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NAVEGANDO COM JORGE OLIMPIO BENTO
FRAN PAXECO – RECORTES & MEMÓRIAS – PARTE XXI
"As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram".
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A consagração do direito a uma vida digna, realizada no caminho de perseguição da felicidade, implica a presença acrescida do desporto, a renovação das suas múltiplas práticas e do seu sentido. Sendo a quantidade e qualidade do tempo dedicado ao cultivo do ócio criativo (do qual o desporto é parte) o padrão aferidor do estado de desenvolvimento da civilização e de uma sociedade, podemos afirmar, com base em dados objetivos, que nos encontramos numa era de acentuada regressão civilizacional. Este caminho, que leva ao abismo, tem que ser invertido urgentemente.
DO SENTIDO ECUMÉNICO DOS JOGOS OLÍMPICOS
As cidades da Grécia Antiga, apesar da união em horas de ameaça externa, cultivavam hostilidades entre si. Várias delas organizavam festivais desportivos; somente os Jogos de Olímpia eram abertos a competidores provenientes de outras paragens, próximas e distantes. Isto é, o ‘ecumenismo’ (busca da aproximação, cooperação e superação das diferenças do mundo habitado) recebeu grande impulso dos Jogos Olímpicos. Ao ideário axiológico e ‘artístico’ (inerente ao mito prometeico, fundador da Humanidade) os Jogos acrescentaram o teor civilizatório e ‘ecuménico’: abertura de fronteiras, universalização de princípios e valores, convívio, admiração e respeito dos povos. Neste tempo de urgente reinvenção do mundo e do relacionamento entre as nações, avivemos a mensagem dos Jogos. Na hora de acender a pira olímpica voltemo-nos para Prometeu; peçamos-lhe que faça o milagre de curar as feridas expostas pela pandemia, que solte e engrosse os ventos da esperança salvífica, surgida do seu ventre.
ARIGATÔ: ACONTECEU O MILAGRE!
Até os prós se tornaram contras. Mas há milagres que não obtêm permissão para faltar à imploração. A necessidade ordena e eles atendem a petição. Foi assim, mais uma vez, no cenário sagrado onde corpo e alma se harmonizam sob a forma de um véu de seda, que clareia a escuridão, flutua na altura e vence a imensidão. Cumpriu-se a oração. O milagre veio para os atletas que, durante cinco anos, sofreram a ansiedade de treinar arduamente, sem saber o resultado de tamanha abnegação. Porfiaram no embalar do sonho; e este concretizou-se numa noite estrelada, no país do sol-nascente. Veio para o mundo confinado, tão carente de restaurar o encontro, a solidariedade e a congregação, de aprender a ver a diversidade como matéria-prima e a cooperação como artífice da mais excelsa edificação. Ah quanto o desporto é ferramenta, caminho e ponte dessa visão! A festa da Universalidade começou com cânticos, danças e mãos dadas! Estende-se a todos os continentes, acende os céus e acorda os deuses habitualmente desatentos dos eventos na Terra. Os rios e oceanos inundam as margens com pétalas das cerejeiras de Tóquio. Vivem-se dias radiosos e abençoados; as segundas-feiras têm o rosto de sábados e domingos santificados. Viva a lição! Não se deita fora a utopia, apenas é adiável a realização. Arigatô, Japão, pela coragem e recusa da rendição! Pela flor de luz e pela arte do voo com as asas da magia e ideação. Pela beleza da simbologia, pela suavidade dos gestos e pela leveza da emoção. Pela confiança passada à jovem e vindoura geração: salvar a Humanidade está na sua mão!
BELEZA SUPINA
As criaturas de Prometeu, embora se saibam pequenas, são viciadas na tentação de sonhar coisas grandiosas. Têm os pés e as mãos atados à gravidade, mas o aguilhão e o trampolim da vontade atiram-nas para o espaço da ousadia. Deleitam-se com o risco, superam-se até ao infinito, criam assombro e deslumbramento, graça e encanto. Em horas de arrebatamento, sublimam o barro grosseiro com expressões supinas dos dons recebidos do benfeitor. Não fogem ao imperativo do destino e honram, assim, o Criador: com a paixão do querer, a dedicação do agir, os verbos do esforço, a tinta do suor, o compasso do rigor, o estilo e a métrica da desmedida escrevem poemas de louvor à desafiante e inalcançável perfeição. Esta rende-se e desencadeia um êxtase de lágrimas, que exultam e cantam.
