Penar Completo0203

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Entrelinhas

AUTORA NINA SANKOVITCH MOSTRA COMO OS LIVROS A AJUDARAM A SUPERAR A DOR DA PERDA.

A EXPRESSÃO LIVRE DE UM VISIONÁRIO Especialista conta como Arthur Bispo do Rosário enfrentou a opressão do sistema psiquiátrico.

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Filme

A MÚSICA SEGUNDO TOM JOBIM TEM HARMONIA, BELEZA E FALHAS.

Páginas 10 e 11

Página 5

Pensar Memória

BIOGRAFIA E COLETÂNEA LEMBRAM A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE MÁRIO GURGEL.

VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

www.agazeta.com.br

Apocalipse poético PREVISÕES SOBRE O FIM DO MUNDO EM 2012 INSPIRAM CRIAÇÕES DE TRÊS POETAS Páginas 6 e 7

Página 8

Ficção

CONTO INÉDITO DE ISABEL VASCONCELLOS DESCREVE MULHER ENTRE A RAZÃO E A EMOÇÃO. Página 12

Pôster do filme “2012”, de Roland Emmerich: a destruição do planeta é retratada com frequência pelo cinema norte-americano


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

quem pensa Maria Amélia Dalvi é professora da Ufes, mestre em Letras e doutora em Educação. mariaameliadalvi@gmail.com Lúcia Caus é diretora do Vitória Cine Vídeo. luciacaus@gmail.com

André Andrès é crítico de vinhos da Revista.AG e gosta de bossa nova. andreandres@redegazeta.com.br Erlon José Paschoal é gestor cultural, diretor de teatro, dramaturgo e tradutor. erlonpaschoal@secult.es.gov.br Marcos Tavares éautorde“GEMAGEM”(poemas)ede“NoEscuro, Armados”(contos). mmtt3003@yahoo.com.br Waldo Motta é poeta, ator, numerólogo, curador espiritual. Blog: http://www.waldomotta.blogspot.com/

Tatiana Brioschi é poeta, contista e cronista. tatianabrioschi@gmail.com

Antônio de Pádua Gurgel éjornalistaeorganizadordaColeção“Grandes NomesdoEspíritoSanto”. apaduagurgel@terra.com.br Nayara Lima é escritora e graduanda em Psicologia pela Ufes. www.nayaralima-versoeprosa.blogspot.com Mária Santos Neves é redatora publicitária e escreve no blog Todos os livros do mundo. http://todolivro.blogspot.com Roberto Passos do Amaral Pereira émédico-pediatra.EscrevenositeRecantodas Letras. http://dosesdeprosaseversos.blogspot.com Renata Bomfim é escritora, mestre e doutoranda em Letras pela Ufes. www.letraefel.com Isabel Vasconcellos é escritora com 9 livros publicados. www.isabelvasconcellos.com.br

Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam.

marque na agenda prateleira Campus Ufes terá I Jornada de Literatura e Educação O encontro, que reunirá conferências, debates e palestras, será nos dias 23 e 24 de abril. As inscrições para o Fórum de Pesquisas podem ser feitas até 10 de março. Já os ouvintes podem se inscrever até 10 de abril. Informações: http://leituraliteraturaemateriaisdidaticos.blogspot.com/.

Eu Sou o Samba Músicos locais e homenagem a Pery na TVE

O “Eu Sou o Samba” deste sábado, às 16h30, exibe uma retrospectiva de músicos capixabas que passaram pelo programa, além de uma homenagem ao cantor Pery Ribeiro, que morreu no último dia 24. Reprises no domingo (13h30) e na terça (22h).

12

de março

Aula com Sérgio Nazar David

O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ensaísta, autor de divers os livros, fará a aula inaug ural do semestre letivo da Pós-Graduação em Letras da Ufes, com o tema “Intimidade e política na correspondência familia r de Garrett”. Informações: (27 ) 4009-2515.

31

de março

Exposição de livros raros

Até o próximo dia 31, a Biblioteca Pública Estadual abriga a exposição “Divisão de Coleções Especiais: Acervo do setor José Teixeira de Oliveira”, com livros raros doados pela família do historiador. Visitação de segunda a sexta-feira, das 09 às 19h.

História Noturna – Decifrando o Sabá Carlo Ginzburg O autor relaciona o ritual do sabá – encontro noturno em que mulheres e homens acusados de feitiçaria celebravam banquetes, orgias e profanações diante da presença do diabo – com um antigo estrato de mitos e processos de exclusão social que envolve vivos e mortos, o visível e o invisível. 480 páginas. Companhia das Letras. R$ 29,50

Quando Lisboa Tremeu Domingos Amaral O violento terremoto que atingiu Lisboa em 1755 é o cenário deste romance histórico em que as histórias de vida de quatro personagens se cruzam em meio a um acontecimento real que os deixa intrigados: terá sido punição divina ou casualidade? 480 páginas. Casa da Palavra. R$ 48

Grandes Lendas do Pensamento Henri Pena-Ruiz O voo do homem-pássaro Ícaro, o amor-paixão de Tristão e Isolda e o dilúvio que submerge o mundo antigo estão entre as imagens e os relatos usados pelo autor para mostrar que a filosofia está presente em momentos-chave da existência humana. 224 páginas. Difel. R$ 35

O Valor do Amanhã Eduardo Giannetti Neste ensaio, o economista Eduardo Giannetti destaca situações práticas em que se manifesta a realidade dos juros, como o hábito de fazer dieta, a dedicação aos estudos e os exercícios físicos. 208 páginas. Companhia das Letras. R$ 32

coletivo.peixaria@gmail.com

VERSOS SOBRE FIM E RECOMEÇO

José Roberto Santos Neves

Desde que o mundo existe, o homem convive com o temor e o fascínio do fim dos tempos. A profecia finalista descrita pelo evangelista João no “Livro do Apocalipse”, por volta do ano 90 da Era Cristã, volta à tona cercada de uma série de evidências religiosas e científicas. Entre elas estão o fim do calendário maia, em 21 de dezembro de 2012, e as previsões de catástrofes provocadas por tempestades solares. Representado nas artes em geral, o tema inspirou os escritores Waldo Motta, Marcos Tavares e Tatiana Brioschi a produzir textos com base poética e numerológica sobre esse fenômeno que acompanha

Pensar na web

a evolução da humanidade. Na apresentação dos poemas, Erlon Paschoal chama a atenção para as mudanças climáticas profundas que castigam a Terra, sinal de que o pior está por vir. Nesta edição, o leitor também confere o ensaio de Renata Bomfim sobre Arthur Bispo do Rosário, o artista diagnosticado como esquizofrênico-paranoico que colocou o Brasil no mapa da arte mundial, e a resenha de André Andrès para “A Música Segundo Tom Jobim”, filme sobre o maestro cuja obra monumental nos dá a certeza de que, no apagar das luzes, sempre haverá uma bela melodia para anunciar o recomeço.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Trailer de “A Música Segundo Tom Jobim”, filmes inspirados no fim do mundo, galeria de imagens de Arthur Bispo do Rosário e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por MARIA AMÉLIA DALVI

365 LIVROS PARA DAR NOVO SENTIDO À VIDA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

O ANO DA LEITURA MÁGICA Nina Sankovitch. Tradução: Paulo Polzonoff. Editora: Leya. 1ª edição, 2011. 232 páginas. Quanto: R$ 35

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Em “O ano da leitura mágica”, Nina Sankovitch relata a experiência de ler um livro por dia, ao longo de um ano, para enfrentar a dor pela morte precoce de uma irmã

