações: (27) 4009-2601.

Andréia Lima é especialista em Jornalismo Cultural na Contemporaneidade. deia_limas@yahoo.com.br

Visuais

Gilbert Chaudanne é escritor e pintor. Publicou os livros “A moça na janela” e “A busca do Santo Graal”, entre outros.

Três exposições estão abertas à visitação em Linhares. Destaque para “A Concertina, a fotografia: som e imagem”, de José Reiner, no Espaço Cultural da Pizzaria Villa Esperança. Reiner também expõe fotos de Dulce Pestana, moradora símbolo da história da cidade, na sede da prefeitura local. Já o Centro Cultural Nice Avanza abriga a mostra “Instantes de uma viagem do fotógrafo Antonio Cosme pelo Baixo Rio Doce dos confins de Linhares-ES”.

Adriana Von é formada em Direito e servidora da Justiça Federal do Espírito Santo. adrianavon@gmail.com

Tavares Dias é jornalista, escritor e mestre em Estudos Literários pela Ufes. tavaresdiasjorn@gmail.com

Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.

Adolfo Oleare é professor do Ifes, mestre em Filosofia e em Letras. aldeiaverbal@hotmail.com

Vitor Cei é autor do livro “Novo Aeon: Raul Seixas no torvelinho de seu tempo”. vitorcei@gmail.com

Exposições fotográficas em Linhares

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de março

José Castello participa do Café Literário

Primeiro convidado do projeto em 2012, o escritor, jornalista, crítico e ensaísta vai falar sobre sua produção literária, no Centro Cultural Majestic, com mediação de Caê Guimarães.

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de julho

Encontro reúne estudantes de Arquivologia

O XVI Encontro Nacional dos Estudantes de Arquivologia (ENEARQ), entre 16 e 21 de julho, debaterá a utilização de novas tecnologias no arquivamento de informações. As inscrições já estão abertas para trabalhos acadêmicos; para o público em geral, terão início em março. Mais informações: http://enearq2012.blogspot.com.

Um Passeio pela Antiguidade Roger-Pol Droit O autor propõe a redescoberta dos ensinamentos de Sócrates, Platão, Epicuro e de outros pensadores que foram e continuam sendo referência no mundo moderno. Segundo Droit, “nessas viagens ao passado está, em grande parte, nosso futuro.” 196 páginas. Difel. R$ 29

Sob o Mar-vento Rachel Carson Pesquisadora rigorosa com talento de romancista, a cientista fez uma descrição precisa do comportamento dos peixes e das aves-marinhas em seu livro de estreia, publicado em 1941, com um estilo que mistura literatura e jornalismo. 192 páginas. Editora Gaia. R$ 32

Antologia do Cordel Brasileiro Marco Haurélio (seleção) Nesta coletânea, o leitor terá acesso a um conjunto variado de cordéis, incluindo aqueles inspirados em contos de fadas e em mitos da Grécia Antiga, acompanhados de xilogravuras do artista Erivaldo. 256 páginas. Global Editora. R$ 37

Maigret e a Mulher do Ladrão Georges Simenon O inspetor Maigret recebe a visita de uma ex-prostituta que ele prendera há 17 anos. A partir daí, desenvolve-se mais uma trama cercada de mistérios. 176 páginas. L&PM Editores. R$ 16

QUADROS DE ALEGRIA E TRISTEZA

José Roberto Santos Neves

“Tristeza não tem fim/Felicidade sim”, descreveu magistralmente Vinicius de Moraes, em uma de suas mais belas canções inspiradas no carnaval. As dualidades entre alegria e tristeza, desejo e ausência de desejo, amor realizado e a busca amorosa fracassada do Pierrot permeiam o artigo de capa desta edição, assinado por Gilbert Chaudanne. O pintor e escritor francês, radicado em Vitória, desenvolve uma leitura original sobre as artes plásticas no carnaval a partir da análise do “Gilles-Pierrot”, de Antoine Watteau. Nas páginas 6 e 7, Chaudanne desvenda as nuances da obra e interpreta os

Pensar na web

possíveis significados da pintura de Watteau, com a propriedade de quem conhece profundamente a arte universal. Na página seguinte, comenta a exuberância do carnaval brasileiro, “que foi pintado antes de entrar na avenida”. Ainda nesta edição, retomamos um tema fascinante para a compreensão do Brasil contemporâneo: as condições que levaram o samba a sair do gueto para se firmar como símbolo da identidade nacional. E tem mais: Machado de Assis, José Carlos Oliveira, Raul Seixas, cinema iraniano, crônicas e poemas, para desfrutar hoje, amanhã, depois, e tudo se acabar na quarta-feira...

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Vídeos de Donga e Pixinguinha, gravações de Raul Seixas, trailer do filme “A separação” e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

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por WILLIAMS ROOSEVELT MONJARDIM

MACHADO DE ASSIS E O INSTINTO CAPIXABA

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achado de Assis (1839-1908) já é bem conhecido de nosso público, se não por seus livros, pelo menos por aquilo que deles veio surgir. Algumas de suas obras deram ocasião a filmes, peças teatrais e até músicas. Entretanto, existem outras facetas suas menos exploradas. Ele também foi poeta, autor de teatro, crítico literário e arguto cronista do cotidiano nacional. Corrigindo um pouco dessa lacuna, as editoras Penguin e Companhia das Letras trouxeram ao público uma pequena e significativa amostra dessa produção em “O jornal e o livro”. Esta é uma obra rica e que permite várias abordagens. Poderíamos falar da formação do crítico – inclusive o político – a partir de “O Ideal do crítico”. Nele, Machado diz que a crítica “deve ser sincera, sob a pena de ser nula” e lamenta que ela esteja “desamparada pelos esclarecidos” e “exercida pelos incompetentes”. Ainda aconselha uma dose de independência, dizendo que não devem “importar as simpatias ou antipatia dos outros”, pois “um sorriso complacente, se pode ser recebido e retribuído com outro” e não com um artigo ou discurso no parlamento. Sob esse prumo e essa régua, como poderíamos mensurar um conhecido programa de rádio que se dá como feroz crítico de governos estrangeiros mas é impotente quando volta os olhos para o plano local? Outro tema: a concorrência entre as mídias e a possível extinção de algumas. Será que os livros virtuais vão abolir os de papel? Machado vislumbrou no jornal uma possível ameaça ao livro, no artigo “O jornal e o livro”. Mais um: a formação de um público leitor com competência. A esse respeito, teremos aula magna na crítica feita por ele ao “Primo Basílio”, de Eça de Queiroz. Vejamos “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”. Nela, Machado vê com alegria o fato de que a geração de novos poetas e escritores começava a ver a realidade brasileira como digna e bela de ser cantada em seus versos e narrada em suas prosas. Tomemos isso como mote.

