E GÍDIO B ENTO F ILHO
Egídio Bento Filho
A história do RIO DE JANEIRO do século XVI ao XXI
Dedico esse trabalho a Elisabete de Godoi Rodrigues e a Guilherme Rodrigues Bento.
Copyright © Egídio Bento Filho, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
Editor João Baptista Pinto
Projeto Gráfico e Capa Rian Narcizo Mariano
Revisão Do autor
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B42h Bento Filho, Egídio A história do Rio de Janeiro do século XVI ao XXI / Egídio Bento Filho. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Letra Capital, 2017. 216 p. : il. ; 23 cm. ISBN: 9788577855223 1. Rio de Janeiro (Cidade) - História - Séc. XVI. 2. 1. Rio de Janeiro (Cidade) - História - Séc. XXI. I. Título. 17-40501 CDD: 981.53 CDU: 94(815.3)
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 vendas@letracapital.com.br
Agradecimentos – Ao Comitê Rio450 da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro que me cedeu Carta Institucional visando à publicação do livro; – À Secretaria Municipal de Urbanismo - Centro Arquivístico; – Ao Centro Cultural Justiça Federal pelo apoio constante a meus projetos, incluindo um curso sobre esta obra.
Sumário Prefácio...........................................................................................11 Introdução.....................................................................................13 Século XVI Grandes conquistas da península Ibérica...................................17 Os primeiros visitantes do Rio de Janeiro..................................18 Conflitos religiosos na Europa.....................................................20 O fascínio europeu pelo Novo Mundo........................................21 O Rio antes de Villegagnon.........................................................23 A chegada dos franceses ao Rio..................................................23 A França Antártica........................................................................24 O ataque dos portugueses à França Antártica............................25 A Confederação dos Tamoios......................................................27 A fundação da cidade do Rio de Janeiro....................................28 A derrota de tamoios e franceses................................................29 A segunda fundação da cidade do Rio de Janeiro.....................30 O primeiro governo de Salvador Correia de Sá.........................32 Padre José de Anchieta.................................................................33 O governo de Antônio Salema....................................................34 A vida econômica do Rio de Janeiro...........................................35 A União das Coroas Ibéricas........................................................36 O segundo governo de Salvador Correia de Sá..........................37
Século XVII O governo de Martim Correia de Sá...........................................43 A Igreja e a sociedade...................................................................43 As mudanças urbanas...................................................................46 Os holandeses no Brasil...............................................................47 Os governos de Benevides e Luís Barbalho ...............................48 Benevides e a campanha contra os holandeses em Angola.....................................................................................50
A Revolta da Cachaça...................................................................51 O galeão Padre Eterno.................................................................54 A Colônia do Sacramento............................................................55 O início do Ciclo do Ouro...........................................................56
Século XVIII Euforia provocada pelo ouro........................................................61 O Caminho Novo..........................................................................61 Invasões francesas.........................................................................62 A invasão de Duclerc....................................................................62 A invasão de Duguay-Trouin........................................................64 O reflexo do ouro no Rio de Janeiro..........................................66 O governo de Gomes Freire de Andrade....................................70 A nova capital do Brasil e seus vice-reis......................................74 A Conjuração Mineira..................................................................78 O governo do conde de Resende.................................................81
Século XIX Napoleão e a Europa no início do século XIX...........................85 A transferência da corte portuguesa para o Brasil....................85 A preparação do Rio para receber a Corte.................................86 Os primeiros momentos da família real no Brasil.....................87 Realizações de D. João..................................................................89 Os franceses no Rio de Janeiro....................................................91 Os passeios da família real...........................................................93 A família real e o povo..................................................................94 A luta do Rio por uma constituição............................................97 D. Pedro e a situação política.......................................................99 A contribuição da maçonaria.....................................................101 O difícil começo do império......................................................103 D. Amélia, a nova imperatriz do Brasil.....................................105 A Noite das Garrafadas..............................................................107 A Abdicação de D. Pedro I.........................................................108
