A metropole em questao

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Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

A Metrópole em Questão: desafios da transição urbana


Copyright © Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, 2016 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor(es).

Editor: João Baptista Pinto Capa: Rian Narciso Mariano Editoração: Luiz Guimarães Revisão Técnica: Pedro Paulo Machado Bastos

CIP- BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R369m Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz A Metrópole em Questão: Desafios da transição urbana / Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. -1. ed. -- Rio de Janeiro : Letra Capital : Observatório das Metrópoles, 2017. 314 p. : il. ; 15,5x23 cm. Apêndice Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7785-505-6 1. Política habitacional. 2. Habitação. 3. Habitação popular. 4. Planejamento urbano 5. Comunidade urbana. I. Título. III. Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. 17-39498 CDD: 363.5 CDU: 351.778.532

Observatório das Metrópoles - IPPUR/UFRJ Coordenação Geral: Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro Av. Pedro Calmon, 550, sala 537, 5ª andar – Ilha do Fundão Cep 21.941-901 – Rio de Janeiro, RJ Tel/Fax 55-21-3938-1950 www.observatoriodasmetropoles.net Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Sumário Introdução ............................................................................................. 9

Parte I - As Metrópoles e a Formação da Ordem Urbana........................................................... 19 Capítulo 1 CIDADE, NAÇÃO E MERCADO: desafios societários da reforma urbana no Brasil........................ 21 Capítulo 2 A METRÓPOLE LIBERAL-PERIFÉRICA E A ORDEM URBANA....................................................... 55 Capítulo 3 DINÂMICA METROPOLITANA: diversificação, concentração e dispersão................................................ 75

Parte II - As Metrópoles e a Transição na Ordem Urbana .................................................. 111 Capítulo 4 TRANSIÇÃO NA ORDEM URBANA: hipóteses e estratégia comparativa.................................................... 113 Capítulo 5 METAMORFOSES NA ORDEM URBANA DA METRÓPOLE BRASILEIRA...................................... 150 Capítulo 6 A ORDEM URBANA CONTRA A METRÓPOLE............. 177

Parte III - Os Desafios Metropolitanos .................... 205 Capítulo 7 A GOVERNANÇA METROPOLITANA E A ORDEM URBANA .................................................... 207 Capítulo 8 A CIDADE NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA: desafios teóricos e políticos........................... 230 Capítulo 9 AS METRÓPOLES DO PENSAMENTO URBANO LATINO-AMERICANO: reflexões para uma teoria urbana do processo de metropolização............................................................... 255 Capítulo 10 AS METRÓPOLES NA TRANSIÇÃO URBANA LATINO-AMERICANA: esperanças e desafios............... 287 Bibliografia ......................................................................................... 300


Lista de Figuras FIGURA 4.1. Fluxograma do modelo empírico de análise..................................... 125 FIGURA 5.1. Tipologia socioespacial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro................................................................................ 165 FIGURA 5.2. Índice de Bem-Estar Urbano na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 2010.................................................................... 171 FIGURA 6.1. Estratégias de empreendedorismo urbano....................................... 195 FIGURA 7.1. Níveis de integração à dinâmica da metropolização – Brasil 2010........................................................................................... 218 FIGURA 10.1. América do Sul – cidades com mais de 20.000 habitantes, 1950 e 2000. ........................................................................................ 295 FIGURA 10.2. Rede tradicional de saberes urbanos: campos e subcampos de conhecimento................................................................................. 297