ESTOU EM TÓQUIO!
Não fui a Tóquio. Mas estou lá, levado por Amigos, uns próximos, outros distantes, ligado a todos pelos laços indeléveis do apreço e da admiração. Têm ampla diversidade de nomes e feições, são de muitos países e nações. Uns falam português e tenho-os no coração; os falantes de outras línguas amo-os com a razão.
Os meus Amigos estão nos ‘Jogos da Dificuldade’. Conhecem-na bem; servem-se dela todos os dias para renovar a esperança. Ensinam assim que enfrentar o que assusta ou perturba é a única forma de nos libertarmos do aventesma. São ‘olímpicos’ por isso, por não fugirem ao que se lhes opõe e exige sacrifício; ao invés, usam-no como instrumento de aprimoramento. Este modo de vida representa-me. Fico, pois, assaz contente e grato. Eles foram a Tóquio por mim, por nós! São ‘filantropos’, amigos edificadores e exaltantes da Humanidade. Não admira que Prometeu lhes bata palmas e exclame: valeu a pena!
CITIUS, ALTIUS, FORTIUS!
Correr não é só um exercício físico. É ato desportivo e, por isso mesmo, genuína prática simbólica. Correr é uma obrigação da existência, procurando sublimar o chão térreo da nossa natureza e atingir o patamar de outra condição. Corremos contra a condenação a que fomos sujeitos: não vivemos no paraíso. Deixamos que os ventos do mal se evadissem da Caixa de Pandora e fustiguem a vida. Corremos para fugir deles, para os manter sob controle, com a esperança de edificar uma terra semelhante ao éden perdido. Somos feitos de barro, insuflado pelo fogo do espírito. A carne é frágil, mas a alma escuta apelos e ideais. Corremos contra o conformismo e o comodismo, contra a indolência, a desídia e sonolência, a insuficiência e o autocontentamento. Não nos basta o que somos; queremos e precisamos de ser e ver mais além. Corremos para fora e para dentro de nós. Para ir fundo e longe e ficarmos próximos da identidade: a de seres errantes e peregrinos à procura de uma forma que nos torne quase divinos, quase perfeitos, quase felizes, quase Humanos. Corremos para nos afastarmos do que diminui, e abeirarmos do que não temos e é o mais valioso: o ético e estético, o belo e verdadeiro, que tanto elevam e exaltam. Em todo o tempo e lugar há uma maratona à nossa espera. Para passar o testemunho do apego e afeiçoamento à árdua, exigente e longa caminhada, sabendo que podemos falhar, chegar à meta exaustos e tombar para o lado. Estar parado é andar para trás. São muitas as corridas que temos de empreender, tanto quanto possível, juntos e irmanados, dando uns aos outros o nosso melhor!
MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
Inaugurado em 2006 e instalado na Estação da Luz, em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa foi devastado por um incêndio em 21 de dezembro de 2015. Após cuidadosa restauração, suportada por várias entidades, inclusive Portugal, reabre hoje as portas o esplendoroso templo de celebração do idioma que Cervantes considerou o mais belo existente à face da Terra e Olavo Bilac cantou como “última flor do Lácio”. O dia é, pois, de júbilo. Na reinauguração estará presente o nosso Presidente da República e estará ausente o matador contumaz do Verbo criador e civilizado. O evento convida à reflexão. A riqueza ou pobreza vocabular da escrita e da fala traduz a dimensão da identidade e liberdade, da capacidade de pensar, imaginar e tecer pontes com o Outro. Cada cidadão deve ser, para benefício próprio, um polo de conservação e cultivo da língua. Infelizmente, a realidade é trágica. No ensino superior é de tal ordem que, se as dissertações de mestrado e doutoramento fossem submetidas a avaliação prévia das mazelas idiomáticas, a maioria delas não seria aceite à prestação de provas. Não há exagero na afirmação. A obrigação constitucional de cuidar da língua portuguesa é brutalmente atropelada pela designação de cursos (e instituições!) e pelo linguajar atentatório da norma linguística. Se tivesse poder para enfrentar tão chocante situação, ordenaria que nas IES fosse criada uma escola primária como as da minha infância. Nelas pontificava o respeito sagrado do idioma pátrio: nos exames da terceira e quarta classe reprovava-se com dois erros, quer no ditado, quer na redação.
