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VENÚSIA NEIVA
from MARANHAY - (Revista do Léo ) - 56 - março 2021 - EDUÇÃO ESPECIAL: ANTOLOGIA - MULHERES DE ATENAS
Venúsia Cardoso Neiva nasceu em Grajaú, Maranhão, em 1938.
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De CANÇÃO SOBR O ESPELHO Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1962
Canção sobre o Espelho, que minha jovem conterrânea me fez ler nos seus originais, reflete uma vocação genuína, que eu tenho a alegria de saudar no seu instante matinal. Venúsia Neiva nasceu para as letras e há de resguardar esse pendor, estou certo, numa vida consagrada à poesia. Josué Montello
lembrança 2
e, súbito, esta angústia de pássaro perdido, este incontrolável desejo de subir muito alto, de absorver novas paisagens. olho em torno e contemplo a grave sombra das montanhas. tudo é belo nesta branca manhã de primavera. este contraste me sombreia a alma. temo que as esperanças não sobrevivam ao naufrágio, no branco cemitério de desejos mortos. por que esta angústia me oprime se é tempo de flores e de vozes macias? quando a tarde chegar, sinto que terei sufocado a frágil recordação da alma que não encontrei.
meditação
tarde úmida como uma lágrima. do fundo de minha angústia medito na morte. não basta, meu amor,
que tenhas lábios frescos como a água, que tuas mãos sejam mornas e boas. ó, amor meu, medito na morte, na nossa imensa fragilidade diante de tudo, na vida que é um sopro, que é todo uma sucessão de coisas inúteis.
elegia 2
a densa neblina é fria e fala dos mortos. não há pássaros, mas apenas um vento gelado. a solidão é imensa e amarga. meus olhos se alargam e se enterram, tragicamente, no silêncio da coisas. tristeza de mortos que não retornam e de mão boiando eretas como garras. a criança está dormindo como uma semente na terra. a que era fresca como as flores da manhã, dorme placidamente e não acordará nunca mais! ave que repousa no definitivo crepúsculo.
Flor azul
era uma flor desmaiada e, ao vento, tinha gesto de pássaro que foge ao frio. era azul e nasceu nos primeiros véus da noite. ninguém a viu. ninguém sentiu o seu estranho perfume. só eu que amo as coisas misteriosas e fugaces. e ela se evaporou nas brumas do meu sonho. ó poesia! ó musa! ó inatingível!
o cemitério
cruzes. guirlandas. flores. ciprestes. tudo se confunde num funéreo lamento de loucura. podridão de estátuas que já foram vivas, que sorriam, que choravam, que gritavam ao mundo a inutilidade das coisas mortas. eu sinto o vento a gemer na solidão e no tempo. eu vejo os anjos de mármore incendiarem-se no luar que povoa a cidade deserta.
madrugadas gélidas. dentro de noites gélidas. corujas piando sobre cruzes eretas. coroas de rosas desbotadas. vôos agoureiros de morcegos negros. tudo pede luz. tudo pede vida! alvas sombras entrechocam-se ao ritmo macabro das convulsões do pavor. a morte mora ali. ela vigia seus súditos acorrentados sob lápides marmóreas. nunca mais os deixará sair. para sempre escravizados. até à eternidade, até ao fim dos tempos! até que a ressurreição se processe em suas cinzas esquecidas.
(Canção sobre o Espelho,1962)
Tempos de zona
A gilete se aprofunda sobre um amontoado de sífilis as coxas um mapa de tantas cicatrizes. Em cada mesa uma constante mudança nunca ou quase nunca renovada que é infeliz a nostálgica canção brotando do disco como brota um fruto.
A toalha que envolve o corpo é a miragem de tantas taras é a fumaça perdida no trago é a faca jogada no bueiro é o anel cravado nos dentes é o ouro entranhado no ventre é o líquido da virgindade vendida.
Por dentro de uma garrafa toda uma vida aqui se torna calma. No espaço do gole para o soluço inauguramos os encontros passados com os amigos mais tristes bailando nesta rua 28 vinte e oito vezes apaixonados. (Constelação Marinha, 1993)
A casa de palha
A coberta da casa tinha o verde das palhas. A colheita da lenha ao rebentar da madrugada.
o macio lençol de linho ao calor dos raios solares.
Latas de leite Ninho vazias: raros tanques de guerra, fertilizavam as alegrias dos meus Natais passados.
Nenhuma só moeda queimava as minhas pequeninas mãos. Até o presente era uma irmandade com o futuro sempre fertilizado.
A chama do tempo de leve tudo foi consumindo tudo. Levou os meus carneiros e as verduras do quintal.
o ara da noite se misturou com cinzas: é sufocante! Ó misteriosa e amada natureza, como monótona ficou a existência!
A vergonha
Estou me procurando a cada sombra deste contraditório desencanto. Estas mornas lágrimas cintilam um afeto ruidosamente indeciso.
Já não sei se hoje estou despido ou se neste vale encontrarei o Manto com que haverei nas tardes de cobrir a nudez da minha vergonha no Paraíso.
(Ressonância do Barro, 1993)
Página preparada por Zenilton de Jesus Gayoso Miranda, publicada em out. 2008