Lista de Gráficos GRÁFICO 3.1. Evolução da população urbana do Brasil e países selecionados – 1950/2010.................................................................... 78 GRÁFICO 3.2. Taxa de crescimento populacional segundo nível de integração nas regiões metropolitanas - 1991-2010....................... 99 GRÁFICO 3.3. Incremento populacional absoluto segundo nível de integração nas regiões metropolitanas - 1991-2010..................... 100 GRÁFICO 3.4. Distribuição percentual do incremento populacional segundo nível de integração nas regiões metropolitanas 1991-2010............................................................................................. 101 GRÁFICO 3.5. Índice de Bem-Estar Urbano (IBEU) das metrópoles: dimensão da mobilidade urbana – 2001-2008 (PNAD).................... 103 GRÁFICO 3.6. Crescimento da população e do número de veículos no Brasil e nas metrópoles - 2000-2010.................................................. 105 GRÁFICO 3.7. População e número de automóveis no Brasil e nas metrópoles – 2001 e 2010................................................................... 106 GRÁFICO 4.1. Grau de Urbanização (%) e Evolução da População no Brasil – Urbana, Rural e Metropolitana (números absolutos)......... 120 GRÁFICO 4.2. Grau de Urbanização (%) e Evolução da População no Brasil – Urbana, Rural e Metropolitana (números absolutos)....................... 122 GRÁFICO 5.1. Unidades lançadas na cidade do Rio de Janeiro (2001-2010).......... 167


GRÁFICO 5.2. Rendimento médio total por favela e não favela segundo a organização social do território da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 2000 e 2010........................................................ 169 GRÁFICO 7.1. Índice de Moran e Dissimilaridade da alta classe média nas metrópoles brasileiras - 2010.............................................................. 225

Lista de Mapas MAPA 4.1.

As metrópoles da rede urbana........................................................... 121

MAPA 6.1.

Graus de integração dos municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, segundo o mercado de trabalho........................ 186

MAPA 6.2.

Corredores dos BRTs na cidade do Rio de Janeiro.......................... 191

Lista de Quadros QUADRO 3.1. Regiões metropolitanas e RIDEs segundo as grandes regiões (2010)........................................................................................ 92 QUADRO 4.1. Estrutura social das metrópoles brasileiras ...................................... 126 QUADRO 4.2. Modelos de comparação segundo Charles Tilly............................... 131 QUADRO 4.3. Modelos comparativos........................................................................ 132

Lista de Tabelas TABELA 3.1. Distribuição populacional nas regiões metropolitanas brasileiras - 1970/2000......................................................................... 82 TABELA 3.2. População segundo nível de integração dos municípios – 1991/2010.............................................................................................. 95 TABELA 3.3. Incremento populacional segundo faixas de tamanho e nível de integração dos municípios – 1991/2010............................ 97 TABELA 3.4. Taxa de crescimento populacional nas metrópoles segundo nível de integração – 2000-2010........................................................... 98 TABELA 4.1. Estimativas da migração rural-urbana líquida - Brasil 1940/2000............................................................................................ 136 TABELA 7.1. Indicadores de segregação das metrópoles brasileiras, segundo a variável rendimento nominal mensal em salários-mínimos da pessoa responsável por domicílio - 2010......... 224 TABELA 7.2. Indicadores de segregação das metrópoles brasileiras, segundo a classe social – 2010........................................................... 224



