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P’RA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE POESIA... E DE POETAS

NAVEGANDO COM JORGE OLIMPIO BENTO

A consagração do direito a uma vida digna, realizada no caminho de perseguição da felicidade, implica a presença acrescida do desporto, a renovação das suas múltiplas práticas e do seu sentido. Sendo a quantidade e qualidade do tempo dedicado ao cultivo do ócio criativo (do qual o desporto é parte) o padrão aferidor do estado de desenvolvimento da civilização e de uma sociedade, podemos afirmar, com base em dados objetivos, que nos encontramos numa era de acentuada regressão civilizacional. Este caminho, que leva ao abismo, tem que ser invertido urgentemente.

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VISITA A TRÁS-OS-MONTES

Vieste por causa da mesa farta e a preço módico?! O pretexto é louvável, porquanto os comes e bebes são de um sabor inigualável; mesmo depois de emborcados, a língua fica a bater palmas ruidosas com o céu da boca. Quem aqui não vem, ignora o requintado paladar da carne de vitela, de cabrito e cordeiro, do lombo de porco, do presunto, das alheiras, dos salpicões e outros enchidos, dos variados queijos de cabra e ovelha, a sério e não ao faz-de-conta. Para não falar no alimentício pão de trigo e centeio, cozido em fornos aquecidos com lenha. E há ainda os vinhos, que descem na garganta e deixam a boca cheia de um corpo aromático, sem pressa de desaparecer. Sendo tudo isto deveras relevante, veste o hábito de humilde peregrino. Admira os versos escritos nas ladeiras pelas mãos calosas dos Prometeus locais. Venera os autores, desmedidos poetas e sonhadores: arroteiam o chão pedregoso e nele plantam vinhedos, oliveiras, amendoeiras, cerdeiros, figueiras, pessegueiros, ameixeiras, morangueiros, laranjeiras, castanheiros, nogueiras, pereiras e macieiras, semeiam melancias e melões, batatas e toda a sorte de hortaliças. Quando o céu vira as costas às suas súplicas e recusa a vinda da chuva, eles regam a terra com o suor que lhes escorre da testa. Colhem então os frutos que nunca houve no paraíso. Aqui é o reino da gratidão e da ascensão, sentidos orientadores para o absoluto e divino. Embora afogados em trabalhos, os titãs arranjam tempo para subir ao alto das serras e montes, para orar e pagar promessas nas capelas e ermidas erguidas às Nossas Senhoras de todos os nomes. Duros e terrosos, comovem-se com a ética e estética dos caminhos e horizontes. Têm os olhos e o espírito tingidos das cores da natureza, como o amarelo das giestas e o branco das urzes que, nesta altura, coroam os outeiros. É pouco? Após a visita, sempre curta, regressarás a casa com a alma encantada e a jura de voltar. Percebeste finalmente que o húmus, onde nasce o transmontano, é uma sarça ardente!

REGRESSO

Para trás ficaram as serras, os vales e as ribeiras, mas continuamos lá. Não, não lavrem na deturpação das nossas proclamações. Somos transmontanos e temos a devida noção do que podemos e valemos. Não nos orgulhamos de nós, porquanto sentimos bem o peso dos inúmeros defeitos que nos ajoujam. Dada a falta de virtudes, afirmamos o orgulho na terra original. Procuramos nela o telurismo que atiça a inquietude, e nas suas fragas e montes o sentido que empina a alma e a insufla da ânsia de subir, de sublimar o chão aferrado à condição. É assim que regressamos à cidade grande e vivemos com a insatisfação de quem sabe da impossibilidade de corresponder ao magma que traz por dentro e o responsabiliza por fora. Vemo-nos em estado de permanente nascimento. Quão exigente obrigação!