A Regência...................................................................................109 O Rio de Janeiro na primeira fase do Segundo Reinado........111 A Guerra do Paraguai................................................................115 A escravidão no Rio de Janeiro.................................................116 A Campanha Abolicionista........................................................117 O Baile da Ilha Fiscal..................................................................120 O surgimento da república.........................................................121 A partida da família real.............................................................123 Os primeiros anos da república.................................................124
Século XX Um novo Rio inspirado em Paris .............................................129 O Centenário da Abertura dos Portos......................................132 A Cinelândia................................................................................133 Os bondinhos da Urca................................................................138 O Centenário da Independência do Brasil...............................139 Os Dezoito do Forte....................................................................143 A Revolução de 1930..................................................................145 O Cristo Redentor.......................................................................146 O governo de Getúlio na década de 1930.................................148 A Lapa.........................................................................................150 Getúlio Vargas e o samba...........................................................152 Carmen Miranda.........................................................................153 Getúlio e o progresso do Rio de Janeiro..................................154 A praça Mauá..............................................................................159 Copacabana.................................................................................161 O estádio do Maracanã..............................................................163 Getúlio Vargas e o novo contexto histórico..............................164 Adeus a Carmen Miranda..........................................................166 Rio de Janeiro e Brasília.............................................................167 Carlos Lacerda............................................................................168 O Golpe de 1964 ........................................................................169 O Rio após o Golpe....................................................................172 A reação popular aos militares..................................................173 AI- 5 ............................................................................................174
Grandes obras do Rio no período da Ditadura.......................175 Leonel Brizola.............................................................................178 A nova tendência internacional do Rio.....................................180
Século XXI A revitalização da Lapa..............................................................185 Tradição e modernidade............................................................187 Porto Maravilha..........................................................................189 Olimpíada 2016...........................................................................192 O Rio e a violência.....................................................................197
Conclusão.....................................................................................199 Cronologia da cidade do Rio de Janeiro............................201 Bibliografia..................................................................................213
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Quando a história nos ensina a ser otimistas
Nesse trabalho, Egídio Bento Filho procura nos mostrar o
imenso esforço na construção de uma cidade e destaca em muitos momentos alguns feitos memoráveis do povo carioca. Boa parte das obras sobre o Rio se detém em falar das mazelas do seu passado. Sabemos que o papel de um pesquisador se fundamenta na crítica. Porém, ser “crítico” não implica obrigatoriamente apenas mostrar o lado ruim de um assunto. O reconhecimento de um mérito, quando utilizado na justa medida, também é uma forma de se fazer crítica. Alguns estudiosos enfatizam de tal forma problemas do Rio que até pode parecer num primeiro momento que estes são exclusivos dele. É comum se apontarem deficiências urbanas ou de saúde pública no século XVIII, mas não se mencionam as precárias condições de outras cidades americanas e europeias daquele período. Não esqueçamos que Paris viveu esses dramas intensamente e só em 1872 é que Haussmann concluiu um trabalho árduo de dezessete anos como prefeito para resolver as questões. É importante acrescentar ainda que cerca de trinta anos depois Pereira Passos teve um papel bem mais eloquente no Rio de Janeiro, pois operou uma transformação considerável sobre uma geografia muito mais adversa que a parisiense, e tudo isso em apenas quatro anos. O que há de igual entre Egídio Bento Filho e os demais historiadores é que ele durante todo o livro fala muito criticamente dos problemas vividos pela cidade desde o século XVI até nossos dias. Entretanto, o que o diferencia de outros escritores é a forma de como ressalta a determinação do povo em construir o Rio de Janeiro. Um exemplo que vem a favor dessa postura é que no século XVI o que
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existia por aqui era um lugar inóspito para a vida humana. Egídio relata esse fato, mas não fica apenas nisso. Ele vai além: mostra-nos como muitos obstáculos no decorrer dos séculos foram eliminados e por que ainda podemos ostentar com orgulho o título de Cidade Maravilhosa. Prezado leitor, a Letra Capital Editora tem o prazer de convidá-lo a fazer um passeio pela história do Rio de Janeiro e conhecer alguns episódios que indevidamente são preteridos pela historiografia da cidade. E em cada assunto estudado, Egídio nos coloca aspectos importantes para que possamos perceber a trajetória vivida pelo Rio até os nossos dias. Acreditamos que a leitura desse livro nos fará andar pelas ruas dessa cidade com os olhos de quem finalmente reconhece um imenso patrimônio artístico e histórico que, por falta de maiores esclarecimentos, hoje se encontra injustamente esquecido.