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livro de Nina Sankovitch, “O ano da leitura mágica”, publicado originalmente nos Estados Unidos, chegou ao Brasil no catálogo da Leya, como o primeiro de quem há muito vem escrevendo sobre suas leituras literárias: a autora manteve – e ainda mantém – um blog em que compartilha suas impressões sobre livros que vão de Liev Tolstoi a Mia Couto, passando pelos clássicos romances de Agatha Christie e por José Eduardo Agualusa. Menos de dois anos depois de ler 365 livros em 365 dias, a autora nos brindou, em 2011, com uma prova de que a literatura jamais poderá ser um ato de complacência ou (auto) piedade: ler (e escrever) como rotina, como exigência e como diversão é estar cada vez mais próximo do abismo, a ponto de encará-lo com insuspeita intimidade e, claro, respeito. Diário? Relato? Romance? Livro de resenhas? As fronteiras de gênero são relegadas a segundo plano; assim, passeando pelos livros e conectando-os explicitamente ao ordinário da experiência, a caçula de uma família de imigrantes bielo-russos nos narra a história

do pai que escapa da morte na Segunda Guerra, da infância feliz com sorvetes na calçada, da passagem rica e tensa pela faculdade de Direito, do encontro com o atual marido, dos quatro filhos, da convivência acidentada com a enteada, das duas irmãs, da vida de dona de casa em Connecticut, e da poltrona roxa fedendo – insuportavelmente – a urina felina: o lugar onde ela encontra alegria lendo durante algumas horas diárias os livros que tem, que ganha e que toma emprestados, para depois resenhar por escrito e publicar na internet.

Terapia

Se a tradução e a revisão emperram a fluência de “O ano da leitura mágica” em alguns momentos, por outro lado, são vinte e um deliciosos capítulos, organizados em torno de temas que Sankovitch elege a partir do rumo das histórias que lhe chegam às mãos, durante o tempo em que resolve abrir uma janela na vida e dedicar-se à leitura literária como parte de um processo terapêutico de enfrentamento do luto: depois da morte precoce e repentina de uma irmã, Nina decide ler integral-

TRECHO “Minha irmã tinha quarenta e seis anos quando morreu. Durante os poucos meses entre o diagnóstico e a morte, eu fui e voltei várias vezes de Nova York a Connecticut para vê-la. Geralmente, eu viajava de trem. No trem eu podia ler. Eu lia pelos mesmos motivos que sempre me fizeram ler, por prazer e como fuga. Mas agora eu também estava lendo para esquecer – durante mais ou menos meia hora – a realidade pela qual minha irmã estava passando. Ela fora diagnosticada com câncer no tubo bílico. O câncer avançou incansável e rapidamente. Pelo caminho, deixou um rastro de dor, impotência e medo.”

mente um livro por dia, ao longo de um ano (de outubro de 2008 a outubro de 2009), para encontrar consolo, fuga, prazer, esquecimento, coragem, introspecção, inteligência e solidariedade. É uma celebração à leitura, à literatura e, enfim, à humanidade – incluindo a vida, a morte, as bibliotecas, a dor, a superação, a miséria, a família, a impotência diante das doenças, a beleza, as guerras, a maternidade: com tudo o que há de tosco e sublime nesse conjunto. Só por isso, “O ano da leitura mágica” já é um projeto sedutor (e, reconheçamos, arriscado). A autora resvala, sim, no tom da autoajuda e peca pelo excesso de didatismo: deste modo reduz em alguns momentos a complexidade estética das obras que comenta e desvia o rumo da vivência literária para o ensino ou a heroicização de si e de sua opção, ainda que o tom seja de humor e ironia na maior parte das páginas; no entanto, partilha conosco uma descoberta que tem algo de muito banal e, no entanto, necessário: ler apaixonadamente é um modo de exceder-se e – como avisa a epígrafe retirada de uma carta de Franz Kafka – de dilatar a rachadura no oceano congelado que temos dentro de nós.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

cinema por LÚCIA CAUS

QUANDO A SÉTIMA ARTE VAI AO PÚBLICO Em um país dominado pelas grandes distribuidoras norte-americanas, os festivais representam, em muitos casos, o único elo entre o espectador e a produção nacional

GUSTAVO LOUZADA

Exibição do Vitória Cine Vídeo Itinerante em Conceição da Barra: caminhão-projetor leva sessões de cinema gratuitas a moradores de várias regiões do Estado

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tualmente, segundo dados do Fórum dos Festivais, existem no Brasil mais de 200 eventos audiovisuais, de pequenas iniciativas regulares e consistentes de exibição até festivais maiores. Esses eventos em geral propiciam uma oportunidade para cineastas desconhecidos mostrarem seus filmes para uma plateia de verdade e serem analisados por críticos profissionais, além de atrair a atenção da imprensa especializada e de agentes e compradores. Filmes de cineastas desconhecidos ou iniciantes podem se tornar sucesso de público após serem premiados nesses festivais. Mas será só isso? Não, mesmo. Num país dominado pelas grandes distribuidoras norte-americanas, os festivais representam, em muitos casos, o único elo entre o público e grande parte da produção cinematográfica brasileira. Para muitos, os festivais são o grande e, muitas vezes, o único meio de exibição de um filme, não mais apenas seu

divulgador. Os festivais têm cumprido o papel de distribuidor – na forma mais literal da palavra – dos filmes brasileiros. Isso vale principalmente para as produções autorais e documentários menos populares, que mesmo nas grandes capitais ocupam uma ou duas salas de cinema. Há também filmes que chegam a levar de dois a três anos para conseguir espaço no circuito comercial, depois de estrear em festivais. E é graças ao bom desempenho nos festivais – que trazem visibilidade não só de público como de mídia – que esses filmes chegam ao “circuitão”. Por outro lado, se os festivais são uma forma de desaguar a crescente produção brasileira – estimulada por processos cada vez mais baratos –, do ponto de vista da população também são muitas vezes a única oportunidade de acesso a filmes sem grande apelo comercial. Vale lembrar que muitos festivais, como o Vitória Cine Vídeo, são gratuitos. Em 18 anos de festival, milhares de pessoas passaram pelas sessões de cinema do Vitória Cine Vídeo. Para os que não

podem ou não estão acostumados a se deslocar para ir ao cinema, montamos o “Cinema Itinerante”, que através de um caminhão-projetor circula de norte a sul pelos municípios capixabas, levando sessões de cinema gratuitas aos moradores de cada região. Em sua 18ª edição, o Vitória Cine Vídeo Itinerante passou este ano por 11 cidades do litoral do Espírito Santo, como Aracruz, Anchieta, Serra (Manguinhos), Guarapari, Linhares, Conceição da Barra (Itaúnas), entre outras localidades. A valorização da formação também é destaque no evento, que apresenta, anualmente, uma programação de oficinas, debates, palestras e encontros voltados para a capacitação e a reciclagem, incentivando a troca de conhecimentos entre realizadores locais e profissionais do mercado nacional. O festival representa, para além de cultura e educação, geração de renda para milhares de capixabas, desde os coladores de cartazes, passando pelos motoristas, designers gráficos, promotores, cenógrafos, carpinteiros, recepcionistas, jornalistas, ajudantes em geral e

operadores cinematográficos. Isso só para citar alguns dos profissionais. Sem falar nos restaurantes, bares, hotéis, táxis, operadores de turismo e comércio em geral que são envolvidos durante a semana em que acontece o festival. Realizado entre os meses de novembro e fevereiro, o Vitória Cine Vídeo também é porta de entrada para o turismo do Estado. O festival atrai pessoas de todo o Brasil – e até mesmo profissionais de cinema de fora do país – e a grande maioria estende sua visita para conhecer as belas praias ou os aconchegantes roteiros serranos do Espírito Santo, movimentando o nosso turismo. Sabe-se que o Brasil tem hoje um número grande de festivais de cinema – principalmente se comparado com outros países -, mas não podemos esquecer o tamanho geográfico do nosso país e o abismo cultural nele existente. Festivais como o Vitória Cine Vídeo são alicerces para a cultura e a economia e levam a pessoas de lugares esquecidos pela indústria cultural, emoções que só a sétima arte pode proporcionar.


