Biblia e catequese

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Sumário

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Apresentação Exegese, catequese e fé: uma íntima relação a partir da vida para a vida Gonzalo Arturo Bravo Alvarez

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Introdução

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1. Exegese

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2. Catequese

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3. Fé

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Considerações finais: algumas relações entre exegese, catequese e fé

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Referências bibliográficas

49

A paz em chave bíblica e catequética: dom de Deus e empenho do ser humano Leonardo Agostini Fernandes

49

Introdução

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1. Abordagem veterotestamentária

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1.1. Que o Senhor te conceda a paz (Nm 6,26)

57

1.2. E os humildes gozarão de muita paz (Sl 37,11)

60

1.3. Paz para o seu povo (Sl 85,9)

62

1.4. Príncipe da paz (Is 9,5)


68

2. Abordagem neotestamentária

69

2.1. Glória a Deus e paz aos homens (Lc 2,14; 19,38)

74

2.2. Felizes os pacíficos (Mt 5,9)

77

2.3. Deixo-vos a minha paz (Jo 14,27)

80

2.4. O fruto da justiça é semeado na paz (Tg 3,18)

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Considerações finais

88

Referências bibliográficas

97

A catequese: anúncios e testemunhos entre encontro e diálogo Giuseppina Battista

97

Introdução

98

1. Tarefa educativa e catequese

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2. O encontro e o diálogo com o outro

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3. Jesus, modelo de diálogo inter-religioso e intrarreligioso

113

4. Em confronto com páginas de história

118

5. Anúncios e testemunhos: um canteiro aberto

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Considerações finais

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Referências bibliográficas


Apresentação

A educação da fé e na fé é um percurso de amadurecimento na vida de cada fiel que se compromete pessoalmente com Jesus Cristo e com a sua Boa Nova. Esse percurso é empenho de uma conversão contínua e de um discipulado que se pratica na busca e na promoção do bem, da justiça e da verdade. O presente livro reúne o estudo de três docentes de diferentes países preocupados em oferecer reflexões úteis para abordar e enfrentar uma persistente dialética acadêmica: a tensão entre teoria e práxis no ensino, aprendizado e exercício de disciplinas bíblicas, teológicas e pastorais em um mundo marcado por desafiadora mudança de época. Diante desse desafio, não basta ler a Bíblia, devem-se tirar consequências da leitura, ainda que elas incomodem, exigindo a saída e o abandono de esquemas que reduzem a fé a um mero pietismo. Para que a educação da fé seja eficaz, o outro não pode ser considerado uma ameaça só porque é diferente ou porque pensa diferente. Na dinâmica do Evangelho, o outro, que é diferente, é uma riqueza e um dom que vem de Deus! Por meio do diálogo ecumênico e inter-religioso como gesto concreto, a promoção da cultura da paz desponta como essencial e urgente nessa mudança de época: acolher as pessoas em um mundo cada vez mais plural na cultura e na religiosidade não pode ser visto como uma ameaça, mas como um dom de Deus que desafia. É, também, um sinal