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Introdução
É gratificante perceber que, ao fazermos uma análise de
experiências vividas pela cidade do Rio de Janeiro, o resultado em muitos casos é bastante positivo. Sua história está repleta de grandes acontecimentos. Nela, podemos ver a campanha que conseguiu expulsar os holandeses de Angola, a primeira revolta de brasileiros contra um governo autoritário, o avanço do território nacional em direção ao Sul, as contribuições da família Real, o surgimento do samba carioca como a maior expressão cultural de nosso país, a mais importante conferência da ONU sobre meio ambiente, uma olimpíada exemplar, etc. É verdade que também houve momentos amargos. O Rio, como toda metrópole, teve suas vitórias e derrotas. É desse contraste que vem o material que nos ajuda a refletir sobre o que desejamos para o futuro. Problemas sempre existiram, mas eles não podem ser tomados como pretexto para se tentar diminuir a imagem da cidade. Pelo contrário, devem nos fazer lutar por dias cada vez melhores. E para que isso aconteça, é fundamental repensar problemas e principalmente reconhecer os êxitos que já acumulamos, pois são eles que podem nos dar o entusiasmo necessário para novas realizações.
Século XVI
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Grandes conquistas da península Ibérica Durante a Idade Média, Constantinopla, atual Istambul, era um centro do cristianismo e importante local de comércio entre a Europa e o Oriente. Em 1453, os turcos otomanos, sob o comando do sultão Maomé II, tomaram a cidade e, devido a sua rivalidade contra os cristãos, interromperam o costumeiro fluxo comercial ali estabelecido. Além disso, dominaram o mar Mediterrâneo. Os europeus viram-se forçados a encontrar novas vias de acesso aos asiáticos. O desafio começou a ser enfrentado pelos ibéricos. Portugueses empreenderam viagens cada vez mais extensas pelo litoral africano com destino às Índias, e espanhóis tentaram alcançá-la em direção ao Ocidente. Desse modo, eles protagonizaram as aventuras marítimas do século XVI. Um dado muito importante dessa fase é que, ao tentarem atingir os mercados orientais, Portugal e Espanha iam descobrindo terras. Um dos maiores exemplos disso ocorreu com a expedição comandada por Cristóvão Colombo que chegou à América em 12 de outubro de 1492. Com o acontecimento, iniciou-se um grande domínio territorial direcionado pela coroa espanhola. Durante o desenrolar do processo, os dois países ficaram preocupados com a possibilidade de que um se apossasse de lugar que já pertencesse ao outro. Por essa razão, assinaram em 1494 o Tratado de Tordesilhas. O acordo estabelecia uma linha imaginária de 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Os territórios americanos à esquerda dessa divisão pertenceriam aos espanhóis, enquanto os situados à direita seriam portugueses. Contra o tratado levantaram-se alguns reis europeus que não o reconheceram como legítimo. Segundo eles, não seria justo repartir o Novo Mundo entre dois reinos apenas. Mesmo com todos os protestos, o documento Tratado de Tordesilhas
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manteve-se em vigor, já que tinha sido assinado sob a aprovação do papa Alexandre VI. Em 1498, o navegador Vasco da Gama alcançou as Índias e, no ano seguinte, voltou a Lisboa trazendo imensa quantidade de especiarias. Entusiasmado com os lucros da expedição, o rei D. Manuel I enviou em 1500 outra esquadra bem maior em direção ao Oriente. Para comandá-la escolheu-se Pedro Álvares Cabral. Com um desvio de percurso, ele navegou para o oeste e por volta das 16 horas da quarta-feira de 22 de abril chegou a um ponto do litoral da Bahia, o qual foi batizado como Porto Seguro. Dessa forma, aconteceu o Descobrimento do Brasil. Atualmente, no Centro Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro, encontramos uma réplica das caravelas que realizaram o descobrimento, construída para comemorar os 500 anos do feito (foto ao lado). Ao examiná-la, especialmente por dentro, podemos perceber quanto deveria ser difícil fazer a travessia do Atlântico numa embarcação desse tipo. Ela, como o modelo original, tem dimensões pequenas e pouca estabilidade. Esse é um dado que, como tantos outros, demonstra o heroísmo com que os ibéricos construíram sua história no período das Grandes Navegações.