DESTRUIÇÃO DA SINGULARIDADE DA UNIVERSIDADE19

Em 14-15 deste mês vai ocorrer a eleição de docentes para o Conselho Geral da U. Porto. As listas concorrentes estão, há muito, no terreno, constituídas por pessoas estimáveis. Reparemos numa delas, com o lema ‘Recentrar a Missão da Universidade com Visão Estratégica’, por ilustrar o ambiente mental reinante. Que ‘recentração’ ou correção de rumo é essa? O essencial da proposta é fácil de resumir, porquanto o óbvio esconde a cabeça na areia e deixa o rabo à mostra. A lengalenga da moda perfaz o extenso rol de propósitos e ‘visões estratégicas’. A formulação cuida de impressionar, carregando nas tintas e recorrendo ao jargão do ‘globish’, usado a esmo, para tudo e para nada. Como os jovens nasceram na era ‘digital’, o ‘modelo educativo’ e os processos de ensino devem ser repensados e privilegiar a dimensão ‘virtual’. E, dada a ‘competitividade´ da globalização e do mercado, os académicos têm que a cultivar e adquirir a mentalidade e a atitude de ‘vencedores’. Ademais, recomenda-se a conversão da universidade num conglomerado de laboratórios, e a outorga a estes da primazia na pósgraduação. É manifesta a tentativa de abandonar e desacreditar a aula presencial, sim, a ‘aula de cátedra’, ponto culminante da docência, em que o professor põe à prova o nível do saber e da erudição, a arte da palavra, da

‘comunicação’ (tornar comum) e transmissão. A aula e tudo quanto ela encerra são objeto de troca; a declaração de amor e paixão elege hoje as ‘competências’, a ‘criatividade’ , a ‘iniciativa’ etc. dos estudantes. Talvez sem saber, os ‘visionários’ evocam a ideia de ‘Progresso’ da Modernidade; porém pervertem-na e o mesmo fazem ao racionalismo científico-tecnológico daquela era. A ciência da Modernidade tinha por alvo a dominação da Terra; o conhecimento científico almejava tornar-nos ‘mestres e possuidores da natureza’. Qual era o intuito desta ambição? A nossa ‘emancipação’ da irracionalidade e menoridade animal. Ou seja, o desejo de dominar o mundo natural e social não se justificava e revia no gozo de ter esse poder; estava ao serviço da realização de objetivos superiores, tais como: aumento e melhoria das condições e garantias da liberdade, da felicidade ou bem-estar, da democracia, dos direitos humanos, do Estado providencial, enfim, do ‘Progresso’. Pois bem, a noção de ‘Progresso’, elaborada pelos pensadores da Modernidade, foi elidida paulatinamente pela ‘razão instrumental’. A ‘vontade de poder’, concebida por Nietzsche, conduziu à ‘tecnicização do mundo’, axiológica e eticamente desenfreada, elucidada por Heidegger na obra ‘Ser e Tempo’. Livres da supervisão de uma finalidade extrínseca, os meios erigem-se em fins e instauram uma lógica automática, animada exclusivamente pela mecânica e cegueira da competição e do sucesso a todo o custo. A reivindicação de mais meios tecnológicos torna-se um objetivo que se basta a si mesmo. O domínio da natureza ou da sociedade não visa hoje um mundo humano mais livre e feliz; o fito do comandar e dominar esgota-se no poder e prazer do comando e domínio. É para isso que se desfralda a bandeira da ‘competitividade’, geradora de um clima de conflitos e desarmonias, hostilidades e inimizades, com uma minoria de triunfadores e a maioria de perdedores, todos acorrentados pela depressão e exaustão. A obsessão pelo útil, pelo pragmático e pelo lucro económico põe em perigo o apego a valores fundamentais como a ‘dignitas hominis’ e a busca da verdade, ignora a utilidade das ‘coisas’ inúteis para a sacralização do humano. Deste jeito, o sublime ‘desígnio’ da ‘instituição’ (promoção da Ciência e da Cultura, da Espiritualidade e da Intelectualidade, do Progresso artístico, cívico, tecnológico, ético e estético da Humanidade) é atirado para o caixote do lixo. A Universidade assume-se como muleta auxiliar da ‘democracia comercial’, desvincula-se de compromissos daquele teor, renuncia à sua ‘singularidade’, àquilo que a torna credora da admiração universal; deixa-se ‘encantar’ e ‘arrasar’ por um totalitarismo ideológico, de trágicas consequências. Pouco a pouco, fica refém da pobreza da linguagem e da infantilidade do pensamento, incapaz de sair da prisão em que, voluntariamente, se encarcera. Eis a luminosa ‘visão estratégica’! É obrigação da consciência denunciar a enfermidade. Não sou saudosista de tempos idos; pugno por caminhos novos, ponderando os factos e extraindo deles atinentes ilações. Move-me a intenção de aplaudir vias de renovação e apontar as que levam à destruição. Quando o presente se fecha em si e não abre portas a um futuro auspicioso, é altura de parar e procurar outras fontes de inspiração, em vez de continuar a caminhar aceleradamente para o abismo.