Fronteiras

Por vezes ouvimos dizer que não existe uma arte capixaba ou uma filosofia brasileira. Afinal, arte e pensamento seriam atributos universais. Há nisso algo de verdadeiro e, simultaneamente, não o há. O próprio Machado pergunta “se o Hamlet, o Otelo, o

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O JORNAL E O LIVRO Machado de Assis. Penguin & Companhia das Letras. 80 páginas. Quanto: R$ 10,90

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TRECHO “Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.”

Para escritor, a independência de um povo se constrói a partir de sua tradição cultural

Julio Cesar, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa ou com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês”. Poderíamos também possuir um gênio universal e permanecermos essencialmente capixabas? Baianos, mineiros, gaúchos etc, não sentem qualquer estranhamento ao afirmar uma cultura própria; aliás, não apenas afirmam, alardeiam. Para eles, o particular e o geral se articulam reciprocamente entre si, marcando suas fronteiras ao mesmo tempo em

que as rompem, produzindo obras que falam ao mundo inteiro sem perder as cores de onde se originaram. Com isso tocamos aqui na chamada identidade capixaba, naquela característica própria que poderia nos identificar e a partir da qual – ou de sua ausência – nos relacionaríamos com o outro. Num mundo que se rege pela economia de mercado, isso conduz facilmente aos produtos turísticos. Será que estamos condenados à moqueca, ao congo e ao nosso chocolate (agora suíço)? Serão apenas esses os produtos que nos represen-

tarão diante do olhar do outro e que nos presentificarão quando este outro estiver distante? O congo, por exemplo: quais são os limites de sua participação em nossa cultura? Por que ele ganha mais respeito quando associado ao rock e ao reggae? Se por um lado as fusões são enriquecedoras e podem recriar a cultura, por outro, por que o congo sozinho não se basta? Qual é sua real possibilidade de ganhar, sem mesclas, espaço entre nós, não apenas na condição de uma “manifestação folclórica”, mas digno do cotidiano de nossos CDs e DVDs como o tango na Argentina e o rock nos EUA? Em que medida aquele que vive mendicante às nossas portas permanece sendo “cultura capixaba”? E por que deveríamos construir um instinto capixaba? O próprio Machado responde. Ele nos lembra que é a partir do fortalecimento e criação de uma tradição cultural – cultura como ato de criação popular! – que um povo constrói e fortalece sua independência, e acrescenta que “esta outra independência não tem Sete de Setembro nem Campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo”. Precisamos de um motivo melhor?


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

cinema por ANDRÉIA LIMA

DRAMA MORAL E SOCIAL SOB O OLHAR DO CORÃO Em “A Separação”, diretor iraniano Asghar Farhadi envolve o público com um enredo que entrelaça as relações sociais dos personagens e expõe diferentes visões de um mesmo fato

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ma das cenas mais sutis de “A Separação” (2011), do diretor iraniano Asghar Farhadi, acontece lá pelo meio da trama. É quando Simin (Leila Hatami) conversa com a filha Termeh (Sarina Farhadi) e esta tenta convencê-la a voltar para casa. Ao fim do diálogo, o silêncio é surpreendido por uma canção infantil. É a primeira inserção sonora na obra que quase não apresenta música no roteiro. A escolha de Farhadi diz muito sobre o drama moral e social que o filme aborda, já que o diretor propõe cenas realistas, adotando a simplicidade como regra e, ao mesmo tempo, provoca no espectador uma visão que o impossibilita, ou pelo menos dificulta, o pré-julgamento de seus personagens. O filme, que está em cartaz no Cine Jardins, já levou prêmios no Globo de Ouro, no Independent Spirit Awards e no Festival de Berlim, e também concorre ao Oscar 2012 nas categorias Roteiro Original e Filme Estrangeiro. Com a câmera enquadrada em contra plongeé (visão da câmera de baixo para cima), vemos os documentos de Simin e Nader (Peyman Moaadi) saírem da máquina fotocopiadora logo na primeira cena. O som do aparelho dialoga com a discussão do casal perante o juiz. É um dos poucos momentos em que a câmera de Farhadi encontra-se fixa. O recorte seguinte emoldura o casal de forma que é a visão do juiz que temos ali. E com ela uma certa neutralidade? Talvez. Simin quer o divórcio, pois deseja viver com o marido e a filha em um país mais livre; já Nader quer ficar no Irã para cuidar do pai que sofre de Alzheimer. O drama ganha contornos ainda mais complexos quando, já separados, Nader contrata Razieh (Sareh Bayat) como diarista para cuidar da casa e de seu pai doente (Ali-Asghar). Extremamente religiosa, Razieh pensa em desistir já no primeiro dia de trabalho, pois acredita estar cometendo um pecado. Afinal, ela não sabia que se tratava de um homem solteiro e que teria que trocar as roupas do pai dele. Tudo isso poderia contrariar seu marido Hodjat (Shahab Hosseini) e os preceitos religiosos do Corão.

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No filme, em cartaz em Vitória, o divórcio de Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moadi) desencadeia uma série de conflitos

Entre a criação e a repressão: alguns cineastas iranianos Abbas Kiarostami Com intensa produção artística desde 1970, o cineasta, diretor, roteirista, produtor e escritor já acumulou diversos prêmios por onde passou. Sua estreia “Nan Va Koutcheh” (1970) ganhou destaque pela visão realista sobre a sociedade iraniana. Mas a projeção internacional veio com “Onde fica a casa do meu amigo?” (1987), história cativante de um menino que tenta devolver um caderno a um amigo. A partir daí, os filmes do cineasta passaram a ser presença constante em festivais de cinema. Destaque para as produções “Gosto de cereja” (1997) e “Cópia fiel” (2010). Majid Majidi Nascido em 1959, o diretor, produtor e roteirista iniciou a sua carreira artística aos 14 anos, quando começou a atuar em teatros amadores no Teerã e, posteriormente, deu continuidade aos estudos no Instituto de Artes Dramáticas da capital iraniana. A obra mais conhecida de sua carreira foi o filme “Filhos do paraíso” (1998), indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Outras películas relevantes do diretor

foram “O Pai” (1996) e “Baran” (2001). Mohsen Makhmalbaf O cineasta, escritor, editor, ator e produtor de cinema iraniano é o atual presidente da Academia de Cinema Asiática. Nos últimos dez anos, seus filmes foram aclamados em festivais internacionais. É um dos adeptos do movimento “New Wave” no cinema iraniano, um estilo de filmagem surgido nos anos 1980 que critica a cultura radical muçulmana, propondo um cinema mais autoral. Entre seus polêmicos filmes estão “Sexo e filosofia” (Tajiquistão, 2005) e “Grito das formigas” (Índia, 2006). Jafar Panahi O diretor e roteirista recebeu projeção internacional com os filmes “O Balão Branco” (1995), Câmera de Ouro do Festival de Cannes; “O espelho” (1997), Leopardo de Ouro do Festival de Locamo; e “O círculo” (2000), Leão de Ouro do Festival de Veneza. Em 2010, foi preso e impedido de filmar por ter manifestado apoio ao candidato oposicionista nas eleições presidenciais iranianas. Desta experiência surgiu seu mais recente trabalho, “Isto não é um filme” (2011), coprodução com Mojtaba Mirtahmasb enviada clandestinamente à última edição do Festival de Cannes.

