Copyright© Flavia Barreto e Rita Leal, 2016 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito das autoras, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
Editor João Baptista Pinto Revisão Bruna Karine Brezolini Lordello
Projeto Gráfico Rian Narcizo Mariano
Ilustração da Capa Lyrah Colvin
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B262c Barreto, Flavia, 1955Cartografia musical : Rio de Janeiro 450 anos / Flavia Barreto, Rita Leal. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2016. 144 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia Acompanhado de DVD ISBN 978-85-7785-493-6 1. Música - Rio de Janeiro (cidade) História. 2. Educação Musical. 3. Sociologia da Música e sociedade. 4. Memória e Patrimônio Cultural. I. Leal, Rita. II. Título. 16-37503 CDD: 306.4842 CDU: 316.74:78
Letra Capital Editora Tel: (21) 2224-7071 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br www.letracapital.com.br
Flavia Barreto Rita Leal
Agradecimentos
C
ostumamos fazer longos discursos aos nossos alunos universitários sobre a arte e a importância de compor o texto de agradecimentos, pelo que ele significa como revelação do suporte que foi disponibilizado ao trabalho que se apresenta. Entendendo a questão por este ângulo, é com grande prazer que apresentamos nossos agradecimentos à FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro) cujo apoio vem possibilitando que a realização de tantos e relevantes trabalhos dos pesquisadores universitários cheguem às mãos de um público maior, cumprindo o objetivo de democratizar, um pouco mais, o acesso ao conhecimento produzido no interior de nossas universidades. Agradecemos aos alunos da Faculdade de Formação de Professores da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) que com a ânsia da descoberta nos instigam a compartilhar conhecimentos. Ao Departamento de Educação (DEDU/FFP) por ser um lugar onde o convívio profissional com os demais colegas nos exige, sempre, a apresentar o melhor de cada uma de nós em prol do compromisso com a Educação Pública. À Bruna Karine Brezolini Lordello pela revisão acurada e apoio ao nosso trabalho. À Adir da Luz Almeida pelo tempo dedicado e leitura generosa que rendeu muitas sugestões e motivos para modificações no trabalho. Aos nossos familiares que abriram mão de muitos momentos de convívio em nossos lares, para que pudéssemos dedicar tanto tempo quanto nos foi necessário para enveredarmos pelas leituras e pesquisas que embasaram o tecer de nossas narrativas. E asseguramos que o tempo empregado foi farto. Aos amantes da musa Música que nos inspiram com a composição e a execução de suas expressões musicais, fazendo a trilha sonora da vida de cada um de nós. A cada ser humano que habitou e habita a cidade maravilhosa pelo tanto que contribuiu com suas vidas cotidianas, com suas emoções, sonhos e fazeres, para a existência desse caldeirão cultural em permanente ebulição que é a inspiração maior deste livro: a musicalidade carioca. Obrigada.