DA MISSÃO DA EDUCAÇÃO

Há pensadores que, em meia-dúzia de palavras, condensam um extenso tratado. Temo-los, por isso, na conta de sábios. Trago hoje três à colação; num curto parágrafo ou frase expõem a ingente missão da educação, supratemporal e válida em qualquer conjuntura e situação. Começo com a visão iluminista de Emmanuel Kant (1724-1804): “É no problema da educação que assenta o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade.” Acrescento a graça e leveza de Mark Twain (1835-1910): “Tudo está na educação. O pêssego dantes era uma amêndoa amarga; a couve-flor não é mais do que uma couve que andou na Universidade.” Concluo com a advertência Herbert George Wells (1866-1946), que parece ditada pela atenção à barbárie e incivilidade crescentes nesta era, e encontra eco em vários avisos de António Damásio: “A história da humanidade torna-se cada vez mais uma corrida entre a educação e a catástrofe.” Qual dos competidores ganhará o prélio, se não o enfrentarmos com radicalidade, seja na escola, seja na universidade e noutras instâncias da sociedade irradiadoras de influências 'educativas'? E como devem agir os treinadores da educação para que ela atinja o estado de ‘forma’ olímpica e vença a prova?

DA ESTÁTUA, DO ATLETA E DA VIDA

A estátua de granito, que extasia os nossos olhos, foi arrancada da pedreira. Era uma pedra dura e tosca. Sofreu cortes e sujeitou-se a intervenções do martelo e do cinzel para configurar o sonho imaginativo de beleza, de sublimação e magnificência do artista. Com o atleta sucede o mesmo. É obra da oficina, da atenção, do cuidado, da dedicação e das ações do treinador, bem como da esperança, da confiança e do trabalho em si. Atinge a forma, renunciando a não poucas coisas atraentes e doces, e cumprindo um plano de treino aturado, persistente e depurador de onerosidades perturbadoras. Ou seja, não chega ao pódio da admiração e do aplauso, de maneira espontânea e gratuita. Paga um elevado preço e percorre um caminho árduo e até de dor para alcançar a meta ambicionada. Igualmente é assim na educação e na vida. Aquilo que é valioso não cai do céu; requer um esforço amoroso e uma constante renovação da paixão. É a vontade que nos ata ao leme, a nossa e não a de outrem.

CRENÇAS E LIMITES DA CIÊNCIA E DO CONHECIMENTO

A indagação de Thomas Elliot (1888-1965) é hoje mais pertinente do que nunca: Onde está a sabedoria que perdemos com a acumulação de tanto conhecimento? Onde está o conhecimento que submergiu nas ondas de tanta informação? Herdamos do Humanismo e do Iluminismo uma crença exagerada na ciência, esperando dela respostas para questões que não são da sua conta. O resultado do equívoco está bem à vista na atualidade. O conhecimento não desbancou o senso-comum, não guia a Humanidade em todos os domínios, nem acaba com os ídolos da tribo e as credulidades mais inanes. Estamos submersos em formas várias de irracionalidade, de superstição e aversão à razão, de fanatismo, intolerância e obscurantismo. A incerteza não se deixa dominar e problemas importantes da existência humana – os de matriz ética e estética, injustiças, desigualdade de oportunidades, exclusão, pobreza, fome, doenças, insegurança, perseguições, guerra e barbárie – estão longe da resolução. Continua por alcançar a relação de reciprocidade entre ciência e bondade, sabedoria, democracia e cidadania, na qual Newton (1643-1727) acreditava piamente. Ou entre conhecimento e conduta ética, altruísmo, moralidade e felicidade, como imaginaram Sócrates (469-399 a.C.), Espinosa (1632-1677) e Voltaire (1694-1778) . A ciência é instrumentalizada como meio de poder. Não se opõe, por vezes é conivente e auxiliar, a sistemas de opressão e exploração. Ademais, o ‘cientismo paperista’, em voga nas instituições académicas, encoraja certezas fáceis, mata o pensamento e a visão sapiencial. Quem dá o sentido para a existência nesta época de sombras e conotações medievais? A ciência não-pensante tem pouco a dizer sobre a condição ontológica e metafísica do Ser, e até sobre o significado das realidades que investiga e manipula. É, pois, urgente a necessidade de avivar a curiosidade científica e de a casar com o espírito filosófico. Os protagonistas das entidades universitárias e afins tardam em acordar da dormência e em reconhecer o clamoroso falhanço da ordem vigente.

