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CERES COSTA FERNANDES
CERES COSTA FERNANDES
Moreira levara mais uma vez trabalho para casa. Coisa de pouca monta. Só uns balancetezinhos, para desafogar os montes de processos de cima de sua mesa. Na repartição não estava dando, era um atender gente sem fim... Além do mais com chefe novo, muito entusiasmado e cheio de ideias novas, era bom não facilitar. No fundo, no fundo isso não era coisa de se apoquentar o juízo, até gostava. E já tinha o esquema pronto para o domingo: enquanto estivesse repassando o trabalho, de pijama e chinelos, tomaria uma cervejinha, de leve, é claro, e fumaria uns cigarros e, para acompanhar, música ambiente... Não estaria de todo mal. Ah! Isso é que não! O lazer é sagrado! É dona Zefa quem fala, tomada de santa ira. Está pensando que eu vou deixar aqueles sanguessugas do trabalho se aproveitarem de sua boa fé? Nunca, para isso sou sua mulher. Domingo é dia de descanso e de se divertir. Está resolvido, vamos ao churrasco do compadre Arcelino. Moreira quer protestar, mas dona Zefa, filha de advogado, encerra a questão, Não tem apelação nem agravo, vamos nos aprontar e nos di-ver-tir. Aproveitamos e levamos também o Silvinho. Um parêntese para apresentar Silvinho. É o neto do casal, menino magricela e um tanto cheio de vontades, abrindo o berreiro sempre que contrariado, recurso já conhecido por todos, menos pelos embevecidos avós. Moreira! Grita dona Zefa, não acredito que você calçou o chinelo de dedo e vestiu essa bermuda desbotada do tempo em que Adão era cadete, para um churrasco que vai dar até gente importante. Com certeza o Gerente estará lá. Calce, pelo menos, aquela sandália franciscana que lhe dei de Natal, e que não sei porque não usa, e mais, vista uma bermuda decente. Moreira suspira. A costura da sandália de couro pinica, e a bermuda, a desbotada, é a mais “nova” que possui. Só vestindo uma calça jeans. Ô, siô, a dita está apertada. Também, reconhece que engordou um bocado. Nem reclama, senão a mulher bota logo a culpa na cerveja. Queria descobrir o veado que inventou a mentira que calça jeans é sinônimo de liberdade. Depois de rodar bem uma hora e meia, chegam ao clube de campo, que devia servir para algum esconderijo de traficantes de drogas, tão complicado era chegar lá. Pra inventar um mapa daqueles, o compadre Arcelino devia ter problemas de infância mal resolvidos no quesito caça ao tesouro. De tanto rodar Silvinho ameaça vomitar. Coitadinho, sofre do labirinto, diz Zefa. Além das ameaças ao estofamento novo do carro, a encantadora criança, repete de cinco em cinco minutos, Vovó, você não disse que a gente ia se divertir? Eu quero se divertir! Afinal, o clube. Aleluia! São recebidos festivamente. O amigo coloca-os em lugar de honra: uma mesa bem em frente à pista de dança, perto do palco. Para confirmar a honraria, o Gerente e a mulher, uma enganjenta, diga-se de passagem valeu a pena vir, quando começa a música. Incontáveis decibéis pulam de uma caixa de som às suas costas e como que lhe sacodem tudo que ele tem dentro da caixa torácica. A conversa com os amigos é gritada. Responde o que pensa ter ouvido e desconfia que os amigos fazem o mesmo. Mas todos sorriem e, bebericando a cerveja quente, mostram nos semblantes como estão felizes com o encontro. A nota desarmoniosa é só Silvinho que, obrigado a ficar sentado, repete insistentemente. Eu quero se divertir. Quando é que a gente vai se divertir? Depois de algumas dezenas de salgadinhos de diferentes formatos, mas da mesma massa, chega o churrasco. O estomago de Moreira, azedado de massa com cervejas, agradece uma fatia de picanha, deveras deliciosa. Uma outra e mais outra, aceita uma farofinha? Uma felpa de carne engata no dente lá de trás. E agora, que fazer com a enganjenta de olho? Faz uns trejeitos com a boca e nada. O cós da calça aperta, a sandália pinica. Olha em torno, nenhum palito. Depois que aquela metida da Danusa inventou que palito “nem no banheiro com a luz apagada”, deram de não botar paliteiros na mesa. Sinceramente! Pede licença e vai ao banheiro. Nenhum fio dental. Não há o que tire a maldita felpa do lugar. Volta para a mesa disposto a ir embora, mas Zefa, com Silvinho, sentado a força, no colo, chama a atenção que o compadre vai falar. Ué! Discurso em churrasco? Fala o compadre, fala o Gerente, e mais um chato que
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resolve fazer um acróstico para Marcelino, usando laurífero, para a letra L. Silvinho repete, com a voz fininha, quero se divertir. Finalmente acaba a sessão literária e podem sair. Zefa resmunga, agora é que estava ficando bom... Já no carro, Moreira passa o volante para a mulher e vai logo desapertando o nó da calça e tirando as sandálias. Que é isso, homem!? Parece índio. Moreira não responde, enquanto tenta desengatar a maldita felpa, antegoza a leitura dos balancetes que vai fazer logo mais. Silvinho, cansado das tentativas de se divertir, dorme no banco de trás, enquanto Zefa, louvando os benefícios do lazer, promete que no outro final de semana farão outro programa ainda melhor que este.