Os primeiros visitantes do Rio de Janeiro Para fazer o reconhecimento do Brasil, partiu de Lisboa, em março de 1501, uma armada composta de três naus, tendo como escrivão Américo Vespúcio. Ela percorreu boa parte da costa brasileira, batizando alguns dos acidentes geográficos. Ao chegar à baía de Guanabara, denominou-a de rio, porque, segundo Helio Vianna, naquela época costumava-se chamar assim qualquer embocadura, mesmo que não fosse de caráter estritamente fluvial. Como era o mês de janeiro (de 1502), o sitio recebeu o nome de Rio de Janeiro. Américo Vespúcio registrou que não foram encontrados metais preciosos na nova terra, mas que em muitas partes dela havia abun-
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dância de pau-brasil. O miolo do caule da árvore tinha seu valor, pois, reduzido a pó e fermentado, produzia uma tintura que ia do vermelho ao marrom, a qual servia para tingir tecidos. Portugal, de 1502 em diante, extraiu essa madeira em alguns pontos do território brasileiro. No ano de 1519 desembarcou na baía de Guanabara o português Fernão de Magalhães que realizava a viagem de circum-navegação a serviço da Espanha. Isso aconteceu em 13 de dezembro, dia dedicado à santa Luzia. Por essa razão, a baía recebeu o nome dela. Entretanto, o topônimo anterior já havia se consagrado tanto em suas águas quanto nas terras ao redor, ficando toda a região definitivamente conhecida como Rio de Janeiro. Em 30 de março de 1531, a frota de Martim Afonso de Sousa chegou a esse local, onde permaneceu até 1º de agosto. Com ele veio seu irmão Pero Lopes de Sousa que fez construir dois navios e uma casa de pedra nas proximidades do rio Carioca1 na área hoje conhecida como bairro do Flamengo.
Rio Carioca no aterro do Flamengo 1 Esse rio foi tão importante para a cidade, que, muito provavelmente por causa dele, seus habitantes vieram mais tarde a ser conhecidos como cariocas. A propósito, não é possível dizer com precisão qual a origem da palavra "carioca". Costuma-se afirmar que ela significa “casa do homem branco” e que foi dada pelos índios aos portugueses por causa da casa de pedra por eles construída. Porém, "carioca" já era o nome do rio a que estamos nos referindo, com o significado de "habitat do peixe acari". Além disso, era a denominação de uma antiga aldeia tupinambá que existia no sopé do morro do Leripe (atual morro da Glória) com o sentido de “casa do índio carijó”.
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A mando de Martim Afonso de Sousa, houve um reconhecimento territorial à procura de metais preciosos. Mesmo com o intenso esforço da jornada, não foi encontrado o que realmente se buscava. Ele, então, seguiu com sua esquadra em direção ao litoral sul, chegando às terras que correspondem ao atual Estado de São Paulo. Ali fundou a vila de São Vicente e nela se estabeleceu por considerá-la mais favorável à prosperidade da colônia. Até meado do século XVI, a América não atraiu muita atenção dos portugueses. Eles estavam mais preocupados em manter ligações comerciais com o Oriente. Devido aos lucros gerados por tal atividade, deixaram o Brasil num segundo plano. Aproveitandose desse fato, os franceses penetraram em regiões onde podiam explorar o pau-brasil. Foi isso o que aconteceu em Cabo Frio e baía de Guanabara. Portugal e Espanha condenaram a ação, porque ela violava o Tratado de Tordesilhas. Diante da insistência dos ibéricos para que o rei da França, Francisco I, reconhecesse o documento, ele ironicamente pediu que lhe apresentassem o Testamento de Adão, pois gostaria de ver aí a cláusula em que o personagem bíblico dividia o Novo Mundo apenas entre portugueses e espanhóis, isentando assim os demais povos da partilha. Ao entrar em contato com o nativo, os franceses, além de não tentarem influenciá-lo culturalmente, ficaram fascinados com alguns dos seus hábitos, entre eles a liberdade para relações sexuais. As notícias desses acontecimentos chegavam à Europa, causando preocupação à Igreja Católica e despertando a curiosidade do homem comum.