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Introdução

Reunimos nesta publicação alguns textos que buscam sintetizar

a nossa interpretação da transição urbana das metrópoles brasileiras no período 1980-2010 e os desafios do presente momento a partir dos resultados do programa quinquenal de pesquisa do Observatório das Metrópoles “Território, coesão social e governança democrática”, realizado no período 2009-2015. O título desse Programa expressa a nossa compreensão a respeito dos impasses presentes na realidade urbano-metropolitana brasileira diante dos desafios do desenvolvimento nacional e das novas relações entre economia, sociedade e território, advindas das transformações do capitalismo que surgiram a partir da segunda metade dos anos 1970. Com efeito, o destino das metrópoles está no centro dos dilemas das sociedades contemporâneas. Por um lado, o conjunto das 15 metrópoles concentram as forças produtivas do país – 64% da capacidade tecnológica nacional–, por outro, são também territórios marcados por dinâmicas de fragmentação social e política, sobre os quais prevalece frágil ação de governabilidade. Tal fato é contraditório com o que vem evidenciando a literatura internacional sobre o papel das metrópoles na fixação territorial dos fluxos econômicos crescentemente globalizados. Estudos mostram que as metrópoles onde prevalecem menores índices de dualização e de polarização do tecido social são as que têm levado vantagens na competição pela atração dos fluxos econômicos, ou seja, as que recusaram a lógica da competição buscando oferecer apenas governos locais empreendedores e as virtudes da mercantilização da cidade. Com base em tal compreensão, o programa de pesquisa foi estruturado em três linhas de pesquisas, cada uma delas materializada em um conjunto de projetos desenvolvidos pelos núcleos do Observatório, a saber: Linha I – Metropolização, dinâmicas intermetropolitanas e o território nacional; Linha II – Dimensão socioespacial da exclusão/ integração nas metrópoles: estudos comparativos; e Linha III – Governança urbana, cidadania e gestão das metrópoles. A primeira linha teve como finalidade compreender as dinâmicas de constituição dos espaços metropolitanos, seu poder de articulação e polarização do território nacional, além dos novos arranjos espaciais e suas conexões com as transformações de suas bases produtivas. Tais


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objetivos nos pareciam fundamentais, tendo em vista a importância estratégica das grandes cidades para a construção de alternativas de desenvolvimento econômico capazes de assegurar a coesão nacional. A segunda linha, “Dimensão socioespacial da exclusão/integração nas metrópoles”, reuniu uma série de projetos de pesquisa focados no conhecimento sistemático das dinâmicas internas de organização social do território das metrópoles. A hipótese inicial dessa linha é que os processos de segregação residencial têm enorme importância na compreensão dos mecanismos societários de exclusão e integração através de seus efeitos sobre os mecanismos de produção/ reprodução de desigualdades sociais e das relações sociais entre as classes sociais. A análise do primeiro mecanismo fundou-se na teoria da causação circular e cumulativa de G. Myrdal. No que concerne aos termos “exclusão” e “integração”, a base das análises é o conceito de modos de integração econômica formulado por K. Polanyi e utilizado por D. Harvey em seu pioneiro estudo sobre a cidade e a justiça social. Partimos da identificação das três esferas de relações sociais que determinam os recursos acessíveis no plano do bairro e do domicílio. Esses recursos são essenciais nos processos de integração e exclusão, na medida em que são necessários para a plena participação na sociedade. A terceira linha, “Governança urbana, cidadania e gestão das metrópoles”, foi dedicada ao estudo das condições que constrangem a transformação das metrópoles em um território político no qual prevaleçam padrões de intervenção pública, em matéria de provisão de serviços coletivos, e de regulação pública que expressem a mediação entre interesses particulares e o interesse geral. Essa linha se materializou em projetos organizados nas seguintes sublinhas: “Cultura política, cidadania e segregação residencial” e “Arranjos institucionais de gestão metropolitana”. A primeira sublinha explorou a relação existente entre os processos de segregação residencial e a emergência de uma cultura cívica e política favorável à afirmação da cidadania. A questão central está relacionada à reflexão sobre a relação entre, de um lado, o ambiente social e cultural da metrópole e as relações de sociabilidade nela vigentes e, de outro, as condições institucionais, políticas e intersubjetivas que favoreçam o desenvolvimento de um comportamento baseado na consciência de direitos de cidadania. O nosso programa fundou-se, desde a sua primeira versão, na