Sem a mĂşsica, a vida seria um erro. Friederich Nietzsche
Prefácio
O
ato de louvar-se o Rio não deixa de ser a possibilidade de uma convergência, o encanto sutil e imemorial de um amontoado de feitiços. Certa vez, lá pelos anos 60, em domingo plúmbeo e ainda por cima chuvoso, estava almoçando no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Depois de ter mergulhado em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira, e mimoseada com outros segreditos mais (a grande quituteira jamais confessou, mas sempre desconfiei que ela batizava o molho com uma cachaçinha sabiamente perfumada com cascas de limão, guardada a sete chaves lá no fundo do armário da cozinha), eis que chega, nada mais, nada menos, Vinicius de Morais, acompanhado pelo filho Pedro. O poeta toma assento, pede a branquinha que reluzia à mesa, e pergunta à Zica pela carne assada, degustada por ele lenta e galhardamente. Fixei para sempre na memória a cena dos dois poetas, em espichada conversa sobre os prazeres, sobre a música, sobre a alegria de viver e de sorver a beleza. Ao final, já caindo uma noite chuvosa e úmida, Vinicius se despede e, docemente, como era de seu feitio, agradece ao casal, dizendo que acabara de viver naquelas duas horas a intensidade da magia do Rio – “estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o poeta carioca, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa, e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar, e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco. Saravá !” Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, na soleira do barracão de Cartola e Zica, na boca da noite chuvosa, a definição mais eloqüente e inamovível da magia da cidade de São Sebastião. Este livro de Flavia Barreto e Rita Leal desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais eloqüente, a música que brota torrencial por todos os poros dos cariocas de verdade. Sim, porque os há de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos ritmos e dos muitos requebros sensuais, que a redimem dos malfeitos e da inadmissível violência. Nossas autoras, doutoras de amplo saber universitário, do alto da excelência da academia se acodem das miudezas e de detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato do que é a entidade (sim, por que não?), chamada de Espírito Carioca. As doutoras, a partir da solidez de pesquisas históricas e de queimar pestanas (deduzo...) em busca da enormidade da literatura sobre o Rio e sua musica, põem de pé um livro que representa uma contribuição de essência,
10 ♪ Prefácio
para quem quiser saber, mais e melhor, sobre a cronologia da música carioca e sua moldura visceral e única, a cidade de onde ela flui e se enfeitiça. Desde as páginas iniciais, fui tomado pelo prazer, um tanto raro, de ler sobre as origens das músicas dos índios, muitas vezes minimizada, quando não desprezada sem qualquer cerimônia. A partir dos justíssimos afagos aos donos da terra e sua cultura milenar, abre-se um leque de histórias seqüenciais que descerram os véus da diversidade da criação musical carioca. Os dez capítulos que se seguem traduzem, com precisão e bom senso, a crucial miscigenação que forma e identifica o milagre do Espírito Carioca. A nobreza desta entidade se insere, ainda bem, ao longo de seqüencias histórico-estéticas. Lá estão os negros e a criação dos ritmos, das percussões, dos requebros sensuais. A seguir se desvendam o centro do Rio e os choros, eles mesmos, a criação mais arrebatadora do gênio antropofágico dos cariocas, capaz de tudo misturar e de parir originalidades. Logo, logo, em capítulos especialmente incandescentes para mim, Flávia e Rita, adentram as escolas de samba, as origens do “samba da minha terra” e a saudação universal de “a Bossa Nova é carioca”. E desaguam na contemporaneidade do Rock dos anos de 1980, com o “Brasil mostra sua cara”, insuflando o necessário protesto dos jovens de modo direto, e sem papas na língua, contra o país tão