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falando de música

Pensar

por ANDRÉ ANDRÈS

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

UM FILME COM BELEZA E FALHAS FORA DO TOM

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omo se sabe, há muitos anos João Gilberto trava uma briga judicial com a EMI. O cantor acusa a gravadora britânica de ter deturpado sua música ao juntar num só disco (“O Mito”) três obras fundamentais da Bossa Nova (“Chega de Saudade”, “O Amor, O Sorriso e a Flor” e “João Gilberto”), destruindo, como diz ele, a “sequência harmônica das músicas” e as gravações originais, muitas delas alteradas e reduzidas para caberem no disco. A família de João impediu o uso de imagens do cantor no documentário “A Música Segundo Tom Jobim”. Não se sabe exatamente o motivo. É de se lamentar a ausência do maior intérprete da obra de Tom. Mas, mesmo sem saber, a família fez bem: é possível que João, ao ver o filme, decidisse armar outra briga judicial... “A Música Segundo Tom Jobim” é belo, tocante, emocionante, curioso... e incompleto, apressado. Se “O Artista” conquistou o público com a ausência de palavras, o documentário sobre Tom inova ao buscar narrar a história do maestro num documentário sem depoimentos. Sob esse aspecto, é uma delícia, porque a biografia começa a ser narrada a partir do sobrevoo de um avião da Pan Air e de uma câmera nervosa colocada num carro andando pelas ruas do Rio dos anos 50. A partir daí, as músicas se sucedem, em ordem não exatamente cronológica, sem mais nenhuma interferência. Não há entrevistas, relatos, depoimentos. “A linguagem musical basta”, sempre ensinou Tom. Impossível contestar o maestro, ainda mais diante do encantamento provocado por sua obra. No cenário da música do século XX, Tom está naquele patamar de gênios como Gershwin, Duke Ellington, Cole Porter. E é impensável não se emocionar com a delicadeza de “Dindi” ou “Insensatez”. Assim como é difícil conter a vontade de cantar “Águas de Março” junto com ele e Elis. Ou deixar de se embalar pelo romantismo de “Anos Dourados” e “Luiza”. É uma demonstração de harmonia, melodia e beleza quase incomparáveis. Essa beleza ganhou o mundo. O documentário de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim (neta do maestro) mostra isso. E justamente aí reside sua falha. É muito curioso ver Judy Garland entoando “How Insensitive”. É arrebatador ver Dizzy Gillespie tocando “Chega de Saudade”. É engraçado ver o arranjo e a coreografia da italiana Mina para “La Ragazza de Ipanema”. A lista é

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Algumas raridades... Elizete Cardoso - “Eu Não Existo Sem Você” A Divina aparece ao lado de alguém que parece ser João Gilberto. Histórico. Agostinho dos Santos - “A Felicidade” Agostinho era um de nossos maiores cantores. Morreu precocemente. Pierre Barouh - “Água de Beber” Barouh revisita a paixão pela música brasileira, já registrada no documentário “Saravah”. Gary Burton - “Chega de Saudade” A versão para vibrafone do grande jazzista americano é simplesmente espetacular. Sylvia Telles - “Samba de Uma Nota Só” Sylvia arrasa na interpretação do samba de Tom. Simplesmente isso. Sammy Davis Jr. - “Desafinado” Sammy Davis abandona a letra e brinca muito com a melodia. Curioso. Mina - “Garota de Ipanema” Impagável a coreografia da cantora italiana para a música mais famosa de Tom. Maysa - “Por Causa de Você” Gravação feita pela TV Cultura de São Paulo. Maysa e uma música que é a sua cara. Birgit Brüel - “Águas de Março” A versão da dinamarquesa para a obra de Tom surpreende pela fidelidade à melodia original. Caetano, Chico, Gil, Gal, Milton e Paulinho da Viola - “Lamento no Morro” Registro histórico: seis dos maiores artistas do país reunidos em torno da música de Tom.

Sinatra e Tom na gravação de “Francis Albert Sinatra e Antonio Carlos Jobim”

enorme porque é gigantesca a relação de cantores se sucedendo na tela. No total, incluindo as repetições (Elis, por exemplo, aparece mais de uma vez), são 56 intérpretes para pouco mais de 30 canções em 88 minutos de filme. Há raridades (como a grande Sylvia Telles, talvez a responsável pelo “mood” das canções da Bossa Nova, cantando “Samba de Uma Nota Só”), há excentricidades (Sammis Davis Jr. tem uma versão muito própria de “Desafinado”), e há, óbvio, muita música bonita. Mas a necessidade de mostrar tantas facetas da obra de Tom em um

prazo relativamente curto levou a uma certa deturpação das canções ou das interpretações. Apenas em alguns momentos um mesmo cantor inicia e termina uma canção. Para mostrar como “Garota de Ipanema” ganhou o mundo, os produtores fizeram uma coletânea de nove interpretações. Ela começa com Tom e Vinicius e depois passa por Errol Garner, Pat Harvey, Marcia, Lio, Mina, uma apresentação na BBC, retoma com Tom, novamente, e termina com a famosíssima cena dele com Frank Sinatra, fumando e cantando divinamente. Essa colagem acaba se

repetindo em outras músicas e, em alguns momentos, as interpretações são cortadas abruptamente. É uma pena, por exemplo, não podermos ver e ouvir, de forma completa, a espetacular interpretação de Nana Caymmi para “Sem Você”. E a também famosa cena de Tom ensinando Gerry Mulligan a bossa das notas finais de “Samba de Uma Nota Só” fica sem sentido, porque não chega até o final. Há, também, algumas opções questionáveis, como a escolha da gravação de Carlinhos Brown para “Luiza”. Nenhuma dessas observações prejudica o conjunto da obra, mesmo porque qualquer um sai mais feliz e mais leve do cinema após ouvir 88 minutos de excelente música. Mas fica a impressão de que, se fosse um pouco mais extenso, o documentário poderia ser mais completo. É de se lamentar, óbvio, a ausência (talvez providencial, como dito no início desse texto) de João Gilberto. E de se elogiar a escolha da cena final, do desfile de Tom pela Mangueira, a majestosa parceira do carnaval de 1992. Ali se deu a concretização da união entre a cultura popular e a sofisticação da música criada pelo maestro soberano, autor de uma obra bonita, criativa, perfeita. E eterna.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

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ensaio

Pensar

por ERLON JOSÉ PASCHOAL

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

Para representar o futuro próximo, Waldo Motta usa a mítica e o simbolismo dos números; Marcos Tavares opta pela ideia cíclica do tempo; e Tatiana Brioschi destaca os cavaleiros do Apocalipse

E O MUNDO VAI ACABAR?