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dos tempos que exige docentes e catequistas que sejam autênticos educadores abertos, preparados e disponíveis não apenas para ensinar, mas para encontrar o outro e deixar-se encontrar pelo outro sem reservas nem preconceitos de qualquer natureza. A fidelidade a Deus e a fidelidade ao ser humano não são utopias, mas ponto de partida, condição sine qua non e critério necessário a ser assumido. Nesse sentido, os estudos propostos neste livro dialogam em diversos pontos, mas cada autor preserva o seu estilo e a sua metodologia. Nota-se, por assim dizer, a unidade na pluralidade. Gonzalo Arturo Bravo Alvarez, chileno, propõe-se descrever algumas notas características da exegese, da catequese e da fé, utilizando uma metodologia relacional. Ao analisar com atenção cada um dos conceitos, busca estabelecer a relação entre eles. Contudo, adverte o leitor para não esperar um tratado sobre o significado de cada um dos três conceitos. A proposta é clara e objetiva: mostrar que a “vinculação mútua” é uma reflexão sobre como se desenvolve a disciplina exegética e como ela é fundamental para entregar à catequese os fundamentos capazes de promover a fé em cada pessoa que se aproximar do texto bíblico. O prólogo de Lucas foi escolhido como texto orientador das reflexões. Após uma breve análise, disposta em sete tópicos, Gonzalo passa ao exame dos três conceitos, definindo-os e apontando o que é particular de cada um. Os critérios e argumentos de seus posicionamentos estão direcionados para a compreensão e o alcance do que é específico da exegese, da catequese e da fé, a fim de mostrar como a fé em Deus e no seu plano salvífico amadurece pela catequese profundamente enriquecida pela exegese. Leonardo Agostini Fernandes, brasileiro, aborda o tema da paz em chave bíblica e catequética. A paz é um dom de Deus para o mundo, mas para se estabelecer exige o empenho do ser humano. A paz não é um objetivo utópico. É preciso “fazer” a paz, fazendo a verdade acontecer para libertar o ser humano. Por isso, a paz é, na história da salvação, dom de Deus que deve ser, como a terra prometida, conquistada


Apresentação • 9

e edificada como cultura nas diversas culturas presentes no mundo. Em outras palavras, a paz é o dom de Deus que frutifica pelo encontro amoroso dos seres humanos que se unem para dialogar com um interesse específico: construir a civilização da paz e do amor fraterno de acordo com o programa de vida deixado por Jesus como herança à sua Igreja: o reino de Deus, que é um reino de justiça e de paz. Giuseppina Battista, italiana, afirma, na sua contribuição, que no âmbito da pastoral a catequese foi definida como a ação eclesial que conduz as comunidades cristãs e, nela, cada um dos fiéis à maturidade na fé. A catequese configura-se como itinerário de discipulado no seguimento de Jesus Cristo. Para acompanhar os batizados, nesse caminho de maturidade e de crescimento no amor de Deus, os catequistas devem agir no respeito do princípio da fidelidade a Deus e ao ser humano. Um estilo teológico-educativo que privilegia a dimensão da escuta da Palavra de Deus e das palavras humanas. A missão educativa, confiada por Jesus Cristo (“Ide, portanto, e fazei discípulos todos os povos” [Mt 28,19]), exige dos educadores a disponibilidade de encontrar o outro, de acolhê-lo e de dialogar com ele, seguindo o exemplo de Jesus Cristo no Evangelho e de célebres educadores na história. Diante do fenômeno do pluralismo, que se tornou o nosso novo ambiente de vida, a catequese deve propor novos paradigmas de formação cristã, no diálogo com a cultura do tempo, para formar discípulos de Jesus Cristo capazes de serem construtores da paz e do diálogo entre as diferentes fés religiosas, como testemunho do amor de Deus. Se, por um lado, cada uma das três reflexões é de plena responsabilidade de seus autores, por outro lado cada um deseja partilhar, com responsabilidade, o amor a Jesus Cristo e à sua Boa Nova. Fruto desse amor é a inserção e o compromisso com a Igreja e com o processo de formação do ser humano pela educação, pela evangelização e pela catequese, no desejo de ajudar na promoção da cultura da paz, da solidariedade e da fraternidade. Isso significa ajudar o ser humano a perceber, refletir e se comprometer, pela fé e pela razão, no caminho que conduz


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ao encontro e ao amadurecimento dos valores fundamentais a favor da vida e da civilização do amor. Desejamos que a leitura seja frutuosa, geradora de um renovado interesse pela educação e pela catequese, tendo Jesus Cristo como paradigma do caminho, da verdade e da vida (Jo 14,6), caminho que conduz à verdade da vida: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Lc 10,27). Leonardo Agostini Fernandes organizador