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suposição de que deveríamos analisar as metrópoles brasileiras sobre a ótica da mudança social. A proposta apoiava-se numa interlocução com a bibliografia internacional dos anos 1980 sobre as transformações das grandes cidades sob o duplo impacto da globalização econômica e da reestruturação produtiva. Por isso, foram de grande importância para essa proposta as análises de John Fridman e Saskia Sassen sobre o surgimento de um novo tipo de fenômeno urbano caracterizado conceitualmente como “cidade global”. Também nos inspiraram análises de vários autores como Roger Boyer, Michael Storper, Alain Lipietz, entre outros sobre as transformações do capitalismo após a segunda metade dos anos 1970 e seus impactos territoriais, especialmente os que alinhavam em torno dos conceitos de reestruturação produtiva e da acumulação flexível. Este debate ocupa ainda lugar de destaque no campo acadêmico, mas outras crescem visões teóricas que buscam destacar as diferenças de trajetórias históricas entre as cidades incluídas nos macroprocessos de globalização. O que significa dizer que as condições econômicas, sociais, institucionais e culturais locais podem ser fatores importantes na compreensão dos resultados sociais, espaciais e políticos da transformação das metrópoles brasileiras. O ponto de vista da mudança em nosso projeto também se relacionava com a interpretação sobre as transformações da sociedade brasileira em curso desde os anos 1980, como consequência da crise do modelo de desenvolvimento por substituição de importação. Para o decênio 1990-2000 assumimos nos projetos Milênio e INCT a hipótese de mudanças nas metrópoles decorrentes de um ajuste defensivo1 (nos planos do mercado e do Estado), da maior inserção da economia brasileira na economia globalizada e das transformações liberais operadas pelo Estado nas relações econômicas e na própria organização do setor público. O gráfico abaixo sintetiza os períodos da evolução econômica na fase da industrialização. Como se depreende da leitura, identificamos três largos períodos compreendidos: substituição das importações (1930-1980), crise (1981-1990) e transição em direção a uma nova fase de expansão, cujas marcas são a abertura econômica e a reestruturação dos padrões de organização produtiva. COUTINHO, L. “A especialização regressiva: um balanço do desempenho industrial pósestabilização”. In: VELLOSO, J. P. R. (Org.) desafios de um país em transformação. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997. Ver também: COUTINHO, L.; FERRAZ, J. C. . São Paulo: Papirus, 1994 1


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Considerando o período 1980-2010 buscamos construir um conjunto de hipóteses que dialogassem com aquela literatura teórica, mas que tivessem também fundamentos na interpretação das particularidades históricas da nossa formação histórica no plano social e urbano. A seguir, apresentamos os pontos de partida que orientaram o nosso programa de pesquisa que algumas reflexões nesta direção. Começamos propondo possíveis caminhos para a interpretação das macrotransformações da economia política brasileira. Em seguida, buscamos construir um quadro de referência que possa nos orientar na construção de hipóteses com as quais podemos interpretar comparativamente as mudanças da ordem urbana das metrópoles no período 1980-2010. Como analisar o que ocorreu nas metrópoles no período 19802010? A resposta a esta pergunta dependia da formulação de hipóteses sobre as transformações mais gerais em curso na sociedade brasileira, em especial no período 1990-2010. Estaria ocorrendo uma transição do modelo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, concentrador de renda, riqueza e oportunidades, no interior do qual formouse a ordem urbana das nossas metrópoles? Havia naquele momento um debate na sociedade brasileira opondo várias intepretações, mas