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TRÊS POETAS E UM ENSAÍSTA FAZEM SUA LEITURA DO JUÍZO FINAL, TEMA QUE VOLTA AO DEBATE COM CONTORNOS REAIS

E

m todos os tempos falou-se sobre o fim do mundo. De um lado trata-se de um temor atávico, arquetípico; de outro, talvez, de uma dedução lógica de que tudo o que teve início, um dia terá fim. Sabemos todos que a vida é um átimo quase imperceptível em meio a um universo de grandezas infinitas e, portanto, inimaginável. Religiões e culturas diversas sempre apregoaram o fim dos tempos. A cultura ocidental, tendo como uma de suas matrizes formadoras básicas o cristianismo, perpetua desde suas origens o anúncio do juízo final e da redenção. João, no Apocalipse, recebeu a revelação de que “aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nelas escritas” sabem que “o fim está próximo”. No início do século XXI, com as mudanças climáticas profundas, a superpopulação, as guerras intermináveis, a produção intermitente de armas de destruição em massa, o uso indiscriminado de recursos esgotáveis da natureza, as ameaças de fome coletiva e a profunda desigualdade no planeta, acentua-se a percepção de que o pior está por acontecer. Em outras palavras, o fim do mundo adquire hoje contornos bastante reais, previsíveis e mensuráveis. No catálogo da exposição da 2ª Bienal do Fim do Mundo, ocorrida em 2009, em Ushuaia, na extremidade da América do Sul, o curador Alfons Hug escreveu: “O discurso do clima é apocalíptico, categórico, e não admite qualquer contestação. Cada novo relatório sobre o clima é uma última advertência. Este climatismo alarmista, que já atingiu um grau de

consenso preocupante, provoca grande sentimento de culpa em cada habitante da Terra: desde o caboclo do Amazonas, que queima mata para seu roçado, até o motorista europeu, o pecuarista indiano e o petroleiro do Golfo Pérsico. O clima atingiu status de guerra. Parece um Deus vingativo que se prepara para destruir tudo o que tem vida.” Evidencia-se, então, de que ou mudamos nossa forma de viver e organizar a vida, ou iremos sucumbir àquilo que poderia ser evitado e não foi e, por isso, ao inevitável. E desse modo impõe-se a questão: como transformar a possível renúncia necessária à produção e ao acesso indiscriminado a todo tipo de mercadoria, em melhoria de qualidade de vida e construção de um mundo baseado em valores solidários e universais? Afinal, os chamados tipping points, pontos de desequilíbrio, nos quais o clima mundial poderia entrar em colapso, parecem estar muito próximos, segundo as análises de cientistas e ambientalistas.

Destruição

O cinema, por sua vez – sobretudo o americano –, faz do fim do mundo um filão que sempre atrai, amedronta e encanta o público. Independentemente das visões puritanas, racistas e reacionárias que muitos dos filmes propagam, eles cultivam em sua maioria a sensação de que ver tudo se acabar é sublime. Uma espécie de estética da destruição, tal como constatar a “beleza majestosa” de um cogumelo atômico se formando ou se deliciar com a visão de Nova York ruindo, Los Angeles sendo engolida pela terra, meteoros colidindo com a Terra ou máquinas destruidoras e

O clima atingiu status de guerra. Parece um Deus vingativo que se prepara para destruir tudo o que tem vida” —

Alfons Hug Curador da exposição da 2ª Bienal do Fim do Mundo

sem controle matando a tudo e a todos. Nesse contexto, o compositor alemão Karlheinz Stockhausen proferiu uma frase polêmica, referindo-se às imagens do ataque ao World Trade Center: “É a maior obra de arte possível”. A partir desse tema três escritores do Espírito Santo – Marcos Tavares, Tatiana Brioschi e Waldo Motta – elaboraram textos poéticos e numerológicos, tentando compreender e expressar esse momento da consciência universal. Para muitos, 2012 é um ano fatídico, no qual as forças do universo e da natureza levarão a humanidade ao caos e à aniquilação. Waldo Motta faz então a leitura, a partir da mítica e do simbolismo dos números, do que está por vir. Desde Pitágoras os números são muitas vezes considerados a expressão da ordem cósmica e suas infinitas combinações po-

dem indicar a correlação de forças universais que terão uma intensa influência no planeta e na vida humana. Na Cabala, as relações entre números e letras transformam-se em chaves que abrem as portas dos mistérios do universo. Na astrologia, os números se associam às influências dos corpos celestes de nosso sistema solar na vida terrestre. Como estudioso do tema, Waldo Motta nos fornece elementos e palavras-chave para a compreensão do futuro próximo. Marcos Tavares, fazendo uso de assonâncias, aliterações e da sonoridade dos sons anasalados, deixa reverberar e vibrar o fim, que nada mais seria do que um recomeçar, colocando o tempo como algo cíclico e permanente. Ou seja, a matéria e o espaço, tal como os conhecemos, podem ter fim, mas não o tempo. Contrapondo-se ao tempo linear da tradição judaico-cristã, Marcos opta poeticamente pela ideia cíclica do tempo, pelo eterno retorno elaborado na Antiguidade grega. No texto de Tatiana Brioschi, o Eu poético funde-se com os quatro cavaleiros do Apocalipse montados em seus cavalos – um branco, um vermelho-fogo, um negro e o outro esverdeado – que surgem após a abertura do quarto selo, dentre os sete que continham os segredos e os desígnios divinos, que os autorizava a espalhar a fome na Terra. Mas logo percebe que colocar-se no lugar dos quatro instrumentos da destruição não corresponde a sua natureza humana, constatando, assim, as suas fraquezas e a inutilidade de seu grito diante do que seria inevitável. E transformando o terrível em arte destaca a fugacidade e a beleza da vida. Que os textos agora falem por si.

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Nova York destruída no filme “O dia depois de amanhã”: o cinema, sobretudo o dos EUA, faz do fim dos tempos um filão que sempre atrai, amedronta e encanta o público

Versos de caos e recomeço NOVA EVA Marcos Tavares O fim do mundo é o fim. O fim do mundo é o fim do imundo. O mundo, findo, é o fim do filme.

O fim do humano domado, o sim do ora não-uno. O fim do mando e do medo. O fim da fimose. O fim do mundo é, enfim, o final: o tal sinal do começo.

2012 – Augúrios Waldo Motta* ANO DA LUA: agitação dos povos, nações; acessos de loucura; águas em fúria NÚMERO DE MARTE: terror, violência, guerra; rigor, severidade, justiça implacável

20 – retorno, ressurgimento 12 – reviravolta, revolta

Lua e Marte – roubo, corrupção, mentira, enganação; violência noturna Lua e Mercúrio – ladrões, roubo, noite

Lua – imaginação, inspiração, criatividade 5 – cultura, arte, comunicação, comércio Lua – mulheres; fertilidade 5 – mulheres; fertilidade

30 – ferir, derrubar 2 –casa, palácio, templo 5 – violência, terror, guerra

2012 – ascensão e valorização das mulheres; mais grávidas e mães que o normal

20 – governante, líder, cabeça 12 – atingido, golpeado, ferido; preso, detido, retido, limitado; enforcado,executado

cavalariço virei de mim mesma e com nano esmero numa quimera fundi-me com os quatro nas quatro no cinco porque inteira não suportaria o fim desta conta longa maia em que o mundo vai acabar melhor ser a criatura

2012>2+0+1+2 = 5 – Marte, Mercúrio

2012> 20+12 = 32 = coração, âmago da Terra 5 – transformações, mudanças gerais; agitação

20– governante, líder, cabeça 12 – ferir, golpear, atingir 5 – violência, terror, guerra

