Pensar

Page 1

Teste seus conhecimentos sobre fatos e personagens marcantes da cultura do Estado, como o cronista José Carlos Oliveira. PÁG. 12

Pensar

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

Vitória (ES), sábado, 2 de julho de 2011

O drama de Freud

Livro revela detalhes da perseguição nazista ao criador da psicanálise, em Viena, e o seu exílio na Inglaterra, onde passou os últimos dias de sua vida. PÁGS. 6 E 7


2 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Cultura universal

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

F A L A N D O

D E

M Ú S I C A

CD “Io”, de Sérgio Benevenuto, é um mosaico de sons

INSTRUMENTAL.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Caros leitores,

Livre para experimentar José Roberto Santos Neves jrneves@redegazeta.com.br

JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES .

é editor do Caderno Pensar, novo espaço para a discussão e reflexão cultural que circula aos sábados, mensalmente, em A GAZETA

Pensar na web: No www.agazeta. com.br, você confere entrevista com o psicanalista Ítalo Campos e galeria de fotos dos festivais de música dos anos 60 e 70, além de trechos de livros, músicas e filmes comentados nesta edição.

m dos objetivos do Caderno Pensar é instigar as comunidades artística e acadêmica do Espírito Santo a refletir e opinar sobre diversos campos da cultura universal. Literatura, música, cinema, artes plásticas e teatro estão entre as áreas abordadas pelo suplemento. Nesta edição, ampliamos este leque para a psicanálise e a filosofia. O psicanalistaÍtaloCampossedebruçousobre o livro “A fuga de Freud”, de David Cohen, e narra nas páginas 6 e 7 os últimos anos de vida do criador da psicanálise em seu exílio londrino. Na página 4, Gilbert Chaudanne lembra que os grandes filósofos sempre representaram uma ameaça ao poder. Temos, ainda, um teste para o leitor avaliar seu conhecimento sobre a cultura capixaba; a última parte das memórias de Milson Henriques sobre os festivais dos anos 60 e 70; as estreias de Mara Coradello e Manoela Ferrari na seção de crônicas, poesia de Marcos de Castro, Frank Sinatra segundo Rogério Coimbra e muito mais. Saudações culturais e até breve!

Pensar:

D

ia desses, ouvi de Oswaldo Oleari em seu cinquentenário programa de rádio “Clube da Boa Música”queSérgioBenevenutoestá pelo menos uns 15 anos à frente da maioria. Sábias palavras, meu caro. Compositor, professor e produtor musical, Benevenuto desde sempre pautou sua trajetória musical pela inquietação de buscar novos horizontes. “Io”, seu segundo CD solo, é assim: um mosaicoderitmos,melodiase harmonias livre de amarras e aberto a experimentações de diversas matizes. “Io” quer dizer “eu” em italiano, mas também representa abelaluadeJúpiter,aninfaque encantou Zeus e mais uma série de significados que, como bom pós-tropicalista, o artista faz questão de elencar. Sua proposta com este trabalho é a deretomaralinhaevolutivada música instrumental contemporânea, superada a ditadura estética dos anos 90, que superdimensionou os timbres e batidas em detrimento das harmonias. Fiel a este conceito, produziu um disco elegante, cujo êxito muito se deve à participação de 22 instrumentistas virtuosos, vários deles

CONCEITO. Produtor fez um

disco múltiplo e orgânico

SÉRGIO BENEVENUTO

CD IO BM FACTORY/LEI RUBEM BRAGA. 10 FAIXAS QUANTO: R$ 20, EM MÉDIA WWW.SERGIOBENEVENUTO.COM

seus ex-alunos. Ter músicos do quilate do baixista Ezio Filho, o trompetistaJesséSadoc,osaxofonista

Marcelo Martins, o clarinetista Paulo Sérgio Santos, o percussionistaMarcosSuzanoea flautista Andrea Ernest Dias noscréditosdeumdiscoéprivilégio para poucos. Além de coordenar este timaço, Benevenuto também fez as cordas e as programações. O resultado se traduz em um álbum múltiplo, e essencialmente orgânico, que passeia com igual desenvoltura pela música barroca, rock, bossa nova, soul,worldmusic,samba-jazz e outras vertentes. Antenado com o novo mundo, o autor distribuiu as faixasdoCDparaseremsaboreadas na íntegra ou sortidas. Nesteself-servicedeluxo,vou direto na faixa-título, uma incursão na música antiga embelezada pela flauta em sol de Marcelo Martins; a exótica “Fubica smoke”, com Carlos Bernardo surfando sobre instrumentos de cordas de origem grega, persa e renascentista; e o rock’n’roll “Galileu e eu”, com as participações de Victor Biglione e Carlos Malta. Este último faz um solo antológico de sax barítono; começa nos graves, fraseia, explora as pausas, acentua e terminanasnotasagudas,nomelhor estilo dos guitar heroes. Usando a metáfora futebolística,écomoseMaltaentrassenaárea,driblasseogoleiroe fizesseumgolaço.Nabeirado gramado, Benevenuto – o técnico – aplaude o craque.

EXPEDIENTE – Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Editor de Qualidade: Carlos Henrique Boninsenha; Design gráfico: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Arquivo A GAZETA; Textos: Colaboradores; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória-ES, Cep: 29.053-315; Fax: 3321-8642. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------


Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Pensar 3

N A S P R AT E L E I R A S E N T R E L I N H A S

MARCOS REY

Em “Raiva”, Sergio Bizzio conduz o leitor a uma trama que envolve sexo, rancor e obsessão

LIVRO.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------DIVULGAÇÃO

Tango solitário no escuro

FILME. A obra do escritor

argentino ganhou adaptação para o cinema

Caê Guimarães é

jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

“T

angoéumpensamento triste que se pode dançar”, disse o compositor Enrique Santos Discépolo. Criado nos baixios das marinas e prostíbulos do Rio da Prata, o tango também é jogo de fuga, espelho e sombra, onde dançarinos manipulam possibilidades de evanescer e se condensar sucessivamente. Nele, quem não dançaéumvoyeuraprisionado pela sensualidade. Esta é a cinestesia desesperada de José María, ou simplesmente María, ao longo de

“Raiva” (Record, 224 págs.), do argentino Sergio Bizzio. Ele é pedreiro. Na fila do supermercado conhece a morena Rosa, diarista. Ambos trabalham no mesmo bairro. De temperamento nervoso, mas amável e dedicado, ele passa a encontrá-la todos os dias, em especial aos sábados, quando passam horas fazendo sexo em um hotel barato. Amantes sôfregos, entregam-se sem nada saber da vida um do outro. Como dois estranhos, que trocam olhares em um baile e começam a dançar. Durante a semana se encontram na hora do almoço e no caminho para o ônibus dele, morador da periferia. No trajeto, o casal sempre é provocado pelo porteiro do prédio vizinho à mansão dos Blinder, imensa residência onde trabalha e vive Rosa, e por Israel, brutamontes filho

do síndico. Até o dia em que Maríareagecompropriedade e surra o idiota, que o denuncia ao mestre de obras. Ao ser demitido, tomado por ódio, María o mata. Procurado pela polícia, resolve se refugiar no lugar mais improvável à mão: as alas inabitadas e pouco frequentadas da mansão.