É interessante notar que em “A Separação” a construção dos personagens é feita de forma meticulosa por Farhadi. A divisão entre a liberdade da família de Nader contrasta com a repressão vivida no seio da família de Razieh, e isso fica bem claro na forma de atuação desenvolvida pelos atores do filme. Outro destaque é para o roteiro que se desenrola num drama familiar, sem cair no estereótipo religioso maniqueísta. A escolha por uma filmagem com câmera na mão aproxima o drama do espectador, guiando o nosso olhar em cena. Em “A Separação”, o que está em jogo desde o início da trama não é o desfecho que terá cada um dos envolvidos. Seria apenas burocrático se o diretor oferecesse um final hollywoodiano ao espectador. O que importa e o que é essencial no filme é a forma como se esbarram e se entrelaçam as relações sociais entre os personagens. O drama vivido por eles resvala no espectador, incitando-o a questionar que talvez não haja o certo ou o errado, mas apenas visões diferentes de um mesmo fato.


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falando de música

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por JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

O ENCONTRO QUE DEFINIU A IDENTIDADE NACIONAL

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O MISTÉRIO DO SAMBA Hermano Vianna. Jorge Zahar Editor. 196 páginas. Quanto: R$ 46.

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Uma noitada que reuniu nomes como Gilberto Freyre e Pixinguinha, em meados da década de 20, no Rio de Janeiro, é o ponto de partida do livro “O Mistério do Samba”

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este momento em que o país celebra sua festa profana mais popular, é válido retomar antigas questões que há décadas são objeto de estudo: como e por que o samba se tornou símbolo da identidade nacional? Quando se deu essa legitimação? Quem foram seus personagens? No livro “O Mistério do Samba”, publicado originalmente em 1995, o antropólogo Hermano Vianna, irmão do “paralâmico” Herbert, elucida algumas passagens que ajudaram a moldar o samba como elemento unificador do país. O ponto de partida da obra, baseada na tese de doutorado do autor em Antropologia Social, na UFRJ, é um encontro de bar até então obscuro, ocorrido em 1926, no Rio de Janeiro, envolvendo intelectuais e músicos populares. Aquela não foi uma reunião corriqueira. De um lado, representando os literatos, o sociólogo Gilberto Freyre, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, o promotor Prudente de Moraes Neto e os compositores clássicos Heitor Villa-Lobos e Luciano Gallet; do outro, como a “gente do povo”, os sambistas Donga e Patrício

Teixeira e o mestre Pixinguinha. Essa noitada de violão, regada a “alguma cachaça”, segundo relato do próprio Freyre, simboliza para o autor do livro a alegoria da invenção da tradição do “Brasil mestiço”, que em pouco tempo – menos de 15 anos – alçaria o samba a símbolo popular do país, capaz de unir suas diversas regiões e raças em torno de um projeto em comum.

Debate propício

Essa construção, porém, não se deu de forma isolada, como um “insight”. O Brasil vivia um debate propício sobre o que é ser brasileiro e sobre a busca e a valorização das raízes nacionais, que resultaram na ruptura trazida pelos modernistas, há exatos 90 anos. Recém-chegado do Recife, Freyre era o mais ardoroso defensor da ideia de que a força do Brasil reside na sua miscigenação. “Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura” – afirmou no “Manifesto Regionalista”, em 1926. O escritor ainda não havia lançado sua obra-prima “Casa-Grande e Senzala” (1933), mas enfrentava com argumentos convincentes os adversários que julgavam a natureza mestiça do

Brasil como a causa de nosso “atraso” em relação às nações desenvolvidas. Estes defendiam a imitação dos costumes franceses da Belle Époque e tentavam difundir no país os conceitos da eugenia, ciência que atraiu intelectuais como Monteiro Lobato. O embate estava longe de ser maniqueísta. Hermano Vianna faz uma viagem no tempo para mostrar que, desde a Era Imperial, a elite brasileira aplaudia e incentivava as músicas ditas populares e chulas, como modinhas, lundus e maxixes. Ou seja: no Brasil dos séculos XVIII e XIX, mesmo com a escravidão, os ricos se divertiam com a cultura dos negros, exibida inclusive em celebrações oficiais (essa informação serve, por exemplo, para entender a influência que o ritmo pancadão exerce hoje sobre a classe média alta). Mas faltava um elemento que traduzisse o Brasil para os brasileiros e estrangeiros: o samba. O passo decisivo para essa consolidação teria ocorrido na passagem dos anos 20 aos 30, com a fundação das escolas de samba (até então nos carnavais tocava-se de tudo, inclusive ritmos estrangeiros como polcas, valsas, tangos), a explosão do rádio como veículo

de massa, a criação das primeiras gravadoras no país e as transformações urbanas por que passava o Rio de Janeiro, palco de toda essa efervescência. E havia ainda o aparelho governamental de Getúlio Vargas, que enxergou o samba como símbolo do projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira. Um dos sinais dessa influência foi a determinação do Estado Novo, em 1937, de que as escolas adotassem temas históricos, didáticos e patrióticos em seus enredos, orientação prontamente aceita pelos sambistas, em troca de apoio financeiro e político para o carnaval. Vianna avança sua pesquisa até a década de 90, percorrendo os diferentes movimentos musicais do país e as eventuais “ameaças” à supremacia do samba como elemento definidor da identidade nacional, por parte do Tropicalismo, da axé music, do frevo, do rock brasileiro e dos demais ritmos considerados regionais (entre os quais o sertanejo). De fato, a história segue seu curso, mas a tradição do samba permanece hegemônica, a exemplo da famosa canção de Dorival Caymmi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é/É ruim da cabeça ou doente do pé”.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

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artes plásticas

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por GILBERT CHAUDANNE

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

Pintor francês radicado no Espírito Santo decifra detalhes e possíveis significados de óleo sobre tela produzido entre 1717 e 1719, em que cada personagem possui um papel e um tipo de sedução

UMA LEITURA ESTRANGEIRA DO CARNAVAL

DIVULGAÇÃO

No quadro “Gilles de Watteau”, há algo um tanto moderato cantabile, que é da ordem do espanto, mas se isso pode ser considerado como uma vertente europeia do carnaval, essa não é a única. O deus do Carnaval, Dionísio, se mistura um pouco com Apolo, o que não é de se estranhar, já que na mitologia grega, quando Apolo viaja, ele deixa a chave de seu apartamento de “função” com Dionísio. Os deuses se entendem e, em geral, às custas dos homens... ou não?? Pierrot é sempre associado à lua: o pierrot lunar quer dizer que é o melancólico, paradoxalmente vestido de branco (melanina = preto). Mas ele quer dizer com isso que ele é ausência: ele é um buraco branco. Pode-se ter essa sensação quando se caminha na neve – esta esconde toda a referência, como a noite (preta).

