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Entrelinhas “OS CANTOS PERDIDOS DA ODISSEIA” MOSTRA ULISSES À REVELIA DOS DEUSES.

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Cena do filme “Acossado” (1959), de JeanLuc Godard

O CINEMA NUNCA MAIS FOI O MESMO Especialista analisa o legado da geração francesa que revolucionou a sétima arte. Páginas 10 e 11

Pensar Memória

VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

www.agazeta.com.br

MARCELO ALVES/FOLHAPRESS

O VIGOR ARTÍSTICO E OS EXTREMOS DE CÁSSIA ELLER, 10 ANOS APÓS SUA MORTE. Página 4

Música

A TRADIÇÃO DO CONCERTO DE ANO-NOVO DA ORQUESTRA FILARMÔNICA DE VIENA. Página 5

Resenha

AUTORA SE DESTACA NA NOVA SAFRA DA LITERATURA FANTÁSTICA BRASILEIRA. Página 8

Pensador do mundo ERIC HOBSBAWM DEFENDE IDEIAS DE MARX COMO BASE PARA TRANSFORMAR A REALIDADE Páginas 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

quem pensa

Wilson Coêlho é Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris. wilsoncoelho@gmail.com Ricardo Costa Salvalaio é membro da Academia de Letras Humberto de Campos. ricardosalvalaio@hotmail.com Erico de Almeida Mangaravite é servidor público e frequentador de concertos e óperas. ericoalm@gmail.com Rafael Simões éhistoriador,professoruniversitárioemembroda ONGTransparênciaCapixaba. rafaelclaudio@gmail.com

marque na agenda prateleira Literatura na rede Publicação traz poesias, ensaios e artigos

O número 5 da revista “Água da Palavra” já está disponível no site www.aguadapalavra.com. Textos de Sergio Cohn, Wilberth Salgueiro, Alexandre Moraes e Anne Ventura, entre outros autores.

Carnaval Cachoeiro promove concurso de marchinhas

Vão até 13 de janeiro as inscrições para o I Concurso de Marchinhas Carnavalescas “Prêmio Zé Nogueira”, promovido pela Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim. A ficha de inscrição e o regulamento estão disponíveis no www.cachoeiro.es.gov.br.

Antônio Marcos Roly Garcias é professor da rede estadual e do município de CachoeirodeItapemirim. rolygarcia25@yahoo.com.br Suely Bispo é mestranda em Letras na Ufes, atriz, graduada em História e escritora. suelybispo@yahoo.com.br Marcos Veronese é jornalista, diretor de cinema e vídeo. marcosveronese@bol.com.br

Ivan Borgo é professor universitário e escritor. iborgo@superig.com.br

Coletivo Peixaria reúne amigos que desenham porque gostam. coletivo.peixaria@gmail.com

A autora francesa estuda a obra de pensadores do século XIX que buscaram restituir a dimensão individual da história. Entre eles, o historiador de arte Jacob Burckhardt, o filósofo Wilhelm Dilthey, o romancista Leon Tolstoi e o grande historiador alemão Johann Gustav Droysen. 232 páginas. Autêntica Editora. R$ 47

O Alçapão Pedro Cavalcanti Esta ficção fantástica parte de um personagem que atravessa dias e noites entre a vida e a morte após ser atingido por uma bala perdida. A narrativa mergulha no inconsciente coletivo dos brasileiros, com referências a bandeirantes, cangaceiros, palacetes e favelas.

Brunella França é jornalista, escritora, colunista, fic-writer, blogueira. http://twitter.com//brullf

Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br

O Pequeno X – Da Biografia à História Sabina Loriga

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104 páginas. Global. R$ 23

de fevereiro

Ofes faz concerto insp

irado no carnaval A Orquestra Filarmôn ica do Espírito Santo ab re sua temporada 2012 com o concerto “Música Clá ssica e Carnaval”, no Theatro Carlos Gomes. No pro grama, peças de compositores que fazem um diálogo entre o clássico e o popular: Be rlioz, Arban, Moncayo, Bernstein e o brasileiro Ernane Ag uiar.

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de fevereiro

Raridades na Biblioteca Estadual

A exposição “Uma página da leitura no Brasil – grandes coleções dos anos 1930/1960”, com curadoria do escritor residente Reinaldo Santos Neves, se estenderá até o final de fevereiro na Biblioteca Pública do Espírito Santo (Av. João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória).

A Dinastia Rothschild Herbert R. Lottman A trajetória da grande família de banqueiros começa em um gueto judeu da cidade alemã de Frankfurt, em meados do século XVIII, e percorre os principais acontecimentos do século XX para mostrar a riqueza e a influência deste grupo sobre os grandes centros financeiros da Europa. 400 páginas. L&PM. Trad. Ana Ban. R$ 58

Antônio Vieira Ronaldo Vainfas O volume da série Perfis Brasileiros reconstitui os momentos mais importantes da vida e da obra do jesuíta, político, pregador e escritor seiscentista, nascido em Lisboa e falecido em Salvador. 352 páginas. Companhia das Letras. R$ 44

UM FUTURO POSSÍVEL

José Roberto Santos Neves

O título do mais recente livro do historiador Eric Hobsbawm não poderia ser mais adequado para a véspera do início de um novo ano: “Como mudar o mundo – Marx e o Marxismo, 1840-2011”. Para o intelectual de 94 anos, as respostas para as questões sociais, políticas, econômicas e ambientais contemporâneas estão nos estudos de Karl Marx, considerado por ele “um pensador para o século XXI”. Nas páginas 6 e 7, Rafael Simões conta mais detalhes sobre a nova obra do estudioso britânico e elenca a tetralogia clássica de Hobsbawm. Nesta edição, o leitor também confere o artigo

Pensar na web

de Ricardo Salvalaio sobre os 10 anos da morte de Cássia Eller e o ensaio de Marcos Veronese sobre o legado da Nouvelle Vague, a escola francesa que revolucionou o cinema no final dos anos 1950. Aproveito para agradecer a todos os leitores e colaboradores que participaram do Pensar com sugestões, críticas, dicas e textos ao longo deste ano. Esse incentivo é fundamental para buscarmos sempre a excelência neste espaço de reflexão cultural e livre exposição de ideias. Que em 2012 possamos continuar e ampliar essa parceria tão produtiva. Aquele abraço literário e até lá!