Rosa, a quem ama ainda mais. María torna-se um fantasma, mas no lugar de assombrar a realidade, cria uma realidade que o assombra. Solitário, se embrenhaemumlabirintofugidio,senteciúmes,seacovarda diante da possibilidade de se entregar e cada vez mais se torna uma sombra. Passam-se semanas, meses e anos. María segue escondido,tendocomointerlocutores Rosa, em telefonemas raros e rápidos dados de uma extensão na própria casa, e um solitário rato. Gradualmente, homem e rato se irmanam em condição e atenção, até se tornarem unidos pelo sangue e antítese um do outro. Sergio Bizzio é roteirista, cineasta e escritor. Em “Raiva”, consegue conduzir o leitor no passo cadenciado do fantasma/intruso/conarrador.AindaqueMaríasetorne obsessivo e vingativo, é impossível não torcer por ele. Adaptado para o cinema pelo cineasta Sebastián Cordero,ofilmeganhouoprêmio do júri especializado no Festival de Cinema de Tóquio. A julgarpelareaçãodoscríticos, a película deve, assim como o livro,serumpensamentotriste – mas também tenso e sensual – que se pode dançar.

MEMÓRIAS DE UM GIGOLÔ. Este romance ambientado nos anos 1930 gira em torno de um triângulo amoroso composto por uma prostituta, seu amante letrado e um cafetão. GLOBAL EDITORA. 253 PÁGS. QUANTO: R$ 39, EM MÉDIA

ANAÏS NIN

FOGO – DIÁRIOS NÃO EXPURGADOS 1934/1937. Em busca da libertação e efervescência sexual, Anaïs muda para Nova York, fugindo do marido Hugh Guiler e do amante Henry Miller. Posteriormente voltou para Paris e para ambos. L&PM POCKET. 470 PÁGS. QUANTO: R$ 24, EM MÉDIA

CARLOS NELSON COUTINHO (ORG.)

SERGIO BIZZIO

SOMBRA

A partir daí, passa a viver nas sombras, esgueirando-se entre os andares, assaltando a geladeiraemincursõesnoturnas e dormindo pouco, a cada dia em um aposento. Por frestas e desníveis ele observa de relanceafamíliaBlinder–não à toa uma brincadeira com blindar, ou blindagem, mas também com cego, do inglês blind – composta por personagens rancorosos, mantenedores de aparências, infelizes por opção mais do que sina. E

RAIVA EDITORA RECORD. 224 PÁGS. QUANTO: R$ 39, EM MÉDIA

O LEITOR DE GRAMSCI. Este livro é fundamental para a compreensão da obra deste marxista italiano que ainda tem influência no mundo e no pensamento brasileiro. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. 378 PÁGS. QUANTO: R$ 39,90


4 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

IDEIAS. Gilbert Chaudanne cita filósofos célebres para mostrar que

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

o pensamento livre sempre representou uma ameaça ao poder

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

RENÉ DESCARTES (1596-1650). O filósofo, físico e

matemático francês é considerado o primeiro filósofo moderno, e inspirou várias gerações de pensadores posteriores. É dele a frase “Penso, logo existo”.

ARTHUR RIMBAUD (1854-1891). Expoente do simbolismo

literário do século XIX, o poeta francês criou um método para atingir a transcendência poética através do “desregramento de todos os sentidos.”

ANTONIN ARTAUD (1896-1948). O poeta, ator, escritor e

diretor francês publicou “O teatro e seu duplo”, um dos livros mais influentes do teatro no século XX. Tido como louco, foi internado em vários manicômios.

Defesa dos intelectuais

A

Gilbert Chaudanne é escritor e pintor.

frase infelizmente famosa do marechal Göring, “alto” dignitário da cúpula nazista – “quando ouço falar em cultura, saco meu revólver” –, nunca deixou de ser atual. E se hojenãosesacamaisorevólver(pelo menosporestarazão),sesacaolugar comum, o clichê: o intelectualóide. Quem fala isso é o homem unidimensional(M.Marcuse),em termos brasileiros: o Zé Mané de plantão, aquele que é regido pelo carro, a geladeira, os “homens ocos” de T.S.Eliot. Nesse mundo altamente midiático, o intelectual é aquele que não foi convidado a se sentar à mesa. A inteligência livre é quase um pecado. O autêntico pensamento incomoda porque, mas não sempre, ele é obrigado a quebrar os vidros do consenso geral (“a unanimidade é burra” – Nelson Rodrigues). Às vezes, esse pensamento fecundo é afastado e deixa seu lugar para um

pensamento “prêt-à-porter”, um cravonalapela,aculturaornamental no melhor dos casos e que não tem nada a ver com a cultura. Descartes era otimista: “penso, logo existo”. Não tenho essa certeza, porque acho que estou sendo pensado e não posso dizer que sou eu que penso o que eu penso. Freud explica e deu uma rasteira em Descartes. Mas se não sei quem ou o que pensa em mim, isto não é uma razão para desprezar o pensar. Pensar é algo nobre e trágico. O que se pode criticar é um pensamento puramente cartesiano. A razão (só) não explica o mundo, há um além da razão, que, no seu aspecto patológico, pode ser a loucura, mas que no seu aspecto sadio se traduz na poesia e nas artes em geral. E o intelectual não é um ser meio tétrico que tem uma enciclopédia no lugar do coração. Isso é a caricatura do intelectual. Ainda que, às vezes, ele tenha de manejar

o bisturi para furar certos abcessos sociais ou psicológicos, o verdadeiro intelectual também é – e isso pode surpreender – um belo bailarino. Nietzsche já mostrou isso: o verdadeiro conhecimento dança, eleéleve,eleafastacomseupéleve o pesadume das máquinas pensantes e desejantes, leve porque livre. E essa leveza não é leviandade. É uma leveza profunda que, às vezes, é mal entendida. Ser leve é difícil, ser leviano é fácil: o “guru” de shopping center. UNIVERSIDADES

Nesse contexto, o papel da Escola,emgeral,edasUniversidades,no seu grau mais adiantado, é capital. Nelashárealmenteumesforçopara reconstruiropensamentodiantede um certo laxismo geral. Mas, atenção! Toda instituição fabrica suas toxinas, e uma das toxinas do espírito universitário é um certo automatismo e modismo no pensar.