Veneza

QUADRO DE WATTEAU INSPIRADO NA FESTA DE MOMO REVELA TRISTEZA E DESAMOR, APONTA ESPECIALISTA

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á um quadro que retrata sintomaticamente um aspecto importante do carnaval europeu. É o “Gilles de Watteau”, de Antoine Watteau (1684-1721). Trata-se de um carnaval “soft”, tipo “fêtes galantes” ou bailes mascarados, típicos desse delicado século XVIII. O nosso “Gilles” aqui é uma variação do Pierrot – é a famosa Commedia dell’Arte Italiana, presente também no carnaval brasileiro, de pierrot, arlequim e colombina. São minicarnavais com um caráter meio intimista (o jardim, o parque). O “Pierrot-Gilles” está num lugar subelevado, em primeiro plano. É vertical, sem movimento, meio assim como bobo – ou que tomou tranquilizantes demais. O branco de sua roupa, que parece ter um brilho como um cetim, ou uma seda, pode ser associado à lua, já que quando se fala do pierrot lunar, fala-se de um pierrot que é triste como a lua. É o tema da melancolia, normalmente associado à cor negra, mas, aqui, o branco prateado quer dizer a mesma coisa: há algo como uma ausência, algo que não está ou até não é.

O “Pierrot-Gilles” é o bobo. Ele não sabe participar da dança do desejo, por isso seu rosto tem uma expressão amarga e leve, no limiar de esboçar um sorriso (mas não sorrindo), uma espécie de tristeza, que é diferente do desespero, que tem um lado quase gozoso. O Pierrot é o eterno inadaptado diante da dança do desejo representada pelos personagens atrás, na parte inferior do quadro: agitados, até um pouco espantados, sem nenhuma ligação com o “Gilles-Pierrot”, olhando na direção, perto de um asno, de uma figura de preto meio feminina pela fineza do rosto, rindo delicadamente. Não é a morte ou uma morte educada, elegante como era o século XVIII francês: leve ou até leviano. O asno pode ser associado ao diabo, mas, aqui, talvez ele represente a burrice do desejo – ou sua inocência. Depende do ponto de vista. Um busto provavelmente de pedra está na extrema direita, parece ter uma barba, o que pode ser uma das representações de Dionísio (Baco), deus do carnaval, e, nesse caso, o asno pode corresponder ao asno sobre o qual estava “o papa dos loucos”,

O ‘Pierrot-Gilles’ é o bobo. Ele não sabe participar da dança do desejo, por isso seu rosto tem uma expressão amarga” na festa dos loucos, na Idade Média, que entrava até em “Notre Dame”. O diabo é o Dionísio cristão – dança espantada do desejo e inadaptação lunar de “Gilles-Pierrot”. Arlequim pode ser o personagem de vermelho, simbolizando o fogo vital, como o manto multicor da multiplicidade do mundo-desejo, da representação tradicional de Arlequim (retomada por Picasso).

Quer dizer, nesse quadro, como no carnaval – ou certos carnavais “soft” europeus – há essa dialética do desejo e da ausência do desejo. Desejar ou não desejar, eis a questão. Eis a questão central do carnaval, que na Europa acontece na primavera, quando os vegetais renascem, sobretudo a vinha, a rainha das plantas, já que ela proporciona a embriaguez com seu vinho. Vinho que é como um sangue vital da vontade de viver. Mas aqui, entretanto, estamos num ambiente moderato cantabile (cantar moderadamente), onde não se trata de fazer zoeira. Essa moderação, essa retenção não é a de outros carnavais, daí também o seu caráter apolínico, do deus Apolo, tendo como lema: “nada em demasiado”, como estava escrito em seu templo em Delfos. Nosso “Gilles-Pierrot” é aquele que não tem a ciência intuitiva do desejo. Ele não sabe desejar e não sabe ser desejado. Já o Arlequim vermelho, de sangue vital, é aquele que segura, na sua roupa e nas suas presepadas, o fogo vital do desejo. Qual dos dois a Colombina vai escolher? Cada um tem a sua sedução e se, apa-

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O “Pierrot (Gilles)”, de Antoine Watteau, retrata o carnaval europeu, com a dialética do desejo e da ausência de desejo

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rentemente, o Arlequim ocupa a “pole position”, o Pierrot pode seduzir a Colombina sem querer, pode seduzi-la justamente porque não faz nada para seduzi-la, ao contrário do Arlequim, que mostra seu desejo como uma “maçã” escarlate.

Gravura

O “Gilles-Pierrot” pode lembrar uma gravura famosa de Albrecht Durer (1471-1528), “Melencholia” (assim está na ortografia da própria gravura), que é um anjo sentado, pensativo, cercado de objetos que

podem simbolizar o conhecimento, mas criando nele um estado triste, porque ele não consegue alcançar esse conhecimento através dessas ferramentas. Mas só lembra, porque a tristeza do Pierrot não é da ordem do conhecimento, mas do amor.

Os carnavais europeus são muito diferenciados: o de Veneza deve ser por excelência o carnaval quase apolínico que descrevi aqui, já que o espírito da cidade participa do carnaval, e o espírito de Veneza é, por excelência, a elegância, a leveza de quase não-ser, entretanto, de ser mais do que qualquer especulação metafísica. Há carnavais nos Alpes Austríacos, que têm um caráter xamânico muito marcado, e que não têm nada a ver com o carnaval de Veneza – tão perto, tão longe. Em Nice, a região dos perfumes, parece que há uma batalha de flores: mais uma vez a leveza. Certa vez eu estava de passagem na minha cidade, Besançon, na França, no início dos anos 80, e havia lá um carnaval meio anêmico, na praça central. Mas o que vi e me deixou comovido foi que, ao me afastar do centro e caminhar pelas ruelas da parte mais antiga da cidade, por um labirinto de ruas estreitas e cinzentas, houve assim como uma aparição: uma mulher jovem, bela, vestida à moda da “Belle Époque” (1900-1914), passou soberana. Porém, senti nela – ou em mim – algo como um enorme abandono. Debaixo da chuva fina e fria, vê-la vestida de cores cinzentas e azul-pastelizado era quase da ordem do luto (melancolia), e não da alegria-alegria carnavalesca. Ela me apareceu como um dos rostos possíveis do carnaval: a tristeza, toda enfeitada pelo luto de amar, e pelo fato de não ser amada. O carnaval diz que o amor é triste, é a busca amorosa fracassada do Pierrot – Il n’y a pas d’amour heureux (“não há amor feliz”, Aragon).