absurdamente permeável à corrupção, patética e quase endêmica. Eles concluem com a configuração audaciosa e necessária de “o amado e condenado Funk carioca”. Ainda sobra espaço, ora viva!, para a placidez de “a música clássica carioca”. Sim, que ela também existe e sempre existiu, ostentando desde o principio do século XVIII, virada do XIX, a opulência do Padre José Maurício, um mulato genial, que nas horas vagas se dava o prazer de compor lânguidas modinhas e até, há quem afirme, lundus um tanto atrevidos. Portanto, a longa e maturada história dos pilares da música carioca está bem aquinhoada neste livro de Flavia Barreto e Rita Leal. A convergência a que me referi ao início deste breve texto (embora o livro mereça páginas e páginas a não acabar, o que, aliás, é tentação perigosa para um prefaciador tão íntimo da matéria) pode ser avaliada ao se desdobrar a leitura de capítulo a capítulo. A trama de um cânone sem paralelo, o cancioneiro urdido pela cidade, parece mesmo convergir. E converge para a avaliação de um cadinho de bons resultados, sintetizados, insisto sempre, na miscigenação, na descontração, na leveza da alegria carioca, na absorção de tudo, e no vômito de volta. Que é redentor pela originalidade e majestático pela criação. Ricardo Cravo Albin
Presidente da Academia Carioca de Letras Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin
Introdução I
C
heguei ao Rio de Janeiro em um cesto de pão, com dois meses de vida, transportada por meus pais vindos da cidade do Recife, nas asas da Panair. Passei boa parte da infância observando de minha janela, esquina da Rua Belford Roxo com Barata Ribeiro, no bairro de Copacabana, o mundo mudar velozmente. Depois, fui para a rua e me incorporei, como todos, ao movimento de ir e vir, em busca dos muitos recantos e da vida na cidade. Vai no bonde, volta no lotação (um tipo de ônibus), vai no trólei, volta no ônibus e não esquece de colocar a fichinha colorida antes de descer! Que nada, o legal era colecionar as fichinhas! Vai de ônibus, volta de metrô! Atravessa as ruas entre os carros, para o desespero de quem assiste! “Cariocas não gostam de sinal fechado...” E se ligam no sinal, nunca no semáforo... aliás, o que é semáforo? Não são aquelas bandeirinhas que servem de comunicação entre embarcações? Todos os anos durante minha infância eu esperava pelas novidades do carnaval, ansiosa em meus sentimentos infantis, por saber se o Bloco do Bafo da Onça vinha descendo a rua, repleto de pessoas perigosas como a onça... Que delícia ouvir a batucada dos blocos e cantarolar as marchinhas de carnaval. Índio tem apito, vai, com jeito vai, senão um dia, a casa cai, Chiquita Bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana Nanica... Ensaiar uns passinhos puladinhos conforme os blocos passavam, de mãos dadas com meus pais, são as memórias idílicas da infância isenta de tristezas. Cheia de alegria eu me senti quando surgiram os primeiros Festivais de Canção, acompanhando, como todo mundo, os resultados dos concursos. Cantava as músicas do rádio, junto com as mulheres que trabalhavam nas casas como domésticas e, com seus costumes distintos, enfeitavam nossa vida. Na cozinha o radinho de pilha tocava “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria...” Enfrentei inúmeras vezes a resistência de minha mãe para conseguir sua autorização para nos finais de semana acompanhar estas amigas de minha infância no retorno quinzenal aos seus lares, no Morro da Formiga, nas favelas do entorno da Zona Sul. Curti muito as balas que comprávamos nas biroscas, as corridas pelas picadas do morro junto com as filhas das empregadas. Olhava as pipas coloridas pela janela dos barracões e me surpreendia com a diferença arquitetônica daquelas casas. E me apaixonei definitivamente por uma Escola de Samba numa daquelas
12 ♪ Introdução I