Mas sua virtude é a de instaurar umaestrutura,ummétodo.Eseháo “discursodométodo”deDescartes, háa“cartadovidente”deRimbaud, completamente antagônicos, mas que são duas metodologias. Tanto Descartes como Rimbaud, porém por caminhos opostos, procuram a objetividade. Mas o pensamentolivreévistocomoperigo:Sócratespensava–foicondenadoabeberveneno.Cristopensava–foicrucificado.Artaudpensava–foiparao manicômio e os eletrochoques. A verdade é nua e crua, é autêntica, e isso desnuda o sujeito, intelectual e espiritualmente, e essa nudez, que é santa (como a de São FranciscodeAssisdiantedoBispo), setornaobscenanoolhardequemé perverso,quevêomalemtudo,evê o mundo pelo buraco da fechadura. "Le voyant n’est pas un voyeur” (O vidente não é um voyeur). A nudez do conhecimento é o privilégio de poucos. Porém é perigosa.


Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Pensar 5

Seção destaca o talento de Marzia Figueira, versos de amor e a relação entre criação literária e maternidade CRÔNICAS E POESIA.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

O que Marzia diria Mara Coradello é escritora. Publicou os livros “O Colecionador de Segundos” e “Armazém dos Afetos”. coradellorama@gmail.com

O

que Marzia pensaria dos protestos dosestudantes?Eelaescreveria o quê dessa Marcha da Liberdade? Gostaria de ver essa Vitória, mais preocupada com a diversidade e com seu meio ambiente, do que a Vitória de outrora? Ficaria feliz de saber que teremos mais espaços de arte? Marzia escreveu tecendo reclamações à patota do Britz Bar na crônica “Com vistas ao senhor prefeito”, mas exigia mais idoneidade do poder público em diversos outros escritos, e isso em tempo de ditadura. Era conservadora em alguns momentos, a imagem da liberdade feministaemoutros.PorqueMarziaeraessencialmentehumana, demorar trinta anos para publicar um livro é uma pista de que Marzianãoqueriaaimortalidade,queriaaquelediaemquehaviaacordado,aqueleinstanteda respiração. Mas posso arriscar: ela preferia mesmo o vento, como podemos ler na poética “A mais bela estação”. ÉqueMarziaoptoupelasuavidade.Eseépossívelaumaescrita nos inspirar para a vida, muito além da (des)pretensão da autoajuda, é o que fizeram comigo, e com muitos, as crônicas de Marzia. Ela escreveu por décadas neste mesmo jornal A GAZETA onde hoje publico esse tratado da curiosidade sobre a dama, porque se há algo de uníssono a respeito da cronista é que era uma daquelas grandes damas, segundo meu amigo Tadeu, perto de quemvocêexclamapalavrõese ao se desculpar ela diz: “imagina, eu não ouvi nada”. Para mim, no entanto, Mar-

zia Figueira foi uma grata surpresa no percurso de leitora. E quem é ela? Eu tampouco sei. O que sei mesmo de Marzia, sempre parecerá menos do que ela sabedemim,devocêedetodos que,porventura,alerem.Oque sei dela é que Marzia é a cronista que me traz mais impressão de estar perto, e de habitarmos não a mesma cidade, mas a mesmaporçãodeincidênciade raios solares. E cabe neste sol muito mais do que apenas luz. Odelicadodavidaéalgoque cabe muito mais na crônica do que na história. E Marzia sabia disso: nesses tempos nos quais você é convidado a dizer o que estápensandonassocialmedia,

Marzia não queria a imortalidade, queria aquele dia em que havia acordado, aquele instante da respiração.

é bom ler como ela refletia. E o melhor: Marzia pensava miudezas e fatos grandiloquentes comomesmopulsoseguro,ora a chegada do homem à Lua, ora a rotina de uma mãe levando seu filho à escola. Marzia me fazperceberqueacrônicapode ser um bate-papo que não teima em alçar o infinito e a eternidade, mas somente alçar o agora, o átimo, o hoje, e assim, dessa forma descompromissada, se inscrever no sempre. É que de solenidades e regras a má literatura está cheia, e o inferno dos que não mais conseguem ler, de tanta chatice obrigatória, também. Viva a fluidez de Marzia, que até hoje, depois de sua partida, nos ensina que o mundo pode(ria) ser menos chato.

ESPAÇO DA POESIA

Livros & filhos Manoela Ferrari é jornalista e escritora capixaba, autora do livro “Entrelinhas”, e mãe de dois filhos. manoela.ferrari@gmail.com

MARCOS DE CASTRO UM POEMA DE AMOR

Ainda que entre concretos cimentos mil emaranhados de intrigas e o sentimento vazio do ente vazio fabricado nas fábricas do asfalto bruto sempre haverá um poema de amor de um poeta sem palavras a olhar para o mundo como quem quer salvá-lo Ainda que estranhamente as pessoas se afastem de si próprias o comboio do tempo atropele nosso tempo um bilhão de ódios se misturem aos olhares secos e a vileza soberana do deus cruel dinheiro que nos submete a desonrosas dívidas há de haver sempre um poema de amor de um poeta em delírio a sonhar com o mundo como se pudesse tê-lo E se entre nós pintar um sentimento concreto de emaranhar estrelas uma coisa importante como colher flores e rir alto e feliz sonharemos juntos para salvar o mundo balbuciaremos palavras febris aos ouvidos mútuos gozaremos em fogo vendo o azul do céu como num poema de amor. --------------------------------

Marcos de Castro é ator e poeta. marcosdecastro.vitoria@gmail.com

E

screver um livro e ter umfilho:asensaçãoéa mesma? A pergunta me foi dirigida durante uma entrevista ao vivo, na programação de uma rádio carioca, onde eu figurava como convidada especial, antes do lançamento do Entrelinhas. Marinheira de primeira viagem (na literatura, não na maternidade), fui pega de surpresa com a questão. A princípio, torci o nariz. Como comparar uma obra da Criação divina com uma obra de criação humana? Consciente de que não poderia perder a linha no ar, rapidamente alinhavei as sensações. A reflexão instantânea levou-me a conexões curiosas, às quais divido com vocês nas linhas abaixo. Imagem e ação a serviço da imaginação, tornando férteis solos inférteis. Tanto a literatura quanto a maternidade transitam pelo universo onírico. A materialização de um projeto abstrato é um dos pontos de convergência crucial. Apesar dos períodos de gestação serem diferentes, as duas criações incluem um processo de maturação gradual. O espaço literário retira as ideias de um patamar fictício, encadeando-as num nível racional, com o objetivo de torná-las não apenas inteligíveis, como também tangíveis no plano físico. Portanto, gera-se uma abstração. A ideia é fecundada pelas palavras.