A ZEUS O QUE É DE ZEUS
Quando eu corro Não corro só eu. O jeito de correr Foi Alcínoo que mo deu. Quando eu lanço Não lanço só eu. São meus os braços O arrojo vem de Odisseu. Quando eu salto Não salto só eu. É minha a gravidade As asas são de Prometeu.
SE FOSSE CORREDOR OLÍMPICO…
Gostaria de correr atrás dos sonhos e ideais, de fugir da baixeza e vileza, e tentar escapar das ciladas, aleivosias, calúnias e difamações congeminadas atrás de mim. Subiria ao alto dos montes para saborear a ascensão e leveza, para oxigenar a alma e experimentar a altura e atração do céu. Também correria nas planícies e vales, para me sentir preso à terra, para nela fincar os pés e reforçar as raízes, para com ela estabelecer compromissos de realização, exaltação e sublimação do meu estalão. Correria nas ruas da cidade, para me abeirar do Outro, constitutivo da minha existência e identidade, missão e felicidade. E para dar, assim, à singularidade e pequenez de mim feições e modos de urbanidade, sentidos e desejos de universalidade. Correria, igualmente alegre e lesto, nas margens do mar, para cultivar o fascínio pela lonjura e distância, pela largueza e abrangência dos horizontes e por tudo quanto mora nos lugares não enxergados pela minha curta visão. Correria nos campos e florestas, entre árvores e ervas, ouvindo o chilrear dos pássaros nas horas matinais, saltando regatos, equilibrando-me em brejos escorregadios e vendo furtivos animais, sopesando a natureza com a bitola dos princípios e valores humanistas e civilizacionais. Correria movido pela fé de que, se corresse deste jeito, teria ao meu lado companheiros, romeiros, peregrinos sempre prontos a estender-me a mão, a palavra, a água e o gesto da solidariedade e compreensão, da entreajuda e estimulação. Quem sabe, descobriria que o competidor não é inimigo nem autor de encarniçada oposição, mas antes aliado e irmão, apostado na obtenção de um feito resultante da desafiante cooperação. De vez em quando pararia, para medir o caminho andado e o chão pisado, para limpar o suor dos olhos e da face, para encher o peito de ar e o coração de alento. Para redobrar a passada e a determinação de seguir o rumo do destino: o de Homem-Corredor, solto de peias na vontade de se cumprir, de dar asas à obrigação da liberdade. Sim, seria um andarilho que atravessa os dias e noites em passo estugado, para celebrar o encontro com a paixão e a dignidade da vida conquistada. Afinal esta, disse um poeta, são deveres que trouxemos para fazer em casa, numa corrida contra o tédio e todo o tipo de rendição.
DA OBESIDADE
A pior obesidade é a da alma. Ata o corpo ao chão e contra ele comete traição. Quando a vontade se casa com a ilusão, não é impossível a elevação; o SIM sobreleva o NÃO. Na corrida da existência este só vale como atitude e grito contra a indecência e a opressão. Há muitos sujeitos, com reluzente instrução, que são obesos nos olhos, na consciência e na razão. Podiam ser corredores, lançadores ou saltadores, mas enfrentar
desafios, falsidades, farsas e obstáculos é algo que lhes provoca aversão. Preferem viver montados, abanar as orelhas, aceitar o cabresto, a albarda e as ferroadas do aguilhão. Cada um é como cresce e obtém satisfação. Subir a montanha é coisa de olímpicos; para os outros basta o chão.