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Confira textos de Eric Hobsbawm, vídeos da Orquestra Filarmônica de Viena, canções de Cássia Eller e trechos de livros e filmes comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

Pensar

por WILSON COÊLHO

O ESPELHO DE HELENA REFLETE PENÉLOPE

A

ssim como Sócrates, Cristo e tantas outras figuras que, historicamente, fora as ideias que lhes foram imputadas a autoria, não faz diferença se existiram ou não como pessoas, também Homero sempre vem à baila para confirmar aquilo que até hoje tem se construído como o sentido ideal de nossa chamada civilização ocidental, bem como tem servido para sustentar os ânimos de nossos comportamentos “demasiado humanos”. Assim como na “Odisseia”, da tradição homérica, em “Os cantos perdidos da Odisseia”, de Zachary Mason, coincide a ideia de que Odisseu (ou Ulisses, como lhe chamavam os romanos) é o rei de Ítaca que vai a Troia lutar contra os troianos. Em Homero, a “Odisseia” é um poema épico dividido em 24 Cantos com um total de 12.110 versos, cujo argumento principal é a volta de Ulisses, Odisseu em grego, de Tróia a Ítaca. Em seu livro, Mason reúne 44 "cantos perdidos" da “Odisseia”, que teriam sido encontrados em um obscuro papiro pré-ptolomaico. Mas se, em Homero, Odisseu se apresenta com epítetos de herói perfeito, homem de mil voltas, astucioso, engenhoso, muito prudente, industrioso, habilidoso, resistente, glorioso etc., em “Os cantos perdidos da Odisseia”, Mason mostra o mais sagaz e ardiloso dos heróis gregos depois de suas glórias, ou seja, ao ser abandonado pelos deuses e pelas divindades, quando tem que se reinventar e viver sua tragédia como homem comum. Depois de tanto contar e recontar suas aventuras, desde a de que enfrentou o exército troiano até matar o ciclope Polifeno, passando pela experiência de escapar do cativeiro de Calipso e resistir ao encantado canto das sereias. Esse Ulisses, abandonado à condição humana ou à revelia dos deuses, tornou-se vítima de suas fragilidades. Conforme a narrativa repleta de variantes, a partir de diferentes personagens e conforme recortes incomuns entre os mesmos, tanto na “Odisseia” quanto em “Ilíada”, sobre as brutalidades na Guerra de Troia, Ulisses, quando fora recrutado, ele mesmo desconhecia suas habilidades para atuar em tal façanha, fato que o colocava na condição de amedrontado e indeciso. No caso de “cantos perdidos”, trata-se de um Odisseu com caráter mais humano e contemporâneo, num encontro da modernidade com a tradição do romance, onde deuses e heróis não estão distantes do sentimento do homem comum, aquele que está diante da

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OS CANTOS PERDIDOS DA ODISSEIA Zachary Mason. Tradução: Rubens Figueiredo. Companhia das Letras. 216 páginas. Quanto: R$ 39, em média

TRECHO

Zachary Mason apresenta Ulisses como um herói vítima de suas fragilidades

possibilidade do fracasso e do sofrimento e que, ao mesmo tempo, torna-se capaz de se rebelar e reescrever em todo momento a sua própria história, desafiando as armadilhas construídas pelo destino.

Resistência

Quanto à sua condição de resistência ao canto das sereias, uma vez mais, revela sua “humanidade” ou fragilidade, considerando que pediu para ser amarrado ao mastro para não sucumbir ao canto das supostas ninfas. Se realmente se tratava de uma “resistência” em prol de sua esperança e necessidade de ouvir o canto das sereias como possibilidade de estar diante de uma revelação sobre o mundo e sobre seu próprio destino, o fracasso se dá de duas maneiras. Primeiro, porque este

Odisseu não tem o atrevimento suficientemente heróico de encarar o poder das sereias sem ter que se amarrar num mastro para ouvir seu canto e, segundo, por ter sido em vão a sua tentativa de saber sobre o futuro, principalmente por não ter conseguido sequer compreender porque foi abandonado pelos deuses. Mason faz de Homero, ora narrador, ora personagem de si mesmo – emretorno à Ítaca –, o homem que encontra Penélope envelhecida e cansada de esperá-lo e, por vezes, surge como uma morta. Tudo se confirma na história deste homem que, transitando no mundo da nostalgia, da ilusão, do vulnerável, do angustiado, do iludido, transforma-se no herói/personagem sonhado de si mesmo como a tentativa de marcar o seu próprio destino. Trata-se de um monólogo, consi-

Odisseu volta para Ítaca num barco pequeno num dia claro. A familiaridade da face leste da ilha parece absurda – desconcertado, ele segue por uma contracorrente traiçoeira, na qual fazia quinze anos que não pensava, e chega à terra através da boca de uma enseada onde nadava quando menino. Toda sua impaciência o abandona, senta-se ao pé de um carvalho de que se lembra e cujos galhos pendem sobre a água, muito bons para mergulhar. Vinte anos se passaram, reflete ele, o que importam mais uns poucos minutos? Uma hora transcorre em silêncio e lhe vem o pensamento de que está cansado e que seria melhor ir para casa, portanto apanha sua espada e caminha em direção à sua casa, seguro de que qualquer obstáculo que o aguarde será pequeno comparado com tudo aquilo que já enfrentou.

derando que o suposto diálogo de Odisseu/Ulisses, exilado de sua própria vida, não passa de uma tentativa de encontrar-se consigo mesmo, onde Odisseu é incumbido de matar a si mesmo, cortando a humanidade para rebelar o animal que tem dentro de si, ou seja, negando-se como homem para sobreviver como mito. Paradoxalmente, Odisseu, para sobreviver, em todo momento, tenta matar-se a si mesmo como possibilidade de superar-se. Enfim, Odisseu/Ulisses, o contador de histórias, se confunde com Homero. A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Na literatura ocidental, quase como um exercício de palimpsesto, parece difícil a possibilidade de encontrar um romance que não seja uma “releitura” da Odisseia de Homero, inclusive, onde o espelho de Helena reflete Penélope.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

memória por RICARDO SALVALAIO

FERA, BICHO, ANJO E MULHER: 10 ANOS SEM CÁSSIA ELLER Ao mesmo tempo em que regravava compositores consagrados da MPB, cantora tinha trânsito livre no rock‘n’roll e fazia questão de radicalizar esta marca em suas apresentações

H

á dez anos a música popular brasileira perdia uma das maiores cantoras da geração 90. Em 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos, morria a eclética e pulsante Cássia Eller. A artista deixou uma obra importantíssima; seus oito álbuns são desnorteantes em se tratando de originalidade, capacidade interpretativa e ousadia ao elencar seu repertório. A cantora nasceu no Rio de Janeiro, mas aos seis anos mudou-se com a família para Belo Horizonte. Cássia era uma beatlemaníaca das mais prematuras, que já aos nove anos se deleitava com o som dos garotos de Liverpool. Aos dez, foi para Santarém (PA). Aos 12 anos, voltou para o Rio e começou a aprender a tocar violão. Aos 18, chegou a Brasília. Lá, fazia shows em bares, participou de corais, trabalhou em um espetáculo ao lado de Oswaldo Montenegro, conheceu a cantora Zélia Duncan, cantou em trio elétrico e estudou canto lírico.

Carreira

Em 1989, Cássia Eller foi para São Paulo, fez amizade com Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, e começou a divulgar uma fita demo, com a música “Por enquanto”, de Renato Russo. Lançou seu primeiro LP, “Cássia Eller”, em 1990. Além de “Por enquanto”, o disco incluía, entre outras, “Eleanor Rigby”, dos Beatles, e “O dedo de Deus”, de Arrigo Barnabé e Mário Manga. Em seguida, fez shows com o guitarrista Victor Biglione, com repertório de blues, o que a deixou conhecida como cantora de blues e rock. Em 1992, veio o segundo disco, “O marginal”, que consolidou o timbre grave de sua voz. Entre as faixas do álbum, duas músicas de Jimi Hendrix (“If Six Was Nine” e “Hear My Train A Coming”) e composições de Itamar Assumpção e Luiz Melodia. Em 1994, o ótimo disco “Cássia Eller” mistura clássicos do rock brasileiro (Raul Seixas, Renato Russo, Herbert Vianna, Cazuza e Frejat) e versões para Ataulfo Alves e Djavan. Seu disco seguinte, “Veneno antimonotonia” (1997), foi um belo