Exegese, catequese e fé: uma íntima relação a partir da vida para a vida

*

Gonzalo Arturo Bravo Alvarez **

Introdução Neste estudo, nos propomos descrever algumas notas características da exegese, da catequese e da fé, utilizando uma metodologia relacional. Isso significa que, para analisar um dos três termos, o faremos com atenção aos outros dois restantes. Nesse sentido, o nosso leitor não deve esperar um tratado sobre o que significa cada conceito nem como se desenvolve a sua disciplina interna, nem como se conectam com outras áreas do saber teológico. Se esse fosse o interesse, se deveria recorrer a diversos documentos, dicionários, livros e artigos a respeito1. O que esperamos conseguir com essa proposta de “vinculação mútua” é uma * Texto traduzido por Davina Moscoso de Araujo e revisado por Leonardo Agostini Fernandes (org.). ** Gonzalo Arturo Bravo Alvarez é sacerdote secular da Diocese de Valparaíso, Chile, e ensina na Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso. Depois de realizar estudos em Roma, Londres e Jerusalém, doutorou-se em teologia bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sob a orientação do professor doutor Klemens Stock, S.J., do Instituto Bíblico de Roma. Há muitos anos, dada a sua condição de pároco da Paróquia Matriz de Valparaíso, desenvolve seu trabalho acadêmico em duas vertentes: na universidade e no mundo paroquial-comunitário. É atualmente presidente da Associação Bíblica do Chile, um grupo de biblistas católicos chilenos que buscam potenciar a investigação e a docência, pertencendo também a diversas redes de estudiosos de Bíblia no âmbito latino-americano.


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reflexão sobre como desenvolver a disciplina exegética, para que ela entregue à catequese os fundamentos de uma disciplina que promova a fé pessoal naqueles que se aproximam do texto bíblico. O prólogo ao Evangelho de Lucas parece-nos muito apropriado para começar a desenvolver a tarefa que nos propomos, especialmente para mostrar a relação que nele se estabelece entre os termos que ocupam nosso interesse. Deixemos falar o evangelista: Visto que muitos já tentaram narrar ordenadamente as coisas que se ve-

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rificaram entre nós, 2tal qual no-las transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra, 3decidi, também eu, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, 4para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebeste. (Lc 1,1-4)

Sem pretender apresentar uma análise crítica do texto2, podemos visualizar algumas ideias que nos acompanharão ao longo de toda a nossa exposição: 1. O evangelista reconhece que o que ele faz está em continuidade com outros que pretenderam “narrar ordenadamente”. Isso significa que ele mesmo precisou fazer o trabalho de selecionar, interpretar e organizar o material de acordo com o verificado no meio da comunidade. 2. Para isso, na base da redação do texto evangélico, por um lado, há uma experiência de fé pessoal e, por outro lado, um testemunho comunitário, o qual é capaz de discernir que ação se verificou no meio deles. 3. A ordem proposta não depende de escolha pessoal, mas está guiada pela experiência de fé da comunidade. 4. O que se escreve é fruto de uma tradição transmitida previamente à redação do texto. O mais provável é que essa mesma tradição deve ter sido uma interpretação e recopilação oral dos fatos mais relevantes da vida e mensagem de Jesus.


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5. Há dois tipos de pessoas que têm uma função comunitária reconhecida no momento de transmitir o acontecido: as testemunhas oculares e os servidores da palavra. Ainda que Lucas não o diga, ele serve à palavra acolhendo a tradição, organizando o material e redigindo seu Evangelho. 6. O trabalho do evangelista foi o de “investigar tudo diligentemente desde as origens” (v. 3). Isso supõe, seguramente, ter procurado múltiplos testemunhos, ter falado com muitas pessoas, ter posto de lado informação que não considerou relevante ou, diretamente, que não era propícia para o relato. O trabalho do evangelista foi o de um redator sério no meio de uma comunidade de fé que é capaz de transmitir, nos fatos relatados, acontecimentos de salvação que ocorreram no meio deles. 7. A introdução lucana tem intenção clara com respeito a Teófilo: “Para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebeste” (v. 4). Pode-se concluir que os ensinamentos podem ser recebidos, mas não por isso são vividos em toda a sua profundidade. A obra que o evangelista apresenta tem a ver, não com coisas novas, mas com verdades que se verificaram no meio da comunidade. Sem deixar de perceber a luz que emana dessa perícope, adentraremos brevemente em algumas considerações sobre cada conceito (exegese, catequese e fé), para culminar com uma proposta de relação entre eles.