2012 Tatiana Brioschi

5 – terror, violência

que o criador, a cobaia do Dr. Frankenstein uma centaura de pelos lustrosos e ocres patas para as nuvens e bafo de enxofre a galopar fogo e fumaça gritos sufocantes relinchos e palavrões, mesmo que seja assim metade fome metade peste metade guerra

Luae 5 – inconstância, incerteza, indefinição, enrolação 5 – violência, terror, guerra 5 – o Papa, o Hierofante, o Orientador, o Guia Espiritual 2012 – Lua

metade morte nas quatro estações que enfrentarei neste ano cinco Mas a quem quero enganar? centaura não sou muito menos centúria, nem metade esquálida nem metade chagas nem metade sangue nem metade pó ad seculum seculorum serei somente a que grita

Lua – loucos, dementes, loucura Marte – terror, violência, guerra Lua – água Marte– terror, violência, destruição 5 – vento, água; agitação, violência, guerra; violência das águas, nas águas Lua, Marte, Mercúrio – criatividade, inventividade; ciência, arte, comércio, negócios Lua, Marte e Mercúrio – conflito entre nações, discussões, enrolação, embromação * O "texto “2012 – Augúrios” foi publicado em meu blog em 31 de dezembro de 2011, em redes sociais e dois grupos virtuais de teatro e literatura".

sou eu, sou eu, c'est moi! porque talvez o mundo vai acabar Finito est transformarei os quatro em artistas de circo cavalgarei em pé sobre a sela porque daqui vejo a plateia em círculos e quando terminado o show o mundo não acabou.


8 Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

memória por ANTÔNIO DE PÁDUA GURGEL

A HISTÓRIA DE UM LÍDER POPULAR Perseguido pela ditadura militar, Mário Gurgel foi protagonista de episódios que marcaram a cena política capixaba; reedição de biografia e coletânea de artigos lembram sua trajetória

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o excelente trabalho de retrospectiva histórica que o jornal A GAZETA realiza com a coluna “Há 50 anos”, de vez em quando tem sido lançada alguma luz sobre a carreira política de Mário Gurgel, que em 2012 completaria 90 anos de idade. Em comemoração, será lançada uma edição de sua biografia dentro da Coleção Grandes Nomes do Espírito Santo e outra do livro “Crônicas de Vitória”, com textos publicados por ele na imprensa capixaba durante as décadas de 1940 a 1960. Mário Gurgel dedicou sua vida à luta por justiça social, tendo se constituído num exemplo de coragem e integridade. Filho de um operário e de uma lavadeira, elegeu-se o vereador mais votado de Vitória nas eleições de 1950 e 1954, ano em que presidiu a Câmara Municipal. Em 1957, foi indicado pela totalidade dos vereadores para ser o prefeito de Vitória, indicação aceita pelo governador Francisco Lacerda de Aguiar. Ao deixar o cargo em 3 de agosto de 1958 por ser candidato a deputado estadual em 3 de outubro seguinte, alguns adversários tramaram um ato que poderia acabar com sua carreira política. A ideia era soltar buscapés quando ele deixasse a Prefeitura. Informado do plano, o prefeito telefonou para a Ilha do Príncipe, pedindo ajuda. O estivador Pedro Tenório o tranquilizou: “Mário; pode deixar que a Ilha vai descer”. A transmissão do cargo contou com a presença do governador e “outras autoridades civis, militares e eclesiásticas”, além de grande número de empresários. A “nata da sociedade”, todos vestidos luxuosamente. Na hora da solenidade, Pedro Tenório – trajado com sua camiseta regata de estivador – pegou o microfone e disse: “Mário. Fala o que seu peito sentir. Aqui ninguém lhe encosta um dedo. Porque, se encostar, não fica uma parede em pé. Só dinamite nós trouxemos 200. Em cada porta dessas tem um homem nosso”. Com tal autorização, Mário pronunciou um violento discurso denunciando os sonegadores de impostos que impediam o trabalho social da Prefeitura e lembrando que essa atitude acabaria

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arbitrárias e muito medo, ninguém poderia imaginar qualquer dificuldade para a aprovação do projeto. Toda a oficialidade das três Armas foi à Assembleia em farda de gala para receber a homenagem. Mas o que se viu foi um longo discurso de Mário Gurgel que terminava com a seguinte frase: “Como humilde parlamentar de província que o presidente constitucional deste País, João Belchior de Marques Goulart, honrou com sua amizade e seu companheirismo, não posso permitir mais uma agressão a um homem que não pode mais se defender. E, como líder da Maioria, voto contra o projeto”. Naturalmente, saiu da Assembleia preso.

Comissão Especial

O ex-prefeito de Vitória, vereador e deputado completaria 90 anos em 2012

resultando numa quantidade cada vez maior de marginalizados e criminosos. Em lugar dos buscapés, o que houve foi uma carreata até o então longínquo bairro de Maruípe, onde o prefeito morava numa casa alugada. Um grupo de congo apareceu e foi iniciada a campanha para deputado estadual. Mário foi o deputado mais votado de

Vitória, feito que repetiu em 1962. Naquele ano, presidiu a Assembleia Legislativa, tendo protagonizado alguns episódios que marcaram a história política do Espírito Santo. Foi a única voz na Assembleia a insurgir-se contra um voto de louvor às Forças Armadas no início de abril de 1964. Naquela fase de delações, prisões

Em 1965, impediu missão do coronel Dilermando Gomes Monteiro (mais tarde comandante do II Exército), que fora enviado ao Espírito Santo para destituir o então governador Francisco Lacerda de Aguiar (Chiquinho). Relator da Comissão Especial criada para legitimar a decisão militar, Mário redigiu o voto vencedor que absolvia Chiquinho. Indignado, o coronel ameaçou: “O senhor vai pagar caro por isso”. Ao que ele respondeu: “Não importa. Mesmo porque o senhor e os seus colegas de farda vão pagar muito mais caro perante a História pelo que estão fazendo neste País”. Previdente, naqueles tempos de chumbo Mário costumava ter na Assembleia uma maleta com algumas peças de roupa para o caso de ser preso. Em 1966, elegeu-se deputado federal com votação consagradora que permitiu a eleição de Dirceu Cardoso como seu colega de bancada. Um jornal registrou na primeira página: “Gurgel, a esquerda triunfante”. Tendo participado das articulações para criação de uma Frente Ampla que unisse as forças de oposição, foi cassado logo após o AI-5, em janeiro de 1969. Cronista, poeta e orador brilhante, classificou-se em 2º lugar num concurso nacional de oratória realizado em São Paulo na década de 1940. Fundador e dirigente da Casa do Menino, foi autor da lei que criou o Departamento Social do Menor, primeira instituição dedicada ao assunto em nível estadual.


poesias DELEITO-ME COM VOCÊ ROBERTO PASSOS DO AMARAL PEREIRA na cauda do cometa das letras deito minha carne crua na boca faminta do desejo assovio balbucio salivo seu nome debruçado na curva no tempo poema transborda ternura faz lua para o seu olhar