JOGOS OLÍMPICOS: BANQUETE UNIVERSAL
Na ‘Odisseia’, uma das obras fundadoras da nossa civilização, Homero concebe o ideal do Homem de saber experimentado e ampliado, com muito para contar e encantar. Para tanto tece a aventura fantástica de Ulisses ou Odisseu, perdido nos mares e sujeito às mais duras provações. Após a destruição de Troia, Ulisses intenta regressar a Ítaca, onde o esperam Penélope (a esposa fiel) e o amado filho Telémaco. A errância dura três décadas. Certo dia, com os barcos desfeitos e os companheiros esfarrapados e esfaimados, aportou ao reino dos Feácios. Estes recebem-no bem e convidam-no a admirar as suas façanhas atléticas; para o efeito organizam corridas a pé, lutas e provas de levantamento de peso. Um jovem dirige-se a Ulisses com sobranceria: “Não existe maior glória para um homem enquanto vive do que as proezas que consegue realizar com as mãos e os pés.” Outro lembra ao debilitado capitão a insensatez da vida de marinheiro, nefasta para a forma física. Ulisses sente-se provocado. Agarra então uma pedra assaz pesada e lança-a, atingindo enorme distância. Não contente com isso, descreve as destrezas no tiro com arco, na luta e no arremesso do dardo. A assistência escuta-o surpresa e rendida. O viajante, num ato de generosidade, confessa que os pequenos Feácios ganhar-lhe-iam facilmente nas corridas de velocidade. Alcínoo, o anfitrião e rei dos Feácios, agradece a Ulisses as palavras gentis e declara: “No meu entender não existem lutadores perfeitos; o que conta são os bons corredores e marinheiros e, para alegrar os nossos corações, os banquetes, a harpa e o baile, a roupa limpa, o banho quente, o amor e o sonho.” Posto isto, encerrou o prélio e obsequiou os hóspedes com um esplêndido jantar, como se de uma boda se tratasse. Eis a lição de alguém mais estudado em gente do que em livros. Ela preside aos Jogos da Humanidade.
NO ALENTEJO
Aqui o campo é maior, aberto e extenso. Os montes têm a forma e graça das valsas. E do alto do castelo de Marvão contempla-se a terra inteira e imagina-se a imensidão. As gentes, de estatura meã na sua maioria, são demiurgos que sonham e medem o absoluto e infinito; tocam e baixam o céu para a copa dos chaparros. As estrelas refulgem nos seus passos e palavras. Cantam e versejam com a dificuldade. Nos olhos e no rosto brilham o sorriso e o trigo da generosidade; e as mãos executam rituais de fraternidade. Não admira que o cante seja património universal. E não é só ele; também o é o filosofar sobre a vida, simples e sapiencial.
A MINHA HOMENAGEM
Conheci-o no INEF, onde fomos estudantes do mesmo curso. Ele mais esclarecido em todas as dimensões, nomeadamente a cívica, intelectual e política. Suscitava apreço pela elevação da palavra, correspondida por atitudes condizentes com aquela. Nasceram então a amizade e cumplicidade que os anos vindouros se encarregaram de amadurecer e fortalecer. Até hoje nunca me faltou com a solidariedade ativa. Obviamente, estou a falar de um amigo. Mas não sou tão movido pela amizade quanto pelo sentido de justiça e gratidão. Com efeito, o José Manuel Constantino é portador de uma carreira e conduta enaltecedoras de todo o grupo socioprofissional. Ademais, a presença portuguesa nos Jogos de Tóquio está sendo altamente edificante não somente pelas extraordinárias prestações dos atletas, mas também pelo envolvimento que gerou no País. Vivemos dias muito belos! Nesta conformidade apraz-me saudar o Presidente do Comité Olímpico de Portugal e testemunhar que ele prestigia o organismo e a função.