1. Exegese

A exegese é um conjunto de procedimentos científicos postos em ação para explicar os textos3. O interesse próprio dessa metodologia é “interpretar o texto fazendo aparecer (é o que significa o verbo grego exēgéomai) seu significado”4; este é de suma importância toda vez que supõe conhecer a revelação que Deus faz de si mesmo através do texto bíblico. Nesse sentido, “os exegetas católicos não devem nunca esquecer que o


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que eles interpretam é a Palavra de Deus... O objetivo de seu trabalho só é alcançado quando iluminou o sentido do texto bíblico como palavra atual de Deus”5. A exegese, como processo vital para descobrir o que Deus quer nos comunicar através de sua palavra, exige e, por sua vez, desenvolve uma atitude aberta para acolher o que será o descobrimento de uma verdade-amor que o próprio texto encobre e, por sua vez, oferece. É precisamente essa abertura que pode captar no texto uma experiência que, por seu turno, suscitou no autor sagrado o desejo de colocar por escrito o que viu ou sentiu. Não podemos deixar de pensar que a exegese, com a sua metodologia6 procura descobrir e, ao mesmo tempo, reviver tradições, intenções e emoções que estavam latentes nos corações dos redatores dos textos bíblicos. Entendemos que a exegese, tal como a definimos acima, é um método que investiga o significado do texto, que tem passos rigorosos e que é um fazer científico de aproximação textual. Deixando isso claro, é importante destacar o trabalho interpretativo ou hermenêutico no momento de assumir os resultados exegéticos. O mesmo documento Inspiração e verdade da Sagrada Escritura7 reconhece que há textos difíceis de entender, mesmo tendo claro seu significado textual, produto da exegese, e que requerem uma interpretação no contexto global da Sagrada Escritura. Desse modo, se reconhece a necessidade de incorporar outros elementos, para além dos que estão presentes em um texto particular a ser interpretado, para que ele seja adequadamente compreendido. O perigo natural de um procedimento textual crítico é deixar de fora precisamente o que não está escrito: a força de um amor apaixonado que sente o que recebeu e se colocou por escrito não é de propriedade privada, mas testemunho de uma comunidade. As palavras de Paulo, “porque eu recebi do Senhor o que lhes transmiti...” (1Co 11, 23), chamam a atenção para a importância do que se coloca por escrito (o transmitido) e quem é, na realidade, a fonte dessa palavra (o Senhor). Daí que a dinâmica da exegese tem a ver com poder obter, mediante