MINHA CANÇÃO DO EXÍLIO Tuas terras não têm palmeira nem canto de sabiá mas vegetação rasteira cheiro de mar e frutos pra sonhar

crônicas NÃO FOI AMOR por NAYARA LIMA Foi olhar a estrada de barro, e ver que na verdade era de terra boa, com flores de ponta a ponta. Não foi amor. Foi o coração que acelerava na nuvem não por poesia, mas porque havia realmente nuvem no céu que atravessa o destino de embarque do avião. Foi, além do coração voltando a acelerar, o conforto de saber que a turbulência viria sem que nos matasse. Não, não foi amor. Meu carnaval esteve antecipado, dentro de uma Bahia que ainda existe no mapa, embora os jornais não a revelem tanto. Dentro de uma Bahia que me pôs em frente a mares e coqueiros livres, bonitos. Uma amiga esses dias veio me dizer que meu texto tem estado “muito bossa nova”. O tom dela foi de crítica construtiva, embora para mim fosse nada mais que um dos melhores elogios a quem chega em março esperando que suas águas fechem o verão. O “muito bossa nova” me encheu de

orgulho, me deu vontade de contar mais ainda o que foi ver os barquinhos coloridos, no Rio Vermelho. Não foi amor, foram os barquinhos coloridos no Rio Vermelho. A noite em samba pleno, o dia que entardecia meio azul e meio corado, como se sentisse a mesma vergonha que a minha diante de tanta beleza. Não foi amor. Foi tanta beleza, foram olhos tão nítidos, foi boca tão bonita. Foi ele. Retorno pronta, comunico aos senhores que o ano acaba de começar. Se pensam que ontem foi sexta-feira, enganaram-se. Foi domingo, o primeiro dia dos tantos meses em que trabalharemos, iremos aos restaurantes, às escolas das crianças, aos alegres shows que nossa Vera da Matta nos oferece na Ilha que é nossa. Se pensam que o carnaval chegou ao fim, devo ainda avisá-los: há serpentinas caindo sobre a Terceira Ponte, marchinhas antigas dentro de todos os

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carros que passam nela. Minha máscara de Colombina, meus senhores, ainda está bem longe da gaveta. Informo, convicta, aos taxistas: é necessário sorrir como fazem naturalmente quando em fevereiro seus clientes entram no táxi vestidos de bailarina, bruxa, marinheiro ou palhaço. Aos que vestem terno para o trabalho, lembro-os: é só uma fantasia. De executivo. Não vai acreditar que é de verdade esse mundo de suor ao meio-dia na sala de reunião do departamento só porque é necessário, só porque é trabalho. Não é. É carnaval. Devo confessar que quando o avião me deixou de volta em Vitória, tive certeza de que férias são permanentes, para quem percebe. E seria impossível, para mim, não perceber. É que, sabe como é? Não foi amor. Foi um copo dágua com gosto de água da fonte. Um abraço com gosto de tropicalismo. Não foi amor. Que me desculpe a amiga preocupada com meus textos, mas foi um beijo totalmente bossa nova. Foi promessa de vida no meu coração.

E SE.. por MÁRIA SANTOS NEVES

peço a Deus que me permita no bosque de tua vida eu morar bem-te-vi exclamo chamo dou flores tudo porque te amo

LÁGRIMA DE MAR a voz do mar ondula teu nome bate nas pedras águas de saudade na praia entre areia e estrelas mareja meu olhar

MÃOS & LUVAS Chuva rego tuas terras cavalgo curvas. Nas linhas do infinito somos mãos e luvas no azul de nós dois

Já pensou poder rebobinar a vida? Rewind, reset, voltar atrás, começar de novo. Dar pause, seguir em frente. Colocar um freeze nos momentos mais importantes. Paralisar. Pra poder saborear cada ruguinha do sorriso, cada sinalzinho do rosto. Já pensou poder congelar a imagem enquanto pensamos se vale a pena prosseguir naquele caminho ou virar em outra direção? Voar pra Inglaterra ou plantar laranjas em Iconha? Ter cinco filhos ou uma grande empresa? Pedir um time break antes de escolher qual vida você quer ter, como diria aquele antigo compositor: – Pare o mundo que eu quero descer! Quantas vezes tentei imaginar como seria a vida que não vivi, usando aquela expressão mágica: – E se... E se ao invés de responder, eu tivesse

me calado? E se ao invés de chorar, eu tivesse sorrido. Se ao invés de partir, houvesse permanecido? E se eu tivesse perdoado? E se eu não tivesse esquecido? Quantas vezes pedi por outra realidade, como naquele lindo verso de Beto Guedes – Oh, minha estrela amiga, por que você não fez a bala parar? Mas a bala não parou. E o sonho acabou. Já imaginou poder dar rewind antes das torres gêmeas caírem? Ou mover o relógio para trás antes que alguém insano jogasse uma linda menina do alto de um prédio? Bastaria um mísero segundo, uma única e definitiva chance de fazer certo. Chame de qualquer coisa: a mão de um anjo ou o toque de uma campainha.

Chame de acaso, sorte ou destino. Chame de obra de Deus. Saber que o que vai não volta, dói. Mas é isso que nos dá ainda mais vontade de fazer certo, desta vez. Porque só existe esta vez. Só existe esta vida. A outra, se houver, será a outra. A que passou, ninguém traz de volta. Não vai existir outro você. E já que não dá pra rebobinar, quero poder dizer o que tiver que ser dito. Amar o que tiver para amar. Sentir todas as emoções como o Roberto. Chorar todas as lágrimas de amor, alegria, dor. Viver, respeitar, errar por inocência e não por vontade – e ser verdadeiramente humana. Porque não tem jeito de se escrever uma vida nova e nem há borracha que apague uma vida mal vivida.


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visuais

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por RENATA BOMFIM

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TECENDO PARA ENCONTRAR DEUS: A ARTE DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO Classificado como esquizofrênico-paranoico, artista que viveu cinco décadas em um hospício acreditava estar cumprindo uma missão divina: representar tudo o que existe no mundo

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A “Roda da Fortuna”, montagem produzida com ferro e madeira

Origem humilde ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO – O SENHOR DO LABIRINTO Luciana Hidalgo. Editora Rocco. 192 páginas. Quanto: R$ 49,50

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É

uma aventura lúdica adentrar o “mundo” criado por Arthur Bispo do Rosário, ícone da arte contemporânea brasileira. Comparado com Andy Warhol e Marcel Duchamp, Bispo do Rosário representou o Brasil na 46ª Bienal de Veneza, um dos mais prestigiados eventos internacionais de artes plásticas do mundo, juntamente com o artista Nuno Ramos. Suas obras continuam sendo expostas nos mais variados países. As 802 obras deixadas por Bispo do Rosário foram produzidas sob condições adversas e motivadas por uma fé inflexível. Ele acreditava estar cumprindo uma missão divina: representar tudo o que existe no mundo. O artista recriou um mundo em miniatura, mantos bordados, estandartes, assemblages (técnica que consiste na justaposição de elemento), e reuniu, em séries, muitos objetos. Segundo o próprio Bispo do Rosário, este novo mundo seria apresentado ao TodoPoderoso no dia do juízo final, e seria um mundo “sem trevas, planalto ou precipício”, “sem miséria e nem pobreza”. A criatividade era abundante, enquanto os materiais eram escassos. Bispo improvisou os recursos de que necessitava para a realização de sua obra; ele desfiou o próprio uniforme azul da colônia, símbolo máximo da despersonalização, para bordar com os seus fios uma arte de vanguarda, irmanada com movimentos como a Pop Art e o Novo Realismo. As sucatas recolhidas pelo artista nas suas perambulações pela Colônia Juliano Moreira, ironicamente, colocariam o Brasil no mapa-múndi das artes plásticas. As palavras também desempenharam um importante papel na obra de Bispo do Rosário: elas foram pintadas, escritas, e emergiram, especialmente e em profusão, em bordados, na forma de nomes de pessoas célebres e anônimas, registros de ideias, e extratos poéticos.