visitas às casas das empregadas, no ano em que vi as pessoas descerem do morro, fantasiadas para o carnaval. A escolha simples, como a pergunta que a provocou: – “Qual delas você acha mais bonita?” Perguntou Manoela, uma mulata decidida que trabalhava como doméstica para a minha mãe. Diante de meus olhos desfilavam inúmeras fantasias verde e branco, azul e branco, verde e rosa. As pessoas desciam do Morro da Formiga fantasiadas, tornando o mundo real uma cena de conto de fadas. Boquiaberta, eu fiquei impactada com um grupo vestido de vermelho e branco. Eram integrantes da escola de samba do Salgueiro a caminho do desfile com o tema “Chica da Silva”. Preferi estas cores a todas as outras. Fiquei extasiada com a revelação: – “Então, você é Salgueiro!!”, disse Manoela rindo. Em memória desse momento permaneci sendo! Hoje, revisito as imagens da infância em busca de evidências que me confirmem o processo que vivi e que veio a me tornar indiscutivelmente “carioca”, mesmo sem ser “da gema”. Tanta reflexão em torno deste tema se deve ao debate obrigatório travado entre as autoras deste livro sobre o que deveria constar do cenário referencial da musicalidade carioca, em comemoração aos 450 anos da Cidade Maravilhosa. Concluímos de comum acordo que o fenômeno musical carioca tem um espírito próprio, uma espécie de ethos perceptível e característico de uma carioquice sensível. Reconhecemos que podiam fazer parte da narrativa de muitos artistas, mesmo quando os sujeitos da ação musical não haviam sido nascidos na cidade do Rio de Janeiro, mas nela se encontraram com a sensação de estar finalmente em casa, identificados com o senso de humor, a informalidade, o objetivo comum de fruir os momentos de alegria que o convívio na cidade propicia e abraça. O samba batucado no canto do bar, a excitação popular do desfile das escolas de samba, o acompanhar nervoso da contagem dos pontos depois dos desfiles, a moda que se renova e se faz visível nas calçadas, as noitadas alegres nos baixos e nos altos dos bairros, o chopinho gelado depois da praia, a pelada e o frescobol, o suor no trem, o deboche cantado para o motorista e o trocador do ônibus lotado. “Um passinho a frente faz favor...”. Todos muito cariocas, de uma musicalidade identificada com este cotidiano charmoso e acolhedor, da mistura e da alegria de viver. Temos em comum, nós as autoras, o gosto e o sabor da cidade do Rio de Janeiro em nosso cotidiano, a paixão pela música e a vontade de incorporar toda essa miríade de sentimentos às nossas vidas acadêmicas. Combinamos
Cartografia Musical: Rio de Janeiro 450 anos ♪ 13
entre nós a divisão de trabalho, assumindo cada qual os capítulos e os temas mais próximos das nossas vivências e afetos, e trabalhamos para criar uma harmonia entre nossos estilos de escrita de modo a aplainar a caminhada do leitor por entre as páginas de nosso livro. Deste modo, caros leitores, apresentamos a “Cartografia musical: Rio de Janeiro 450 anos” com o sentimento legítimo de termos realizado um trabalho impregnado do mais profundo sentimento de amor à cidade do Rio de Janeiro, pelo aniversário de seus 450 anos de existência. A felicidade, original, simples e democrática, é carioca! Rio de Janeiro, março de 2016.
Flavia Barreto
Introdução II
R
io de todos os tons, de todas as cores, de todos os sons. Rio dos ‘cariocas bacanas, dos cariocas sacanas, dos cariocas que não gostam de dia nublado...’, como cantou a gaúcha Adriana Calcanhoto, para definir os nascidos nessa cidade de ‘ladeiras, civilização, encruzilhada, onde cada ribanceira é uma nação...’, como definiu o paulista Chico Buarque. Quanto a mim, baiana de nascimento, morando e vivendo o Rio há mais de trinta anos, vou ‘cariocando’ aos poucos ao longo desses anos, porque, mansamente, vou compreendendo que ser carioca é muito mais que um simples nascer no Rio. É, antes de tudo, um modus operandi, uma forma de estar e habitar a cidade, que define, independentemente do local de nascimento, o sentir e fazer parte, o pertencimento, o ‘jeito de ser carioca’. Esse jeito que se manifesta nas cores