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passos metodológicos, o significado do texto. Este, por sua vez, deverá em muitas ocasiões fazer uso de outros elementos para poder chegar à experiência de Deus que está na base do texto. Além disso, é importante destacar que a redação dos textos, tal como temos hoje, é o resultado final de um longo processo de tradição oral, de seleção do material e de interpretação dos mesmos, à luz das experiências de fé no interior das comunidades. Apesar de ser certo que o autor sagrado não desenvolve uma exegese científica da realidade no momento de plasmar seu escrito, não é menos certo que leva a cabo um labor de interpretação dos fatos salvíficos que ele e a comunidade consideram ações de Deus no meio deles. É por isso que quem lê os textos bíblicos atualmente deve ter a mesma “sintonia de fé” com a qual foram redigidos. Também é importante não esquecer que eles foram plasmados em “sintonia de fé” com outras pessoas que viveram as experiências bíblicas como salvação8. Efetivamente, o mais provável é que, por sua vez, os redatores bíblicos souberam “ler”, nos acontecimentos verificados na comunidade, a ação de Deus no meio de seu povo. Nesse sentido, eles souberam “des-cobrir” e interpretar uma situação cotidiana em uma experiência de salvação. De algum modo, os escritores sagrados são intérpretes de uma tradição recebida que é plasmada em seus escritos. A verdade revelada por Deus, acolhida e interiorizada pela comunidade como tal, e redigida por um hagiógrafo (autor sagrado), fica à disposição para que o leitor, com a ajuda da exegese, possa se aproximar da Escritura com a vontade de conhecer melhor toda a tradição salvífica de Deus, manifestada e recopilada no meio de seu povo. Em geral, a tradição é uma verdade aceita pela comunidade, apresentando-se como uma realidade portadora de sentido. Desse modo, a ação de Deus foi interpretada para se ver nela um degrau na cadeia das promessas de Deus em favor dos seres humanos. A redação final plasmada no texto bíblico é, por sua vez, o resultado de uma interpretação da realidade, de uma interpretação dos fatos sucedidos no povo que se sente


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guiado por seu Deus. O mesmo evangelista João, no final de seu evangelho, explicita a intenção que teve ao escrever seu texto: “Jesus realizou na presença dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Os que estão foram escritos para que creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo 20,30-31). É justamente a experiência de uma comunidade que sente ser Jesus o Cristo, o Filho de Deus, que está na base desse testemunho. Podemos, então, afirmar que o texto bíblico é, de algum modo, uma interpretação de uma realidade comunitária e pessoal que ficou plasmada com a intenção de que outras pessoas a pudessem conhecer, assimilar e, no melhor dos casos, torná-la sua. O texto existe por uma “alteridade” que o funda e, ao mesmo tempo, por outra “alteridade” que lhe dá vida em sua vida. Tal alteridade requer, desde sua origem, uma abertura ao “outro(a)” que marcará todo o trabalho exegético. Não se pode desconhecer esse processo quase sagrado, de se adentrar uma realidade que penetra em quem deseja conhecer o que foi colocado por escrito no texto9. O que está redigido é uma transcendência apreendida (uma realidade alheia ao redator que a coloca por escrito), disposta a deixar-se apreender, sempre e quando seja respeitada sua condição de alteridade (esse é o “serviço de leitura crítica” que o(a) leitor(a) deve realizar). Se a disposição fundadora do que foi posto por escrito foi a contemplação de uma realidade que vai além de quem escreve, a disposição do(a) leitor(a) deve ser exatamente a mesma: abertura em direção a algo (alguém) que se acolhe enquanto outro(a)... enquanto alteridade! Quem se aproxima criticamente de um texto bíblico parte do pressuposto de que ele tem “algo” que nem sequer pertence a um autor; mais do que isso, essa redação já é interpretação de uma realidade que transcende o próprio redator. É nessa “dinâmica de transcendência” que é preciso manter-se para ser fiel ao momento de estudar criticamente o texto. A disposição de toda pessoa é a de aceitar esse “algo”, muitas vezes distinto do que penso e acredito, que o texto tem em si.


