Antropologia teológica

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D. Estêvão Bettencourt, O.S.B.

Curso de Antropologia Teológica Mater Ecclesiae


Copyright © Arquidiocese do Rio de Janeiro, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da Escola Mater Ecclesiae, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.

Editor João Baptista Pinto

Capa e Editoração Luiz Guimarães

Revisão Wagner Augusto Moraes dos Santos

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B466c Bettencourt, D. Estêvão, 1919-2008 Curso de Antropologia Teológica: Mater Ecclesiae / D. Estêvão Bettencourt. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. 464 p. : il. ; 15,5x23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-546-9 1. Criação (Doutrina bíblica). 2. Antropologia teológica - Cristianismo. 3. Homem (Teologia). I. Título. 17-44283 CDD: 202.2 CDU: 2-18

Escola Mater Ecclesiae Edifício João Paulo II Rua Benjamin Constant, 23 - sala 311 - Glória CEP 20241-150 – Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2242-4552 materecclesiae@materecclesiae.com.br

Letra Capital Editora

Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 vendas@letracapital.com.br


Introdução Com grande júbilo estamos trazendo à público mais um dos nossos cursos, agora transformado em livro: o curso de Antropologia Teológica, elaborado originalmente por Dom Estêvão Tavares Bettencourt, OSB em 1997 e agora revisado e atualizado, muito gentilmente, em alguns breves pormenores, pelo Revdo. Diácono Wagner Augusto Moraes dos Santos, mestrando em Teologia pela PUC/RJ e que ministrou este curso durante o primeiro semestre deste ano de 2017 no núcleo Glória das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Todos os cursos, antes de serem impressos neste novo formato, estão sendo revistos por teólogos capazes de detectar se algum detalhe precisa ser atualizado, algum novo documento do Magistério citado e, ainda, se a bibliografia pode ser atualizada. Nosso estimado diácono, já citado acima, acrescentou algumas breves atualizações nos capítulos 8, 13, 28 e 34. Esperamos que o rico material aqui apresentado possa ser de grande valia não somente para nossos cursistas e alunos dos cursos presenciais das Escolas de Fé mas, também, para todos aqueles que desejarem aprofundar seus conhecimentos teológicos, tendo por base a Escritura, a Tradição e o Magistério. Pedimos que, neste Ano Mariano, Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, interceda por todos nós e, particularmente pelas nossas Escolas de Fé, afim de que possamos, fiéis como ela o foi, ao projeto do Pai, continuar seguindo em frente nessa obra de evangelização que é o ensino da Sagrada Teologia. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 2017, Solenidade de Nossa Senhora Conceição Aparecida, Padroeira do Brasil. Pe. Fabio da Silveira Siqueira Vice-diretor

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Apresentação Caro(a) Cursista, Você está recebendo um Curso dividido em quatro partes: 1) A Criação do Mundo; 2) A Criação do Homem; 3) O Pecado dos Primeiros Pais; 4) Os Anjos. Poderíamos também distribui-lo em duas partes: Criação e Pecado, com um Apêndice sobre os Anjos. Estes vêm considerados logo após os temas anteriores, na medida em que são criaturas inteligentes que foram afetadas pelo pecado. A temática da Criação é, hoje em dia, trazida à tona pelas descobertas do macro e do microcosmos. Quanto mais o homem penetra o reino da matéria, tanto mais percebe a ordem e a harmonia que regem este mundo, dando testemunho de uma Inteligência e um Poder transcendentais. É, pois, cada vez mais necessário que a fé se associe às ciências naturais para oferecer ao pensador uma cosmovisão completa e satisfatória. Neste contexto o homem aparece como imagem e semelhança de Deus; tem uma tarefa a cumprir neste mundo, procurando levar a termo a obra do Criador. Ao mesmo tempo, é dotado de aspirações que ultrapassam o mundo visível; feito pelo Infinito e para o Infinito, só repousa no Infinito; o mistério de Deus se espelha no mistério do homem. O pecado é uma das expressões da misteriosidade da pessoa humana. Chamada ao Bem absoluto, ela pode preferir o bem relativo e limitado das criaturas, cometendo o pecado. Este não só se volta contra a glória do Criador, mas fere também o pecador, desfigurando-o. Este fato, porém, não deve ser estudado independentemente da obra da re-criação efetuada por Jesus Cristo, o novo Adão, e aprofundada no Curso de Cristologia da nossa Escola. A temática do pecado se prende à primeira página da Bíblia, onde é abordada em estilo rico de imagens. Faz-se importante levar em conta exata o significado do texto sagrado no que diz respeito tanto ao pecado quanto à própria criação do homem. Finalmente os Anjos se apresentam como criaturas ontologicamente mais perfeitas do que o homem; são espíritos sem corpo, ao

