JosĂŠ Aldemir de Oliveira
CrĂ´nicas da minha (c)idade
Copyright© José Aldemir de Oliveira, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
Editor João Baptista Pinto
R evisão Rita Luppi
Capa e Projeto Gráfico Luiz Guimarães Imagem de Capa: Tela “Trastes, Contrastes, Contra” de Bosco Ladislau.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
O51c Oliveira, José Aldemir de Crônicas da minha (c)idade / José Aldemir de Oliveira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. 132 p. : il. ; 14x21cm.
ISBN 978-85-7785-553-7
1. Crônica brasileira. I. Título.
17-45147 CDD: 869.8 CDU: 821.134.3(81)-8
Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br
(Quase) Prefácio
N
a segunda metade do século XIX e início do XX, o Rio de Janeiro viu transformar a crônica urbana num gênero literário tão brasileiro quanto o futebol se transformaria em esporte nacional. A Cidade Maravilhosa se converteu em capital da crônica urbana. João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto passou a ser chamado de João do Rio; e o capixaba Ruben Braga, morador ilustre de Ipanema, passa a ser o único grande escritor brasileiro que só escreve crônicas. A cidade de Manaus também teve seus ilustres cronistas, não só nos jornais, mas também no rádio. Os mais antigos desta (c)idade devem lembrar da voz de Josué Cláudio de Souza ou, como ficou mais conhecido o fundador da Rádio Difusora do Amazonas, Josué Pai que, acompanhando as badaladas do sino da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, ao meio-dia, de segunda-feira a sábado, lia sua “Crônica do Dia”. Em 1950, Mário Ypiranga Monteiro publica seu livro O Espião do Rei (crônica histórico-novelesca); e, em 1958, Aristófanes Castro publica Matadores de Esperança. Hoje, podemos ler crônicas manauaras nos jornais e nas telas de computadores e telefones. Mas, os bons cronistas e as boas crônicas passam do papel de jornal ou das telas digitais aos livros. O cronista, professor e geógrafo José Aldemir de Oliveira, que há décadas escreve em jornais manauaras, se destaca como um dos melhores autores desse gênero, hoje em dia, mais literário do que jornalístico. São vários os bons cronistas desta c(idade). Em comum tem uma curiosa coincidência, professores (ou ex-professores) da Universidade Federal do Amazonas. Lembro de Tenório Telles, o cronista-poeta ou poeta-cronista que já publicou dois livros de crônicas (que eu chamo de poesia em prosa); de José Ribamar Bessa Freire e suas crônicas com tom mais político e indigenista; de Milton Hatoum que em Um solitário à espreita trabalha com a memória inventada; entre outros professores e cronistas, todos falando de Manaus e, por extensão, do Brasil. José Aldemir, que já publicou Crônicas de José Aldemir de Oliveira 3
Manaus, pela Valer em 2011, nos presenteia, desta vez, com o seu segundo livro desse gênero, Crônicas da minha (c)idade. Com toda sua experiência (idade) como geógrafo (cidade) e de colaborador em diversos jornais de Manaus (escritor), é, no meu entender de leitor e pesquisador desse gênero tão brasileiro quanto o futebol, o melhor expoente das chamadas crônicas urbanas da nossa cidade (do nosso Estado). São quase 63 crônicas (ou anos de (c)idade) onde o leitor encontra uma variedade de temas tão múltiplos quantos as ruas, praças, monumentos e casas, mas também rostos, personagens, sonhos e histórias desta “Cidade nossa de cada dia”, obra coletiva de todos os manauaras e seus filhos adotivos. José Aldemir, na sua “quase apresentação”, chama-as de “quase crônicas”, e ao livro de “quase livro”; reclama “de quase tudo”, mas não é “a voz de ninguém”. O cronista não só reclama, também é otimista, aliás, considero que é muito mais otimista, ético e romântico. Por exemplo, ao citar o sociólogo urbano Robert Park, “a cidade é a tentativa mais coerente e, em termos gerais, mais bem-sucedida da humanidade”; ao pedir que a estreita rua se transforme em “A larga rua estreita”, pois o espaço é público. Mas não hesita em denunciar “A cidade do medo”, pois “queremos viver aqui com paz e segurança”. O professor José Aldemir deixa de lado o rigor científico e o formalismo acadêmico e mergulha nos acontecimentos ou quase acontecimentos que têm como palco o espaço público e privado da urbe. Nas suas palavras, “trata-se do livre pensar expresso em crônicas do cotidiano”. Deixa de ser o Doutor, detentor de um saber conceitual, e dá asas ao seu voo como cidadão, homem da cidade, experiente, simplesmente autor, sem pronome de tratamento, quase escritor, quase confessor, quase amigo de todos nós, quase leitores. Porque o autor de crônicas é simplesmente ele mesmo, José Aldemir de Oliveira. Lagoa da Conceição, 19 de setembro de 2017. Esteban Reyes Celedón
Professor do Curso de Letras da Universidade Federal do Amazonas
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A primeira crônica ou quase apresentação
A