Conflitos religiosos na Europa No início do século XVI, o monge alemão Martinho Lutero rebelou-se abertamente contra Roma, condenando as indulgências e tudo que julgava avareza e paganismo. Em 1517 suas ideias eram aceitas em boa parte do continente europeu, o que propiciou a Reforma. A partir de então, houve entre os protestantes mudança radical da cerimônia religiosa, eliminação de imagens nas igrejas e negação do celibato. Lutero casou-se com uma ex-freira, Catarina
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von Bora. O exemplo foi seguido por outros ex-padres e ex-freiras reformistas. Contra a rebeldia luterana levantaram-se os católicos. As principais medidas nesse sentido foram o surgimento da Companhia de Jesus e a realização do Concílio de Trento. A Companhia de Jesus foi fundada em 1534 sob a liderança de Inácio de Loyola. Seus seguidores faziam votos de obediência ao papa, não podendo questioná-lo sob nenhum aspecto. Enviados inicialmente como missionários para alguns países do continente europeu, eles tinham como finalidade criar escolas, liceus e seminários. Frequentemente os jesuítas eram também educadores e confessores de soberanos. O rei português D. Sebastião, por exemplo, teve formação direcionada por esses religiosos. O Concílio de Trento, que aconteceu entre 1546 e 1563, ratificou o celibato, o culto aos santos e às relíquias, a doutrina do purgatório e a prática das indulgências. As resoluções tiveram aceitação imediata em Portugal, Espanha, Polônia e estados italianos. A França, dividida entre conservadores e reformistas, demorou décadas para aceitar as determinações de Roma. Desde a Reforma até a segunda metade do século XVI aconteceram inúmeras perseguições e lutas entre católicos e protestantes. Um dos prejudicados pela situação foi Jean Calvino que, impossibilitado de praticar na França as mudanças iniciadas por Lutero, fugiu para a Suíça em 1533, estabelecendo-se em Genebra. Lá conseguiu boa quantidade de fiéis e a cidade tornou-se um dos maiores focos de irradiação dos pensamentos reformistas.
O fascínio europeu pelo Novo Mundo Enquanto a Europa sofria conflitos religiosos e problemas econômicos, chegavam até lá relatos laudatórios sobre as riquezas das terras americanas. Embora algumas descrições fossem fantasiosas, as conquistas de Espanha eram surpreendentes: em 1521 Fernão Cortez dominou o rico império dos astecas no México, dez anos depois Francisco Pizarro viu-se diante de tesouros dos incas
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no Peru, no ano de 1545 minas de prata foram descobertas em Potosi (atual Bolívia). Os acontecimentos levavam a crer que a América corresponderia às ambições dos reis europeus. Como sobre alguns pontos estava confirmado o poder espanhol, restaria explorar outros territórios ou contrabandear os metais das regiões dominadas. Nessas duas possibilidades enquadrava-se a França que, desde longa data, estava determinada a tirar proveitos do Novo Mundo. Para realizar o objetivo, surgiu Nicolau Durand de Villegagnon, Cavalheiro de Malta, ex-diplomata francês, que planejava erguer um estabelecimento permanente e fortificado na América do Sul. A baía de Guanabara prestava-se a esse fim, porque, além de ser um ponto conhecido dos franceses, contiNicolau Durand de Villegagnon nuava quase abandonada pelos lusitanos. Villegagnon procurou o nobre Gaspar de Coligny com o intuito de obter recursos para o empreendimento. Por considerar que o plano seria vantajoso à França, Coligny o apresentou ao rei, Henrique II, que contribuiu para a expedição com o valor de 10 mil francos, dois navios de guerra e um de carga. No início de 1555, as embarcações estavam prontas, mas a questão dos recursos humanos permanecia por não haver muitos interessados naquela aventura. Então, Villegagnon pediu ao soberano que lhe permitisse levar consigo os criminosos das prisões de Paris, Rouen e outras cidades. Segundo ele, os detidos, que estavam relegados pela sociedade, poderiam encontrar recuperação moral em novas terras. O rei acatou o pedido. A expedição partiu do porto de Havre de Grâce a 12 de julho com cerca de 600 homens. Ao começarem a viagem, um mau tempo exigiu que voltassem e causou avarias numa das naus. Alguns tomaram o acontecido como indicação de azar e desistiram da empreitada. Realizou-se mais uma tentativa sem êxito, até que final-
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mente a expedição conseguiu zarpar em 14 de agosto. Por motivo das desistências causadas pelos imprevistos, não se sabe quantos homens partiram com destino ao Brasil.