CHICO GUEDES/23/09/2001

A LETRA ALL STAR (NANDO REIS) Estranho seria se eu não me apaixonasse por você O sal viria doce para os novos lábios Colombo procurou as índias, mas a terra avistou em você O som que eu ouço são as gírias do seu vocabulário

Estranho é gostar tanto do seu All Star azul Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras Satisfeito sorri quando chego ali E entro no elevador Aperto o 12 que é o seu andar Não vejo a hora de te A cantora na Praça do Papa, Vitória, em 2001: ao mesmo tempo ácida e meiga reencontrar E continuar aquela conversa Que não terminamos ontem tributo ao ídolo Cazuza, e em seguida Dualidades lançou sua melhor obra “Com você... Cássia podia cantar Dorival Caymmi, Ficou pra hoje Meu mundo ficaria completo” (1999), com o hit “O Segundo Sol” e várias outras grandes composições de Nando Reis, produtor do disco. O último disco, “Acústico MTV” (2001), também produzido pelo amigo Nando Reis, vendeu 1,1 milhão de cópias. O ex-titã Nando Reis encontrou em Cássia a intérprete perfeita, além de uma amizade que influenciaria até a sua inspiração como compositor (em homenagem à amiga ele compôs a música “All star”). “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você/ O sal viria doce para os novos lábios/ Colombo procurou as Índias, mas a terra avisto em você/ O som que eu ouço são as gírias do seu vocabulário/ Estranho é gostar tanto do seu All Star azul...”, diz a letra da linda composição. A canção se encontra no disco póstumo “Dez de dezembro” (2002), também produzido por Nando. Essa parceria foi tão importante para ambos que este ano foi lançada a coletânea “Relicário – As canções que o Nando fez para Cássia cantar”, produzida por Nando e Felipe Cambraia.

Beatles, Ataulfo Alves, Nirvana, Chico Buarque e Renato Russo num mesmo álbum. A cantora não era dada a rótulos. Seu ecletismo e seu incrível poder de escolha de repertório eram um charme a mais. Numa mesma canção, ela podia ser áspera, agressiva, terna e bela. A cantora carioca atravessou a década de 1990 numa posição única: a de equidistante tanto do rock quanto da MPB. Ao mesmo tempo em que regravava compositores consagrados da MPB, tinha trânsito livre no rock‘n’roll e fazia questão de radicalizar esta característica em suas apresentações. A primeira biografia da artista, intitulada “Cássia Eller: Canção na voz do fogo”, de Beatriz H. R. Amaral, faz referência às várias etapas do desenvolvimento e do amadurecimento da cantora e enfatiza os processos de seleção de repertório, concluindo que, ao interpretar obras de tão diferentes estilos musicais, Cássia Eller vivia procedimentos de mimetismo, convertendo-se ela própria em cada uma das canções que entoava. “Uma característica que faz de um cantor um grande cantor é tomar para si as músicas como

Estranho mas já me sinto como um velho amigo seu Seu All Star azul combina com o meu preto de cano alto Se o homem já pisou na lua, como eu ainda não tenho seu endereço? O tom que eu canto as minhas músicas Para a tua voz parece exato

se fossem dele. Ela tinha essa intensidade”, pondera Nando Reis. Cássia Eller era dúbia tanto na carreira artística quanto na vida pessoal. Uma figura incrivelmente doce e frágil, diferente da imagem forte e avassaladora dos palcos, mas que trazia na vida pessoal pelo menos uma das marcas da artista: era amada por todos que cruzaram seu caminho. “Ela era ácida e meiga ao mesmo tempo e essa dualidade fazia dela uma pessoa diferente”, revela Djavan.


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falando de música

Pensar

por ERICO DE ALMEIDA MANGARAVITE

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

UM CONCERTO PARA SAUDAR O ANO NOVO

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xistem três elementos que fazem parte das tradições vienenses: O, du lieber Augustin, Sachertorte e Das Neujahrskonzert der Wiener Philharmoniker. Como para a maioria de nós, brasileiros, o idioma alemão é um pouco assustador, vamos às explicações: o primeiro elemento é uma canção que remonta à época da Grande Peste Vienense, mas que hoje está associada a festas nas quais são ingeridas grandes quantidades de cerveja; o segundo é uma torta de chocolate, cujo sabor não faz jus à fama que tem a iguaria; o terceiro é o Concerto de Ano Novo da Orquestra Filarmônica de Viena. Sim, a Orquestra Filarmônica de Viena, essa renomada e antiga instituição musical que se destaca por diversas peculiaridades. Lá, os músicos têm grande autonomia e deliberam a respeito de diversos assuntos de interesse do grupo, em uma forma rara de autogestão extremamente democrática. Em numerosos casos, os filhos seguem a carreira dos pais, sucedendo-os nos quadros da orquestra, de modo que muitos membros atuais podem orgulhosamente afirmar que seus antepassados se apresentaram para plateias que incluíram celebridades como os compositores Richard Wagner e Anton Bruckner, ou foram dirigidos por Gustav Mahler e Richard Strauss (esses últimos, além de compor, também regiam). Outros detalhes dignos de nota são a utilização de oboés e trompas diferenciados daqueles utilizados pela grande maioria das demais orquestras e, até alguns anos atrás, a não aceitação de mulheres em seus quadros fixos (característica comum a outras orquestras europeias). Felizmente, nesse último aspecto o anacronismo saiu de cena e hoje uma mulher ocupa o honroso posto de violinista principal da Filarmônica, ao lado de mais três colegas, todos do sexo masculino: trata-se da búlgara Albena Danailova, a primeira Konzertmeisterin desde a fundação do conjunto. Significativamente, nunca houve a figura de um regente titular: os músicos convidam quem bem entendem. Essa independência já rendeu boas estórias, como a resposta que um dos músicos da Filarmônica teria dado a um amigo que lhe perguntou qual obra determinado maestro convidado iria reger em um concerto – “o que ele vai reger eu não sei. Nós iremos tocar a Sinfonia Pastoral!” É esta idiossincrática orquestra que, nas manhãs do primeiro dia de janeiro, executa desde 1941 o famoso Concerto de Ano Novo – a primeira edição, ex-

DIVULGAÇÃO

Willi Boskovsky regeu durante décadas a famosa apresentação da Orquestra Filarmônica de Viena, com peças de Johann Strauss I (no alto) e Johann Strauss II

cepcionalmente, ocorreu no dia 31 de dezembro de 1939. No início, o regente convidado Clemens Krauss comandava o espetáculo. Com a sua morte em 1954, foi substituído no concerto seguinte pelo lendário Willi Boskovsky, primeiro violino da orquestra desde 1936.