proveito que completo 63 anos junto cacos e arrumo algumas quase crônicas e as reuno num quase livro. Tudo é muito quase porque tratam de coisas simples e acontecimentos do cotidiano de um lugar não tão específico assim, que pode ser uma cidade qualquer, mas preferencialmente a cidade de cada um. Trata-se sempre de conversa direta, que inicialmente foi escrita em páginas de jornal e que talvez não tenha servido pra muita coisa, quem sabe para embrulhar sabão, peixe ou coisa pior. Junto-as quando, acolá, professores são açoitados na praça como ápice da intolerância que nos atinge. Alhures, morreram, só neste ano de 2017, pelo menos 1.750 pessoas, a maioria africanos, ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo, fugindo de guerras, seca e fome. Nenhuma passeata, nem reportagens, muito menos postagens indignadas nas redes sociais com slogan “Je suis africaine”. Nada, eles não merecem, são todos pobres e pretos. Reclamo de tudo ou de quase tudo, não pretendo ser a voz de ninguém, não tenho pretensão nenhuma, quero apenas dizer o que sinto e o que não sinto, como no poema de Drummond, numa aparente confusão de timbres e barulhos que resultam na sinfonia urbana a nos falar sobre os lugares transportando-nos para os aconteceres humanos. Quero mostrar pedaços das cidades, seus tempos descontínuos caracterizados pela carência de realizações que se concretizam nos lugares de trabalho, de lazer e de morar enquanto local das práticas individuais e coletivas, das experiências materiais e culturais que são determinantes das concepções que cada um tem de si e do mundo. As cidades são como caleidoscópios: de um lado as
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moradias insalubres debaixo das pontes, nos igarapés, e nas favelas; e do outro, condomínios fechados, casas e apartamentos de luxo. Isso separa e expulsa, mas também junta, numa contradição que resulta em lutas diversas pelo direito de morar, trabalhar, cuidar do corpo e do espírito. É o lugar da esperança e da desesperança de acordo com as possibilidades de diferentes sujeitos. Falo das mazelas, da miséria nos lares, nos bares e nas ruas, nos lugares que mais facilmente se identificam como as barreiras destinadas a manter parte da cidade de fora, e a luta desses lugares buscando ultrapassá-las. Falo também da beleza e da singeleza que dão sentido à vida e ao convívio das pessoas. São acontecimentos reais ou imaginários reunidos em fragmentos meio escritos, meio falados sobre lugares, gente e nem uma coisa nem outra. Trato da vida em sua plenitude e do que fica armazenado na memória como sentimentos e emoções que atingem os extremos, da fragilidade à força, tornando os caminhos curtos e os desencantos breves. Trata-se do livre pensar expresso em crônicas do cotidiano. Não se tem outras pretensões que não seja deixar registrado tempos e espaços da cidade, das gentes e da vida. Assim como toda a jornada, duma caminhada no quarteirão a uma maratona, começa pelo primeiro passo, esse encontro começa pela primeira crônica. Aqui está, aqui estou. É isso que trata este Crônicas da minha (c)idade.
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Sumário Manaus saudade do futuro.................................................. 9 Caminhada pela rua escura................................................11 Ver a cidade do rio............................................................. 13 O velho e surrado centro................................................... 15 A larga rua estreita..............................................................17 Jacaré-te-pega...................................................................... 19 Naquela avenida ..................................................................21 Cidade nossa de cada dia................................................... 23 O culpado é o calor ........................................................... 25 A rua enfeitada................................................................... 28 A cidade do medo............................................................... 30 O barco................................................................................ 32 O porto e a cidade.............................................................. 35 A terra das águas................................................................ 37 Cidades a oeste do fim do mundo..................................... 39 O porto, os urubus e a cidade........................................... 41 Crônica da cidade universal............................................... 43 Crônica de algumas cidades.............................................. 45 Uma cidade cosmopolita.................................................... 48 Bons Ares.............................................................................51 Lisboa ................................................................................. 54 Aqui como lá, tanto faz...................................................... 56 Solidão no fundo da agulha.............................................. 58 Para dias de céu cinzento................................................... 60 O barulho das ruas............................................................. 62 À luz do patrimônio........................................................... 65 A vida que passa................................................................. 67 O menino da feira.............................................................. 69