Do texto montado nasce o livro. Há, porém, no processo de escrita, um momento encantatório que precede o texto. É como se o escritor escutasse os murmúrios da existência, penetrando no esconderijo subterrâneo da alma. As palavras não nos levam de volta a um mundo referencial, mas revelam uma força impessoal, uma consciência sem sujeito, uma existência sem ser. Na exterioridade da linguagem é possível circular por ver-

É como se o escritor escutasse os murmúrios da existência, penetrando no esconderijo subterrâneo da alma. As palavras não nos levam de volta a um mundo referencial, mas revelam uma força impessoal, uma consciência sem sujeito, uma existência sem ser. dades múltiplas. O autor dá origem às linhas, mas é o leitor quem preencherá as entrelinhas. O nascimento de um filho também nos conduz a um exercício transitório de circulação entre o ideal, o real e o possível. Assim como no horizonte do livro, sabe-se o ponto de partida. Nunca o de chegada. Livros e filhos, apesar de carregarem para sempre a nossa autoria, adquirem vida própria ao nascer. É preciso ter peito para lançá-los ao mundo. Literalmente.


8 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

“Vênus negra” provoca incômodo ao mostrar a história real de jovem africana explorada como aberração humana no século XIX CINEMA.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------DIVULGAÇÃO

REVELAÇÃO. A atriz cubana

Yahima Torres, descoberta pelo cineasta franco-tunisiano Abdellatif Kechiche nas ruas de Paris, incorpora o horror vivido pela personagem

bais. Após sofrer repressões judiciais na capital inglesa, HendrickvendeSaartjieaumdomadordeursoseelasegueparaParis, onde se acrescentam os jogos eróticos às apresentações. VISÃO EUROCÊNTRICA

Saartjie, a deusa despedaçada Andréia Lima é jornalista, especialista em Jornalismo Cultural e aluna especial do Mestrado em Letras (Ufes). deia_limas@yahoo.com.br

E

m um voo rítmico e paralelo aos movimentos de Saartjie, a câmera flutua em suas nuances: são gestos precisos e delicados, o que atenua seu voluptuoso corpo adornado com colares e uma veste justa e vermelha. Em cena, observando a representação, está um público curioso, mas que

aos poucos vai se tornando sádico. Este é um dos números realizados no espetáculo “Vênus Hotentote”, um freak show que circulou entre 1810 e 1815 nas cidades de Londres e Paris e que apresentava a jovem africana Saartjie Baartman como uma aberração humana. Trata-se de uma história real que chegou aos cinemas na desconcertante película “Vênus negra” (2010), do cineasta franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, e que estreou no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês, exibido em junho no Cine Jardins (o filme segue em cartaz no país, sem previsão de estreia no Estado).

O enredo tem início em Paris,1815.Lá,oMuseudeHistória Naturaléopalcodoanatomista GeorgesCuvier(FrançoisMarthouret), que mostra à comunidade científica os dados obtidos a partir do estudo do corpo de Saartjie Baartman (Yahima Torres). Dentre suas “descobertas” ele destaca a semelhançaentreajovemeosbabuínos– espécie africana de macacos. Para isso, ele faz medições de sua cabeça, aponta as nádegas avantajadas, além da genitália peculiar, característica do grupo étnico dos hotentotes. O corpo de Saartjieé exposto como o de um animal. A história retrocede em cinco anos para mostrar a passa-

Após causar furor no Festival de Veneza em 2010, “Vênus negra” chegou ao Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês, exibido em junho no Cine Jardins (o filme segue em cartaz no país, sem previsão de estreia no Estado).

gem de Saartjie pela Europa. Foi nessa época que ela deixou a África do Sul, onde era escrava de Hendrick Caezar (Andre Jacobs), e tornou-se uma atração de circo em Londres, sendo exibida como uma fera domada, fingindo ataques animalescos à plateia e executando danças tri-

Com temática pungente, “Vênus negra” põe em discussão a visão eurocêntrica de mundo, a questão ética na comunidade científica e a indústria do espetáculo bizarro. A direção de arte é rigorosa, com destaque para a fotografia e o figurino nas cenas de dança. Mas Vênus (o termo remete à Deusa do amor, na mitologia romana) não faria sentido sem a atuação de Yahima Torres. A atriz cubana, descobertapelodiretornasruasde Paris, incorpora com vigor e delicadezaadeusahotentote.A expressão apática que ela emana ao longo de todo o filme denuncia de forma sutil o horror vivido pela personagem. “Vênus negra” causou furor no Festival de Veneza de 2010. No Brasil, o filme também não passou despercebido pela crítica. O tema provocou incômodo e mal-estar no espectador, e isso foiinstigadoaoextremopelodiretor Abdellatif Kechiche, que ao repetir de forma intensa as cenasdeexploraçãoeprolongar a película a chocantes 159 minutos, parecia bradar: qual o limite entre a curiosidade humana e a degradação de um ser?


Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Pensar 9

MÚSICA. Rogério Coimbra comenta o DVD que reúne três shows de

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Frank Sinatra produzidos para a TV norte-americana nos anos 60

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Palmas para a última voz

E

m plena segunda década do século XXI fica um pouco difícil imaginar o surgimento de cantores viris num cenário pop, onde a figura de Frank Sinatra sobressaía em qualquer contexto. Esse tempo já passou e o papel realçado de vocalista certamente ficou a cargodasmulheres.Avozmasculina encaixa-se mais num conceito de grupo, enquanto a femininaconsegueserrelevante no mundo pop de hoje. O lançamento do DVD “Frank Sinatra - A Man and His Music”, reunindo três shows produzidosparaaTVamericana nos anos 60, é mais que oportuno: os que pertencem a gerações anteriores poderão teroprazerderelembrá-lo,eos mais jovens (dotados de curiosidade) poderão travar conhecimento com Sinatra. Há participações memoráveis, como as de Ella Fitzgerald e, um pouco mais discreta, de sua filha Nancy Sinatra, além da nobre e oportuna presença de Tom Jobim, alavancando de uma vez por todas no exterior a Bossa Nova, que propiciou a real consagração da música brasileira. THE VOICE

PAUL SLAUGHTER/DIVULGAÇÃO

Rogério Coimbra é produtor cultural, pesquisador de história da música e autor do blog www.musicanasalturas. blogspot.com

Frank Sinatra (1915-1998) foi a última voz. Tony Bennett (1926) ainda canta, Cauby Peixoto (1931) ainda canta, Andy Williams (1927) não deixa de cantar,emesmoStevieWonder (1950), Andrea Bocelli (1958), Emílio Santiago (1946), são daqueles cantores românticos que ainda resistem ao tempo e aos ventos. Frank Sinatra foi o mais emblemático, o mais re-

PERFORMANCES. Nos programas selecionados para o vídeo

“Frank Sinatra - A Man and His Music”, o cantor que fascinou o século XX recebe convidados especiais como Tom Jobim, Ella Fitzgerald e a filha Nancy Sinatra

partners” é um dos momentos mais sublimes e perfeitos da carreira de The Man. presentativo, e não à toa conhecido como The Voice. Dentro da postura desses cantores à moda antiga, a performancedeSinatranesseDVD provocaumverdadeiroconcertocamerísticonopuroritmodo swing, e também da binária bossa nova, pois o cantor tem por trás de si um poderoso arsenal instrumental, com arranjos elaboradíssimos, alinhavados pelos mestres Nelson Riddle e Gordon Jenkins. Não é para qualquer um não, absolutamente. É técnica, domínio, virtuosismo, pura verve. O repertório é expressivo, uma antologia dos mais importantes compositores do século XX: Cole Porter, George Gershwin, Sammy Cahn, Ri-

chard Rodgers, Irving Berlin, Stephen Sondheim, entre tantos, e mais Antônio Carlos Jobim, destacando-se as canções “I’ve got you under my skin”, “Come fly with me”, “Witchcraft”, “But beatiful”, “Just one of those things”, “Angel eyes”, “Bodyandsoul”,“Howhighthe moon”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema”, “Insensatez” e, curiosamente, “Love is a many-splendored thing” e “Mona Lisa”. Essas duas últimas foram à época submetidas a Sinatra para que as lançasse e, tendo-as recusado, tornaram-se então dois dos maiores sucessos de Nat King Cole. Para o médico Nelson Bittencourt, especialistaemSinatra,aperformancede Jobim e Sinatra em “Change

FRANK SINATRA

POPSTAR

Esse período entre 1962 e 1967 é considerado o auge da carreira de um super popstar que sempre esteve no topo dos mais vendidos, atuou em inúmeros filmes, ganhou um Oscar, tornou-se empresário bem-sucedido com o selo Reprise e contribuiu para que a música brasileira se espalhasse pelo mundo. Tom Jobim foi o único compositor do mundo que teve dois discos gravados por Sinatra com composições exclusivamente suas. Só nos resta agradecer a The Voice e, por que não, ter o imenso prazer de assistir ao delicioso DVD “A Man And His Music” e entender que ele foi, de fato, a última voz.

A MAN AND HIS MUSIC TRILOGY UNIVERSAL. 2011, 157 MINUTOS QUANTO: R$ 44,90, EM MÉDIA


10 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

Em seu primeiro CD solo, “Clube de amigos”, o gaúcho Mirano Schuler explora as infinitas possibilidades do instrumento MÚSICA.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Acordeom sem fronteiras Mágda Carvalho é jornalista há 26 anos, ex-Caderno Dois e, na maior parte do tempo, militou na seara cultural. Atualmente é assessora de imprensa. mmcarvalhof@ gmail.com

O disco foi feito para reproduzir, no estúdio, o clima amistoso que rola quando bons amigos se unem para fazer música.

F

oi nos bons tempos da Rádio Nacional, quando a música maviosa de Chiquinho do Acordeom encantava o público de norte a sul – incluindo ouvidos apurados como os do maestro Radamés Gnattali –, que o músico Mirano Schuler, ainda guri, se encantou com o instrumento. E acabou aluno da mesma professora de Chiquinho. Aprender a tocá-lo não é sopa. Exige a coordenação de todos os quadrantes do cérebro. Requer persistência. E por isso muita gente se acomoda no lero-lero do forró ou do breganejo. Um desperdício. Quem já ouviu o Bolero de Ravel ou as composições de Tchaikovsky para o instrumento sabe do que estamos falando. Também conhecido como acordeão (em português europeu) ou acordeon (em francês), e também chamado de sanfona ou ainda de gaita, o instrumento já foi febre no Brasil e no mundo. Mas ficou um pouco esquecido com a popularização da receita minimal (e quase ditatorial) de baixo-bateria-guitarra do rock’n’roll. Mas esse tempo também passou. E as novas gerações estão regenerando o acordeom. Isso se deve, em parte, ao primeiro contato embalado pelo retumbante sucesso dos forrós. Mas Mirano Schuler não toca forró. “Simplesmente não sei”, resume ele. “Quando me enchem muito o saco arrisco-me a tocar ‘Asa Branca’. Mas tem sempre um

DIVULGAÇÃO

MIRANO SCHULER CD CLUBE DE AMIGOS LANÇAMENTO: DIA 15/07, ÀS 20 HORAS ONDE: WUNDERBAR KAFFEE (AVENIDA RIO BRANCO, 1.395, ESQUINA COM A CHAPOT PRESVOT, PRAIA DO CANTO, TEL. 3227-4331. E-MAIL: WUNDERBARKAFFEE.COM).