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CRIME SEM REMISSÃO
Foi há 76 anos. Toquemos os sinos a rebate para que a memória não adormeça. Hiroshima, meu amor, o que fizeram contigo e, três dias depois, com Nagasaki não rima com esplendor! É a expressão máxima do horror. Contra vós investiu o touro da demência e bestialidade, rasgando e sangrando a carne da Humanidade. Não, não é possível esquecer. O ato bárbaro e frio visou apenas exibir poder. Não teve outra justificação; para ele não há remissão. Erga-se alta e firme a indignação. Mesmo que seja perdoado, o crime jamais será expiado.
O QUE VEM APÓS OS JOGOS?
Os Jogos caminham rapidamente para o fim. É pena, porquanto modificaram-nos por dentro e por fora. Tornaram-nos muito melhores nas emoções e reações, nos ideais e sentimentos, nos gestos e nas palavras. Vivemos dias em que o excesso teve a forma da harmonia ética e estética. No panorama desportivo mete medo o que aí vem. Já começou o alarido grotesco dos trogloditas do futebolês. Não adianta esperar que mudem alguma coisa; são sicários e matadores por motu próprio, têm o coração empedernido e a alma entupida pelo lixo e veneno que poluem e matam o belo jogo da bola. É assustador. Receio também que doravante a nossa memória e capacidade de sublimação não sejam tão vivas e sólidas quanto as exibimos nos dias transatos. A interrogação invade-me. Deixaremos cair no esquecimento e silêncio aquilo que afirmamos, em alta voz, durante os Jogos da Humanidade? Poderá esta contar com o nosso indefetível alistamento nas causas que a exaltam? Aprendemos com a pandemia a exigir um normal genuinamente ‘novo’ ou basta-nos o antigo? A egolatria e a insanidade levam-nos a querer mais doses de vacina, enquanto outros povos continuam sem tomar nenhuma. Sinto um aperto no peito; assim ninguém se salva.
MENSAGEM PERENE
Caiu o pano sobre os Jogos. As lágrimas da emoção e gratidão apagaram a pira olímpica. Sayonara! Durante alguns dias, assistimos a uma configuração perfeita da magia do encantamento. Esteve em cena a liturgia da leveza e sensibilidade oníricas, realizada com o saber e sabor dulcíssimos do entendimento, da harmonia e solidariedade. Os filhos de Prometeu regressam agora a casa. Vieram a Tóquio provenientes do Norte e do Sul, do Este e do Oeste; escalaram montanhas, atravessaram depressões, rasgaram trevas, abriram alicerces e ergueram andaimes para edificar a Torre de Babel. No céu acrescentaram inúmeras estrelas e celebraram as bodas da Humanidade. Cantaram e dançaram como crianças bêbadas de alegrias límpidas. Os deuses e sacerdotes dos vários credos surgiram irmanados. Auschwitz, Hiroxima, Nagasaki, o Gulag, Munique e outros horrores foram exorcizados. A relação entre tradição e contemporaneidade, progresso e natureza, local e universal, estranho e familiar tingiu-se de equilíbrio, não dando azo ao vírus da desarmonia. A primazia foi dada à pomba branca e refulgente da paz, a mais sublime e exaltante expressão da forma humana e da suprema virtude: a humildade de contemplar e admirar o Outro, próximo e distante, de se espantar e deslumbrar com as suas diferenças, grandezas e façanhas. Prometeu e Hércules bateram palmas na abertura dos Jogos. E, no final, exclamaram num rompante de contentamento: Oh quão vivos e felizes que nós estamos! Com razão, porque Tóquio reavivou o imperativo da mensagem ínsita no lema olímpico. As utopias são imaginadas para servir de bússolas do viver. Se as seguirmos, ajudaremos a edificar e colorir o prodígio do Humano, e a fabricar o mundo do melhor de todos. Continuamos em viagem, com o coração enternecido e o olhar humedecido. Não deixemos esmaecer o corpo e o sonho festivos. Arigato!