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Chico.................................................................................... 71 Louco de rua....................................................................... 73 Metade de nada.................................................................. 76 Quando a rua é a morada.................................................. 78 Mundo vasto mundo.......................................................... 80 O filho do mundo............................................................... 82 Nas esquinas da vida.......................................................... 84 Os médicos do lugar........................................................... 86 Bem traçadas linhas........................................................... 88 O silêncio como prece........................................................ 92 O velho e o lugar................................................................ 94 Tempos de comunicação.................................................... 96 Madame fulana de tal........................................................ 98 Menos que nada.................................................................101 Ninguém é cidadão.......................................................... 103 Os mortos do Rio............................................................. 105 Sua Excelência: a Anta..................................................... 107 Porta-estandarte............................................................... 109 E é carnaval........................................................................111 Com que roupa eu vou?....................................................113 80 horas semanais.............................................................115 Hora da merenda...............................................................117 Coisificação da vida...........................................................119 Um número........................................................................121 A sensibilidade das pedras............................................... 123 Noite de festas................................................................... 125 Crônica de festas............................................................... 127 É tempo de se ir................................................................ 129
Manaus saudade do futuro “O tempo passou/ a praça envelheceu/o bonde ficou saudade” Adrino Aragão
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ue os santos Antonio, Raimundo, Lázaro, Jorge, Agostinho, Francisco, José, Geraldo e as santas da Glória, Luzia, Graças, Aparecida e a Etelvina que não é, mas é como se fosse, e ainda recorramos à cidade de Deus, alcancemos o céu, mandemos lírios e flores aos anjos e santos, buritis como oferendas aos orixás e água de colônia ao xamã para que protejam a nossa cidade. Os que creem prostrem-se diante da imagem da Conceição, mas que pode ser de Iemanjá, ajoelhem-se diante de todos os santos e divindades e roguem para que olhem por Manaus. Na cidade que completou anos predomina o tom de cinza causado pela fumaça que a envolve como um véu a cobrir-lhe o horizonte. Resta pouco verde que lhe é arrancado permanentemente para construir prédios, ruas e viadutos. Os igarapés desaparecem definhados como acometidos de arteriosclerose a dificultar a circulação da vida nas suas entranhas. O espaço urbano que paulatinamente foi sendo produzido em Manaus teve a influência de fatores externos, mas foi resultado da determinação interna decorrente da ação ou omissão de seus moradores e gestores. Cada um de nós, nos becos, ruas e bairros da cidade foi cartografando espaços e geografando vidas, sentindo e conhecendo lugares, deixando marcas e pegadas que resultaram na cidade que temos. Robert Park, sociólogo norte-americano e um dos mais importantes pensadores da Escola de Sociologia Urbana de Chicago, escreveu que a cidade é a tentativa mais coerente e, em termos gerais, mais bem-sucedida da humanidade. Homens e mulheres fizeram a cidade de acordo com seus José Aldemir de Oliveira 9
mais profundos desejos, mas é também o lugar em que estão condenados a viver e onde vão criando, e recriando a si mesmos. Significa que a cidade que queremos não pode ser separada do tipo de pessoas que somos e que queremos ser. Nesse sentido, a Manaus que chega ao nosso agora e completou anos é a cidade que incide sobre coisas e objetos vindos do passado. Pouco importa se esse passado é a criação do Forte de São José do Rio Negro, ou do Lugar da Barra, ou quando da elevação à Vila da Barra, ou quando se transforma na Cidade da Barra, de Manáos, finalmente Manaus. Pouco importa se é de 1669 quando da criação do forte ou de 24 de outubro de 1848 quando da elevação à categoria de cidade, se a cidade completa 167 ou 346 anos. O mais importante é tomarmos os destinos da cidade nas nossas mãos e construirmos a partir da raiz e da união a redenção para a cidade de deus e dos homens, como lugar onde se tecem as espacialidades complexas que pertencem em maior ou menor relevância a cada um dos seus moradores. A cidade que se quer construir precisa de todos os santos e deuses das diversas crenças e credos, mas principalmente precisa dos filhos destes, pois a produção da cidade é obra de cada um que aqui vive, homens e mulheres que são responsáveis por melhorá-la e corrigir os seus rumos. Isso é tarefa para uns quarenta, mais que isso, é para todos os que acreditam na cidade nova ou na nova cidade. Manaus, como nossa cidade, comporta o que fomos antes e aponta o que seremos depois a partir do presente pleno do agora que contém o melhor e o pior do que nós somos.