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passo que o homem é alma espiritual em corpo material. A devoção popular tem dado grande ênfase à realidade dos Anjos, confundindo-os com entidades afro-brasileiras ou esotéricas. Uma corrente oposta nega a existência dos Anjos. Verdade é que a parapsicologia explica naturalmente muitos fenômenos outrora atribuídos a Anjos bons e aos demônios; todavia ela não pode negar a realidade e a ação dos Anjos. Caro(a) Cursista, o estudo dos tratados teológicos não é obra meramente acadêmica; interpela a fé e o coração, despertando no estudioso mais intenso amor ao Deus que criou porque quis dar às criaturas racionais o consórcio de sua vida. Bons estudos! Disponha da equipe de trabalho da sua Escola “Mater Ecclesiae”. Domingo de Cristo-Rei, 23 de novembro de 1997. Pe. Estêvão Tavares Bettencourt, OSB

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Índice Geral Bibliografia......................................................................................... 11 Parte I: Criação A) Fundamentação Bíblica....................................................... 15 Capítulo 1: O Hexaémeron (Gn 1,1 – 2,3)............................... 15 Capítulo 2: Gênesis 2,4-7 (O Mundo e o Primeiro Homem)...23 Capítulo 3: Gênesis 2,18-24 (A Primeira Mulher).................... 31 Capítulo 4: Livros Proféticos e Livros Sapienciais.................. 37 Capítulo 5: Os Textos Paulinos e Joaneus................................45

B) História do Dogma............................................................... 51

Capítulo 6: Os Séculos II-IV..................................................... 51 Capítulo 7: Do Século V ao Século IX .................................... 59 Capítulo 8: Idade Média e a Idade Moderna........................... 67 Capítulo 9: Teilhard de Chardin – O Fenômeno Humano.... 77 Capítulo 10: Declarações da Igreja........................................... 87

C) Aprofundamento Sistemático.............................................95

Capítulo11: Criação – Noção e Correlatos...............................95 Capítulo 12: Criação – Reflexões............................................ 103 Capítulo 13: “A Criação não é um Mito”............................... 111 Capítulo 14: Evolução – Sim ou Não?..................................... 121 Capítulo 15: Origem da Vida.................................................. 129 Capítulo 16: Origem do Homem e Evolução......................... 137 Capítulo 17: Monogenismo ou Poligenismo?......................... 147 Capítulo 18: Conceituação de Raça Humana........................ 157 Capítulo 19: Origem das Raças Humanas............................. 163

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Parte II: O Homem

A) Fundamentação Bíblica..................................................... 177

Capítulo 20: O Homem – Identidade e Destino................... 177 Capítulo 21: O Homem no Tempo......................................... 185 Capítulo 22: O Homem à Luz de Jesus Cristo....................... 195

B) História do Dogma.............................................................203

Capítulo 23: Das Origens até o Século IV.............................203 Capítulo 24: Do Século V ao Século XIV............................... 211 Capítulo 25: Declarações da Igreja......................................... 219