FÉRIAS: TEMPO DE MUNDIVIDÊNCIA
As férias são um tempo de recriação. Para tanto, recomenda-se a leitura de livros. Mas... talvez a mais importante e exigente seja a leitura do mundo. É deveras urgente ler os dramas e as crueldades que consomem a Terra e a Humanidade. E abrir-se às utopias suscetíveis de regenerar a desgraça e reverter a destruição. Caminhemos atrás delas, para nos salvarmos do abismo próximo de nós. Este é tão astuto e assume tantas metamorfoses que desaprendemos de o ver e reconhecer.
DA MINHA TERRA
Esta terra não tem palmeiras, onde canta o sabiá. Mas aqui há amendoeiras, ameixeiras, amoreiras, avelaneiras, cerejeiras, figueiras, ginjeiras, laranjeiras, limoeiros, macieiras, morangueiros, nogueiras, oliveiras, parreiras e videiras, pereiras, marmeleiros, pessegueiros, medronheiros, mirtilos, romãzeiras, castanheiros, carvalhos, sobreiros, amieiros, choupos, freixos, olmos, salgueiros, carquejas, estevas, giestas, urzes e uma infinidade de plantas, onde cantam gaios, melros, pintassilgos, rolas e eu sei lá. E na primavera chegam as andorinhas.
Aqui os tomates são coração de boi e a gente tem-nos no sítio.
Aqui há montes e horizontes que matam a sede dos olhos, como se fossem fontes. Aqui nunca seca a ribeira da exclamação, contida no inverno, transbordante no verão. Aqui há todas as estações do ano, tempos de semear e colher, de celebrar o viver e chorar o morrer. Nas alminhas dos caminhos, os mortos juntam-se aos vivos. Aqui a saudade é eterna e veste-se das cores mais intensas e quentes. Amo esta terra e tenho os pés assentes nela; não quero ser Anteu.
Moro no Porto, mas nunca saí definitivamente de Trás-Os-Montes. De vez em quando, venho cá, trazido pela corrente sanguínea e pelo chamamento do filão originário e axial da identidade e subjetividade. Move-me a necessidade incontida de crestar o rosto com o ar quente do verão e frio do inverno, de testar e renovar a sensibilidade, os sabores e o palato, de reencontrar os horizontes do infinito, de prestar tributo e veneração a vidas inacreditáveis e improváveis, edificadas em cima da míngua. Aqui é o lugar onde o espanto se ergue sobre o pasmo, onde o saber-fazer das gentes inventa as flores e frutos da admiração, onde o nada atinge a mais alta sublimação.
Evocação e lição
Eis a Praça das Eiras, em Macedo de Cavaleiros. Numa casa, que hoje não logro apontar, iniciei um capítulo determinante do livro da vida. Após realizar o exame da quarta classe em Bragança, vim aqui prestar provas perante o Padre Madureira Beça, Diretor do Seminário dos Redentoristas, sito em Vila Nova de Gaia. Fiquei bem na fotografia; não fora isso, o destino seria semelhante ao dos colegas da infância que permaneceram em Bragada, agarrados ao amanho da terra e aos trabalhos afins. Vencida aquela etapa, outras se seguiram, todas percorridas do mesmo jeito. A lição é inequívoca: quem não nascia em berço de ouro estava obrigado a aproveitar a primeira montada que surgisse no caminho. Não importava que fosse um jegue gasto e andasse só 100 metros; isso era ganho! Depois surgiria outro idêntico e havia que repetir o gesto. Se alguma vez tivesse esperado pelo alazão ricamente ajaezado, jamais teria superado as circunstâncias. Ele vinha apenas para alguns; a maioria teve que se fazer à vida de maneira precária, tentando tornar cada ‘menos’ num ‘mais’ e, quiçá, agarrar e domar, um dia, o cavalo que faltou na partida. Assim era in illo tempore!