Interação

Boskovsky, que esteve à frente dos concertos até 1979, era um verdadeiro mestre de cerimônias. Na melhor acepção do termo, conduzia a orquestra com um sorriso simpático no rosto, ora usando a batuta, ora com o violino nas mãos (arco na direita, instrumento na esquerda), alternando em certas obras regência e execução de solos – como nas “Csárdás” (dança folclórica de origem húngara) da ópera “Ritter Pázmán” de Johann Strauss II. Dava instruções ao público para tornar o evento mais interativo e fazia pequenos discursos, tudo de acordo com o caráter festivo do concerto. Havia ainda a carismática figura do percussionista Franz Broschek, que surpreendia os espectadores com aparições marcadas por um senso de humor bastante peculiar – fantasiava-se de jóquei, de camponês, de ferreiro, dependendo do título

ou do tema da composição. Também era capaz de comer salsichas e tomar cerveja durante a execução de uma polca, para delírio da audiência. Em seguida, atirava brindes para todos. No concerto de 1969, entrou vestido de militar, carregando um leitão debaixo do braço enquanto saudava o público e distribuía porquinhos em miniatura para os violinistas, sem se incomodar com os guinchos desesperados do suíno: na Áustria, o porco é considerado portador de boa sorte, sendo consumido fartamente nos banquetes de Ano Novo. Já em 1972, trajado de bandido, Franz brincou de furtar diversos itens dos instrumentistas da orquestra, incluindo um saco de dinheiro que estava escondido dentro da tuba, para ao final dar um tiro para o alto – felizmente, de festim – e em seguida desejar a todos um bom ano novo. Parte dessas manifestações típicas do humor austríaco se perdeu com a aposentadoria de Boskovsky, seguida, alguns anos depois, pela de Broschek. A orquestra passou a contar nos Concertos de Ano Novo com regentes convidados. Não obstante a indiscutível competência de todos os que figuraram nos programas desde 1980, o fato é que o evento ficou mais comercial, uma vez que a figura de um grande regente como Lorin Maazel, Her-

bert von Karajan ou Riccardo Muti à frente da orquestra tornou o produto ainda mais vendável para emissoras de televisão do mundo inteiro. Estima-se a audiência atual em cerca de 50 milhões de pessoas. O repertório do concerto não varia muito: peças dos Strauss (Johann I e seus filhos Johann II, Josef e Eduard), que podem ser valsas, marchas, polcas, galopes... enfim, diversas formas de música ligeira. Excepcionalmente, alguns outros compositores são executados – notabilizam-se os exemplos de Otto Nicolai (fundador da orquestra) e do hoje quase esquecido Joseph Lanner (grande rival, em vida, de Johann Strauss I). Peças que não podem faltar são a valsa “O Danúbio Azul” e a “Marcha Radetzky”. E que ninguém diga que esse repertório é de segunda categoria. Muito pelo contrário: as composições do clã austríaco dos Strauss são frequentemente executadas por orquestras e regentes de excelente reputação. Com efeito, em certa ocasião, ao conceder um autógrafo à enteada de Johann Strauss II, Brahms rabiscou as primeiras notas da valsa “O Danúbio Azul”, escrevendo ao lado: “Infelizmente, não (composta) por Johannes Brahms”. Assim, como dizem os vienenses, Prosit Neujahr! – Feliz Ano Novo!


6 Pensar

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

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história

Pensar

por RAFAEL SIMÕES

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

Um dos mais importantes historiadores em atividade, Hobsbawm relaciona a solução dos problemas da sociedade atual ao estudo das questões propostas pelo filósofo alemão há mais de 150 anos

MARCELO ALVES/FOLHAPRESS

Obra do intelectual britânico, de 94 anos, é marcada pela identificação dos elementos-chave dos processos históricos com base em ampla revisão bibliográfica

COMO MUDAR O MUNDO PELO MARXISMO EM NOVO LIVRO, ERIC HOBSBAWM APONTA AS IDEIAS DE MARX COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO

E

ric Hobsbawm nos brinda, mais uma vez, com um livro magistral. Historiador dos mais competentes, sua obra é dedicada ao período contemporâneo e várias de suas manifestações. Desde os principais eventos/processos históricos, como as Revoluções Francesa e Industrial, até movimentos como o nacionalismo e o que ele denominou de banditismo social. Agora, com esse seu “Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840 – 2011” (Companhia das Letras), Hobsbawm faz uma reavaliação bastante ampla e generosa daquela que é a sua principal influência teórica: o marxismo. Algo ao mesmo tempo ousado, num momento em que o marxismo ainda é majoritariamente identificado com o socialismo estilo soviético, e instigante, com a proposta de título que nos chama a reflexão para a persistente necessidade de se mudar a realidade com a qual nos defrontamos. Hobsbawm acredita nessa necessidade de se mudar o mundo. Já na sua autobiografia “Tempos interessantes: uma vida no século XX”, ele deixava isso claro ao terminar a obra afirmando que “a injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar sozinho”. Voltando para a obra que hoje nos interessa, o autor destaca que ela pretende ser “um estudo sobre a evolução e o impacto póstumo do pensamento de Marx, e seu amigo Engels...”. E ele faz isso de maneira ao mesmo tempo didática e profunda, com clareza e intensidade. Hobsbawm é um entendedor do assunto a que se propõe analisar. Em que pese recuperar parte de seu estudo mais amplo sobre a História do Marxismo, “Como mudar o mundo” adota uma perspectiva que só a profunda crise, enfrentada por essa corrente de pensamento nos últimos 20 ou 30 anos, poderia proporcionar. Hobsbawm chama a atenção para o fato de que Marx é um pensador para o século XXI. Surpreendente? Não. O marxismo libertou-se, com o colapso da URSS, do leninismo, na teoria e na prática; e o mundo globalizado que emerge e se constrói a partir da década de 1990 apresenta características que o jovem Marx, do Manifesto Comunista, já apontava então. Evidentemente que sendo um “não-ortodoxo”, Hobsbawm não pretende, de algum modo diferente, mais uma vez canonizar Marx em algum panteão de semideuses. Ele afirma, com todas as letras, que grande parte do que Marx escreveu “está obsoleto (…) ou não é mais aceitável”. Nessa obra, Hobsbawm nos mostra como a construção do marxismo bebe em fontes muito mais complexas e

Hobsbawm e seus clássicos Escritor da contemporaneidade, Hobsbawm tornou-se mundialmente conhecido depois que venceu seu pudor em tratar de períodos históricos mais recentes. Sua trilogia mais famosa, mais tarde transformada em tetralogia, cobre o período que vai da Revolução Francesa, em 1789, até a derrocada do socialismo

soviético em 1991. Sua obra é marcada por uma tentativa, de sucesso ao meu juízo, de identificar os elementos-chave dos processos históricos, sempre sustentada por ampla revisão bibliográfica e por um conjunto significativo de dados sociais e econômicos. O autor não faz narrativa histórica.

A Era das Revoluções: 1789–1848 Publicado em 1962, abrange o período que vai da Revolução Francesa até o fim das ondas revolucionárias que abalaram a Europa e os Estados Unidos em meados do século XIX. Fala das guerras revolucionárias e napoleônicas e do nacionalismo em ascensão.

A Era do Capital: 1848–1875 Publicado em 1975, analisa o grande processo de desenvolvimento do capitalismo, que unifica o mundo e constrói as nações modernas, além de gerar as novas forças da democracia. Destaca guerras e conflitos e a presença cada vez mais intensa do capitalismo pelo mundo, suas características e consequências.

A Era dos Impérios: 1875–1914 Lançado em 1987, compreende o período da primeira grande crise do capitalismo mundial, do início da década de 1870 até o início da década de 1890. Discute o processo de desenvolvimento acelerado do capitalismo, com suas mudanças sociais e tecnológicas e sua nova onda colonial, a força e as conquistas dos movimentos trabalhistas e a situação das mulheres, das artes e das ciências, até o início da Primeira Guerra Mundial.