C) Aprofundamento Sistemático..........................................225

Capítulo 26: Quem é o Homem?............................................225 Capítulo 27: A Alma Humana – Espiritualidade (I).............233 Capítulo 28: Alma Humana – Espiritualidade (II)................ 241 Capítulo 29: A Alma Humana – Imortalidade...................... 247 Capítulo 30: O Problema do Mal............................................255 Capítulo 31: A Morte (I) – Conceito Cristão..........................263 Capítulo 32: A Morte (II) – Noções Complementares.......... 271 Capítulo 33: O Trabalho......................................................... 279 Capítulo 34: Teologia Feminista.............................................293 Capítulo 35: A Dignidade da Mulher.....................................309 Capítulo 36: O Papa às Mulheres (I)...................................... 327 Capítulo 37: O Papa às Mulheres (II).....................................335 Capítulo 38: A Alma das Mulheres........................................343 Parte III: O Pecado A) Fundamentação Bíblica..................................................... 351 Capítulo 39: O Paraíso Terrestre ........................................... 351 Capítulo 40: O Pecado dos Primeiros Pais............................ 361

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B) História do Dogma............................................................369

Capítulo 41: A Tradição e o Magistério da Igreja.................369 C) Aprofundamento Sistemático.......................................... 375 Capítulo 42: A Doutrina do Catecismo.................................. 375 Capítulo 43: Pecado Original e Mensagem Cristã................383 Capítulo 44: Objeções à Doutrina Clássica............................389. Capítulo 45: O Testemunho dos Povos Primitivos................399 Parte IV: Os Anjos

A) Fundamentação Bíblica.....................................................409

Capítulo 46: A Existência dos Anjos......................................409

B) História do Dogma............................................................ 419

Capítulo 47: Existência e Ação dos Anjos.............................. 419 C) Aprofundamento Sistemático..........................................427 Capítulo 48: Quem são os Anjos?...........................................427 Capítulo 49: Os Anjos Maus (I).............................................. 437 Capítulo 50: Os Anjos Maus (II).............................................445 Capítulo 51: O Satanismo........................................................455

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Bibliografia AUER, J. El Mondo, Creación de Dios. Barcelona, 1979. BARTHÊLÉMY, J. Visão Cristã do Homem e do Universo. Lisboa: Sampedro, 1962. COLZANI, G. Antropologia Teologica. L’Uomo: Paradosso e Mistero. Bolonha: Editrice Dehoniane, 1987. (Coleção: Teologia Sistemática 9) CORREIA-PINTO, M. C. A dimensão política da mulher. São Paulo: Paulinas, 1992. DATTLER, F. O mistério de Satanás. São Paulo: Paulinas, 1977. EVDOKIMOV, P. A mulher e a salvação do mundo. São Paulo: Paulinas, 1986. FAITANIN, P. A Hierarquia Celeste. Niterói: Inst. Aquinate, 2009. FEINER, J.-LÖHRER, M. Mysterium Salutis. Vols. IV/7.IV/8. Petrópolis: Vozes, 1978. FLICK, M.-ALSZEGHY, Z. Antropologia Teologia: El hombre bajo el signo del pecado. Teologia del Pecado Original. Salamanca, 1972. FLICK, M.-ALSZEGHY, Z. Il Creatore. Florença, 1964. FLICK, M.-ALSZEGHY, Z. Il Peccato Originale. Brescia: Queriniana, 1972. GARCIA RUBIO, A. Unidade na Pluralidade. São Paulo: Paulus, 1989. GONZÁLES FAUS, J. I. Projecto de Hermano. Visión Creyente del Hombre. Santander: Sal Terrae, 1987. IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. KOSTER, H. M. Urstand, Fall, und Erbsünde in der katholischer Theologie unseres Jahrhunderts. Regensburg, 1983. LADARIA, L. F. Introdução à Antropologia Teológica. São Paulo: Loyola, 1998.

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LADARIA, L. F. Antropologia Teológica. Madri-Roma: UPCM/PUG, 1983. MARTELET, G. Libre réponse à un scandale. La faute originelle, la souffrance et la mort. Paris: Éditions du Cerf, 1988. MCINTYRE, A. J. Os anjos, uma realidade admirável. Rio de Janeiro: Continente Editorial, 1983. RAHNER, K. Teologia e Antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. RONDET, H. Le péché originel dans la tradition patristique et thélogique. Paris: Fayard, 1967. RUIZ DE LA PEÑA, J. L. O dom de Deus: Antropologia Teológica. Petrópolis: Vozes, 1997. SCHEFFCZYK, L. Création et Providence. Paris: Éditions du Cerf, 1967. SOLIMEO, G. A. et SOLIMEO, L. S. Anjos e demônios. São Paulo: Artpress, 1994. TAVARD, G. Les Anges. Paris: Éditions du Cerf, 1971. TERRA, J. E. M. A angelologia de Karl Rahner à luz de seus princípios hermenêuticos. Aparecida: Editora Santuário, 1996. VIVAR FLORES, A. Antropologia da libertação na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1991.