Macedo de Cavaleiros
Venho amiúde a esta terra. É santuário obrigatório da minha peregrinação, uma ponte entre o tempo passado e o presente apressado. Quando a visito, um cisco entra-me nos olhos; e lágrimas furtivas soltam-
se para amassar a farinha da bola-sovada da saudade, alimentícia da ânsia de prosseguir a caminhada, sabendo que é cada vez mais curta e ignorando quanto falta andar. Saio daqui sem vontade de partir e com o desejo falante de regressar. Macedo não é uma cidade como outras; tem sabor de aconchego familiar e de manjar no trato recebido nos cafés, pastelarias e restaurantes, nas entidades hoteleiras e sociais, bem como na culinária que configura hinos ao paladar. Aqui sempre hei de voltar!
Donde sou
Somos do lugar onde nascemos e crescemos e dos locais por onde passamos. Moramos neles e eles moram em nós, imersos no tropel de lembranças que caminham connosco até ao fim. São as nossas circunstâncias, perfazem a memória e a consciência, a alma e o olhar, o sentir, o rir e o chorar, o ser e o estar. É diminuta a parte da vida que vivi em Bragada. A casa onde nasci não existe mais, os campos e montes em redor estão muito mudados, e já partiu a maioria das pessoas com quem convivi, andei na escola, brinquei e joguei na infância. Mas continua a ser ali o berço natural; tenho lá raízes profundas, um cordão-umbilical impossível de cortar. O lar familiar e social é no Porto, cujo sangue também corre afoito e quente nas minhas veias e sobe a encosta dos princípios e valores, altos como a Torre dos Clérigos. Afinal, esta inveterada criatura transmontana e bragançana é cumulativamente portuense por condição e gratidão, lusófona por devoção e paixão, cidadão do mundo por convicção e visão.
Transmontano
O chapéu baixa da cabeça para a mão, gesto elegante e natural de humildade, respeito e educação. O corpo poderá tornar-se curvado, pelo peso da trabalhosa idade, mas o carácter anda sempre levantado, por mor da honra e dignidade. Ninguém lhe pergunte o que não deseja ouvir. Porque ele diz o que sente e ignora o fingir. Falas só as necessárias, antes de demoradas observações. Quando decide pronunciar-se, não engole as palavras nem lhes impõe freios e contenções. De cenho cerrado, herdou de Sísifo o fado, e do nascimento a charrua e o arado. Mesmo que escape a tal sorte e ascenda ao patamar da ciência, das letras ou da arte, não foge à obrigação de decruar e amanhar a terra em toda a parte. Se algum não for assim e negar a origem e a condição, entenda-se que não há regra sem exceção. E que, ao lado da hombridade, mora escondida a traição. O nome sagrado está sujeito a sofrer o punhal de um vilão.
DA CONQUISTA DO MUNDO
Os EUA somam outro desastre, desta vez no Afeganistão. Afinal, não aprenderam o quer que seja com tantas intervenções arbitrárias e trágicas. A queda do seu império é apenas uma questão de tempo, cada vez mais curto. O poderio militar faculta ocupações e usurpações temporárias e condenadas ao desaire. As armas não conquistam nada, nem ninguém, porquanto ameaçam a vida e semeiam a morte. Neste terreno medram a rejeição, a hostilidade, o ódio, a sede de vingança e a espera da oportunidade de a consumar. Somente no convívio cultural e ético florescem a aproximação, a partilha, a mestiçagem e inclusão. A conquista do mundo é, pois, obra de tudo o que exalta a Humanidade e lança pontes de afeto e harmonia entre as ilhas que perfazem o arquipélago da sua polifonia. Mas isto é coisa que a arrogância despreza.
PARA AVIVAR A MEMÓRIA E ABRIR OS OLHOS
Os Talibãs (‘estudantes de teologia’) constituem uma milícia armada, da extrema-direita e fascista, uma seita eivada de fundamentalismo, fanatismo e obscurantismo. Renegam a ciência, a cultura, o progresso civilizacional e a educação secular. Perseguem minorias e sujeitam as mulheres a sevícias e maus-tratos, incluindo a escravidão sexual. Dizem servir a Deus, a família e a pátria; é em nome destes ‘valores’ que pegam em armas para promover a virtude e combater o vício. Por mais aberrantes que sejam a sua ideologia e linguagem, elas são cultuadas, em espaços deveras conhecidos e muito distantes do Afeganistão, por gente que é talibã de facto, mas não se reconhece como tal.