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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

+ artigo de capa por GILBERT CHAUDANNE

NO BRASIL, FOLIA REPRESENTA ARTE TOTAL E PARADOXO PARA OS ARTISTAS Articulista percebe o carnaval brasileiro como a materialização de um delírio que combina poesia, música, cenários e dança, em uma ópera de rua que desafia a criatividade dos pintores

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carnaval é uma arte total. E o carnaval brasileiro é, por excelência, o carnaval de todos os carnavais. Entretanto, diante da tarefa que me foi oferecida pelo Caderno Pensar – analisar o carnaval e as artes plásticas no Brasil –, fiquei perplexo, porque procurei na minha memória (museu portátil) e posso dizer que não há muitos quadros que representam o carnaval. Porém, com a ajuda de amigos, encontrei algumas cenas de carnaval na pintura brasileira: Aldo Luiz, Di Cavalcanti e Amaury Menezes, por exemplo. Talvez, porque o que hipnotiza mais no carnaval, à primeira vista, se posso dizer assim, não é tanto o visual, mas a música. A música casa muito bem, justamente, com o resto do ano brasileiro, porque a música é presente o tempo todo, até na maneira de falar, sobretudo no Rio de Janeiro e no Nordeste. Isso, talvez, se deva ao fato de que o carnaval brasileiro é uma arte total, como uma arte outrora bem apreciada no Brasil: a ópera. Arte total porque combina poesia (letra), música, artes plásticas (figurinos e carros alegóricos), cenário (móvel: carros alegóricos) e dança. Assim, as artes plásticas já estão incluídas na parte visual do carnaval, que se torna uma ópera da rua. A escola de samba, o maracatu de Olinda, o “Homem da Meia-noite” já são quadros vivos (como fizeram Godard e Pasolini no cinema), e o pintor gosta de criar, e não de copiar. Talvez por isso, no Brasil, paradoxalmente, o carnaval fica mais discreto nas artes plásticas, simplesmente porque o carnaval brasileiro já é um quadro total. O que me resta fazer, pois, é comentar/analisar o carnaval como quadro vivo. E assim podemos constatar que esse é docemente assustador e com uma diversidade incomum. Passando pelas marquesas do século XVIII (porta-estandarte) e os marqueses da mesma época (mestre-sala), pelas escolas de samba, e indo aos bonecos gigantes de Olinda ou o maracatu de lá também – sem contar as novas formas que surgem no Amazonas – ficamos meio deslumbrados diante de tais manifestações. Trata-se de algo impensável: a materialização de um autêntico delírio. Por

TASSO MARCELO/AE

HANS VON MANTEUFFEL

O tradicional bloco Homem da Meia-Noite, de Olinda: quadro vivo

Desfile da União da Ilha, na Sapucaí, em 2011: arte, engenharia e arquitetura

que autêntico? Porque é construído sistematicamente – e os carros alegóricos são a prova disso: trata-se de arte, mas também de engenharia, de arquitetura! Não há nada mais errado do que pensar que o delírio é sinônimo de bagunça, desordem, desconexões: não há nada mais lógico que o delírio. Só que é uma lógica que não é da ordem do 2+2 = 4 (no carnaval, Descartes está preso numa jaula!). A lógica do car-

naval permite a epifania 2+2 = 5. É a lógica da loucura, do que é chamado de folia, e lembra a palavra francesa folie, que quer dizer – justamente – loucura. Mas não há dúvida de que o motor do carnaval brasileiro é a música, sobretudo na sua forma rítmica. O samba e o frevo batem no corpo, no nível do diafragma, no nível das membranas, o corpo se torna um tambor vivo e provoca uma turgescência dos órgãos no sentido da orgia. Não há

dúvidas também de que a parte visual-plástica participa pelo seu lado caleidoscópico do delírio dionisíaco, e casa perfeitamente com seus excessos, com a música transgressora do próprio corpo e do próprio espírito individuais, para se fundir num corpo-espírito coletivo. E é justamente nessa intersecção corpo-espírito que surge, soberana, a dança – que não deixa também de fazer parte das artes plásticas. No carnaval brasileiro, há algo que, de uma certa forma, faz o pintor se sentir deslocado. E por que isso? Ele sente uma certa impossibilidade de pintá-lo pela simples razão de o carnaval já estar pintado! Os artistas plásticos desenharam os carros, os figurinos, os escultores esculpiram no isopor os carros alegóricos, e, pois, um artista que pintaria o carnaval, talvez pintaria uma cópia. Também há o fato de que o carnaval carioca inspira-se diretamente na arte barroca, na pintura, na escultura, na arquitetura, e que, pois, a equação está sendo invertida. O carnaval brasileiro foi pintado antes de entrar na avenida, e pintá-lo de novo é, de uma certa maneira, matar Aleijadinho e mestre Athayde de uma flechada só. Como Dionísio, deus do Carnaval, é um deus que gosta de aparecer (até com pouca discrição), esse fato empurra o carnaval para o lado visual. Mas há um outro ângulo sobre o qual se pode ver a relação com as artes plásticas, e não é o retrato-quadro do carnaval, mas “seu espírito” – os quadros de Jorginho Guinle participam dessa carnavalização – uma pintura embriagada-dionisíaca. Cuidado, Dionísio não está só no carnaval. Às vezes, ele está no seu celular ou na sua cama.


poesias

crônicas

DEFINIÇÕES

A CASA DO NAVIO

MILSON HENRIQUES

por ADRIANA VON

HAMLET Ler Ou não Ser. Eis a questão. NOVODEUS O ser humano criou a internet que está criando o ser humano PODER Quando se quer, a vida é tão fácil de viver! Eu, por exemplo, sempre fui o que nunca cheguei a ser. ERÓTICO Desculpe, mas não me habituo, toda vez que te penso, eu te possuo... CARÊNCIA Menino de rua me empresta o seu sol? DOR Quando você passa por mim nem imagina o que eu passo por você...