das asas que cortam o céu e o mar do Rio nos dias ensolarados. Na caminhada preta e branca da calçada que leva a subida da Pedra do Arpoador, para ali ficar sentada, esperando para ver e aplaudir o espetáculo dourado do sol desaparecendo no mar, ao lado do Morro Dois Irmãos, vendo as luzes que acendem e vão colorindo o Vidigal, na esperança de prolongar um pouco mais o momento, na certeza de que aquele é um lugar especial para estar. Ser carioca tem cores, mas também tem gosto. É o sabor oco e único do biscoito Globo, o queimado da erva do mate com o azedo do limão servido na torneirinha, temperado na medida certa, o chope gelado que desce redondamente perfeito no calor de 40 graus, o caldinho de feijão preto acompanhado do torresminho bem sequinho que é pra não aumentar o colesterol, uma caipirinha, que hoje pode variar na fruta, e o campeão, o sanduíche de pernil com abacaxi do Cervantes, aberto até o amanhecer em Copacabana, ai meu Deus! Sim, ser carioca tem gosto, e que gosto! Ser carioca tem cheiro de mistura. Um misto de calor, suor, maresia, abafamento, talvez pelo sangue latino, talvez pelos inegáveis e muitas vezes insuportáveis 40 graus, não sei ao certo, mas a sensação que tenho é a de que, mesmo quando chove, o cheiro do jeito de ser carioca é quente. Úmido, mas ainda assim, quente. Chegamos ao som de ser carioca. Esse talvez seja o mais difícil de definir pela sua riqueza e complexidade. A polifonia do som de ser carioca é tanta que vai do choro ao funk sem perder o rebolado. Como a cidade acolhe pessoas vindas de vários lugares do Brasil e do mundo, a música que aqui se
16 ♪ Introdução II
produz influencia e é influenciada pelas pessoas que acolhe. Ou seja, é uma via de mão dupla, posto que, ao produzir sua música aqui no Rio, o artista o faz tocado pelas cores, pelo cheiro e pelo som de tudo já existente aqui, e isso vai se refletir na música que ele vai produzir. Essa música, por sua vez, influenciará a nossa música, e assim sucessivamente, fazendo com que a nossa música seja sempre rica e diversificada. Assim esse artista, embora em muitos casos não seja um carioca nato, ele é “musicalmente carioca”, porque foi nesse contexto do Rio de Janeiro, com as condições encontradas aqui, que ele construiu determinado percurso na carreira, que o levou a desenvolver aquele tipo de musicalidade. Quero deixar aqui essa linha de argumentação para pontuar a escolha feita pelas autoras quando, após discussão necessária, fecharam um consenso sobre os personagens desse livro, pois ainda que alguns dos artistas que passeiam nessas páginas não tenham nascido no Rio de Janeiro, não sejam cariocas natos, estão aqui e aqui se encontram porque escolheram trilhar seu percurso musical nessa cidade, identificados com as cores, o sabor, o cheiro e o jeito de ser carioca. São no nosso entendimento, e assim como nós, cariocas por escolha e por identificação, por amor ao Rio, que acolhe a todos em seu grande caldeirão cultural, que fervilha essa grande mistura em um constante devir, para daí originar o novo, mas também a tradição, o choro, mas também a música clássica, o ‘brock’ nacional dos anos 80, mas também a bossa-nova, o funk carioca, mas também o samba e as Escolas de Samba; o Rio dos índios, dos negros, dos brancos, cafuzos, nissei, sansei, mulatos e mamelucos. Esse é o espírito que tentamos passar nessa “Cartografia musical dos 450 anos do Rio de Janeiro”, numa tentativa de embalar o leitor com nosso DVD, ao som dos ritmos que foram surgindo ao longo desses anos, enquanto ele passeia pelas páginas e bairros da cidade, sem compromisso algum. A nossa maior pretensão com esse livro, além da inegável declaração de amor que ele representa, é convidar a você, amigo leitor, a vir conosco conhecer um pouco da memória musical do Rio, pelo aniversário de seus 450 anos de existência, sentindo essa cidade carioca de todos os tons, de todas as cores, de todos os sons. Vamos?! Rio de Janeiro, março de 2016.