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Isso deveria nos dispor sempre a uma atitude de “mudança” para reconhecer na vida do texto esse “algo” de que necessitamos para nos encontrarmos com o Deus que se faz palavra. O risco de “não colocar em ato a dimensão de escuta” é que a palavra “de Deus” possa restringir-se ao plano locutório10; se fosse assim, o “de Deus” fica na escuridão, e não poderíamos falar do mesmo Deus que age e cria através de sua palavra. Vale a pena recordar as nove vezes em que aparecem “e disse Deus” em Gn 1,1-29. A voz de Deus, e sua concretização tornada palavra, está chamada sempre a transformar quem o escuta. Desde o caos e o vazio inicial de Gn 1,2, se passa à constatação maravilhosa “de tudo que tinha feito; e era muito bom” de Gn 1,31. Com essa mesma abertura e “docilidade” se espera que todo(a) leitor(a) se deixe transformar pela Palavra de Deus que lhe é proposta mediada no texto bíblico. No entanto, sabemos que nada acontece no leitor se este não estiver disposto a se abrir e a se deixar “esculpir” pelo texto. É sugestivo que, na primeira atividade pública de Jesus, segundo São Marcos, seu batismo por João Batista culmine com “uma voz vinda do céu” (Mc 1,11). A insinuação é clara: para reconhecer Jesus, é preciso ouvir, abrir o ouvido, deixar-se transformar pela palavra que vem. Do ponto de vista literário, a capacidade de escutar uma voz se concretiza em uma atitude exegética que facilita a transformação de quem analisa um texto; dito de outra maneira, o trabalho exegético deve levar a uma nova disposição para acolher, descobrir, discernir e pôr em ação o que a mensagem bíblica realmente é: “Palavra de Deus”. Não basta ler um texto bíblico, faz falta tirar suas consequências, ainda que estas nos incomodem e nos façam sair de nossos reduzidos esquemas. Parece-nos iluminadora, nesse sentido, a reflexão que o Papa Francisco faz na exortação Evangelii gaudium: “[...] em uma leitura atenta do texto, é bom perguntar, por exemplo: ‘Senhor, o que me diz esse texto? O que quer mudar em minha vida com essa mensagem? O que me desagrada nesse texto? Por que isso não me interessa? Ou:


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O que me agrada? O que me estimula nessa Palavra? O que me atrai? Por que me atrai?’” (n. 153)11. Não cabe a menor dúvida de que o tom pessoal e a atitude de uma proposta de leitura como a que o Papa sugere têm muito a ver com o respeito pelo próprio texto, entendendo-o como um convite a uma abertura à mensagem mesma de Deus. A exegese cristã tem mais a ver com a capacidade de extrair o que contém um texto que com os sinais utilizados por quem escreve; tem mais a ver com a ação de quem lê que com o escrito de quem redige; tem, no fundo, mais a ver com a intenção de revelação de Deus que com o descobrimento do exegeta. No Novo Testamento, um dos conflitos entre Jesus e os judeus é justamente sobre não tirar as consequências lógicas da mensagem dos textos veterotestamentários. As autoridades judias, ao que parece, se aferram a suas convicções pessoais sem se deixar transformar pela Palavra de Deus; eles a entendem, mas não a aplicam em sua vida nem modificam suas crenças. Efetivamente, em Jo 5, 45-46, lhes diz: “Não pensem que vou acusá-los diante do Pai. Seu acusador é Moisés, em quem puseram sua esperança. Porque, se acreditassem em Moisés, acreditariam em mim, porque de mim ele escreveu.” A incapacidade de sair das próprias estruturas, de tirar as necessárias consequências e de agir coerentemente diante do que um texto diz é um desafio não menor que, até agora, continua sendo uma oportunidade ainda não aproveitada pela exegese católica. A repreensão que Jesus fez aos escribas e fariseus sobre o que “eles dizem e não fazem” (Mt 23,3) continua vigente para toda pessoa que faz exegese. No mesmo sentido, o texto de Tg 1,22 exorta: “Sejam realizadores da palavra e não somente ouvintes que se enganam a si mesmos.” Atitude diversa é a mostrada pelo próprio Jesus no momento de afirmar o cumprimento da profecia de Is 61,1-2, por ocasião de sua presença na sinagoga de Nazaré. Enfaticamente declara: “Hoje se cumpriu esta Escritura que acabastes de ouvir” (Lc 4, 21). Chama a atenção que se use o verbo de cumprimento plēroō (πληρόω) para manifestar