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que podem ser sintetizadas em duas visões polares: neodesenvolvimentismo e neoliberalismo-periférico2. O neodesenvolvimentismo se caracteriza pela postulação da existência de significativa inflexão da rota neoliberalizante que orientou a política econômica nos anos 1990, a partir de 2003, rompendo com o ciclo de acumulação fundado na financeirização da riqueza. Os dois governos Lula expressariam a constituição de uma nova correlação de forças políticas capaz de sustentar um novo ciclo desenvolvimentista, expresso nos avanços da economia fundada pelo dinamismo do seu mercado interno, por expansão do emprego formal, distribuição da renda, pela constituição de uma ampla política de proteção social e pela retomada do papel planejador e regulador do Estado. Tal análise foi postulada, por exemplo, pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos que em janeiro de 2011 publicou na revista Carta Capital um longo texto comparando políticas públicas do Governo Lula com o de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. Wanderley Guilherme dos Santos apresenta uma avalanche de indicadores positivos obtidos durante o governo Lula. O cientista político defende a ideia do nascimento de um “Novo Brasil” entre os anos de 2003 e 2011: crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais. Em sua conclusão, Wanderley Guilherme dos Santos procurou negar as afirmativas segundo as quais a popularidade de Lula tivesse sido obra do marketing, mas sim o resultado de ações do governo cujo balanço contraria as visões das elites tradicionais e conservadores. O governo Lula, para ele, produziu números relevantes, que manipulados como fizeram aquelas elites com interessada subserviência, disfarçam as reais transformações. E vai além, deixa nas entrelinhas que essas transformações só seriam possíveis no Governo Lula, porque tentativas anteriores teriam conduzido o país ao limite da anarquia política e à desorganização das contas públicas. Para ele, portando, um sistema de valores e de práticas de perfil tradicionalmente elitista deu lugar a uma orientação de governo comprometido com a promoção econômica, social e cultural da vasta maioria de trabalhadores brasileiros, em particular de suas camadas mais pobres. Segundo Luis Filgueiras (2012), em palestras proferida no Seminário Nacional do INCT de 2011, a pluralidade das interpretações pode ser identificada através das seguintes ideias-forças: a ortodoxia neoliberal; o neodesenvolvimentismo; o neodesenvolvimentismo (neoliberal); o padrão de desenvolvimento híbrido; o desenvolvimentismo às avessas; o novo-desenvolvimentismo; o social-desenvolvimentismo; o modelo liberal-periférico 2


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E com isso, houve uma redução na intensidade dos conflitos que as elites conservadoras sempre empurraram para frente. O absoluto respeito por parte do Executivo às regras do jogo e às demais instituições do País, como judiciárias, legislativas e estaduais, é, na opinião dele, um dos aspectos incluídos no reconhecimento que a população dispensou ao governo. Em contraposição, um grupo de economistas buscava demonstrar a continuidade da lógica econômica fundada na financeirização da economia. Em vários textos3 os integrantes do grupo utilizavam evidências empíricas e construíam argumentos que permitiam identificar a existência de uma linha de continuidade entre os governos de FHC e de Lula, expressa pela manutenção do modelo econômico “intrinsecamente instável e gerador de vulnerabilidade externa estrutural”. Entretanto, observavam que a conjuntura internacional favoreceu a flexibilização dos constrangimentos que subordinam histórica e estruturalmente a economia nacional à lógica financeirização internacional, traduzida na política macroeconômica pela diminuição da taxa de juros, ampliação do crédito e a expansão dos gastos públicos em investimentos. No plano da proteção social, a flexibilização teria permitido a ampliação da política de transferência de renda constituída no período do governo de Fernando Henrique Cardoso, considerada limitada pelos seus fundamentos focalizados, e a adoção de uma política de valorização real do salário-mínimo4. Para estes autores, a flexibilização dos constrangimentos da nossa expansão autônoma em relação à lógica da financeirização, especialmente pela retomada do protagonismo do Estado estaria recriando GONÇALVES, R. Governo Lula e o Nacional-desenvolvimentismo às Avessas. , São Paulo, nº 31, p. 5-30, fevereiro 2012. Ver também: FILGUEIRAS, L.; PINHEIRO, B.; PHILIGRET, C.; BALANÇO, P.“Modelo liberal-periférico e bloco de poder: política e dinâmica macroeconômica nos governos Lula. In: . Contribuições para um balanço crítico 2003/2010. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2010, pp. 35-69. Ver também: <https://goo.gl/UxbXou>; <https://goo.gl/LQjlYh>. 4 Segundo Filgueiras e Pinheiro (2010), “os resultados mais importantes dessa flexibilização foram maiores taxas de crescimento da economia e redução das taxas de desemprego, com a ampliação do mercado interno, uma pequena melhora (na margem) da distribuição funcional da renda e, sobretudo, na distribuição pessoal (portanto, no interior dos rendimentos do trabalho). Adicionalmente, reduziramse os níveis de pobreza considerados mais dramáticos – conforme definido por “linhas de pobreza” subestimadas, próprias das políticas sociais focalizadas. Concomitantemente, essa flexibilização da política macroeconômica está sendo acompanhada pela presença mais incisiva do Estado no processo econômico, através das empresas estatais – especialmente, a Petrobras e os bancos oficiais – e dos fundos de pensão comandados pela aristocracia sindical. Com isso, vem se alterando, aos poucos, o bloco de poder político dominante no país, alteração esta que é, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma nova acomodação e, sobretudo, fortalecimento do modelo econômico vigente. À hegemonia financeiro-exportadora (bancos e agronegócio) que comanda a economia brasileira, vieram se juntar segmentos nacionais do grande capital, articulados por dentro do Estado” (FILGUEIRAS; PINHEIRO et al, 2010, pp. 37-38). 3