A Era dos Extremos: 1914–1991 Obra magna de Hobsbawm, de 1994. Analisa o breve século XX, incluindo a Era da guerra total (1914-1945), com as duas grandes guerras mundiais; o nazifascismo e a crise de 1929; a Era de Ouro (1945-1973), com seu desenvolvimento econômico e social, somado às conquistas culturais; além da Guerra Fria, e o desmoronamento (1973–1991), com as crises do petróleo, os movimentos revolucionários, o fim do socialismo real e da Guerra Fria.

amplas do que gostariam de assumir os ortodoxos. Destaca que um dos grandes apetrechos de Marx – além de ter sido o primeiro a apreender ou buscar o mundo com a sua inteireza política, econômica, científica e filosófica – é a sua metodologia investigativa, que produziu e continua proporcionando “diferentes resultados e perspectivas políticas”.

Chama a atenção, também, para a influência de inúmeros pensadores e mesmo as escolas surgidas dentro do Iluminismo, e para o socialismo utópico, tão fortemente criticado por Marx e Engels e, por isso, desprezado por inúmeros analistas na formação do pensamento marxista. Pensadores tais como Saint Simon, com suas ideias sobre a “exploração do

homem pelo homem” ou de que “a todo homem deve ser garantido o livre desenvolvimento de suas capacidades naturais”; e Charles Fourier, pela sua crítica à sociedade burguesa, sua defesa da emancipação das mulheres e sua visão dialética da história, estão presentes no marxismo; e, dando um pulo no tempo, para o único pensador pós-Marx e Engels citado na obra, Antonio Gramsci, destacado por Hobsbawm como “o pensamento mais original surgido no Ocidente desde 1917”, e que teve como principal contribuição para o marxismo a construção de uma “teoria marxista da política”.

Críticos

Como não poderia deixar de ser para um pensador de formação marxista, Hobsbawm faz uma caminhada pelo desenrolar das ideias de Marx e Engels pela história, não sem antes destacar alguns de seus críticos, alguns mais intensos, outros pontuais, mesmo reconhecendo neles algo positivo. Hobsbawm destaca o processo de afirmação do marxismo, que começa ainda na década de 1880, com o crescimento do movimento operário; o seu momento de antifascismo, entre 1929 e 1945, exceto o período do acordo Hitler-Stálin de 1939-1941; a recepção e a percepção contraditória no período entre 1945 e 1983, negativamente afetada pelos acontecimentos do socialismo real e positivamente impactada pelo desenrolar das lutas de libertação nacional no Terceiro Mundo; e, por fim, o período de recessão, entre 1983 e 2000, graças à derrocada da URSS e de seus satélites e às mudanças radicais de rumo na China. Ao revisitar Marx, Engels e o marxismo, sua formação e história, Hobsbawm nos permite ver, sem a pressão do debate entre os poderes do século XX, que o legado desses pensadores para a compreensão do mundo continua atual. Como ele afirma: “Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos”. A melodia do marxismo está no método – essa tem sido a força da sua história de quase dois séculos.

Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo, 1840-2011 Eric Hobsbawm Tradução: Donaldson M. Garschagen Companhia das Letras 424 páginas Quanto: R$ 57


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resenha por BRUNELLA FRANÇA

DOIS MUNDOS, MESMO DESTINO Danieli Hautequest. Clube dos Autores. 224 págs. Quanto: R$ 35,80 (livro impresso); R$ 8 (livro digital). Onde comprar: http://clubedeautores.com.br e http://danielihautequest.com

LITERATURA FANTÁSTICA MADE IN BRASIL

Autora da trilogia “Dois mundos, mesmo destino”, Danieli Hautequest utiliza os elementos mais surpreendentes da obra de J.R.R. Tolkien para criar um estilo próprio

E

xiste um universo paralelo a este, onde o tempo é contado de maneira diferente, onde há duas luas vermelhas no céu, numa dimensão que poucos puderam conhecer. Este é o mundo de Tara Tehänsien, uma garota de aparência um tanto quanto incomum e inusitadas particularidades. Dois metros de altura, cabelos vermelho-mogno e olhos cor de ametista. Isso sem contar o fato de ter sido criada morando nas montanhas com monges tibetanos. Assim começa a trilogia “Dois mundos, mesmo destino”, da escritora independente Danieli Hautequest, que não apenas escreve, como também ilustra a obra. O volume um, “Despertar”, é um cartão de visitas de arrebatar, capaz de fazer o leitor se perguntar o que vem pela frente e ansiar pela continuação. “Despertar” vai da Inglaterra ao Tibet. E de lá, para outro universo, num voo sem escalas, mas conduzido com maestria. Acompanhar o despertar de uma mulher já é algo mágico. Tratando-se de Tara, ou Sua Majestade Lilädein Tehänsein Uhülan, é ainda mais especial. Ao longo de toda a leitura, aqueles que já conhecem um pouco da literatura fantástica, podem muito bem se lembrar de J.R.R. Tolkien. Por quê? Danieli Hautequest entrega aos leitores uma obra com personagens intensos e marcantes; coerência de ações; além de ter a destreza para criar mundos, povos e seres tão absurdamente incríveis e reais, sem lacunas. E é emocionante ver o talento de um grande mestre presente na obra de uma jovem escritora brasileira. Arrisco-me a chamá-la de “Tolkien de saias”. Não que seja uma cópia, não que seja idêntica, longe disso. Mas usa os elementos mais surpreendentes da literatura do escritor sul-africano para criar algo próprio, num estilo que lhe é peculiar. Trovähien é um planeta que não pertence a este universo, com duas luas vermelhas e invadido por um povo mais robô que “humano” que não entende de magia, os kasacktrins. Sua população já quase não tem o que comer, quase não possui recursos minerais e energéticos e está sendo dizimada pelos invasores. Cabe à rainha guerreira e a seus escolhidos

DANIELI HAUTEQUEST

Perfil DANIELI HAUTEQUEST Cursando o último período de Letras Português-Inglês, é escritora, ilustradora, revisora, diagramadora e capista. Autora e fundadora do ABCLes (www.abcles.com.br) Idade: 34 anos (16 de janeiro de 1977) Onde nasceu: Carioca de berço, residente em Belo Horizonte (MG). Publicações: Integrante da coletânea “Elas Contam”, publicada em 2006, pela Corações e Mentes, com o conto “Apenas Passado”. Em 2007, publicou “Suposições: As Surpresas do Amor”, pela GIZ. O livro será relançado em breve em uma edição revista e ampliada.

Escritora – que também faz as ilustrações – apresenta mulheres fortes e guerreiras

empreenderem uma jornada repleta de surpresas e perigos para encontrar um cristal que, despertado pela magia correta, poderá derrotar os inimigos. Na obra, temos ainda um resgate do regime de matriarcado, quando os direitos de casta e o poder de governar eram das mulheres. E em nenhum momento há a estupidez da guerra entre os sexos. Os homens são tão valorosos quanto as mulheres. Guerreiros, conselheiros, mestres de armas,

comandantes. Mas o direito a reger e à sucessão é feminino pela naturalidade das coisas: é a mulher que gera o sagrado da vida, a descendência. A terra é fêmea, a política, a vida, a diplomacia, a sabedoria e a harmonia também o são. E as mulheres criadas pela escritora são apaixonantes e fortes. Sejam as guerreiras imbatíveis, magas com poderes fantásticos, senhoras do lar, meninas impetuosas. Diversas e únicas. Em sua escrita fantástica, Danieli Hau-

tequest consegue criar, como pano de fundo, uma metáfora do que é a vida: o despertar, a aceitação, a luta diária pelo direito de ser e, principalmente, a escolha por tomar a vida nas próprias mãos e conduzi-la de acordo com a essência. E ninguém está ali para dizer que será fácil. Ninguém vai dizer que não haverá dor ou lágrimas. Mas para mostrar que para a existência valer a pena, para se alcançar objetivos e ser em plenitude, é preciso coragem. Muita coragem. E amor. É também mérito de DH criar uma história capaz de cativar não apenas leitoras lésbicas – público-alvo da escritora. A qualidade da história contada é literatura, sem rótulos, sem preconceitos. “Dois mundos, mesmo destino – Despertar” não é uma história de amor lésbico. É uma história de literatura fantástica da qual as protagonistas são duas mulheres que se amam. O público amante de boas histórias tem em mãos uma obra de qualidade e com nuances e diferenças do que estão acostumados a ver em outros livros. A segunda edição do livro, que encontrava-se esgotado, está disponível para venda no Clube dos Autores e também em formato digital, versão para ePub, eKindle e em PDF. Todos, pelo preço de R$ 8.