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que aquilo que se leu cumpriu-se no hoje de Jesus e acaba de ser ouvido por toda a sinagoga (cf. Lc 4,16). Novamente, estamos diante da convicção de que a Escritura é não só para ser escutada, entendida ou explicada, mas também para que cumpra sua missão no momento de ser escutada ou lida. Não é possível se descuidar desse ponto no momento de aproximar-se do texto bíblico. Hoje, são muitas as pessoas que, com diferentes métodos e aproximações, podem dar vida ao texto, mas não muitas que iluminam o tecido (textus) de sua vida com o texto. Não é incomum encontrar aspectos novos e belos no texto, mas que não são capazes de transformar a vida. Existe aqui um desafio de primeira ordem nos que se dispõem a estudar os textos bíblicos. A exegese, por outro lado, requer uma abertura afetiva e volitiva que permita levar para a vida o que se descobre em seu desenvolvimento. Nem sempre é fácil aplicar à própria vida as consequências da mensagem; é conflituoso, às vezes, o discernimento comunitário da proposta cristã; e, por último, é um desafio apresentar o que foi descoberto na Palavra de Deus à sociedade em geral. Voltando ao texto com o qual iniciamos nossa exposição, Lc 1,1-4, é importante destacar que todo o processo de catequese, que leva a “conhecer a verdade”, se iniciou “depois de haver entendido todas as coisas desde o princípio com diligência” (v. 3). Só essa atitude diligente, que requer competência e abertura para captar o conteúdo “das coisas” é o que dispõe a não se centrar em si mesmo nem a entender a Palavra de Deus como um recurso pessoal que se pode administrar de acordo com as conveniências ou ideologias. O grande valor de uma exegese adequada é, justamente, impor respeito pelo texto, ou seja, mais do que fazer o texto dizer o que não disse, e inclusive o que disse, é não deixar o texto dizer o que não disse. Ao objetivar o texto evita-se a leitura pietista (ingênua) que pode ser, e de fato foi, extremamente ideológica. Em outras palavras, a exegese e sua centralidade no texto bíblico obrigam o leitor a sair de si mesmo e deixar-se modelar pelo texto que tem à sua frente.


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Diante dessa atitude de respeito ao texto e ao que ele contém, devemos enfatizar o papel do Espírito Santo, seja na inspiração, seja também na redação e na leitura crítica de um texto bíblico. É propício, a esse respeito, recordar o que diz a Verbum Domini do Papa Bento XVI: A Palavra de Deus, portanto, se expressa com palavras humanas graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação. O mesmo Espírito que age na encarnação do Verbo, no seio da Virgem Maria, é o mesmo que guia Jesus ao longo de toda sua missão e que será prometido aos discípulos. O mesmo Espírito que falou pelos profetas sustenta e inspira a Igreja na tarefa de anunciar a Palavra de Deus e na pregação dos apóstolos; é o mesmo Espírito que, finalmente, inspira os autores da Sagrada Escritura. (n. 15)

Mais adiante acrescenta: Os grandes escritores da tradição cristã consideram unanimemente a função do Espírito Santo na relação dos crentes com as Escrituras. São João Crisóstomo afirma que a Escritura “necessita da revelação do Espírito, para que descobrindo o verdadeiro sentido das coisas que ali se encontram encerradas obtenhamos abundante proveito”. Também São Jerônimo está firmemente convencido de que “não podemos chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a inspirou”. São Gregório Magno, por outro lado, sublinha de modo sugestivo a obra do mesmo Espírito na formação e interpretação da Bíblia: “Ele mesmo criou as palavras dos santos testamentos, ele mesmo as desvela.” Ricardo de São Vitor lembra que se necessitam “olhos de pomba”, iluminados e ilustrados pelo Espírito, para compreender o texto sagrado. (n. 16)

A ação descrita do Espírito Santo, seja na inspiração, seja na interpretação do texto bíblico, nos abre para o âmbito no qual se deve