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Parte I:

Criação



Capítulo 1: Hexaémeron

O (Gn 1,1 – 2,3)1

1 Ver o Curso Bíblico Mater Ecclesiae, caps. 40-43. Outrora costumava-se dividir os caps 1-3 da seguinte forma: Gn 1,1 – 2,4a (primeiro relato da criação) e Gn 2,4b – 3,24 (segundo relato da criação e relato da queda original). Isto acontecia porque o primeiro relato da criação é pertencente à tradição Sacerdotal (P) e esta utiliza uma expressão estereotipada que se repete onze vezes no livro do Gênesis e que serve, na opinião de alguns autores, para estruturar o livro. Trata-se da expressão que traduz-se em português por: “Essa é a história”, em hebraico ’elleh toledôt. Essa expressão encontra-se no início de Gn 2,4, por isso acreditava-se que o primeiro relato da criação terminava não em Gn 2,3, mas, sim, em Gn 2,4a. Contudo, nos outros dez lugares onde essa mesma expressão aparece, ela nunca encerra um relato, mas sempre abre, introduz, seja uma lista genealógica (5,1; 10,1; 11,10; 25,12; 36,1.9), seja uma sequência narrativa (2,4; 6,9; 11,27; 25,19; 37,2). Por isso, mesmo compreendendo-se que o primeiro relato da criação é de tradição sacerdotal e o segundo não, costuma-se dividir os três primeiros capítulos do Gênesis em duas partes: Gn 1,1 – 2,3 (primeiro relato da criação) e Gn 2,4 – 3,24 (segundo relato da criação, em duas partes, Gn 2,4-25 “o segundo relato da criação” e Gn 3,1-24 “a queda original). – Cf. GIUNTOLI, Frederico. Genesi 1-11: Introduzione, traduzione e comento. Milano: San Paolo, 2013, pp. 10-11.88-89.

CAPÍTUlo 1: O Hexaémeron (Gn 1,1 – 2,3) 15


Várias vezes os autores do Antigo Testamento aludem à criação. Fazem-no em linguagem simples, não raro simbolista, da qual se podem depreender alguns traços válidos para se tecer a noção de criação e correlatos na S. Escritura. Consideremos os textos de Gn 1,1 – 2,3; 2,4 – 3,24.2

Lição 1 Gn 1,1 – 2,3 – Gênero Literário O texto de Gn 1,1 – 2,3 é dito o hexaémeron (ergon) ou obra dos seis dias, porque enquadra a criação do mundo e do homem no esquema de seis dias. Antes do mais, ao abordarmos o texto, impõe-se a definição do respectivo gênero literário. Quem considera atentamente o hexaémeron, verifica que é uma peça rica de artifícios literários: Eis a sua arquitetura:

2 Supomos aqui a noção de que Gn 1-3 consta de dois relatos das origens: 1,1 – 2,3 e 2,4 – 3,24. O primeiro é tido como pertencente à Tradição Sacerdotal (P); o segundo é mais antigo, e pertence a uma outra tradição, e traz não somente o relato da criação (2,4-25), como também a transgressão dos primeiros pais e a origem do mal (3,1-24). Sendo de épocas e mãos distintas, os dois textos hão de ser estudados independentemente um do outro.