O Rio antes de Villegagnon Na baía de Guanabara, pouco antes da chegada de Villegagnon, havia duas nações indígenas rivais entre si: os tamoios, que ocupavam a maior parte da região, e os temiminós, que, liderados por Arariboia, habitavam a ilha de Paranapuã (atual ilha do Governador). Entraram em guerra por volta de 1554. A vitória coube aos tamoios. Os temiminós foram se refugiar na capitania do Espírito Santo. Lá aguardavam uma oportunidade para enfrentar novamente o inimigo.
A chegada dos franceses ao Rio Os franceses desembarcaram no litoral fluminense em 31 de outubro de 1555. Procuraram os tamoios para obter informações gerais. Souberam que algumas tribos enfrentavam os portugueses para expulsá-los de suas terras, porque eles estavam reduzindo-as à escravidão. Villegagnon prontificou-se a ajudar os índios nessa tarefa. Em seguida, os recém-chegados dirigiram-se a Cabo Frio. Ficaram no local pouco tempo, já que não havia água doce para abastecer a tropa. Em 10 de novembro estavam no Rio. Conforme frei Thevet, que veio na expedição, foram todos recepcionados por “quinhentos a seiscentos selvagens, todos nus, com arcos e flechas, [que diziam] em sua linguagem que éramos bem-vindos”.2 A tranquilidade com que foram recebidos deveu-se a dois motivos: outros franceses já haviam tido contato amigável com os tamoios e, entre 1553 e 1557, o governador-geral do Brasil, Duarte da Costa, devido a brigas com o bispo e funcionários da adminis2 ALMEIDA ABREU, Maurício de. Geografia Histórica do Rio de Janeiro - vol. 1, Rio de Janeiro: Andrea jakobsson Estúdio Editora Ltda, 2000, p. 70.
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tração colonial, não deu atenção ao programa de defesa territorial objetivado pela Coroa. Tais fatores permitiram que Villegagnon e sua gente pudessem agir com segurança na implantação de uma colônia, a França Antártica.
A França Antártica Os franceses fixaram-se na ilha de Serigipe (atual ilha de Villegagnon, ao lado do aeroporto Santos Dumont) que, segundo Thevet, era bastante aprazível, com grande quantidade de palmeiras, cedros, paus-brasis e arbustos aromáticos. Em homenagem a quem possibilitou o apoio material para aquele projeto, deu-se à ilha o nome de Coligny. Assim também seria batizado o forte que logo nos primeiros dias começaram a edificar no local. A construção levou quase dois anos para ficar pronta e resultou, conforme relatos da época, numa obra admirável. Tendo feito voto de castidade, Villegagnon temia que as tentações da nova terra, especialmente a nudez das indígenas, pudessem desviar seus homens do objetivo moralizante com que foram trazidos ao Novo Mundo. Impôs que um francês só poderia ter relacionamento sexual com uma nativa depois de casar-se com ela. A maioria dos colonos rebelou-se contra o procedimento. Daí surgiu uma conspiração. Ao falar dela, Villegagnon afirma: “Vinte e seis mercenários, incitados pela sua cupidez carnal, contra mim conspiraram, sendo-me, entretanto, o fato revelado no dia em que eu ia ser trucidado”.3 Desarticulado o complô, alguns foram enforcados e outros tiveram que realizar serviços forçados, o que instaurou um clima de terror na ilha. Em 1557, Bois-le-Comte, sobrinho de Villegagnon, veio da França comandando uma expedição. Nela estavam cinco mulheres destinadas a desenvolver o povoamento da ilha, um grupo de protestantes calvinistas, e Jean Cointa,4 o Senhor de Bolé, que vinha com a função de ordenar a vida civil dentro da colônia. 3
Idem, p. 77.