EVOCAÇÃO E HOMENAGEM

Em 10 de junho de 2019 o Professor Alfredo Faria Júnior partiu para outra dimensão. Não consigo calar, neste dia, uma singela evocação. Ramalho Ortigão (1836-1915) percebeu e formulou, de maneira clarividente, a função da Educação Física (então designada ‘Ginástica’) ao serviço da educação: “A ginástica não é uma questão de circo nem de barraca de feira, é uma alta e grave questão de educação nacional.” Outros escritores, coevos do ilustre plumitivo portuense, tanto no Brasil como em Portugal, tiveram idêntica visão. No entanto decorreram muitos anos, antes que a Educação Física encontrasse alguém que a vestisse com roupagem didática e assim pudesse sair à rua, elegante e domingueira, sem complexos de inferioridade e medo de enfrentar o atavismo das irracionalidades e preconceitos. O feito tem obreiros; Alfredo Gomes de Faria Júnior refulge no meio deles. Até sempre, Amigo fraterno!

FIEP Bulletin On-line ALFREDO GOMES DE FARIA JUNIOR E A EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA NOS ANOS 1960 E 1970: UMA HISTÓRIA QUE SE CONTA | NETO | FIEP Bulletin On-line ALVARO REGO MILLEN NETO, ANTONIO JORGE SOARES

Resumo - O presente estudo pretende narrar, através da história de vida do professor Alfredo Gomes de Faria Junior, uma das possíveis histórias da Educação Física brasileira nos anos 1960 e 1970. A trajetória de vida configura-se como uma das chaves de acesso ao entendimento da dinâmica do campo acadêmico e profissional da Educação Física nesse período. A vida de Faria Junior, de sua infância até a formação profissional e seu posterior exercício, indica como a socialização do biografado com diferentes instituições (clube, Colégio Militar do Rio de Janeiro, Escola Nacional de Educação Física e Desportos, instituições esportivas e o magistério) formaram valores e disposições que influenciaram de sobremaneira sua atuação profissional nos anos 60 e 70 do século XX. Tais dispositivos e valores estavam presentes no habitus do profissional de Educação Física na época. Sua trajetória auxilia a explicar as transformações e ambigüidades que se operavam no habitus que conformava o campo da Educação Física. Por outro lado, temos em sua trajetória a possibilidade de relativizar a hipótese, construída pelos críticos nos anos 1980, que o período em questão teve o modelo esporte de alto rendimento como modelo pedagógico transplantado para o ensino da Educação Física escolar. A experiência de Faria Junior como professor em escolas de primeiro e segundo graus e como autor do livro "Didática de Educação Física" (1969) indica que os valores, meios e fins do esporte de alto rendimento foram ressignificados e sistematizados de modo a adequarem-se aos valores, meios e fins da escola. Palavras-chave História; História de Vida; Educação Física Escolar

AS DUAS VOZES

Presumo que todos ouvem dentro de si vozes de sinal contrário. Ouço-as, desde que tenho noção da vida; e continuo a escutá-las. Uma amiga e a outra inimiga, uma estimula e a outra desencoraja; uma sussurra alento e confiança, a outra aposta em mostrar a realidade sem hipótese de alteração. Uma atrai para a possibilitação da impossibilidade, a outra prega a conveniência de não desafiar a conformidade, de gozar a comodidade da passividade. Uma toca constantemente a campainha da cautela e prudência face aos perigos e rasteiras, aos limites e fragilidades; a outra convoca para a ousadia, a persistência e resiliência. Ambas são bem audíveis, por exemplo, quando corro. Ao conselho de desistir ou correr menos tempo responde a vontade férrea que manda continuar. É assim na exercitação corporal e nas restantes modalidades performativas da existência e da consciência. Os triunfadores são aqueles que não cedem aos afagos e insinuações da voz traiçoeira; optam por seguir os desafios da norma alta, axiológica, cívica, culta, exigente e criadora. Os que cedem não superam nada; ficam onde estão.

NÃO ESTOU AQUI!

No túmulo de Mário Quintana (1906-1994) lê-se este epitáfio, escrito por ele: “Eu não estou aqui.” Onde está então o ilustre vate? Nos livros e pensamentos que deixou, na memória e no coração dos leitores. Tal como entenderam os gregos, ele não é ‘anónimo’; o seu nome vive multiplicado e iluminado na grata lembrança e no doce apreço de muita gente. Quanto mais o Outro seja o nosso próximo, maior é o número de lugares onde estamos. Não me quero fechado em mim. Anseio estar nos familiares, amigos e em todos os que se cruzam comigo, de maneira cúmplice e solidária, na caminhada da vida. Estejam perto ou longe, são as minhas circunstâncias e parte grande de quem sou. Estou com eles, nas suas preocupações e realizações, alegrias e tristezas.