SONS. O acordeonista radicado no Estado recebeu

convidados para celebrar o prazer da criação

abusadinho que grita: não toca isso aí não. Toca forró!”. Mirano já perdeu a paciência com esse tipo de público. “Também não toco só “Funiculi Funiculá”, acrescenta, espanando outro estigma. “Mas gosto, sim, de música italiana, francesa, clássica, bossa

nova. Gosto de tocar samba, ópera. E acho Frank Sinatra um intérprete genial”, assume, para acrescentar em seguida: “Tudo isso fica ótimo no acordeom. E eu só toco o que eu componho e o que eu gosto. Detesto rótulos. Detesto moda”. PARCEIROS

Com sua persistência, teimosia e garra, Mirano atrai parceiros inusitados como é o caso da banda Solana, com

quem dividiu o palco do Teatro da Ufes na condição de convidado especial do show “Veneza”. Os rapazes se tornaram seus fãs. “A música de Mirano Schuler é um baseado na plateia”, resumiu o irreverente cantor e compositor Juliano Gauche, quarenta anos mais jovem do que o acordeonista. Quem ainda não ouviu Mirano ao vivo poderá agora conferir um pouco do seu talento com o lançamento de seu primeiro CD, intitulado “Clube de Amigos”. Produzido com o apoio da Lei Rubem Braga, o disco, despretensioso, foi feito para reproduzir, no estúdio, o clima amistoso que rola quando bons amigos e bons músicos se unem para fazer música. Cada um traz seu tempero adicional. É o caso da faixa “Na Carne do Poema”, música de Mirano e letra de Jace Theodoro, que conta com deliciosos solos de guitarra de Leo (“Condor”) Schuler. Mas o acordeom se destaca, mesmo, em faixas como “Pigui”, composta para a trilha sonora do filme “Flora”, de Marcel Cordeiro, estrelado por Selton Mello. E também em “Mara”, que fez parte da trilha do segundo filme de Marcel Cordeiro, “A Morte da Mulata”. “A música de Mirano transforma o ambiente”, elogiou certa vez o percussionista Melão. Que tal participar dessa “viagem”?


Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Pensar 11

MEMÓRIA. Milson Henriques conta os bastidores dos festivais da

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

canção que agitaram a juventude de Vitória nos anos de repressão

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

A música venceu a censura ARQUIVO MILSON HENRIQUES

Milson Henriques é cartunista, dramaturgo e ator, não tem e-mail e não usa celular.

Apesar da ditadura, houve fatos interessantes. O ginásio foi tomado pelos hippies, que sentaram no chão. Betty Faria (na época em alta na novela das oito) chegou ao aeroporto (??) vestindoblusãodoExército,no que foi chamada a atenção por ummilico,exigindoqueatirasse. Na mesma hora ela obedeceu, para desespero do milico, já que não tinha nada por baixo da farda. A mesma Betty reuniu-se com a galera, digamos, boêmia, da cidade e atrasou o início do festival, porque encontrava-se na então deserta e escura praia de Camburi, sentindo a fumaça passar, e não era a do Porto de Tubarão...

E

m 1968, eu escrevia uma página de humor em jornal com leitores assíduos, principalmente “os intelectual” da censura militar. Era a “Jornaleco”, e através dela “bolei” o Primeiro Festival Capixaba de Música, que teve mais de 300 inscritos.Mantinhatambémum programanaTVVitória,aúnica emissora local na época, retransmissora da TV Tupi. As 30 músicas semifinalistas seriam mostradas ao público e ao júri, 10emcadaprograma.Comosucesso do primeiro grupo, o diretordaTVperguntou“quantoeu estava levando naquilo”. Como nuncapenseinoladocomercial, disse que nada, no que ele não acreditou e proibiu, a não ser que eu arranjasse patrocínio. Fiqueidemãosatadas,atéque recebi proposta do sempre inteligente Marien Calixte, diretor de Turismo da Prefeitura de Vitória,visualizandoosucessoque toda cidade comentava: colocar ofestivalcomoatraçãoprincipal dos festejos do Dia da Cidade, emsetembro.Seriaumapromoção de Milson Henriques, com patrocínio do Serviço de Turismo e uma dimensão maior, contratando orquestra, Maurício de Oliveira fazendo arranjos das classificadasna“finalíssima”,ea confecçãodostroféusqueeuhavia desenhado: “Canário de Ouro, Prata e Bronze”. No dia do aniversário de Vitória, com total cobertura da imprensa, o Ginásio do Saldanha da Gama lotou, com a presençadoprefeitoedeoutrasautoridades entregando prêmios, jurados daqui e do Rio (entre eles Ricardo Cravo Albin, diretor do Museu da Imagem e do

TEATRO CARLOS GOMES

RETRATOS. Marco Antônio Tironi e Chico Lessa comemoram a vitória de “Meio mastro”, em 1968; no alto, torcida organizada; o cantor Aprígio Lyrio e o grupo Os Mamíferos, vencedores do festival de 1970, apresentado por Milson Henriques e Betty Faria (abaixo)

Som; o maestro Lindolpho Gaya e a cantora folclorista Stelinha Egg) e a presença maciça das torcidas organizadas. Em primeiro lugar ficou “Meio mastro”, de Chico Lessa e Marco Antonio Tironi; em segundo, “Saudade”, de Chico LessaeSérgioEgito;emterceiro, “Quem vem pra ficar”, de Tião Oliveira e Heraldo Brasil; O prêmio de melhor melodia foi para “Saudade”; melhor letra, “Prece de um nordestino”, de Ivan Reis, e melhor intérprete Cristina Esteves. O segundo festival, em 1969, noGinásiodoSesc,teveentreos jurados a presença do grande Hermínio Bello de Carvalho. A primeira colocada foi “Roda do

sol”, de Chico Lessa e José Antonio Castelo; a segunda, “Reta marcada”,deMauraFragaeMarilda Alves; e a terceira, “Tempo de chegar”, de Marco Antonio Tironi e Antonio Aquino. Na terceira edição, em 1970, predominou a música pop. O festivaldeixoudeserapenascapixaba e entre os concorrentes de fora havia Martinho da Vila, Rossini Pinto e Carlos Imperial. No júri, Luis Carlos Maciel, Sidney Miller, Capinan, Betty Faria como presidente. A primeira colocada foi “Agite antes de usar”, de Aprígio Lyrio, Mário Ruy e Sérgio Régis; a segunda, “Olha lá você”, de Chico Lessa e Marcio Borges; a terceira, “De pé na estrada”, de Zé da Bahia.