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a dinâmica do “capitalismo associado5 ” que preside historicamente a nossa expansão capitalista A interlocução com este debate nos influenciou na formulação das hipóteses que orientaram a análise das tendências da ordem urbana no período 1980-2010. Como ponto de partida, adotamos como hipótese básica e geral o fato de estarmos diante do momento de transição histórica em vários planos da sociedade brasileira, cujo desenrolar enquanto trajetória dependerá fortemente da dinâmica política. Atravessámos um momento de disputa de projetos históricos na sociedade brasileira com efeitos práticos nos planos da economia, da política e da sociedade que certamente resultariam em dinâmicas contraditórias na ordem urbana. Ao mesmo, pareceu-nos também fértil pensar em que medida as transformações urbanas em curso poderiam atuar também como possível variável independente capaz de influenciar as macrotendências econômicas, políticas e sociais. Pensar nesta direção justificava-se em razão do papel que a cidade assumiu na consolidação do tripé capital internacional/Estado/capital nacional, mencionado anteriormente, sobre qual falaremos mais adiante neste texto. Poderá ou não prevalecer o “Estado de Compromisso” identificado por F. Weffort (1978), com mais uma rodada de “fuga para frente” (FIORI, 1995) como estratégia de adiamento do processo de modernização e democratização do capitalismo brasileiro6. Mas, poderá prevalecer o seu contrário, com rompimento dos laços que estrutural e historicamente ligam na formação histórica brasileira a modernidade com o atraso. Nesta perspectiva, no período 1980-2010 as nossas metrópoles expressariam uma espécie de metamorfose da ordem urbana concentradora, desigual, segregada e elitista conformada no período da industrialização acelerada dos anos 1950-1980, não obstante das mudanças ocorridas nos últimos 30 anos. Em que pese as transformações da estrutura social brasileira ocorridas neste longo período, observamos como traço mais da geral a reprodução da Expressão utilizada por vários intérpretes das particularidades do Brasil como país que se desenvolveu como um capitalismo tardio. 6 Para José Luis Fiori (1995, pp. 115-116), “em grandes linhas, a proposta estratégica dos neoliberais determina que as nossas elites empresariais aceitem a ideia de trocar a fuga para frente por uma espécie de fuga para fora, sendo que para as populações que não puderem ser incorporadas à lógica desta nova estratégia, resta entre as elites mais compreensivas uma proposta assistencialista ampliada a moralizada ou simplesmente a expectativa de que a trajetória demográfica acabe resolvendo, em meados do século XXI, a velha questão malthusiana, cujo espectro assusta cada vez mais a nossa sociedade metropolitana”. 5