Rita Leal
Sumário 01
Os índios, a música Capítulo e a cidade do Rio de Janeiro........................................19
02
Os negros, a música Capítulo e a cidade do Rio de Janeiro........................................31
03
Centro do Rio: Capítulo o choro, a Colombo e o Odeon...................................45
04
Nas origens do Capítulo samba da minha terra..................................................55
05
Uma paixão nacional Capítulo as escolas de samba do Rio de Janeiro......................65
06
A Bossa-Nova Capítulo é Carioca!.......................................................................75
07
MPB não é apenas uma sigla no Rio de Janeiro: Capítulo uma história de amor e outras lutas cariocas...........87
08
Os ritmos se misturam no cenário Capítulo carioca do pop, brega, brock.......................................97
09
O amado e condenado Capítulo funk carioca................................................................ 113
10
A música clássica
Capítulo no Rio de Janeiro........................................................123 Conclusão....................................................................135 Bibliografia................................................................. 140
01
Capítulo
Os índios, a música e a cidade do Rio de Janeiro
A
cidade do Rio de Janeiro é a segunda maior cidade do país. Ocupou o lugar de capital do Estado do Brasil entre 1621 e 1815. Depois foi a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com a chegada da família real portuguesa, de 1815 até 1822, quando ocorreu a independência do Brasil e a cidade do Rio de Janeiro se tornou a capital do Império, assim permanecendo até 1889 com a Proclamação da República. A partir de 1889 foi a capital da República dos Estados Unidos do Brasil até 1960 com a transferência da capital do país para Brasília. A “Cidade Maravilhosa” foi considerada patrimônio cultural da humanidade e recebeu da UNESCO, em 2012, o título de “Rio de Janeiro: paisagem carioca entre a montanha e o mar”. A fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1º de março de 1565, por Estácio de Sá, aconteceu em meio a uma série de contendas entre índios e europeus. Os franceses já ocupavam a região há dez anos. A cena da fundação se deu em um terreno entre o Morro Cara de Cão e o Morro da Urca, ou seja, para alguns na região do bairro de Botafogo, para outros, precisamente na Praia Vermelha, ao pé do morro do Pão de Açúcar. Para sermos justos com a memória e a história local, precisamos tomar conhecimento dos nossos ancestrais mais antigos: os tupinambás que aqui viviam. Quando os europeus chegaram às costas brasileiras, algumas pesquisas apontam a probabilidade de que nestas terras habitassem entre 3 e 6 milhões de pessoas. Uma população formada por aproximadamente 1.500 grupos étnicos, divididos em quatro troncos principais: os tupis-guaranis (habitantes litorâneos, do sul até o Amazonas); os macro-jê (habitantes do interior), os aruaques e os caribes (concentrados na região da Amazônia). Estima-se pelas evidencias arqueológicas, que esta população já existia desde 7.000 A.C., praticando a agricultura, a cerâmica, a tecelagem, as pinturas rupestres... Enfim, deixando pistas de suas existências e das sociedades que constituíram.
20 ♪ Capítulo I - Os índios, a música e a cidade do Rio de Janeiro
Estes habitantes receberam por parte dos portugueses a denominação “índios”, repetida por nós até os dias de hoje, reafirmando o engano de Cristóvão Colombo que ao ter aportado na América, acreditou erroneamente estar na Índia. As tribos indígenas possuíam estrutura social. Organizados social e politicamente, os índios em uma tribo submetiam-se a um cacique ou morubixaba, chefe representante da ordem e da guerra. Não lhes faltavam os pajés, que transitavam entre o mundo natural dos vivos e da natureza, e o mundo sobrenatural dos mortos. Dominavam a arte da cura, da magia e dirigiam os rituais, as danças e as músicas cerimoniais. Os tupis-guaranis eram muito numerosos, e embora se trate de um único tronco étnico, viviam envolvidos em conflitos entre as várias tribos tupis. Em grande maioria eram praticantes da antropofagia ritualística após a guerra, como uma forma de vingar os mortos durante as batalhas e roubar as melhores qualidades dos adversários. Na região entre Angra dos Reis e Cabo Frio habitavam as tribos dos Tamoios (os antigos, ancestrais). Na ilha de Paranapuã, (Ilha do Governador) estavam em isolamento geográfico os Maracajás Temiminós (os descendentes, os netos) também tupis, mas, inimigos dos Tamoios. Os registros iconográficos do lugar onde a cidade do Rio de Janeiro foi fundada testemunham as modificações através dos séculos de existência da cidade.
Rubinho Jacob
Cartografia Musical: Rio de Janeiro 450 anos ♪ 21
É neste ambiente belicoso que os europeus começam, no Rio de Janeiro, a relação com os primeiros habitantes do Brasil. Dizemos europeus sem nos referir apenas aos portugueses, pois foram os franceses que iniciaram a ocupação da área em que hoje está o Rio de Janeiro.