Em 1971, com os festivais já desgastados,realizamosonossoúltimo,destaveznoTeatroCarlos Gomes. O primeiro lugar ficou com “Tempo que passa”, de Orlando José Ferreira Martins, capixabadeMimosodoSulquevivia em Niterói. Em segundo, “Gasolina azul”, de Zé da Bahia; emterceiro,“Simplesmente”,de Chico Lessa e Atílio Gomes, atual Nena, o multitudo. O prêmio de melhor intérprete ficou com a defensora da segunda colocada, uma lourinha chamada Ned Helena, irmã do cantor Nelson Ned, que além de alta e bonita, possuía bela voz. Assim foram os Festivais de MúsicapromovidospelaPrefeituraepormimemplenaditadura. Inúmeras músicas foram proibidas, algumas frases como “vejo a vida num cigarro” foram cortadas. Curioso notar que dos compositores,intérpretesemúsicos citados aqui, apenas sete continuam. A maioria desapareceu na estrada da música. Valores nós temos de sobra. O que falta? Incentivo da imprensa? Das autoridades? Do público? Seráquevamoscontinuartendo de ouvir aquela frase maldita (verdadeira?) que “artista capixabaparasedesenvolvertemde sair do Espírito Santo”?


12 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

Você conhece os personagens que escreveram a história das artes no Estado? Confira o questionário elaborado por Pensar ESPECIAL.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Teste seus conhecimentos sobre a cultura capixaba Quem é o autor da frase 1 “Viver é ver Vitória”?

Quem é o compositor da música “Correnteza”, que fez sucesso 2 nas rádios locais nos anos 80?

Qual notável cronista 6 capixaba se definia como o “mais ecumênico dos ateus”?

Qual a canção vencedora do 1º 7 Festival Capixaba de Música Popular Brasileira, em 1968?

a) ( )

Meio mastro, de Chico Lessa e Tina Tironi

b) ( )

Saudade, Chico Lessa e Sérgio Egito

c) ( ) Quem vem pra ficar, Tião de Oliveira e Heraldo Brasil

a) ( ) João

Pimenta

a) ( ) Cacau Monjardim

b) ( ) Guto Neves

Qual o nome do diretor do 3 curta “Areia”, exibido na Semana Internacional da Crítica

do Festival de Cannes em 2008?

Qual o nome do dramaturgo 8 capixaba que se exilou na União Soviética durante a

c) ( ) Lula D’Vitória

ditadura militar?

Artista plástico nascido em 5 Colatina considerado uma das expressões nacionais do

a) ( ) Rubem Braga

concretismo:

a) ( ) Marcel Cordeiro b) ( ) Vitor Graize c) ( ) Caetano Gotardo

4

b) ( ) Marien Calixte

Em qual município do Espírito Santo acontece tradicionalmente o Alardo, uma das mais representativas manifestações do folclore capixaba?

a) ( ) Paulo de Paula b) ( ) Toninho Neves c) ( ) Paulo Torre Quem foi o filho de italianos 9 nascido em Alfredo Chaves que entrou para a história como

um dos pioneiros do cinema nacional?

a) ( ) Ludovico Persici b) ( ) Luiz Gonzáles Batan c) ( ) Ramon Alvarado

a) ( ) Homero Massena b) ( ) José Carlos Oliveira

Quem é o autor da obra “O Estilingue”, considerada 10 o marco inicial da arte

contemporânea no Estado?

a) ( ) Attilio Colnago b) ( ) Hilal Sami Hilal c) ( ) Nenna b) ( ) Dionísio Del Santo 1) Marien Calixte (b) 2) Guto Neves (b) 3) Caetano Gotardo (c) 4) Conceição da Barra (a) 5) Dionísio Del Santo (b) 6) José Carlos Oliveira (b) 7) Meio mastro (a) 8) Toninho Neves (b) 9) Ludovico Persici (a) 10) Nenna (c)

c) ( ) Carmélia M. de Souza

c) ( ) Levino Fanzeres

c) ( ) Fernando Tatagiba

RESPOSTAS

a) ( ) Conceição da Barra b) ( ) São Mateus c) ( ) Linhares


6 Pensar

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - jrneves@redegazeta.com.br

A GAZETA Vitória (ES), sábado, 02 de julho de 2011

Pensar 7

PESQUISA. Livro percorre a trajetória de Sigmund Freud e destaca seu exílio na Inglaterra, fugindo dos nazistas, onde viveu seus derradeiros dias

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------DIVULGAÇÃO

Anna e diante de sua afirmação ao ser libertada – “Não seria melhor que todos nós nos matássemos ?”– Freud iniciou as negociações para sua ida para a Inglaterra. Muita burocracia e muito dinheiro eram exigidos dos judeus para deixar a Áustria. Em Viena, uma onda de mais de 500 suicídios entre os judeus ocorreu desde a invasão das tropas nazistas. A VIDA EM LONDRES

TEMPORADA. Acima, Sigmund Freud caminha em Londres em 1938,

onde foi recebido como celebridade pela imprensa e saudado pelas universidades após sofrer perseguição dos nazistas em Viena; à esquerda, o psicanalista em foto de 1939, meses antes de sua morte

Os últimos passos do pai da psicanálise Ítalo Campos é psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitoria e membro da Academia Espírito-Santense de Letras. ifcampos@hotmail.com

F

reud recusou veementemente várias tentativas de publicação de sua biografia. Ele disse ao seu sobrinho Edward Bernays em 1925 que “o que priva as autobiografias de valor é a teia de mentiras”. Mais tarde afirmou ainda: “Todo aquele que escreve uma biografia está comprometido com

mentiras, ocultações, hipocrisia, lisonja e até com o encobrimento da própria falta de entendimento,poisaverdadebiográfica nãoexiste,e,seexistisse,nãopoderíamosusá-la”.Pedidonegado até ao seu amigo, o escritor ArnaldZweig,em1936,fazendouso de seu humor fino, citando Hamlet:“Quemhaveriadeesca-

pardeumasurrasetodosfossem tratados como merecem?” Vários documentos de Freud estão lacrados e somente poderão ser conhecidos nos anos de 2020, 2050 e 2057. Supõe-se que se trata de documentos relacionados a atendimento de pacientes, anotações financeiras, correspondência íntima e de con-

MOMENTOS. Ao lado, Freud e Martha Bernays em 1885, um ano

antes do casamento; acima, imagem com data não identificada

teúdo político. No entanto, David Cohen, psicólogo, jornalista e cineasta, empreendeu um trabalho de pesquisa extenso, descobrindo novas fontes documentais, entrevistascomfamiliareseoutros pesquisadores. Assim produziu um livro repleto de informações, contendo detalhes pouco conhecidos e curiosidades da família, da política e da época freudiana. Com uma narrativa em zigue-zague e uma profusão de detalhes, torna a leitura mais desafiadora ao leitor comum. Mesmo o especialista na área pode se perder neste emaranhando de informações, todas muito curiosas. Como o autor não segue a linha do tempo, o leitor terá que voltar constantemente às páginas anteriores para compor, com mais nitidez, o mosaico da narrativa.