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desenvolver a exegese: a comunidade eclesial. A lógica é clara: se os textos inspirados foram redigidos no meio de uma comunidade crente, a exegese daqueles deve ser feita no meio dela. Sobre esse particular, 2Pe 1,20 diz: “[...] saibam isso, que nenhuma profecia da Escritura é assunto de interpretação pessoal, pois nenhuma profecia jamais foi dada por um ato de vontade humana, mas que homens, inspirados pelo Espírito Santo, falaram da parte de Deus.” É interessante o que nos adverte a já aludida Verbum Domini: Aproximações ao texto sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes, detendo-se na estrutura do texto e suas formas, no entanto tais tentativas seriam inevitavelmente apenas preliminares e estruturalmente incompletas. Com efeito, como afirmou a Pontifícia Comissão Bíblica, fazendo-se eco de um princípio compartilhado na hermenêutica moderna, o “adequado conhecimento do texto bíblico é acessível somente a quem tem uma afinidade viva com o que diz o texto”. (n. 30)

Seguindo o raciocínio anterior é que se vê com maior clareza por que algumas engenhosas propostas exegéticas, mesmo que com novidades, não são uma contribuição à vida eclesial e terminam sendo surpreendentes interpretações do texto que pouco têm a ver com a vida comunitária. Sem pretender desdizer o anteriormente afirmado, é necessário que os resultados da exegese sejam assumidos com respeito científico e com atitude de transformação pessoal. É possível que, com a desculpa de uma afinidade com o que o texto diz, alguém não se deixe surpreender pelos resultados exegéticos que possa considerar incômodos. Nessa mesma linha, pode acontecer que alguém, por acreditar conhecer o marco no qual a revelação se realiza, não se aprofunde nas novas implicações com que a revelação, como processo dinâmico entre Deus e os homens, possa contribuir para a vida atual12.


22 • Gonzalo Arturo Bravo Alvarez

Para terminar esta parte, consideramos oportuno destacar algumas notas características de uma interpretação do texto. Cabe recorrer ao próprio Jesus, exegeta do Pai, intérprete de sua mensagem e imagem de Deus invisível. 1. Intimidade com Deus: Jesus, o Verbo feito carne, “estava com Deus” (Jo 1, 1): Só a partir da intimidade de uma vida em comunhão com Deus pode-se interpretar sua palavra. Além de aproveitar o trabalho exegético e os dados de uma atualização textual, é necessário dispor a razão e o coração para acolher, em íntimo diálogo com Deus, o que ele revelou. Só assim se pode beber da mesma fonte da qual beberam os autores sagrados. Continua sendo determinante a interiorização da revelação mediada no texto bíblico. 2. Visão complexiva das Escrituras: Jesus interpreta as Escrituras a partir delas mesmas; é o que faz com os discípulos de Emaús: “E começando por Moisés e continuando por todos os profetas, lhes explicou o que havia sobre ele em todas as Escrituras” (Lc 24,27). Uma correta interpretação não pode deixar partes da Palavra de Deus relegadas, porque não convêm à mensagem ou porque incomodam. Toda a Escritura é veículo de revelação do amor de Deus por seu povo. Nesse sentido, a exegese é uma garantia de interpretação complexiva do texto bíblico. 3. Jesus é legitimado por seu Pai: No batismo de Jesus, ouve-se uma voz do céu que diz: “Este é meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17); é semelhante ao que se ouve na transfiguração: “Este é meu Filho amado, em quem me comprazo; escutai-o” (Mt 17,5). Em ambos os casos, o amor do Pai legitima o Filho. A experiência do amor divino é um âmbito privilegiado para a exegese; esta, então, não terá só como tarefa “extrair o que diz o texto”, mas também tornar compreensível o amor de Deus que se comunica na história da salvação para fazer da salvação uma história de amor comunicada a toda a humanidade. 4. Buscar a vontade de Deus na exegese: Jesus veio fazer a vontade de seu Pai (Jo 4, 34); é precisamente nessa sintonia de vontade que o exegeta de hoje pode identificar-se com o exegeta do Pai e determinar


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