Não entrei naquela casa, mas imaginei seu fascínio interior que sua forma de navio revelava e me flagrava em sua porta, na ponta dos pés, vencida por seus muros, querendo entrar. Eu e outros adolescentes saíamos da praia sempre espionando as casas mais belas do nosso caminho inaugurado pela Casa do Navio. Até que aquela casa, que foi o brinquedo gigante de navio, cedeu lugar a um imponente flat. Logo ela, tão nossa e da Praia da Costa, que era o ponto de encontro, de chegada, de partida, foi embora, sem despedida. E lá fui eu conferir, sentei-me de costas para o mar, e, de fato, havia um vazio, um terreno baldio. É a invencível mudança, tendo o tempo como seu aliado e a mim como sua nostálgica testemunha, que me fez sentir saudades daquela casa e dos seus mistérios

que me aguçavam e das suas formas que incrementavam minhas brincadeiras arquitetadas sobre a areia, diante do mar. Nadando contra a maré do dinamismo, descubro-me lá no passado e, num desabafo, lamento não ter uma foto com ela, mas não desisto em tentar descrevê-la ao meu amor. Embalada na conversa, vou-me embora, e não demoro a sentir a inquietação que surge, ao deparar-me com minha mente fincada nas areias da Praia da Costa, distante dos meus passos, que já se despediram da praia. É a Casa do Navio, que assistiu à minha mudança e à da Praia da Costa tão de perto, que viu prédios daqui se erguerem, que ouviu o barulho dos primeiros carros desfilarem no seu quintal, que sentiu o encanto dos primeiros moradores por si e por essa Vila Velha, é simplesmente ela

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Pensar

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que agora me contempla e me flagra com vontade de voltar no passado e ver a sua porta abrir-se para mim. Silenciosa, percorro na areia o suave caminho das palavras, que detém o inefável dom de eternizar os sentimentos que ora se refrescam nas águas da praia, ora se esquentam em suas areias. Ao falar que havia um navio ancorado ali, percebi que sentar-me de costas para o mar da Praia da Costa não será mais igual a antigamente. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará... Como uma onda no mar”. Presente é presente mesmo, dádiva de Deus, e pode ser a Casa do Navio ou outros lugares que o acolhem ou pessoas que o encontram para mostrar que o tempo se esvai e nos assalta nos momentos em que desejamos a eternidade. É o meu castelo de areia com que me encantei, mas o mar, ousado, resolveu carregar. É alguém que passou diante da Casa do Navio e decidiu que aquele navio imóvel não podia mais ficar. Excepcionalmente hoje, deixamos de publicar a crônica de Nayara Lima.

A POEIRA DO CARDUME por TAVARES DIAS

DOR MAIOR Sabe o que é dor? Recolher no varal as roupas limpas do filho morto na noite anterior. SAUDADE Não defino, definho. ENDEREÇO Após a última lágrima lá reside a paz. TEMPO Primeiro tecer amor depois amortecer VELHICE Houve um tempo – Ah! Faz tanto tempo! que meus carinhos eram caminhos...

CARNAVAL Para quem nasceu sob o signo da melancolia a quarta-feira começa no primeiro dia

Tem gente que pensa que os mineirinhos da roça são todos iguais, no comportamento. Sabe de nada. Tem mineirim de tuconté jeito. Tem o de pouca conversa. Assim: – Tá é choveno, hem? – Finimmmmmm... Tem o literal, convencional feito o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queirós em “O primo Basílio”. A pessoa sente que vai espirrar, esfrega o nariz, olha pro sol, e nada. – Que raiva, sô. Que que é bom pra espirrar? E ele, candidamente: – Nariz. Também tem aquele tipo simplório sem qualquer verniz cultural ou noção de limite. Ele chega cedinho, antes de o banco abrir, pra ser atendido logo. O sol já vai bem alto. Há uma única pessoa na fila, uma senhora já bem idosa e obesa, suada. E ele, doido pra caçá u’a prosa, se dirige à macróbia: – Sora tá na fila, Dona? – Tô, né?

– Crama não, boba. É bão pra esmagrecê... Mas esses do causo abaixo, que o meu amigo Conde ouviu do violeiro Levi Ramiro e me repassou, são especiais, pela rabugice e pela contação de vantagem. E eu, de minha parte, salpico aqui e ali uns floreados, aumentando uns pontos no conto, conforme é de lei. Ao mineirês, pois: Caiô de três mineirins que num se conhecia topá na beirada dum ri adonde ês tinha ido pescá pela primeira vez. Tava ali, os três, varinha de bambu na mão, embornal , latinha de minhoca, chapéu de paia, pitano um fumim de rolo, meiota de pinga na gibeira. Tava dano até uns peixim bão. De repente, o mineirim da ponta de cima chiou: – Ô rizim ruim de peixe, sô. Os outro espiaro de banda. E ele emendou: – No ri que passa na minha terra, sô, é até difice de pescá. Quando cê isca o anzol na beira d’água, a peixarada cumeça a

pular, é de dois metro, três metro, só bitelo. Procê acertá a isca na boca daquele maió que cê qué pegá é u’a peleja. Dá até jeriza na gente, tê que devorvê peixe de metro e mei, dois metro. O mineirim do mei pensou um tiquim e lascou: – É pouco peixe. Na minha terra, cê tem que iscá o anzol descosta pro ri, senão os peixe pula tudo cá fora, nu’a gulodice medonha, quereno tomá a isca docê. Já cheguei em casa com a butina toda roída de peixe. Até u’a beliscada num bago eu já tomei. Pois o terceiro mineirim num demorou a rotá a vantage dele: – É pouco peixe. No ri da minha terra, seus menino, tem tanto peixe, tanto peixe, mas tanto peixe, que ês já expursô até a água. Cê chega na beira do barranco pra pescá, quando vem o cardume levanta é um poeirão. Quem num conhece pensa inté que é uá boiada que lenvém... É pouco peixe ou tá bão, cara leitora e caro leitor?