Esse personagem aparece em algumas fontes como Jean Cointa, Jean de Coynta e Jean de Cointac. Adotamos o primeiro desses nomes por seguir Almeida Abreu que, entre os historiadores por nós pesquisados, é o que nos demonstra maior pre4
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Foram recebidos com boas-vindas. No entanto, o clima de cordialidade não durou muito. Na semana seguinte à chegada dos novos integrantes, os conflitos surgiram, pois o Cavalheiro de Malta não aprovou certas interpretações calvinistas da Bíblia e novidades introduzidas nos serviços religiosos. De sentimento igual foi a população da ilha que era católica. Entre os novatos, destacava-se Jean Cointa, doutorado pela Sorbonne em letras latinas, gregas e hebraicas. Ele tornou-se reconhecido por ser um estudioso da Bíblia e por ter o dom da argumentação. Quando começou a trabalhar com os colonos, Villegagnon também se desentendeu com ele, já que não aceitava algumas de suas tendências ao calvinismo. Cointa abandonou a ilha e passou a viver entre os tamoios no continente. O clima de hostilidade intensificou-se quando o chefe da França Antártica declarou que Calvino era um herege, atitude que representou a ruptura total com os protestantes. Eles acabaram sendo expulsos dali e foram viver por algum tempo ao lado de Cointa. Em 4 de janeiro de 1558 regressaram à França. Lá moveram uma campanha contra o Cavalheiro de Malta. Em agosto de 1559, ele partiu com destino a Paris tendo dois objetivos: defender-se das acusações dos protestantes e requerer do governo meios materiais que permitissem a continuação de seu projeto no Brasil. Chegando ao território francês, soube que o rei havia falecido recentemente e que a atenção da nobreza estava direcionada à sucessão do trono. Simultaneamente, os conflitos religiosos intensificavam-se no continente europeu. Por causa dessas circunstâncias e das denúncias que havia contra ele, suas reivindicações não foram ouvidas.
O ataque dos portugueses à França Antártica Durante a ausência de Villegagnon, o governo da França Antártica esteve a cargo de Bois-le-Comte que comandava poucos soldados, embora contasse com numerosos tamoios.
ocupação com documentos relativos ao século XVI.
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Em setembro de 1559, partiu de Lisboa uma armada sob o comando de Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha com ordens expressas de destruir tudo que fosse francês na baía de Guanabara. Segundo o historiador português Serrão, ela contava com 300 indivíduos. A frota chegou a Salvador em 30 de novembro. Daí passaram a fazer parte dela o governador-geral Mem de Sá, o padre Manuel da Nóbrega - primeiro provincial da Companhia de Jesus no Brasil, um reforço de personagens de destaque da vida baiana, homens de arma e índios. Durante o percurso até o Rio, Mem de Sá foi recolhendo mais apoios. Em Ilhéus encontrou alguém que lhe daria uma ajuda decisiva para o êxito daquela missão, Jean Cointa, que guardava fortes ressentimentos de Villegagnon. Cointa forneceu a ele preciosas informações sobre a França Antártica e a maneira de conquistá-la. Entraram na baía de Guanabara a 21 de fevereiro de 1560. Só se prontificaram a lutar depois que receberam reforços vindos de São Vicente. Mem de Sá intimou os franceses à rendição e aguardou por dois dias para que sua ordem fosse acatada. Como não foi obedecido, atacou os inimigos na manhã de sexta-feira de 15 de março. Batalha entre portugueses e franceses, gravura de André Thevet Dominada a ilha, seus habitantes passaram a viver ao redor da baía sob a proteção dos tamoios. Mem de Sá resolveu destruir o forte Coligny. Temia que os vencidos viessem mais tarde a dominar o local. Em seguida, voltou a Salvador. Em 1563, Jean Cointa caiu nas garras do Santo Ofício. Tentando livrar-se do problema, procurou mostrar aos inquisidores quanto havia sido útil aos lusitanos no Rio de Janeiro. A seu socorro veio Mem de Sá que, depondo sob juramento, confirmou as palavras do réu. Essa atitude o ajudou a ser absorvido do processo inquisitorial em 1564. 5 5
Dos livros que se dedicam à história do Rio, alguns nem sequer mencionam Jean