poesias

crônicas

O BEIJO DO SOL

NAS CURVAS DO TEMPO

SUELY BISPO

por CAÊ GUIMARÃES

No primeiro dia do ano Acordei com o sol Beijando meu rosto. Aos poucos esquentou Todo meu corpo E já brincava De fazer amor comigo. Era como se Deus Dissesse-me: Feliz ano novo!

NEGRA ALMA Alma negra Alma branca E alma tem cor? Se tiver Tem a cor do sono mais profundo Em que mergulham Todas as almas No dia final.

Os grãos de areia seguem caindo pelo estreito vão da ampulheta. E assim seguirão enquanto estivermos aqui para contar o tempo, para registrar os tantos e os tentos. Para eliminar as traças e limar os pedriscos do reboco das mágoas. Para cultivar as rugas e eliminar as rusgas. Um dos entendimentos que a vida pode nos dar, creio, é que não estamos no mundo a passeio. O que não quer dizer que haja sentido em tudo isso ou nisso tudo. Talvez a eternidade seja composta disso, um eterno vagar entre aprender e ensinar, correr e observar, explodir e sedimentar. Talvez o que entendemos por existência seja um grande laboratório onde as pipetas e sifões são trocados por pensamentos e emoções, ainda que vastos e imperfeitos. Acontece que certo dia você abre os

olhos e entende com precisão que o tempo passou. Não no sentido figurado, sempre é tempo de fazer o que tu queres, pois é tudo da Lei, disse um baiano arretado que não ouço há tempos. Falo aqui do Cronos que nos devora, das folhas de calendário sendo destacadas paulatinamente, mês após mês, ano após ano. Das páginas que amarelam, dos cabelos que prateiam ou se tornam escassos. E dos novos seres, filhos que crescem e interagem, como se chegassem a este palco doido e doído estreando novas cores e vozes. E novas formas de interpretar tudo. Há alguns dias partilhei com amigos queridos, alguns distantes no tempo e no espaço, boas horas de boemia e lembranças. Percebemos todos que o mundo não acabará em 2012. E que ainda somos os moleques que começavam a engatinhar na vida pro-

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fissional nos bancos das salas de aula na Ufes, nas cantinas entre café e sinuca, nas festas entre birita e fumaça. Há mais ou menos 20 anos. Foi inevitável lembrar do filme “As Invasões Bárbaras”, ainda que estejamos hoje com a idade dos personagens em seu antecessor, “O Declínio do Império Americano”, clássico dos anos 80. Chegamos todos até aqui com o acúmulo que veio desde lá. Somamos, multiplicamos, dividimos, subtraímos. Fracionamos e elevamos coisas às potências máximas de cada um. Neste encontro, entre copas y tapas, abraços e sorrisos, lembranças e riso fácil, pensei vislumbrar um sentido para o tempo, a vida, a finitude. Que nada. Era apenas a leve embriaguês que se assomava aos arquivos da memória abertos. Só deu pra confirmar, mais uma vez, que se na vida não há sentido, temos todas as possibilidades do devir advindo da experiência de estarmos vivos. E assim seguirá sendo enquanto estivermos aqui para contar o tempo, para registrar os tantos e os tentos. Os grãos de areia seguem caindo pelo estreito vão da ampulheta. Que venha 2000 e doce.

DESNUDALMA Naquele dia Do outro lado da porta Seus olhos penetraram Em mim Com tal profundidade Como se vissem Minha alma Nua!

NEWTON BRAGA: CENTENÁRIO DA SENSIBILIDADE por ANTÔNIO MARCOS ROLY GARCIAS

PALAVRAS TONTAS Intervalos de silêncio entrecortam palavras tantas que ficam tontas no desconserto da emoção. Parecem fugir voam com os passarinhos ou nas asas das borboletas. Voltam trazendo o perfume das flores preenchendo espaços de palavras não ditas...

Uma chuva fina e fria dança e esfria a manhã. Não é uma chuva de precisão assim gorda, chuva de corda, daquelas de cachorro beber água em pé. Os pingos no fio são apenas pingos. Imagino Newton ali, sentado em uma das cadeiras, em terceira pessoa. O neto que veio dos Estados Unidos somente para as comemorações do centenário de nascimento do avô é convocado de improviso a se declarar. Pego assim, vacila nas primeiras palavras em um português mudado de casa, mas não vacila no que tem a dizer. O avô toma de um pedaço de papel e anota o neto. Ele sentencia o quanto tem presenciado a certeza e a exatidão como guias nas decisões, todas desnutridas de sensibilidade. Suas palavras contagiam e, como a chuva calma, infiltram

perturbações. O sol que faltava para fazer estrelas os pingos. A manhã se carrega de metáforas. O avô recolhe ao bolso mais uma croniqueta. Todos os discursos avante, inflamados e flamados, ficam sob a nuvem das palavras dele, o neto. É Newton vivo em cada sílaba agregada na construção de cada palavra. A essência newtonbraguiana sombreia os inflados. Nenhum brilho encontra escuridão para reinar. A chuva rompe. As palavras do neto-newton rasgam, sublinham as homenagens. The end? À noite, o Teatro Rubem Braga lotado reserva espaço para mais Newton. Vejo-o mais uma vez, comum, entre a plateia.

Eu não sabia que era filha do Newton. Era filha do meu pai. Ao ouvir o depoimento da filha, Newton recolhe mais uma papeleta ao bolso. Anota também a outra filha que rompe a timidez e pede para falar do pai. Não lhe deram oportunidade. Por que a ignoraram? Faz parte dos festejos o concurso Newton Braga. Em meio a oratórias, dá-se início à premiação. Os vencedores de cada categoria recebem seus prêmios. Newton impaciente quer ver o desenho, o curta e o conto. Os vencedores desejando mostrar porque foram vencedores. Mas onde foram parar os trabalhos? Na grande noite festiva, aplausos para os prêmios. Ao contrário de discursos, sensibilidade não se ensaia.