16 Parte I: Criação – A) Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento (I)


Como se vê, a criação é apresentada dentro do esquema de seis dias de trabalho e um de repouso (uma semana). Embora sejam oito as obras realizadas (duas no 3º dia e duas no 6º dia), o autor não quis apresentar oito dias de trabalho, mas seis, para ficar dentro do quadro de uma semana. Os seis dias se distribuem em duas séries: três dias para a distinção das três regiões do universo respectivamente (ares, águas, terra) e três dias para o povoamento ou a ornamentação dessas regiões (astros, peixes e voláteis3, animais terrestres e o casal humano). Sete são as fórmulas que compõem o hexaémeron: a) Introdução: “E disse Deus...” b) Ordem: “Haja luz!...” c) Execução: “E assim se fez”. d) Descrição: “Separou Deus...” e) Nome ou Bênção f) Elogio: “E viu que era bom” g) Conclusão: “E houve tarde e manhã. ..” Essas fórmulas dispõem-se de maneira simétrica, como se pode ver a seguir: 1° dia: obra 1ª - a b c f d e g 2° dia: obra 2ª - a b c d - e g 3° dia: obra 3ª - a b c - e f - obra 4ª - a b c d - f g 4° dia: obra 5ª - a b c d - f g 5° dia: obra 6ª - a b c - f e g 6° dia: obra 7ª - a b c d - f - obra 8ª - a b d e c f g

= 7 = 6 = 5 = 6 = 6 = 6 = 5 = 7

Note-se que na quarta e na quinta obras o número de fórmulas é proposto do mesmo modo. Pode-se ainda observar a seguinte simetria:

3 Os peixes e os animais que voam, são colocados na mesma categoria de aquáticos, porque ou vivem na água (peixes) ou nascem na água (mosquitos) ou vivem entre as águas que há à flor da terra e as águas que há acima do firmamento ou da abóbada cristalina que cerca a terra (tais como são as aves).

CAPÍTUlo 1: O Hexaémeron (Gn 1,1 – 2,3) 17


OBRA FÓRMULAS FÓRMULAS OBRA 1ª 7 2ª 6 3ª 5 4ª 6

6 5ª 6 6ª 5 7ª 7 8ª

Observe-se ainda o uso simbólico dos números, especialmente do número 3: Mencionam-se: 3 espécies de plantas (1,11s) 3 tipos de luzeiros (1,16) 3 funções dos astros (1,14-18) 3 tipos de viventes no 5° dia (1,21) 3 tipos de animais terrestres (1,24) 3 bênçãos (1,22.25;2,3) 2 séries de 3 dias 3 vezes a referência ao 7° dia em 3 esticos ou sentenças de 7 palavras cada uma. Observe-se outrossim o esquema 7 dias = 6+1 dias. Mediante o número sete o autor quer indicar não só a perfeição de todo o conjunto criado, mas ainda significa que a criatura encontra essa sua perfeição, consumação (ou santidade) em Deus, e em Deus só. Com efeito, o número 7 é atingido, no hexaémeron, pela apresentação de seis dias das criaturas e um dia, o sétimo, de Deus. Somente quando os seis dias das criaturas se juntam ao dia de Deus, realizam o número da perfeição; assim somente quando as criaturas se voltam para Deus, repousam consumadas; toda a história dos seres neste mundo é uma contínua tendência para o repouso em Deus. A arquitetura do hexaémeron, simétrica como é, leva a concluir que o gênero literário dessa peça é o didático-artístico, de caráter sapiencial. A cadência dos números tem finalidade mnemotécnica. Em última análise, trata-se de um hino litúrgico em seis estrofes e uma conclusão, composto para o dia de sábado a fim de incutir o repouso sabático ou a dedicação do sábado ao Senhor Deus. Este é proposto como o primeiro operário que observa o ritmo de seis dias de trabalho e um de repouso a fim 18 Parte I: Criação – A) Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento (I)


de que o homem siga o exemplo divino4. A peça, portanto, não tem finalidade científica; não pretende narrar a maneira como o mundo foi criado, mas expõe conceitos sapienciais (filosóficoteológicos) e morais a respeito do mundo e do homem.