DA PALAVRA E DA CIÊNCIA

A palavra não é inferior, nem anda desavinda da ciência. Ambas caminham de mão dada e lado a lado. A primeira poliniza e fecunda a segunda. A palavra interpela o mistério; a ciência aborda os fenómenos e as coisas. Na palavra mora a intimação da pergunta; a ciência busca a possibilidade da resposta. A palavra mergulha no obscuro; a ciência vai pelo caminho da luz. A ciência está vinculada à racionalidade da cabeça; a palavra brota do acordar da alma e do querer do coração. A palavra é inicial e pioneira. “No princípio era o Verbo!” Adão ou Epimeteu começou por nomear os animais, as plantas e os objetos. Sophia de Mello Andresen (1919-2004) disse-o desta maneira bela: “De longe muito longe desde o início / O homem soube de si pela palavra / E nomeou a pedra a flor a água / E tudo emergiu porque ele disse.” Os vates, inventores dos marcos da Humanidade e da Civilização, das utopias, inquietudes e interrogações, vêm de antemão; inauguram a arte e o esplendor da imaginação. Só mais tarde, muito mais tarde, surgem os cientistas e a ciência, para tentar explicar a criação.

DA SORTE

Dizem que pisar na merda dá sorte. Ora, considero-me um sortudo e não é devido a isso. Na maioria dos itinerários e das estações da vida encontrei pessoas limpas e ambiente asseado. Só vi merdice nos locais onde era suposto não existir. Cuidei de não a calcar, de me afastar dela e passar ao largo. Hoje o ‘pantrampismo’ goza de clima propício, está em alta, multiplica-se e amontoa-se. Surge em toda a praça e esquina. Isto não obsta que estejamos a viver uma era de infelicidade coletiva. Não abusem, pois, da euforia os que se sentem na trampa como o peixe na água; nem se deixem assustar ou deprimir os que a detestam. Daí não advém nada de bom ou que tenha futuro. A merda tem pouca dura; com a vinda do calor, seca e fica sem préstimo algum. Se queres encontrar a sorte, procura-a noutro lado!

O QUE É E PARA QUE SERVE A POESIA?

São muitos os alarves que perguntam, com ar de gozo e com baba bovina a escorrer pela boca: Para que servem a literatura, a poesia, a filosofia, a música e as artes num curso superior? Para quê sobrecarregar os estudantes com tais ‘inutilidades’ e ninharias? A esses paspalhos responde Aldo Pellegrini (1903-1973), poeta e ensaísta argentino (In ‘Chama-se Poesia Tudo Aquilo que Fecha a Porta aos Imbecis’): “A poesia tem uma porta hermeticamente fechada para os imbecis, aberta de par em par para os inocentes. Não é uma porta fechada com chave ou com ferrolho, mas a sua estrutura é tal que, por mais esforço que façam os imbecis, não conseguem abri-la, enquanto cede à simples presença dos inocentes. Não há nada mais oposto à imbecilidade que a inocência. A característica do imbecil é a sua aspiração sistemática a certa ordem de poder. O inocente, ao contrário, nega-se a exercer o poder, porque possui todos.” Ah quão maçador e incomodativo é o cultivo da estesia e do intelecto, de tudo quanto nos torna humanamente melhores!

DIAS DE EXALTAÇÃO DA FRATERNIDADE E GRATIDÃO

Terminou ontem o XVIII Congresso de Ciências do Desporto e de Educação Física dos Países de Língua Portuguesa, organizado pela Faculdade de Educação Física e Desporto da Universidade Pedagógica de Maputo, sob a proficiente batuta do seu Diretor, Prof. Sílvio Saranga, coadjuvado pela diligente equipa de docentes, funcionários e servidores da instituição. O evento decorreu na modalidade virtual, porém com sessões presenciais no local, onde não faltaram altas entidades ministeriais, municipais e académicas. Bem hajam os organizadores pela felicidade que nos proporcionaram! Foram três dias de celebração da gratidão a figuras ilustres que já partiram (Professores Noronha Feio, Alfredo Gomes Faria Júnior e António Teixeira Marques e vários atletas e dirigentes moçambicanos) e ao Professor