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audiovisual

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por MARCOS VERONESE

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NOUVELLE VAGUE – O TSUNAMI DO CINEMA NO MUNDO Especialista analisa o legado da escola francesa que mudou o modo de olhar e fazer a sétima arte, tornando-a autoral e rebelde como seus próprios criadores

DIVULGAÇÃO

“O sonho é o único direito que não se pode proibir” Glauber Rocha

A

s revoluções são inerentes ao ser humano e existem para que haja rupturas no campo do direito civil, da política internacional, das mudanças sociais, da literatura, da arte e da cultura em geral. Na França, a Nouvelle Vague, ou a Nova Onda, surge em 1958 e forma-se em uma revista. Escola essa concebida através do teórico André Bazin, fundador do Cahiers Du Cinéma, a bíblia dos cinéfilos. Bazin tinha um texto refinado, era extremamente carismático e exercia enorme influência naqueles que seriam os soldados da revolução imagética francesa. Ele não deixou uma teoria acabada sobre o cinema, tinha uma visão humanista e definia-se como cristão franciscano. Entendia o cinema como uma experiência iluminista; a tela, para ele, não era uma moldura, mas uma janela por meio da qual os espectadores deveriam reaprender a olhar o mundo. É idiotice achar que a Nouvelle Vague não teve antecedente, pois ela não só teve como também reverenciava os pioneiros do final do século XIX. Reconhecia gênios como os irmãos Max, Charlie Chaplin, o criador de Carlitos, o vagabundo, um artista genial, o mais incontestável gênio que o cinema conheceu desde as suas origens, e que elevou o cinema a uma arte superior, comparável a Molière. David Wark Griffith também faz parte da galeria de honraria da Nouvelle Vague. Norte-americano dos Estados do Sul, natural de uma família arruinada pela guerra civil, ele realizou seu primeiro filme em 1908: “The Adventures of Dolly”. Influenciado por sua ascendência sulista, buscou o tema de “O despertar de uma nação” em um romance violentamente hostil para com os negros. O caráter racista de sua obra provocou reações sangrentas em várias cidades americanas. Essas manifestações serviram de publicidade para o filme, que custou cem mil dólares e faturou mais de 20 milhões. Griffith tirou proveito de seu sucesso para filmar “Intolerância”, artisticamente uma obra-prima, mas financeiramente uma catástrofe. Esses dois filmes elevam o cinema à classe de grande espetáculo, sendo Griffith o precursor.

“Os Incompreendidos” (1959), estreia de François Truffaut, rendeu ao cineasta o prêmio de melhor diretor em Cannes

desprezo”. Já a formação de Legrand é jazzística, o que contribuiu para a criação do primeiro filme totalmente cantado da história do cinema, “Os guarda-chuvas do amor”, dirigido por Jacques Demy em 1964.

Crepúsculo

O teórico André Bazin, fundador do Cahiers Du Cinéma, a bíblia dos cinéfilos

A admiração e o reconhecimento a esses gênios levaram os cineastas da Nouvelle Vague a se autodenominarem filhos da história do cinema. Os jovens da Cahier, e seu núcleo central tinham como integrante Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette e François Truffaut, que Bazin resgatou da delinquência. Todos eram jornalistas, críticos de cinema e intelectuais, e por meio de suas críticas já havia um enunciado do que se preparavam para produzir. Essa obstinação os leva a uma subversão hierárquica que os afasta dos cineastas franceses naquele momento. Passam a atacar de forma virulenta os clássicos do cinema francês e os realizadores contemporâneos, mas respeitam e admiram Renoir e Robert Bresson. O cinema francês realista e poético, anterior à guerra, realizado por cineastas como Marcel Carné, de “Trágico amanhecer”, “Hotel do Norte” e os “Visitantes da noite...”, e por Jean Cocteau, de “A bela e a fera”, estavam em alta.

Os renegados

A genialidade dos que produziram e alavancaram o cinema francês nos anos 50 ficou à margem do processo da Nouvelle

Vague, como Jacques Demy, que sonhava em realizar musicais hollywoodianos, renovou o gênero e antecipou em vários anos o cinema de citação que utilizava em seus filmes. Delicado, ele dirigia filmes com cores matissianas, e foi guilhotinado pelos modernos diretores do Cahiers, todos chauvinistas. Claude-Autant Lara, um pioneiro à frente de seu tempo, adaptou em 1947 “Le Diable au Corps” (O diabo no corpo), do jornalista, literato e modernista Raymond Radiguet (1903-1923), amigo de Picasso, May Jacob e Jean Cocteau. Publicado em 1923, o livro aborda o adultério praticado por uma jovem que trai o marido enquanto ele luta no front, escandalizando o país que acabara de sair da Primeira Guerra. Em 1954, é a vez de “O vermelho e o negro”, de Henri-Marie Beyle (1783-1842), mais conhecido como Stendhal, que faz uma análise da sociedade francesa na época da restauração, onde representa as ambições e contradições da emergente sociedade de classes de sua época. Lara também realiza uma alegoria sobre o período da ocupação alemã, em que um pintor, contratado para transportar um porco para um ponto do outro lado de Paris, enfrenta soldados alemães e a po-

Claude Chabrol deu início à revolução

lícia francesa em cenas memoráveis, onde a personagem diverte-se com a façanha, arriscando a própria vida. Em 1956, Henri-Georges Clouzot lança “Le Mystère Picasso”, documentário sobre o pintor que transforma a tela em cinemascope, pois Picasso reclama que a tela em que está pintando é pequena. Clouzot já havia realizado o clássico “O salário do medo”, uma obra-prima, e aproveita para mostrar aos modernos uma novidade: o time-lapse photography, recurso que comprime o tempo concreto de ação. Todos esses filmes são ousados e anteriores ao que seria a primeira realização da Nouvelle Vague, “O Belo Sergio”, de Chabrol. Na verdade, o que eles buscavam era a libertação de modelos estereotipados, acadêmicos, reivindicando essa liberdade também no campo da realização, ou seja, queriam contornar a indústria audiovisual libertando-se dos pesados encargos financeiros, fazendo filmes de baixo orçamento, ganhando em leveza, rapidez, flexibilidade e inventividade. Para tanto, seguem o exemplo do etnocineasta Jean Rouch, que utiliza uma câmera 16 mm leve e discreta para captar imagens de países exóticos como a Costa do Marfim e a Nigéria. Exemplo

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Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg caminham pela Champs-Élysées, em “Acossado” (1959), primeiro longa de Godard

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seguido por um dos inventores do neorrealismo, Roberto Rossellini, que aplica o método no filme “Índia 58”. Claude Chabrol pavimentou e mudou o modo de fazer cinema, inovou na edição, desconstruiu a linguagem clássica do cinema, levando a câmera para a rua. Chabrol é o soldado que dá o primeiro tiro dessa revolução com seu primeiro filme, “Nas Garras do Vício”, em 1958. Essa data marca o tsunami produzido por esses cineastas sem dinheiro e tendo como meta a política do cinema autoral. Em seguida, vieram Jean-Luc Godard com “Acossado”,

François Truffaut com “Os incompreendidos”, Eric Rohmer com “O signo do leão”, Jacques Rivette com “Paris nos pertence” e Alan Resnais com “Hiroshima meu amor”.