Bispo do Rosário foi um homem de origem humilde. Nasceu em 1909, em uma cidadezinha sergipana chamada Japaratuba. Filho de Adriano Bispo do Rosário e de Blandina Francisca de Jesus, o artista foi marinheiro, pugilista e, entre outros trabalhos, prestou serviços para uma família tradicional carioca, os Leoni. Bispo se recusava a

na colônia: ele era o “xerife”. O artista fez amigos no manicômio, onde empreendia algumas tarefas e usufruía de pequenos privilégios, como o de “tomar café com os guardas nos bastidores do poder”. Com o passar do tempo, os enfermeiros passaram a respeitar os períodos nos quais Bispo submergia no oceano particular de vozes que lhe diziam o que precisava fazer. Eram épocas de recolhimento e produção frenética.

Isolamento

O “Manto da Apresentação”, obra-prima para o artista ser coroado “Rei dos Reis”

receber salário – trabalhava em troca de moradia e alimentação. A “outra” origem de Arthur Bispo do Rosário, não a do nordestino negro e pobre, mas, a do “eleito”, “Filho do Homem”, começou às vésperas do Natal de 1938, quando a cortina que revestia o teto do mundo se rasgou e ele recebeu, por parte de sete anjos, o chamado para se apresentar. Bispo vagou por dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro, seguindo o exército angelical, e chegou ao Mosteiro de São Bento. Ao adentrar a capela ele anunciou que era “o juiz dos vivos e dos mortos, o Cristo”. Bispo esperava ser reconhecido pelos religiosos, porém, enquanto os sinos das igrejas dobravam para receber “o enviado de Deus”, arquetipicamente, tal como aconteceu com o Cristo, Bispo caiu nas mãos da autoridade terrena. Preso por policiais militares, foi enviado para o hospício da Praia Vermelha. No dia 25 de janeiro de 1939, Bispo do Rosário adentrou o portão da Colônia Juliano Moreira, que continha na entrada a profética frase: praxix omnia vincit (o trabalho tudo vence). Classificado pela psiquiatria como esquizofrênico-paranoico, Arthur Bispo do

Rosário conheceu a realidade nua e crua da vida no sistema manicomial. A Colônia Juliano Moreira, instituição destinada a abrigar “expurgados da sociedade”, doentes considerados crônicos, “casos irreversíveis” auscultados pela psiquiatria carioca da década de 30, foi a morada de Bispo por cinco décadas. As visões “místicas” e os “delírios de grandeza” fizeram com que o artista fosse encaminhado para o pavilhão 11 do Núcleo Ulisses Viana, lócus privilegiado da geografia da exclusão, ocupado pelos internos considerados mais “perigosos”. Os limites geográficos da colônia compreendiam uma área verde de cerca de sete milhões de metros quadrados, com grutas e cachoeiras que integravam a antiga Fazenda Engenho Novo, desapropriada para abrigar o hospício. Em meio à Mata Atlântica, havia uma raridade arquitetônica do século XIX, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Ex-lutador de boxe e possuidor de grande força física, Bispo do Rosário passou a ajudar os enfermeiros na contenção dos pacientes mais violentos, conquistando, assim, um lugar para si

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O cunho místico que orientou o processo criador de Bispo do Rosário exigia o isolamento. Foi com o seu mundo particular que ele confrontou o poder opressor do sistema psiquiátrico vigente. Uma infinidade de artigos de consumo do hospício segregados em blocos: galochas, colheres, fivelas de cintos, cabides, seringas, pentes, ferramentas, pipas, chapéus, rodos, bolas, capacetes, foram reunidos e utilizados numa ação criativa, uma “obra-escudo”. Essa foi, de certa forma, uma expressão de resistência. A visada psicanalítica chegou à colônia após 1981, e os pacientes passaram a ser estimulados a falar. Foi nesse período que Rosângela, estudante de Psicanálise, chegou à colônia, e um forte vínculo se estabeleceu entre ela e Bispo. Nessa época o artista passou a construir as miniaturas em dobro para presenteá-la, e Rosângela tornou-se para Bispo uma personagem idealizada, ela era o seu anjo redentor, tanto que ele escreveu: “Rosângela Maria Diretora tudo eu tenho”. Enquanto, na clausura do seu “quarto-forte” (cubículo minúsculo que abrigava um colchonete e um buraco no solo), e longe dos olhares curiosos, Bispo do Rosário escondia os mistérios do seu “novo mundo” em formação, no mundo, a arte explodia em novos conceitos. Na Itália de 1962, Piero Manzoni seguia a tendência do New Dada, explorando a desordem dos materiais e expondo, em galerias, objetos do cotidiano. Pães e ovos cozidos deram forma a obras que, depois de expostas, eram consumidas pelo público. Manzoni expôs caixas com as próprias fezes numa obra denominada “Merde d’artiste”. Criações de Manzoni, como a assemblage de pãezinhos, encontraram eco nas obras de Bispo do Rosário, tanto nas peças que agrupavam “bu-

Bispo do Rosário: mundo particular confrontou a opressão do sistema psiquiátrico

Não faço isto para os homens, mas para Deus” —

Arthur Bispo do Rosário ARTISTA PLÁSTICO

gigangas” em série, quanto nas garrafas plásticas preenchidas com fezes e urina, organizadas pelo artista. O sistema social opressor era confrontado por obras escatológicas e improváveis e muitos artistas se engajaram na tentativa de enterrar a tradição. O francês Arman, por exemplo, artista plástico representante do Novo Realismo, passou a tomar os bens de consumo da sociedade moderna para reorganizá-los em repetições aleatórias. Suas obras mais conhecidas intitulam-se “Latas de lixo” e “Montes de detritos”. Outro francês, Íris Clert, produziu obras como “Retrato de Sonny Liston” (1963), que consistia num amontoado de ferros de passar roupas que alcançava 85 centímetros de altura. Um ferro de passar roupas, daqueles antigos e pesados, também integrou as assemblages de Bispo do Rosário. Ironicamente, enquanto os artistas denunciavam

a compulsão capitalista no mundo, Bispo estava alheio a movimentos artísticos, galerias de artes, marchands e mecenas; ele era um excluído do sistema. “O senhor do labirinto” não gostava de falar sobre a sua história de vida. Quando lhe perguntavam sobre sua origem, ele respondia apenas: “Um dia eu simplesmente apareci”. Muito do passado do artista emergiu na sua obra do recôndito da memória: os signos da infância e as tradições de um lugar (Japaratuba) que tem como centro a Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Nela estavam os bordados, as fantasias do Dia de Reis, a coroação do Rei e da Rainha em vestes cravejadas de bordados e franjas, ambos negros, nos Folguedos, bem como a pressão cultural representada no nome que reúne dois termos imantados pela religiosidade católica (Bispo + Rosário). Em um dos bordados do artista aparece a inscrição “Missão Japaratuba”, fragmento que comprova a riqueza cultural herdada, que foi poeticamente trabalhada em fardões tecidos, adornos, rebordos costurados. Variações estéticas também incorporaram temas marítimos; embarcações com mastros, boias, botes salva-vidas, âncoras e bandeiras, reminiscências da época de marujo. Bispo se designava “Rei dos Reis” e, para si, teceu um manto avermelhado, salpicado de bordados com o qual seria coroado, o “Manto da Apresentação”, peça consi-

derada a sua obra-prima. Bispo esperava que os mesmos sete anjos que lhe transmitiram “o chamado” viessem buscá-lo “com poderes e glórias”, para levá-lo “para cima”, e visando à salvação do mundo, ele construiu uma obra intitulada “A arca de Noé”, um barco feito com papelão e pano. O sagrado e o profano perpassam toda a obra de Bispo: bandeirolas juninas, a bandeira do Brasil, signos religiosos, como um coração de Cristo (entalhado na madeira), imagens de santos, medalhinhas da Virgem Maria, cruzes e crucifixos ilustraram a sua via-crúcis estética. Bispo, já idoso, passou atrair olhares forasteiros, especialmente dos jornalistas. Foi a partir de 1985 que a sua obra ganhou visibilidade e começou a se projetar nacionalmente. Ele posava altivo para as câmeras, vestindo o “Manto” e empunhando estandartes.