António Prista, que continua apolíneo e solar entre nós. E também de exaltação de quantos abriram os caboucos de diversas áreas do saber. Quatro conferências e trinta e cinco palestras magistrais (e mesasredondas de idêntico teor) projetaram vias de reflexão e ação, por onde é curial caminhar nesta era tão carecida da ousadia da interrogação e reinvenção. A realização do próximo congresso é assumida pela FCDEF da Universidade de Coimbra. Lá estaremos em janeiro de 2023 para saciar a fome de abraços que nos consome e reforçar a fraternidade que nos une. Nada destrói este movimento; a tentação de o enterrar não deve esquecer que ele foi e é semente. Mesmo em horas escuras, os seus membros agem como a flor do girassol; para todos, sem exceção, irradiam o calor da abertura. Até Coimbra! No alto da Universidade cantaremos a saudade; a nossa voz fará transbordar o Mondego.

DA DELAÇÃO, DEMISSÃO E COBARDIA

A delação é gratuita, porém a canalhice ínsita nela é abjeta. Denunciamos e damos os nomes dos contestatários e manifestantes aos poderosos, sejam estes dirigentes de países, empresas, instituições ou do gabinete de trabalho, para lhes mostrar que podem confiar em nós, que pertencemos ao mesmo mundo e não seremos nós a colocar-lhes quaisquer dificuldades. É uma questão de carreira. Isto aprende-se e pratica-se na escola e na universidade. O horror conta com a cegueira da maioria. Dá muito jeito atribuir à família a responsabilidade principal pela educação cívica e pelo chocante atropelo de princípios e valores, que hoje infeta a sociedade. Ainda existe a família? Exerce ela uma influência 'educativa' maior do que a de outros agentes de socialização? Alivia-se assim a escola e a universidade de uma obrigação categórica. E favorece-se a manutenção dos privilégios dos que nascem privilegiados. A cor (azul) do sangue continua a ser um fator de sucesso mais forte do que o mérito. Trago à colação a asserção de Aristóteles (384-322 a. C.),: “A coragem é a primeira das qualidades humanas, porque garante todas as outras.” Submeto a esta apreciação uma divisão evidente nos docentes das escolas e universidades: os que tomam posição e os que se omitem perante as várias formas do mal. São abundantes os segundos, cobardes e escondidos atrás das cortinas do oportunismo. Traem a instituição e os imperativos que juraram defender; vendem-se a interesses mesquinhos. Estes peixes mortos poluem os rios do presente, e deixam filhotes putrefactos para o futuro. Eis o seu ignominioso legado!

DO ABSOLUTO E DO RELATIVO

Valor absoluto têm a vida e a morte, os filhos e os netos, a mulher amada (ou o homem amado), os que moram no nosso coração, a dignidade e todos os direitos fundamentais das pessoas, a verdade e outros axiomas exaltantes da existência. Tudo isto é prioritário. O resto é relativo e secundário.

AMOFINADA E VOCIFERANTE!

A corte da capital causa mal à nação, mas nunca assume a responsabilidade. Ao invés, quando confrontada, fica amofinada. É o que está a suceder. Os seus tenores vociferam nos jornais e canais de rádio e televisão. Não se conformam ao confinamento. Dizem agora que o país não pode ser desigual; e omitem que a igualdade implica tratar com equidade e justiça o diferente. Reivindicam o privilégio de ser exceção, furar as regras, poder fazer o que lhes dá na veneta e não arcar com as consequências. Os castos amofinados passam uma esponja sobre os festejos futeboleiros e o comício realizado em Lisboa, há dias, pelo partido dito 'Iniciativa Liberal'. Liberal?! Não é bem assim, mas, como o verniz da mentira é moeda corrente na política, aceitemos que é mais ou menos assim. A nobreza e o baronato querem ‘livrar-se’ de obrigações sociais e afins. Ah quanto beneficiávamos em estar livres de semelhante bafio!

DA IDADE

Tenho muita idade, mais do que o número de anos. Provenho do tempo em que a maioria das pessoas dava passos esforçados e suados e não saía do sítio; só uns poucos iam longe, por obra do milagre congregador da transcendência e da sorte. Estou cheio de ontens, e estes de janelas e varandas. Nelas há vasos onde teimam em germinar e florescer viçosos amanhãs. Como se houvesse de viver eternamente. Não sei se isto é aprendizagem ou obrigação. Talvez seja um imperativo, uma não rendição a este presente, virtual, desumanizador e bloqueador da empatia, servidor de fins perversos, a contento de gente amante de formas refinadas da violência. Sinto saudade de rever professores que não aceitem ser burocratas, e gostem de estudantes interrogativos.

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