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ordem urbana das nossas metrópoles baseada no poder de controle do território pelas classes proprietárias de parcelas expressivas do capital econômico, social, político e cultural. Encontramos, com efeito, as morfologias dos espaços sociais de todas as 14 metrópoles analisadas em nosso programa de pesquisa comparativa têm como traço comum a forte concentração das classes proprietárias em territórios bem delimitados, conformando o que Villaça (1998) havia denominado apropriadamente como “regiões sociais”. Esta morfologia materializa práticas espaciais orientadas pelo domínio das parcelas mais valiosas dos recursos urbanos que D. Harvey denominou como renda real, ou seja, da renda monetária, da riqueza patrimonial, das oportunidades e do bem-estar urbano pelo controle da acessibilidade/proximidade, das dinâmicas de apropriação (social e simbólica) e, sobretudo, do controle da produção do espaço urbano. Mas, por outro lado, a interpretação do significado social desta estrutura urbana nos revelou a manutenção de um padrão de sociabilidade interclassista fundado na duplicidade das gramáticas da proximidade territorial com distância social e distância social com distância territorial. Distância social fundada em práticas de representação social que legitimam divisões espaciais que recortam, dividem e hierarquizam o espaço social das metrópoles em “Jardins”, “Zonas Sul”, “Barras”, “Favelas”, “Periferias”, “Baixadas”, etc., enfim em um conjunto de categorias de classificação que ordenam o valor social dos territórios e de seus residentes. Ao contrário de expressarem a democratização do acesso à cidade e o compartilhamento de valores igualitários, a proximidade territorial entre as classes sociais em nossas metrópoles resulta e sustenta o poder de segregação das classes proprietárias e sua capacidade de dominar as dinâmicas de inclusão e exclusão no espaço social e o acesso à renda real. A morfologia e a dinâmica urbanas acima sumarizadas traduzem na organização social do território das nossas metrópoles a lógica da criação e recriação da fronteira econômica e social na reprodução do capital e da força de trabalho, como instrumento de gestão dos agudos conflitos de um capitalismo que se desenvolve em sua base produtiva, mas se moderniza seletivamente; cresce, distribui e inclui, mas mantem elevados graus de desigualdades de renda, riqueza, oportunidades e bem-estar. Por este motivo, a metamorfose da ordem urbana que expressa nas metrópoles “os caminhos e os descami-


A Metrópole em Questão

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nhos da revolução passiva à brasileira”, como bem formulou Vianna (1996)7. Os textos reunidos nesta publicação apresentam os fundamentos teóricos, históricos, metodológicos, além de algumas evidências que sintetizam a análise deste processo nas 14 metrópoles sobre as quais realizamos o nosso programa de pesquisa.

“No Brasil nunca houve, de fato, uma revolução, e, no entanto, a propósito de tudo fala-se dela, como se a sua simples invocação viesse a emprestar animação a processos que seriam melhor designados de modo mais corriqueiro. Sobretudo, aqui, qualificam-se como revolução movimentos políticos que somente encontraram a sua razão de ser na firme intenção de evitá-la, e assim se fala em Revolução da Independência, Revolução de 1930, Revolução de 1964, todos acostumados a uma linguagem de paradoxos em que a conservação, para bem cumprir o seu papel, necessita reivindicar o que deveria consistir no seu contrário à revolução. Nessa dialética brasileira em que a tese parece estar sempre se autonomeando como representação da antítese, evitar a revolução tem consistido, de algum modo, na sua realização” (VIANNA, 1996). Ver também Vianna (2004). 7



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PARTE I

As Metrópoles e a Formação da Ordem Urbana



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Capítulo 1

CIDADE, NAÇÃO E MERCADO:

desafios societários da reforma urbana no Brasil1

Introdução Neste capítulo, analisamos a trajetória da questão urbana no Brasil desde o início do século. Por questão urbana, entendemos as aporias por meio das quais a sociedade brasileira vem reconhecendo e experimentando os enigmas e dramas decorrentes das mudanças econômicas, sociais, simbólicas e territoriais expressos pela urbanização. Esse percurso será realizado no campo do urbanismo, entendido como um conjunto de enunciados, organizados em representações, imagens e narrativas, que identifica, simultaneamente, os “problemas urbanos” e propõe as terapias subjacentes. As etapas dessa trajetória são identificadas como conjunturas intelectuais que se diferenciam segundo os diagnósticos hegemônicos e os modelos de ação pública propostos para resolver os problemas urbanos. Essa associação – saber/representação/prática – é aqui assumida como intrínseca aos campos intelectual e profissional do urbanismo, ou seja, a enunciação do urbano como um problema aparece no interior de propostas que articulam, de formas diferentes, um saber disciplinar com pretensões científicas e técnicas de ação, ao mesmo tempo em que agencia narrativas oriundas do que pode ser identificado como o “pensamento social”. A tese central que orienta nossa análise é que, no Brasil, contrariamente ao que ocorreu nos países europeus e nos Estados Unidos, os problemas urbanos somente foram incorporados à questão social nos anos recentes. Observa-se, com efeito, a permanência de represenEste capítulo foi publicado na Revista Politika, organizado pela Fundação João Mangabeira em colaboração com a Humboldt Viadrina Governance Platform, publicada pela Editora Quanta, em 2014. A retomada neste capítulo das reflexões expressas anteriormente justifica-se por nossa crença da necessidade de uma perspectiva mais ampla na reflexão sobre os paradoxais impasses e obstáculos do projeto da reforma urbana diante da gravidade dos desafios societários contidos em nossas cidades. Para tanto, colocamos, em relação à análise de “longa duração”, as várias conjunturas histórico-intelectuais da formulação da questão urbana no Brasil e o atual momento. 1


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Parte I – As Metrópoles

e a

Formação

da

Ordem U rbana

tações antiurbanas, isto é, de aporias dos nossos dramas históricos, que colocam como tarefas, aos especialistas da cidade, fazê-la coincidir, sucessivamente, com a nação, o Estado e o progresso. O antiurbanismo dos nossos urbanistas é a consequência, de um lado, da mobilização das representações e das noções teóricas da nascente “ciência das cidades” nos países europeus e nos Estados Unidos e, de outro lado, da sua tradução em um contexto intelectual orientado por concepções integradoras que identificam as mudanças demográficas, sociais, políticas e culturais geradas pelo crescimento urbano como ameaças à sociedade brasileira. Nos anos de 1980, porém, a questão urbana é integrada à questão social e as representações antiurbanas são substituídas pelo diagnóstico orientado por ideais republicanos de justiça social e democracia. A tarefa do pensamento e da ação dos urbanistas passa a ser fazer coincidir a cidade com a cidadania. Vivemos hoje, porém, momento de transição histórica, no qual essa questão urbana perde paulatinamente a legitimidade alcançada por sua disseminação no pensamento social e a sua tradução em políticas públicas, sob os impactos da imposição da agenda neoliberal. Os problemas urbanos deixam de ser reconhecidos como integrantes da questão social e passam a ser explicados como decorrentes do suposto divórcio entre a cidade e os imperativos da ordem econômica global, e o saber e a ação urbanísticos são mobilizados para fazer coincidir a cidade com o mercado. Descrever de forma sumária essa trajetória é o objetivo deste capítulo. Na primeira parte, apresentamos sinteticamente o processo histórico de produção da “ciência da cidade” nos países europeus e nos Estados Unidos. A sua função no texto é a de fornecer ao leitor não especializado algumas referências que nos servem de ponto de vista a partir do qual propomos nossa leitura da trajetória da questão urbana no Brasil. Em seguida, procuramos identificar as conjunturas intelectuais da formulação da questão social e as formas pelas quais a cidade nela está presente. É importante ressaltar que a expressão “saber urbanístico” aqui empregada não se refere apenas aos universos discursivos hoje identificados como disciplina acadêmica e prática profissional institucionalizada. Por outro lado, ainda como ressalva, assinalamos que a síntese histórica aqui buscada corre o risco de simplificações exageradas, ignorando diferenças, sem dúvida existentes, entre as correntes de pensamento englobadas sob um mesmo recorte. Todavia acreditamos existir razoável unidade nos padrões de pensamento e ação, sobre a cidade, aqui identificados e descritos.


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