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Pensar

por ADOLFO MIRANDA OLEARE

“AQUI JAZ UM HOMEM DE BEM... QUÁ, QUÁ, QUÁ”

OS OLHOS DOURADOS DO ÓDIO José Carlos Oliveira. José Álvaro Editor, 1962. 220 páginas. Disponível em sebos virtuais, com preços de R$ 6 a R$ 80

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DIVULGAÇÃO

“Os Olhos Dourados do Ódio”, estreia de José Carlos Oliveira, revelou um pensador que tinha como trabalho diário evitar que a própria geração perdesse o dom de falar

ARQUIVO CEC/DIVULGAÇÃO

Para José Irmo Gonring, Regina Egito e Reinaldo Santos Neves

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uem ou o que pode garantir, no transcorrer da existência, a bem-aventurança, o bom sucesso do percurso? Sófocles, em “Antígona”, faz o coro sentenciar que, entre tudo que se põe em relação no mundo, nada é mais espantoso do que a industriosidade humana: “Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o Homem! Singrando os mares espumosos, impelido pelos ventos do sul, ele avança, e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor!” Numa espécie de diálogo com esta ambientação trágica, diz José Carlos Oliveira em “Os olhos dourados do ódio”, de 1962: “Você sabe de onde veio, sabe para onde vai, mas é preciso reconhecer que essa viagem enfrenta uma ameaça constante.” É sobre a viagem e seu caráter absurdo, assustador, espantoso, sobre o perigo, o mistério, o insólito nela presentemente oculto que tratará o cronista, contista e romancista cariocapixaba em seu livro de estreia. O tempo como mar da existência, o ser como um estar lançado à dinâmica de presença-ausência e às tantas peripécias compreendidas na relação entre o sem fundo do oceano e a superfície do espelho d’água: eis a atmosfera afetiva de “Os olhos dourados do ódio”, seleta de crônicas constituídas por ácidas e densas considerações existenciais, ensaios de pensamento acerca do sentido geral do viver. “Bem sabes que só se vive uma vez [...] Morre-se; eis o preceito básico no jogo da esperança”, diz o escritor, trazendo novamente à lembrança um tema pensado pelo mito grego, nos episódios protagonizados por Prometeu, Epimeteu e Pandora. (Em “Os trabalhos e os dias”, Hesíodo mostra como Pandora foi montada pelos deuses do Olimpo com o intuito de vingar o roubo do fogo de Zeus, cometido por Prometeu em benefício dos mortais. Platão aborda o mito em seu “Protágoras”). Saber que vai morrer todo homem

O autor em Vitória, em 1963, ao lado de Marien Calixte e do editor José Álvaro

sabe; quando, entretanto, nenhum. Donde o fundamental ser a viagem, a travessia e, acima de tudo, os cuidados suscitados. “Todo caminho”, diz Heidegger em “Ensaios e conferências” (Petrópolis: Vozes, 2001), “corre o perigo de desencaminhar-se.” As crônicas de “Os olhos dourados do ódio” parecem corresponder exatamente a algo indicado pelo veterano filósofo, em carta a um jovem estudante que lhe solicitara esclarecimentos acerca de um artigo intitulado “A coisa”. Ali está em questão o trabalho do pensamento, pensamento que, afirma Heidegger, não pode pautar-se pela positivação de resultados, pela procura de novidades, mas pelo valor intrínseco de seu próprio bem, da criatividade em si – condicionada, sim, mas não utilitária. “O pensa-

mento talvez seja um caminho incontornável, que não pretende elevar-se a nenhum caminho de salvação e nem trazer uma nova sabedoria.”

Expressão nacional

José Carlos Oliveira empreende essa tarefa abismal nas crônicas que selecionou para “Os olhos dourados do ódio”, publicadas originalmente no “Jornal do Brasil” entre 1959 e 1962. Trata, o livro, do intemporal (ou supra) inscrito na sorte de todos, nas paixões de cada um, e, também, de um sentimento histórico de expressão nacional: “Solidão e ódio e juventude, bem como os perfumados traços de um grande amor que se desfez, são as experiências de que dou

testemunho. Mas sou bastante pretensioso para esperar ainda, deste livro, que seja uma prova a mais de que os brasileiros ainda podem falar entre si, com severa elegância, daqueles assuntos que a todos apaixonam, porque constituem a própria soma da aventura íntima de todos nós.” Encerrando nestes termos o prefácio do livro, José Carlos Oliveira assume que sua obra, apesar de formalmente inscrita num gênero que habita a fronteira do jornalismo diário (descartável e efêmero) com a literatura (fonte duradoura da experiência humana), dedica-se ao tratamento de fenômenos universais da vida humana, de disposições de humor comuns a todos os homens, enfim, de certos modos não particulares ou individuais de realização da existência. Poder e fragilidade humanos diante do devir; morte, passagem e assunção do tempo; sofrimento, angústia, suicídio, solidão; ligações amorosas, individualidade, alteridade; disposição para constante reorientação do sentido da vida; felicidade, otimismo, silêncio, tagarelice, inautenticidade e niilismo modernos são, hegemonicamente, os temas que se impõem ao livro, fazendo dele um álbum de retratos históricos da alma contemporânea ou de retratos almáticos da história do século XX. Investindo na compreensão da linguagem como abertura para a simultânea manifestação do que é, não é e pode ser, “Os olhos dourados do ódio” expõe a desconcertante e insuperável imbricação entre singularidade e universalidade. Crônicas contra Cronos, que enfrentam e vencem a devoração do tempo. Ensaios, pois, lançados para o além do dia a dia jornalístico, desde uma filiação à literatura, à filosofia, ao pensamento, no que ele tem de mais fantástico: o poder de inaugurar poeticamente o eu, os outros-com-o-eu e os mundos em que eu e outro identificam-se e diferenciam-se, desde a participação no fluxo da acoplagem de mecanismos doadores de finita transparência à totalidade dos fenômenos. Confissões é o que faz José Carlos Oliveira, diz Carlos Heitor Cony, numa alusão à biografia filosófica de santo Agostinho: “Ele se

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confessava em cada linha. Ninguém, em seu tempo e lugar, percebeu como ele o vazio da condição humana.” (depoimento extraído do livro “Órfão da tempestade”, de Jason Tércio). Devorador dos clássicos da literatura nacional e estrangeira, leitor de filosofia e agudo observador do movimento do homem na história, José Carlos Oliveira fugiu do panfleto e do manifesto, mas não deixou de trazer à tona seu alto grau de indignação contra toda forma de tirania, não raro valendo-se de doses maiores ou menores de ironia, e de ataques diretos a seus inimigos.

Reflexões éticas

A filiação de José Carlos Oliveira ao elenco de pensadores que, já no século XIX, antes da bomba atômica, constatavam a crise da tradição metafísica, das promessas da modernidade ou do chamado humanismo platônico-cristão, encontra-se expressa ao longo de todos os textos de “Os olhos dourados do ódio”, que, mesmo esquivando-se do rótulo, afirma-se como “tratado” trágico e antiteleológico acerca dos sentidos da história, da herança da civilização e do porvir. Aquelas crônicas valem como reflexões éticas, decididamente práticas, na medida em que comprometem seu autor, e, parafraseando Jean-Paul Sartre em “Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara”, não são para ele “apenas uma visão do mundo, um conhecimento dogmático ou relativista, mas [...] uma ação sobre o mundo”: nascem da ação e preparam a ação. Entre a esperança e o desespero, o terror e o êxtase, “Os olhos dourados do ódio” constitui-se como emblema de uma época muito fértil da cultura brasileira, a passagem dos anos 50 aos 60. No livro pode-se ver em ação um psicólogo consciente da doença de sua tradição, um pensador que tinha como trabalho diário evitar que a própria geração perdesse o dom de falar. E que, ao mesmo tempo, queria incansavelmente saber sobre o paradeiro dos que ainda desejariam ouvir “proclamações sensatas Em suas crônicas, José Carlos Oliveira expôs sua indignação contra toda forma de tirania, entre a esperança e o desespero neste fim de tempo e de raças”.