Música

Os filmes da Nouvelle Vague não existem sem música. Ela marca o drama existencial e substitui a palavra que não pode ser dita, por afasia ou impotência do discurso verbal de seus personagens. Nos filmes de Truffaut, as assinaturas de Jean Constantin, Antoine

Duhamel e Georges Delerue respondem pela coautoria de filmes como “Os incompreendidos” (Constantin), “Jules e Jim” (Delerue) e “Beijos roubados” (Duhamel). Nos filmes dirigidos por Godard, a trilha era formada por Duhamel, Delerue e Michel Legrand. Nos filmes de Chabrol, o compositor Pierre Jansen assume a batuta. Delerue e Legrand foram os compositores mais prolíficos da Nouvelle Vague. O primeiro, já morto, tinha formação erudita. Era apaixonado por Vivaldi e o Barroco. É uma influência nítida em trilhas de filmes como “O

“Acabou-se a brincadeira, a juventude passou”. Com essa frase Claude Chabrol dá início à crise de identidade do grupo, e com ela a força da industrialização antropofágica do cinema americano, que viu no baixo orçamento da Nouvelle Vague um nicho de mercado. A produção que surgiu nesta crise em nada se compara evidentemente ao cinema produzido por essa geração. O tsunami provocado pela Nouvelle Vague também possibilitou a entrada de outros países no universo audiovisual. A Polônia permite que Andrzej Wajda realize “Cinzas e diamante”, Roman Polanski filma a obra-prima “A faca na água”, e o tcheco Milos Forman faz “Amadeus” e outras obras provocantes como “Os amores de uma loira”. Na Hungria, o cineasta Jancso filma “Rouges et Blancs” (Vermelho e branco). Países sem indústria cinematográfica apresentam obras como “O mundo de Apu”, rodado na Índia, ou “Gare Centrale”, do egípcio Youssef Chahine. A Bélgica destacou-se com André Delvaux e seu “Un soir un train” (Laços eternos). No Brasil, Glauber Rocha engajou-se nas raízes populares e na denúncia das alienações. E assim o cinema, que deu seus primeiros passos com as míticas projeções dos Lumière, em 1895, desde então vem ocupando importante papel no cenário histórico-social, artístico e cultural no mundo, além de documentar as grandes tragédias e eventos marcantes na história da humanidade, seja de forma ficcional ou documental. Portanto, caríssimos leitores, o grande legado da Nouvelle Vague foi a reinvenção do cinema. Uma escola que mudou o modo de olhar e fazer a sétima arte, tornando-a autoral e rebelde como seus próprios criadores, e possibilitando que uma nova geração composta por Bertolucci, Spielberg, Brian de Palma, Scorsese, Coppola, e por tantos outros, se firmasse no novo conceito de realização cinematográfica mundo afora.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO DE 2011

ficção por IVAN BORGO

O MOINHO A explosão só não foi uma total surpresa porque antes de ouvi-la Gotardo viu o cano prateado do revólver apontado em sua direção – descreve o narrador deste conto ambientado na lavoura

L

á fora o vento frio geme como alma penada e consegue entrar pelas frinchas das portas e janelas. A portinha do sótão, quebrada há meses, permite a entrada de golfadas de ar gelado. Passava pouco das cinco da tarde, mas o céu nublado de inverno anunciava o princípio da noite. A neblina da serra desceu mais sobre a mata, chegando na borda do cafezal. Ele levantou-se da cadeira da sala e foi até a cozinha olhar a panela fervendo sobre o braseiro formado por grossas achas de lenha. Viu com satisfação as cascas de banana da terra com o característico corte longitudinal, mostrando que estavam quase prontas para serem retiradas do fogo. Esperou mais alguns minutos, retirou a panela do fogo e colocou-a sob a bica de água muito fria que vinha de uma nascente do morro fronteiro. Depois de alguns instantes pegou uma das bananas e começou a untá-la com manteiga da colônia. Lentamente passou a saborear a fruta perto da janela donde se avistava um pedaço da matinha que subia pelo morro até a divisa de sua propriedade. Não comera nem a metade da banana e desfrutava um daqueles momentos em que se podia julgar quase feliz, apesar de tudo, quando ouviu passos no terreiro. Foi até à porta e viu um homem parado. As folhas da laranjeira plantadas perto do oitão dificultavam a visão total do recém-chegado. Podia ver contudo que se tratava de um desconhecido. Baixo, moreno, atarracado, com uma barba de muitos dias e um chapéu de feltro cinzento, o desconhecido permaneceu parado sem dizer nada. Olhava atentamente para a porta. Gotardo, imóvel. Andou um pouco mais para frente e encarou-o: Gotardo Ferruccio? – perguntou ele. É o meu nome – respondeu. O senhor costuma pegar empreitadas de pintura em casas? Às vezes. Por quê? Um serviço lá na volta do Wantuir. Um profundo alívio, a pressão da cabeça caindo rapidamente e logo a sensação de conforto que voltava. Enfim, nada a ver com a nuvem de ameaças veladas dos últimos meses, que iam se esvaindo a ponto de quase não pensar

COLETIVO PEIXARIA

ços na varanda e antes de entrar em delírio ainda chegou a ver um fino veio de sangue correndo pelas tábuas de cedro do assoalho. Um palácio de cristal, chão transparente. Não consegue equilibrar-se e, por isso, vai segurando nas quinas dos móveis dourados e ferindo as mãos. Segue depois por um corredor muito longo. Há uma luz muito longe, que o atrai. Mas o chão é escorregadio. Depois de muito esforço chega perto da luz e vê um homem sentado numa cadeira de espaldar longo. O homem aponta um dedo indicador em sua direção e pergunta-lhe com uma voz muito aguda: Construiu o seu moinho ou não? Não sabe que farinha deve ser moída no moinho do Visconde? Que ousadia é essa? Construiu ou não? Sim, Excelência, mas é um moinho pequeno só... Condenado. Podem levá-lo. O próximo... Viu-se agarrado pelos ombros e jogado para o alto. Teve a impressão de furar as nuvens, mas viu-se, em seguida, caindo rapidamente. Seu corpo jaz agora estatelado no assoalho da varanda da casa. Exatamente no lugar onde caiu logo assim que recebeu o tiro do desconhecido. xxx

mais no assunto. Por instantes, naqueles momentos, quase voltara o fantasma das ameaças que o haviam obrigado a se prevenir. Tantos os rebates falsos que deixou de andar armado. Pensou em convidar o desconhecido para comer algumas daquelas bananas deliciosas, mas antes queria mais detalhes dessa empreitada que aliás chegava na hora certa. O momento era de crise na lavoura. Pelo terceiro ano seguido as colheitas foram suficientes apenas para permitir

que os colonos sobrevivessem. No paiol havia só um feijão muito duro que começava a bichar porque faltou dinheiro para compra de imunizante. Pra quando o senhor quer essa empreitada? – perguntou Gotardo com uma grande satisfação íntima. Pra agora – disse o desconhecido inesperadamente. A explosão só não foi uma total surpresa porque antes de ouvi-la Gotardo viu o cano prateado do revólver apontado em sua direção. Caiu de bru-

Cinqüenta anos mais tarde Gotardo Ferruccio está no mesmo lugar onde outrora sofreu a tentativa de assassinato. A tarde é morna e quieta. Devagar ele vai demorando os olhos em sua plantação de café que agora está bem maior. Mais para a esquerda é a garagem onde estão seus automóveis e jipes e, em outra garagem, uma frota de caminhões. Vai até a cozinha onde há bananas dentro de uma panela com água fervendo. Volta até a varanda e olha a estrada que passa logo adiante. Para um imaginário espectador que estaria passando pela estrada Gotardo acena e diz com funda emoção: O moinho está construído há muito tempo e existem ali algumas toneladas de milho para prepararmos outras tantas toneladas de polenta. Pode avisar ao Sr. Visconde. Publicado originalmente na coletânea “Navegantes”, de Ivan Borgo.


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