Em Viena, clima de terror

A teoria freudiana é uma das mais importantes pedras fundamentais de um edifício a ser erguido pelas futuras gerações, morada de uma humanidade mais livre e mais sábia”

Thomas Mann, escritor alemão, considerado um dos maiores romancistas do século XX

DESVENDANDO O MITO matriculam na escola quando ele tinha 5 anos, antecipando um ano para a idade regular da época. Em 1873, com 17 anos, é aprovado brilhantemente no curso de medicina da Universidade de Viena. Um curso de filosofia era obrigatório para os estudantes de medicina; Freud teve a sorte de fazê-lo com o filósofo Franz Bretano (1838-1917). Ascender à classe média e ser respeitado social e profissionalmente era o sonho de todo judeu menos abastado.

ANTISSEMITISMO - O título do livro em questão sugere a fuga de Freud de Viena. Não é. Os primeiros capítulos são dedicados a revelar as fontes consultadas pelo pesquisador e a longa história familiar e seus segredos, reportando a 1860, ano em que, dentre outros acontecimentos, Freud, com apenas 4 anos, presencia uma manifestação antissemita dirigida ao seu pai: um senhor derruba propositadamente o seu chapéu, símbolo judaico, pronunciando impropérios contra os judeus. MEDICINA - Recém-residentes em Viena, vindos de Freiberg, na Morávia, atualmente República Tcheca, os pais de Freud o

EM 1926. Com a mãe, Amalia,

no apartamento dela em Viena

BOLSA DE ESTUDOS - Em 1885, ganha bolsa para estudar em Paris com o famoso médico psiquiatra Jean-Martin Charcot. Esta experiência profissional foi fundamental para

que Freud iniciasse seu percurso próprio e solitário de invenção da psicanálise. Retornando a Viena, vai trabalhar com os Drs. Joseph Breuer e Wilhelm Fliess, médicos judeus já bastante conhecidos. CASAMENTO - Em 1886, Freud casa-se com a judia Martha Bernays, aparentada de rabinos e intelectuais famosos, para desgosto da mãe dela, que achava Freud e sua família muito pobres. Martha cuidava da lide doméstica e dos seis filhos e se esmerava para que o marido tivesse condições para atender seus pacientes e escrever. Ele escrevia até tarde da noite; ao seu lado havia um charuto sempre aceso e seu cachorro.

GRAVAÇÃO. O psicanalista concede entrevista

à BBC de Londres em 7 de dezembro de 1938

TEORIA PSICANALÍTICA - Sua dedicação à criação da teoria psicanalítica poderia parecer para alguns um afastamento da realidade político-social do seu país. Mas não. Especialmente nos últimos dez anos de sua vida, vários textos refletem, em análise profunda, o desvendamento das forças pulsionais que habitam o sujeito, o desvelamento das forças envolvidas no grupo, na massa, e a influência dessas sobre o indivíduo. Nesta perspectiva escreveu “Psicologia de grupo e análise do eu”(1921); “O futuro de uma ilusão”(1927); “O mal-estar na civilização”(1920); e, mais no final da vida, “Moisés e o monoteísmo”(1938).

“A

fuga de Freud” revela que a vida do criador da psicanálise não foi exatamente um mar de rosas. Ao contrário, como ele mesmo dizia: “Só os estados de conflito e turbulência podem aprofundar o nosso conhecimento”. Talvez sua origem judaica o tenha ajudado nesta posição masoquista, impulsionando-o a atravessar estoicamente os 16 anos de câncer e a se submeter a 33 cirurgias sem deixar de trabalhar tanto quanto a aprofundar suas pesquisas clínicas, reformulando-as a cada nova descoberta. A escolha de seu nome para receber o maior prêmio literário da Alemanha, em 1929, o prêmio Goethe, foi um alento. Mas a outorga desse prêmio denuncia a recusa de reconhecê-lo como cientista, já que para muitos alemães a psicanálise era uma ciência de judeus. A turbulência aumentava mais e mais com o avanço dos nazistas, que queimaram

suas obras em 1933 e 1938. Em 1936, o Ministério da Culturainterveionoinstitutopsicanalítico para moldá-lo a uma “nova psicoterapia alemã” com expurgo das obras de Freud. Alguns nazistas acreditavam mesmo que poderiam se utilizar das pesquisas de Freud para seus propósitos; assim, seus pilotos, após os ataques aéreos sobre Londres, eram atendidos por profissionais psicólogos ou psiquiatras. O próprio Hitler, que tinha participado da Primeira Guerra, fez tratamento psiquiátrico e valorizava o tratamento psicoterápico. Em março de 1937, a Gestapo invade a casa de Freud na Rua Berggasse, 19 (hoje o museu Freud, em Viena) e leva detida Anna Freud, a filha preferida e herdeiraprofissional.Seuapartamento é revirado e saqueado, tendo-lhe sido roubados objetos de valor e de arte. O clima era de terror. Freud até então pareciaresistiràideiadesairda suacidade,mascomaprisãode

Os últimos cinco dos 15 capítulosdolivrosãodedicadosàvida de Freud em Londres. Sua chegadaaParisnodia4dejunho de 1938, onde permaneceu alguns poucos dias, foi calorosamente acolhida com a presença de amigos como Marie Bonaparte, que tanto o ajudou nesta mudança,ErnestJones,William Bullitt e outros. Neste mesmo dia, o “New York Times” informava que a editora, os bens e o dinheiro de Freud depositado em Viena foram confiscados. Mesmo assim esse foi um dia feliz para Freud. Podemos vê-lo emfotosefilmesdaocasião.Em Londres, foi recebido como celebridade. Toda a imprensa divulgou sua chegada. A universidade o reverenciou. Neste pouco tempo, Freud concluiu seu célebre livro “Moisés e o monoteísmo”, escrito e reescrito ao longo de 37 anos. Escreveu ainda “Esboço de psicanálise”. Em 23 de setembro de 1939, morreu em sua casa, em Hampstead-Londres, depois de se despedir de toda sua família.

DAVID COHEN

A FUGA DE FREUD TRADUÇÃO: CLÓVIS MARQUES. EDITORA RECORD. 320 PÁGINAS QUANTO: R$ 47,90, EM MÉDIA


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.