Nossas origens musicais atávicas Vamos nos deter a observar aspectos da vida cultural daqueles que juntamente com os europeus protagonizaram as ações durante o surgimento da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Para isso, voltemos o olhar aos nossos longínquos antepassados, àqueles que já habitavam este território presumidamente desde 7.000 A.C. Neles vamos encontrar muitos hábitos, semelhanças e memórias indizíveis e peculiares a nos acompanhar até a atualidade, ainda que mesclados com outras influências culturais. Muitos apontam como herança indígena os nomes das localidades, alimentos, gosto pelo banho no mar e nos rios... ou os corpos seminus embrulhados em ínfimas roupas de banho a reluzir ao sol! Nada mais carioca do que ir à praia. Herança assimilada. Mas, para seguir o nosso propósito de conhecer a música de todos os tempos, tocada, cantada e ouvida na região da nossa cidade, o convite é para falarmos sobre a música indígena. Sobre ela quase podemos afirmar que são genéticas as origens musicais cariocas, que nos parecem brotar como naturais e, por esse motivo, essenciais. Portanto, rítmica e ritualística, ela faz parte de nosso momento presente, embora não tenhamos isso muito claro em nossa consciência.
Características da música indígena Existem muitas diferenças culturais entre o mundo europeu e o mundo indígena brasileiro. Observemos estas diferenças no que diz respeito à música: nossos índios não seguem o sistema tonal do ocidente, com as sutilezas e a complexidade nos timbres e alturas. É difícil transcrevê-la para a escrita de partituras segundo a linguagem musical ocidental. Não apresenta desenvolvimento de polifonia ou harmonia, no sentido ocidental. Não estão presentes as diferentes sonoridades melódicas e harmônicas que se complementam e são próprias das composições ocidentais que agregam diversos instrumentos para sua execução. A música indígena é de tipo monódico e no máximo heterofônico, com exemplos de composição antifonal. Ou seja, executada em um só tom, mas com muitos instrumentos e vozes.
22 ♪ Capítulo I - Os índios, a música e a cidade do Rio de Janeiro
As composições são passadas para as novas gerações pela prática. Ou seja, cantando e tocando perpetuam-se as composições musicais das tribos através dos tempos. A expressão musical indígena possui ritmos fluentes, binários ou ternários, algumas vezes alternadas em um mesmo verso. Isso significa que pode ter uma flutuação evidenciada do pulso. O papel principal na composição é das repetições e suas variações.
Música na vida, vida com música A música é entendida na cultura indígena como um presente dos deuses para os homens que viviam em silêncio. Algo que pode ter se originado no mundo dos sonhos e aprendido por pessoas que por meio de faculdades especiais estiveram por lá. Como faziam os Pajés que as conhecem em seus transes. Na vida das tribos, a música é um elemento fundamental no processo de construção do mundo social e conceitual. Os exercícios musicais se fazem presentes nas relações sociais que podem ser assinaladas ou celebradas neles, designando as faixas etárias, o status social, os estados afetivos, os gêneros e a sexualidade, as individualidades e os grupos. Existem canções para quase todos os momentos da vida. No âmbito familiar, a vocalização é o mais praticado. Nos grandes círculos, instrumentos e voz. A cultura oral é transmitida pela música e a fala tem limites sutis em relação à expressão musical. Cabe aqui ressaltarmos o que isso significa: em seu cotidiano, em um simples ato de comunicação verbal, os índios podem passar da fala ao canto e retornar à fala sem que sejam consideradas ambas as expressões como diferenciadas em sua essência. As canções podem seguir os temas das narrativas, podem ter o propósito de ser instrutivas, ou ainda podem ser invocações ritualísticas. Pretende-se que exerçam um efeito hipnótico, o que contribui para a imersão coletiva no sentido e no objetivo que se pretende alcançar. Sem dúvida, a música indígena está associada ao universo da transcendência e da magia. Funciona como um instrumento de preservação dos mitos fundadores da cultura e da história tribal. Tem finalidade clara de socialização, culto ou exorcismo e cura. A música é utilizada nessas culturas como veículo para os ritos catárticos, pois ajuda a estabelecer os conflitos ao mesmo tempo em que os controlam através das repetições, variações e proporções.