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artigo por VITOR CEI

A PRESENÇA DE RAUL SEIXAS NO TORVELINHO DE 2012 Enredo de carnaval, documentário e reedição de livro mantêm viva a utopia do Maluco Beleza, que usou a música como veículo para transmitir o seu sonho de uma Sociedade Alternativa MARICY QUEIROZ/AE

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ano de 2012 é o do Maluco Beleza. Desde o início de janeiro uma série de eventos em todo o país presta homenagens ao artista Raul Seixas (1945–1989), que não tem simplesmente fãs, mas seguidores. Há um caráter de culto na publicidade em torno de seu nome, o que gerou a proliferação de uma série de fãs-clubes, covers, publicações e tributos em escala incomparável. Dentre as homenagens mais aguardadas encontra-se o documentário “Raul, o início, o fim e o meio”, cuja estreia está prevista para março. Com direção de Walter Carvalho, o filme tentar decifrar e entender o fascínio exercido pelo baiano mais de duas décadas após a sua morte. O documentário, que ganhou o prêmio do público na 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, exibe imagens raras de Raul e entrevistas com pessoas que participaram de todas as etapas da vida do compositor, dentre amigos, familiares, parceiros musicais, produtores e fãs ilustres. Durante o carnaval, o Maluco Beleza recebe outros dois tributos. O Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Unidos de São Lucas levará seu enredo “Um Maluco do Rock no Samba Beleza” para o sambódromo de São Paulo. A escola promete abrir com chave de ouro a noite de desfiles do grupo de acesso no Anhembi, dia 19 de fevereiro. No mesmo dia, no Rio de Janeiro, um grupo de fãs, inspirados pelo ideal de que “sonho que se sonha junto é realidade”, decidiu botar na rua o bloco Toca Rauuul, que desfila pela primeira vez na Praça Tiradentes. Os organizadores prometem degustação de chope e releituras das músicas de Raulzito em diversos ritmos carnavalescos.

Novo Aeon

Em abril, seguindo o ritmo das homenagens, a editora carioca Multifoco lança a segunda edição do meu livro “Novo Aeon: Raul Seixas no torvelinho de seu tempo”. A obra, escrita inicialmente para uma dissertação de mestrado em Letras, na Universidade Federal do Espírito Santo, teve sua primeira edição publicada em 2010.

O roqueiro baiano em 1973: idolatria póstuma o elevou à condição de guru e profeta

Com este livro eu busco pensar a concepção de Novo Aeon (nova era) apresentada por Raul Seixas. Elaborada pelo poeta e mago inglês Aleister Crowley no início do século XX, a doutrina do Novo Aeon impulsionou trajetórias existenciais de grande força contestatória, influenciando a contracultura das décadas de 1960 e 1970. Raul, que acompanhou o movimento e propôs uma Sociedade Alternativa, lançou sua criação poética à condição de espírito do seu tempo. “Novo Aeon” dedica-se a analisar a lírica raulseixista à luz da multiplicidade de problemas que formam nossa experiência cultural. O livro pontua, na obra do compositor baiano, as ressonâncias das questões que animaram o torvelinho do seu tempo: autoritarismo, censura, desbunde, contracultura, ocultismo, indústria cultural, melancolia e niilismo. Carnaval, filmes e livros fomentam o fenômeno conhecido como “raulseixismo”. A fama de Seixas levou ao fascínio, convertendo-o em guru da Sociedade Alternativa, profeta, messias e redentor, quase um fundador de religião. Tal como os santos-mártires, seu sofrimento nos últimos anos de vida e sua morte geraram a idolatria póstuma. Por isso, é preciso

cuidado para não transformar Raul em ídolo, não o levando totalmente a sério, do mesmo modo como ele fez com os seus próprios ídolos, como Elvis Presley e Aleister Crowley.

Apelo popular

O nome Raul Seixas tornou-se uma marca com enorme apelo popular. O espírito crítico e o ânimo revolucionário de suas canções foram cooptados pela estética do espetáculo e formatados pela indústria cultural, transformando-se em objeto de entretenimento canalizado para consumo. Perde-se, assim, a possibilidade de reflexão que ela oferece. Predominam os slogans facilmente identificáveis, como o grito de guerra “Toca Raul” e a saudação “Viva a Sociedade Alternativa”. A arte, por mais crítica que seja, é assimilada pela indústria, capaz de divulgar e vender obras de cunho revolucionário e anticapitalista para seu próprio lucro, sem pôr em risco a sua hegemonia. O sistema suporta críticas e autocríticas, na medida em que gera lucro e leva à acumulação de capital. Se até mesmo as ideias mais subversivas precisam se manifestar através dos meios disponíveis no mercado, Raul

Seixas não se fez de rogado e, jogando o jogo dos ratos, como ele mesmo dizia, se apropriou da indústria cultural. Ele reconhecia o caráter de mercadoria de suas canções, mas recusava a simples adequação servil às leis do mercado. Raul, enquanto mosca na sopa, adotou uma postura afirmativa diante da cultura da mídia, usando a música comercial, ligeira, como um meio de comunicação rápido e eficiente para transmitir o seu sonho de uma Sociedade Alternativa. Por isso, o garoto que sonhava ser filósofo e escritor tornou-se cantor: “Mas vi que a literatura é uma coisa dificílima de fazer aqui, de comunicar tão rapidamente como a música”, ele afirmou. Se, por um lado, o “retado Monstro SIST” é capaz de cooptar os revolucionários, assimilando suas mensagens sem arriscar a própria hegemonia, por outro as obras da cultura de mídia ainda podem codificar relações de poder e dominação, em oposição às ideologias, instituições e práticas hegemônicas. É nesse paradoxo que a discografia do Maluco Beleza, situada nas fronteiras da arte e da indústria cultural, se insere. A obra de Raul Seixas foi expressão do seu próprio caminho, como ele gostava de dizer. A sua criação poética, mais que arte, era um meio de comunicação: “Porque eu não vejo a música como arte. Música é apenas a vomitada de cada pessoa. Uma cusparada. É a expressão de cada um”, concluiu o compositor.


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