Lição 2 Os Ensinamentos do Hexaémeron Eis o que o hexaémeron, sem dúvida, afirma:

1) A respeito de Deus a) Deus é Um (estrito monoteísmo). Todos os deuses que os antigos povos adoravam são apresentados como criaturas do único Deus. Com efeito, o povo de Abraão teve sua origem na Caldeia, onde o culto dos astros estava em voga. Da Caldeia transferiu-se para a terra de Canaã, onde os bosques e a vegetação eram cultuados. Depois emigrou para o Egito, onde os animais, tidos como sagrados, eram adorados. Ora, o autor do hexaémeron mostra que todos esses deuses – astros, plantas e animais – foram criados por Deus não para serem adorados, mas para servirem ao homem. b) Deus é eterno. Nisto distingue-se radicalmente do mundo, que começou no tempo. c) Deus é Todo-Poderoso. Cria mediante a sua palavra ou com um ato apenas da sua vontade, sem esforço. O verbo bara’5, “criou”, na Bíblia, é reservado exclusivamente à atividade divina. Não se pode afirmar que o autor israelita tinha o conceito metafísico de criar com toda a sua precisão; mas é lícito dizer que, dentro da sua mentalidade, ele possuía uma noção equivalente à de criação. 4

Não se deveria julgar que o mundo foi criado em seis dias e, por causa disto, Moisés instituiu o repouso do sétimo dia, como se lê em Ex 20,8-11; 31, 15-17; Dt 5,12. O repouso do sétimo dia é algo de natural ao ser humano, principalmente ao lavrador, que se guiava pelas fases da Lua. O autor sagrado colocou o Hexaémeron no início da Torá, com o fim de dar à lei do repouso sabático um fundamento bem persuasivo, que seria “o exemplo divino”. Sabe-se, de resto, que os antigos povos se compraziam em pensar que a Divindade no céu age à semelhança dos homens na terra. 5

Cf. Gn 1,1; 1,21; 1,27; 2,3.

CAPÍTUlo 1: O Hexaémeron (Gn 1,1 – 2,3) 19


d) Deus é bom, pois tudo o que Ele cria é bom, muito bom.6 Se há mal neste mundo, não vem de Deus; o relato de Gn 2,4-3,24 se encarrega de explicar como o mal entrou no mundo. É certo que não há dualismo ou um princípio subsistente do mal em antagonismo ao princípio subsistente do bem. e) “Deus repousou de todo trabalho que fizera” (2,2). Este forte antropomorfismo quer dizer que o termo final de toda a criação está em Deus; o Senhor não criou em vista das criaturas como tais, nem por causa do homem, mas para que o homem, elevando consigo as demais criaturas, voltasse a Deus, onde tudo encontra repouso e consumação. Além do quê, a menção do repouso de Deus no sétimo dia tinha o sentido de incutir ao homem a observância deste (o Shabat).

2) A respeito do mundo a) O mundo não é eterno. Embora a Filosofia não veja inconveniente em admitir a criação desde toda a eternidade, a S. Escritura não favorece esta concepção. b) O mundo não se originou por si mesmo nem por acaso, mas teve um início, que Deus lhe deu. c) As criaturas são boas e o curso do mundo provém de uma disposição divina. Não há destino que force a história. Tem-se assim uma visão otimista do mundo e da história. 3) A respeito do homem a) O ser humano é algo de totalmente novo entre os demais. Isto se depreende do modo como teve origem. O autor, ao descrever a formação do homem, quebra o seu esquema: “Deus disse... e foi feito” e propõe um monólogo de Deus, que delibera fazer uma criatura à sua imagem e semelhança7, isto é, dotada de dignidade única no mundo. É claro que a imagem e semelhança de Deus não se acham na corporeidade do homem (Deus não tem corpo), mas nas faculdades espirituais (inteligência e vontade); pelo conhecimento e o amor é que o homem imita a Deus e consegue dominar o mundo; 6

Cf. Gn 1,4.10.12.18.21.25.31 (muito bom - v.31)

7

“Imagem e semelhança” não são coisas distintas uma da outra, mas significam enfaticamente a proximidade do ser humano em relação ao Criador. Dir-se-ia: “imagem muito semelhante”.