Livro

Nuances da vida e da arte de Bispo do Rosário têm sido trabalhadas por artistas em filmes, teatros e livros. A Editora Rocco, após 15 anos, reedita a obra “Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto”, escrita pela jornalista Luciana Hidalgo, vencedora do Prêmio Jabuti de 1997. Essa obra revela um estudo aprofundado que conta com pesquisas realizadas na Colônia Juliano Moreira e em Japaratuba, bem como, com entrevistas. Luciana Hidalgo afirmou que, após trilhar o “labirinto de palavras, histórias e bordados” do universo de Bispo do Rosário, saiu “outra”. A morte de Bispo do Rosário, em 1989, suscitou a preocupação com o destino e a preservação de sua obra, o que gerou a fundação da Associação de Amigos dos Artistas da Colônia Juliano Moreira. Atualmente, Arthur Bispo do Rosário dá nome ao único Museu de Arte Contemporânea do país cujas exposições acontecem em galerias situadas nas dependências de uma instituição psiquiátrica. O acervo do Museu Bispo do Rosário foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio do Rio de janeiro (INEPAC), e as obras ficam expostas permanentemente. Municipalizado, o Hospício Juliano Moreira tornou-se Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 3 DE MARÇO DE 2012

ficção por ISABEL VASCONCELLOS; ILUSTRAÇÃO DO COLETIVO PEIXARIA

DEZ MINUTOS Em outra noite qualquer voltarão a se encontrar, por acaso, no bar de sempre – supõe a narradora deste conto, sobre uma mulher que acorda dividida entre o amor e a razão

F

ugiu-lhe a manhã. Janela embaçada, toda branca: visão primeira de um despertar abrupto; na porta a campainha insistente, o sonho interrompido. Estranha sensação é acordar em cama desconhecida, olhos fora de foco, olhos de súbito arregalados para a ausência do cotidiano cenário matinal. Descalços, seus pés pisam o chão frio, uma toalha qualquer enrola o corpo nu. Abre a porta a um vago vulto que estende para ela a consciência da situação: bandeja, pão, leite, café, laranja, geleia colorida. Dez horas.

O homem na cama ronca e resmunga. Pergunta-lhe se quer café, perguntando por perguntar, cansada de saber que ele não quer. Com o pão e o leite vai mastigando esta sua tristeza. Ele volta a dormir. Chove. Roupas em desalinho no espaldar da cadeira. Por que não se vestir e, com um beijo silencioso, sair para sempre? Por que não?... A ideia fica brincando dentro dela, marota. Imagina-lhe a surpresa a procurá-la naquele quarto, naquele hotel meio pobre, bobo e inexpressivo. Frio. Quase sem perceber, vai se vestindo.

Enquanto se veste antecipa e imagina: Sairia sem ruído, um bom-dia seco ao porteiro espantado, espantado por vê-la sair só. Afinal, saíam sempre juntos... Ela se vê na rua, na chuva, no táxi... Chegaria, por fim, ao estacionamento, perto do bar, onde seu carro, abandonado pela madrugada, a acolheria. Antecipa o voo seguro pela avenida brilhante de chuva e de carros, caminho de casa, e seu disfarçado vingado riso ao pensar nele acordando sozinho, surpreso, um tanto ridículo a zanzar pelo quarto, em sua nudez absurda. Chove. Leva muito tempo diante do espelho na inútil tentativa de arrumar os cabelos despenteados de tanto acariciados, embaraçados pelo amor furioso, faminto, louco, absolutamente feliz. Feliz. Olha para ele, no fundo do espelho refletido. Há de acordar e levá-la até seu carro. Na despedida, aquele beijo frio, a promessa de um telefonema que – ela sabe – não haverá. Nenhum resíduo de calor nas mãos, nenhuma ternura nos olhos. Em outra noite qualquer voltarão a se encontrar, por acaso, no bar de sempre. Para que então tudo se repita. Novamente acordar sobressaltada, a campainha a interromper-lhe os sonhos; novamente mastigar com pão e café a sua tristeza. Não. Não quer mais ouvi-lo, decide. Não mais suportar-lhe o ridículo medo de amar. Fanfarronice de menino grande a gabar-se de seus trinta e cinco anos de liberdade, não mais suportar. Não mais desdobrar-se, ora em companheira, ora em potencial inimiga. Não mais obrigá-lo a pensar, reformular, contestar-se a si próprio. “Você bagunça minha mente” – costuma ele dizer, tentando, sem graça, gracejar. Atira com raiva a escova de cabelo

para dentro da bolsa. Vai embora. Não pode amar um homem assim. Seus mundos são paralelos. Ele não a merece. Não merece a sua ternura tão bem guardada, um carinho que resistiu, resistiu, resistiu... Não merece este amor tão grande e tão rico, fruto de toda a sua vivência, fruto de tantos amores outros. Não. Não foi para ele que tanto ela se guardou. Seu universo ilimitado – pensa ela – nada significa para este homem medroso, ancorado em seus valores falidos, em sua vida sem surpresa ou esperança; vida segura, povoada de rótulos e estereótipos, onde tudo é previsível e há um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. No uísque e no futebol, sufocados a duras penas os fantasmas do imprevisível. Esquecido o risco do envolvimento, do entendimento, da emoção, da descoberta, do encontro. Esquecida alegria. Chove. Escurece, lá embaixo, a cidade. Corajosa, ela calça as pesadas botas, joga o xale sobre os ombros e prepara-se para enfrentar a rua, a chuva, o frio, a briga pelo táxi. Depois, liberdade. Bem depressa o dia a dia apagará qualquer lembrança desta felicidade tão fugidia, breve, estúpida. Um último olhar ao espelho, a ajeitar a roupa, surpreende-o a observá-la do outro lado. Entre sono e espanto, ele pergunta: – Por que toda essa roupa? – Tenho frio. – Você quer ir agora? – Quero. Ele suspira. Estende a mão e apanha o relógio sobre a mesa de cabeceira. No movimento, deixa expostos os músculos, o corpo. Bonito. Dez e dez. Chove. Escurece. Ela inventa compromissos. Com os olhos, ele pede. Ela vai mentindo horários a cumprir enquanto ele acende um cigarro. Ela observa: as mãos dele, os lábios dele. De súbito, seu corpo perdoa todas as mágoas. Ri de si mesma. – Eu ia embora – diz ela de manso – deixar você aí sozinho, dormindo. Ele sorri para ela. Um sorriso condescendente tal qual pai ante travessura infantil. – Vem cá. – ele diz. O corpo dela se encaixa certinho dentro do abraço dele. Se esconde e enterra o rosto no ombro dele, a voz dela sai sufocada: – Preciso esquecer você. E, lentamente, começa a se despir.


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