Ah, os talibãs foram patrocinados pelos EUA, com o propósito de lutar contra os soviéticos e o ‘comunismo’! Enfim, as medonhas criaturas estão à nossa volta e no meio de nós; nalguns países do Ocidente (não é preciso dizer o nome, pois não?!) já ascenderam aos mais altos cargos.
DA LÍNGUA CHARRA
Somos cria do nosso idioma. Ele está entranhado em nós; forma o ser e o estar, o sentir e o reagir. Os transmontanos são obra da Língua Charra que os afeiçoou e socializou na infância. A sua assertividade e expressividade provêm da peculiaridade dos termos e da maneira de os pronunciar. Já aqui expus alguns deles. Hoje venho confessar que, nas férias, comi muita ‘chicha’. Porque lá a carne é da ‘boa’, da ‘de certo’; quem a come não se contenta com um ‘cibinho’, pede um ‘quinhão’. E o vinho, tal como o pão, também é do ‘bô’ e do ‘de certo’; por isso escorripichamos os copos e lambemos os beiços, com pena de não haver mais. Quanto à pronúncia, refiro, por exemplo, o som bem acentuado do ‘ch’ (chê), distinto do xis: achei uma chave de chumbo chapada no chão. Eis português corretíssimo! Se quiser saber mais, consulte os dois extensos volumes do eloquente ‘Dicionário da Língua Charra’, de A. M. Pires Cabral, natural de Chacim, Macedo de Cavaleiros, terra onde também nasceu Nuno Martim, aio do rei D. Diniz. A Língua Charra é património de valor inestimável; deve ser preservada e usada, escrita e falada, porquanto ela encerra e cultiva a escarmentada sabedoria transmontana.
VERDADEIRAMENTE HUMANOS E HUMANIZADORES!
Podíamos desfrutar uma vida sossegada e tranquila, sem esforço e transpiração, viver no remanso da indolência, alheios a qualquer inquietude e interrogação. Pois, podíamos! Porém os sacanas dos pensadores e vates estragaram tudo. Estabeleceram o imperativo de que o absoluto e infinito é a medida do Humano. De nada adiantou contrapor que há limitações; para elas inventaram uma infinidade de próteses: a linguagem, as ficções, os mitos e rituais, a cultura, as artes, a ciência, os livros, a música, a dança, as habilidades, as técnicas e tantas outras. E ainda se lembraram de proclamar o exercício obrigatório das virtudes; e um tal de Aristóteles teve a petulância de afirmar que a coragem é a mãe de todas e decisiva para sair do pasmo e do conformismo à menoridade. Como se isto não bastasse, uns fulanos, a quem chamamos ‘deficientes’, encheram-se de brio e entusiasmo, puseram-se a treinar afincadamente, saltam mais alto e longe, correm mais depressa e são mais destros só com uma perna do que nós com duas. E até voam! Reencarnam, na perfeição, Prometeu e Hércules. A partir de hoje e durante vários dias vão exibir, lá para as bandas de Tóquio, um rol de façanhas e prodígios. Devíamos ficar orgulhosos, eufóricos e jubilosos, porque os atrevidos são alguns de nós, acrescem e engrandecem o acervo da Humanidade, redimem as nossas insuficiências e fazem corar de vergonha a arrogância e a pesporrência. Afinal, são eles os verdadeiramente Humanos e quem nos humaniza!
O IMPOSSÍVEL É NADA!
Ontem, mais uma vez, o Céu desceu à Terra, no Estádio Central de Tóquio, com Novas Tábuas da Lei e decretou assim: “Doravante fica expressamente proibido acorrentar os sonhos. A todas as criaturas humanas é reconhecido o direito de Ser Atleta, de sonhar e voar. As nações estão vinculadas à estrita obrigação de adotar condições e medidas para o concretizar. A nenhuma serão toleradas a crueldade e a desumanidade de o dificultar, reprimir, encarcerar e matar.”