20 Parte I: Criação – A) Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento (I)


note-se que, depois de criado, o homem é investido de poder sobre os animais e plantas, a fim de que os domine. b) Igual dignidade convém ao homem e à mulher, pois ambos foram feitos à imagem e semelhança de Deus, cada qual refletindo a seu modo o exemplar divino (1,27); também a ambos, sem distinção, é dada a ordem de dominar sobre animais e plantas. c) O matrimônio é algo de santo, instituído pelo próprio Deus. Este criou dois tipos humanos diferentes, destinando-os, porém, a representar um exemplar único, a perfeição divina – o que só se pode entender se o homem e a mulher são, por natureza, destinados a se completar mutuamente em tudo o que falta a um e outro. O matrimônio, implicitamente instituído pela criação dos dois sexos, foi explicitamente promulgado pela bênção divina acompanhada das palavras: “Sede fecundos e multiplicai-vos!” (1,28). d) O trabalho é também abençoado por Deus. O homem é incentivado a continuar, a seu modo, a obra do Criador, não como senhor absoluto do mundo, mas como representante de Deus e pontífice entre o mundo inferior e o Senhor Deus. Pelo trabalho do homem, as criaturas infra-humanas devem ser levadas a glorificar o Criador. e) O sétimo dia é por Deus santificado (2,3). Santificar, na linguagem bíblica, significa reservar para Deus. Por conseguinte, o Senhor reserva para si o sétimo dia da semana, diferenciando-o dos demais dias, que são dedicados ao trabalho. “E abençoou-o” (2,3), ou seja, desejou- lhe e concedeu-lhe algo de bom, já que abençoar é dar uma bênção, uma benedictio, uma boa palavra; fez o sétimo dia portador de um bem divino, evidentemente em favor do homem, a quem o sétimo dia devia ser proposto como participação antecipada do repouso eterno (cf. Hb 3,4-11).

Perguntas 1) Qual é o gênero literário de Gn 1,1 – 2,3? 2) Que é que se chama hexaémeron? Por que assim se chama? 3) Que é que o hexaémeron ensina a respeito de Deus? Responda sucintamente 4) Que ensina o hexaémeron a propósito do mundo? 5) Que ensina o hexaémeron a respeito do homem? CAPÍTUlo 1: O Hexaémeron (Gn 1,1 – 2,3) 21



(O

Capítulo 2: Gênesis 2,4-7 Mundo e o Primeiro

Homem)

CAPÍTUlo 2: Gênesis 2,4-7 (O Mundo e o Primeiro Homem) 23


A narrativa de Gn 2,4-3,24 é anterior à do Hexaémeron. Temos aqui duas partes: o segundo relato da criação (Gn 2,4-25) e o relato do pecado original (Gn 3,1-24). Os antropomorfismos dessa peça literária (Deus Oleiro, 2,7; Cirurgião, 2,21; Jardineiro, 2,8; Arquiteto, 2,21; Alfaiate, 3,21) evidenciam o caráter arcaico da mesma. – Dessa seção interessa-nos apenas o que diz respeito à origem do homem e da mulher (Gn 2,47.18-24), ficando a questão da origem do mal no mundo para os capítulos 39 e 40.

Lição 1 A Chave da Interpretação O texto de Gn 2,4-7.18-24 tem em comum com a primeira narração o fato de que também quer pôr em relevo a dignidade do casal humano. Com efeito, observa-se como a ordem de aparecimento das criaturas em Gn 1,1-2,3 como em Gn 2,4-7.18-24, embora proponha duas séries diversas, obedece à mesma intenção de realçar o homem (ser humano): A ordem do “hexaémeron” vai percorrendo a escala das criaturas, desde as mais imperfeitas (a matéria caótica desordenada) até a mais perfeita, o homem, que o autor introduz como senhor das demais, imediato representante de Deus no mundo visível. Em Gn 2,4 – 3,24, o hagiógrafo atinge o mesmo fim por outra via: refere logo de início a criação do homem; em função deste é que desenvolverá as considerações que se seguem. Menciona a produção das plantas a dos animais, que são nitidamente caracterizados como inferiores ao homem (as plantas devem servir de alimento ao homem, 2,8-9). Por fim, sobre este fundo descreve a formação da mulher, a qual é assim apresentada como portadora de dignidade igual à do homem, transcendendo, também ela, as demais criaturas visíveis; homem e mulher, em consequência, são destinados a servir imediatamente a Deus, utilizando os seres inferiores. Eis como esquematicamente se poderiam reproduzir as duas vias que exprimem a mesma tese:

24 Parte I: Criação – A) Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento (II)


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