Cartografia Musical: Rio de Janeiro 450 anos ♪ 23
Essa característica nos remete subitamente à sonoridade das torcidas nos estádios de futebol. Coletividades tomadas por sentimentos compartilhados e vocalizados como uma possibilidade de viver um conflito como uma projeção do espetáculo que se desenrola a olhos vistos. Seria nosso momento indígena de ser? A perda da identidade individual em prol de uma identidade coletiva, na transcendência promovida pela música. A partir da primeira contemplação sobre o que é a música para as tribos indígenas, o que ela pode significar para eles, e como eles a vivenciam no cotidiano, algumas indagações se apresentam para uma reflexão. O que é a música para os homens, independentemente do sentido que a ela atribuem as diversas culturas? Parece que um traço comum atravessa a todas as percepções: a música pode promover muitos estados de espírito, estimular sensações, memórias, sentimentos e sentidos. É provável que nisso resida sua propriedade mágica, apreciada e amada por seus admiradores. Tudo isso pode ser promovido pela simples audição da música, suas entonações, sonoridades e ritmos. Os homens são capturados pelo enlevo que ela promove em suas vidas, e muitas vezes escapam do mundo real, enveredando de todo coração pelos caminhos infindáveis das descobertas das infinitas possibilidades que a música lhes possibilita.
J. M. Rugendas
As pequenas embarcações e o contorno da serra que adorna a cidade do Rio de Janeiro estão presentes no olhar do desenhista no Primeiro Império.
24 ♪ Capítulo I - Os índios, a música e a cidade do Rio de Janeiro
A simples produção de sons e o compartilhamento destes sons musicais com outras pessoas são capazes de produzir tal sensação de plenitude que, para usufruir destes momentos fugazes, músicos compositores e instrumentistas se lançam em profundos mergulhos de dedicação apaixonada à musa Música, deixando de lado a maior parte de suas vidas, tão profunda é a satisfação que obtém em seu culto. Também temos que diferenciar a música enquanto entonação de tons e semitons, melodias, harmonias e ritmos presentes na sonoridade livre e abstrata da música puramente instrumental, da música acompanhada do cantarolar de uma letra que define e conduz de modo direcional os pensamentos e as sensações. Quando há uma letra, nossa imaginação está capturada e, de certa forma, restringida a possibilidade de fruição da sonoridade musical. Evidentemente, temos uma margem de liberdade porque a recepção de cada indivíduo é diferenciada em relação à emissão dos textos escritos, falados ou cantados. Mas, nada se compararmos isso à audição dos sons musicais livres das letras que costumeiramente os acompanham. Incrivelmente, os índios se apropriam dessa percepção e a aplicam às conversas, emprestando às falas uma entonação musical, para com isso ampliar ou destacar os sentidos de comunicação. Eles falam cantando e retornam a fala sem o canto evidenciado, embora, na verdade, toda fala contenha em si mesma um canto entonado. Daí identificarmos os sotaques, ou “cantados” de cada idioma. A catarse de um público enlevado em um espetáculo musical é a mesma dos nossos antepassados em Terra Brasilis, cantando e tocando nos rituais tribais. É possível que resgatemos o atavismo dessas sensações quando pulamos, balançamos e cantamos em espetáculos disputados pelo público nas areias das praias cariocas. Qual seria o impacto que nossos antepassados sentiriam ao se depararem com tais celebrações? Certamente entrariam em êxtase!
Um pouco da História Em 1555 os franceses fundaram na Baía de Guanabara a França Antártica, estabelecendo forte aliança com os Tamoios. Na região de Cabo Frio, desde alguns anos antes, os franceses já faziam comércio com os Tupinambás trocando utensílios por sal e pimenta. O capitão francês Bois-Le-Compte, em 1555, chegou à pedra da Guanabara com três navios bem armados e 290 colonos a bordo. O lugar que recebia este nome era um rochedo na embocadura de um rio. Mas, os franceses não puderam ali se instalar porque a maré subia e a tudo alagava. Partiram em