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Caminhada pela rua escura
É
um caminhante de todas as noites, na boca da noite quando a cidade sossega. Não caminha por recomendação médica, mas por puro prazer, tampouco se utiliza do calçadão ou de outros lugares apropriados para isso. Percorre espaços da área central de Manaus: ruas, praças, mercado, igrejas, colégios e a zona. Faz vários roteiros tendo como ponto de partida a sua casa, próximo da Praça do Congresso, que recebeu esse nome em 1942 devido ao Congresso Eucarístico ali realizado, havendo um monumento que faz referência ao evento e outro alusivo ao primeiro bispado da Amazônia. Ao redor da praça há o prédio do Ideal Clube, da Biblioteca Municipal e do Colégio Benjamim Constant, construído entre 1892 e 1894, estilo eclético, antigo asilo Elisa Couto, depois transformado em orfanato. De frente para a praça o Instituto de Educação do Amazonas, cujo projeto original era o palácio do governo, porém com a crise da borracha a obra foi concluída sem a fachada original, agora para abrigar a Escola Normal. Ao redor da praça está a síntese de como a cidade não preserva a memória. O antigo Palácio da Saúde foi posto abaixo para em seu lugar ser construída a acanhada agência dos Correios. O mesmo destino teve o antigo palacete existente na esquina da Eduardo Ribeiro com a Monsenhor Coutinho, e no local foi erguido um edifício residencial, que mais parece uma vara com molambos pendurados. Como velho caminhante da cidade tem olhos de janela, sempre atentos à paisagem urbana. Nada lhe escapa, identificando as mudanças em cada detalhe. Quando um prédio é demolido, um monumento é depredado, uma praça descaracterizada, relaciona isso à mais profunda miséria urbana. Ele sofre e sofre a cidade pela perda do prazer de passear
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por passear para ver e sentir a história e a geografia da cidade como topografia de sentimentos. O centro mudou por diversos motivos, o uso do automóvel, o desprezo pela memória da cidade, a saída da área central de instituições públicas como prefeitura e o governo. Para ele, ver a cidade é encontrar-se consigo, o que não significa apenas deslocar-se, mas imaginar fazê-lo, onde cada pedaço da cidade está povoado de personagens. Esse sentimento para com a cidade esvai-se, pois antes ele era capaz de criar mapas da cidade em várias dimensões, incluindo os pormenores do lugar ao seu redor, passando por locais mais amplos de encontros como praças, clubes, campos de várzeas, banhos nos igarapés, edificações ou monumentos, que culminavam na totalidade do urbano. Agora, a imagem que ele tem da cidade é cada vez mais restrita, constituída por pequenos pontos que vão do caminho de casa ao trabalho. De uma imagem complexa e rica de detalhes, o que restou é a imagem pontual e rarefeita. Sente as consequências dessas alterações e atribui como principal motivo para o esvaziamento e abandono do centro a vandalização. Os vândalos não são apenas aqueles identificados como tal, mas o poder público e a sociedade. Como caminhante no chão da noite tem esperança, mas não se ilude de que o centro da cidade como ele imagina está morrendo, fruto do modelo de cidade e de sociedade urbana que predomina no nosso agora, que constrói cidades com muitas possibilidades em relação ao passado, mas que, do ponto de vista urbanístico e dos espaços públicos, a cidade de hoje é incomparavelmente mais pobre. Mudar isso é uma dura caminhada pela rua escura.
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Ver a cidade do rio
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a cidade vê-se o rio e não é um rio qualquer, é o Rio Negro o maior afluente da margem esquerda do Rio Amazonas e o segundo maior em volume de águas, perde apenas para o Madeira. Nasce nos altiplanos guianenses no planalto colombiano e percorre 1.700 km até dar as mãos ao Solimões para continuar sua caminhada até ao mar com o nome de Rio Amazonas. Do rio o que vemos em toda a sua extensão são terrenos arenosos lixiviados, matas, aldeias e cidades, e quando se vai aproximando da foz, já cansado da longa jornada, vê-se a cidade, não uma cidade qualquer, mas a Manaus de dois milhões de viventes e prestes a completar anos. A maior parte das cidades possui lugares onde o visitante pode dizer fui lá. Pode ser um monumento, um prédio famoso, um vasto espaço público, um rio. Manaus não se permite o lugar, mas os lugares vistos do rio, como a nos olhar, nos fixar e nos povoar como paisagem da paisagem, do rio e da cidade, de fora e de dentro a se descortinar em tabuleiros como fronteira da terra e água, ou em rias que como artérias penetram para o interior do tecido urbano, serpenteando no rumo do norte. Beleza quase não há mais, a paisagem é cinza. A possibilidade de apropriação do rio pela cidade está reduzida, há poucas portas para o rio, ou seja, do Tarumã ao Porto da Ceasa, com exceção da Ponta Negra, quase nada resta como espaço público que possibilite o acesso a partir da cidade para o uso do rio. Tudo ou quase tudo foi sendo apropriado por condomínios, portos os mais diversos, estaleiros, carreiras e tudo o mais. Do rio é possível ver o centro antigo, a periferia próxima da beira-rio do São Raimundo e dos Educandos, a periferia distante da Compensa, da Vila Marinho e do Mauazinho e a periferia de luxo da Ponta Negra em que se misturam sem se misturarem torres e mais torres, condomínios, quartéis, hotéis e o pouco de espaço público que ainda resta. Ver a cidade do rio dá a sensação de que quase tudo se foi José Aldemir de Oliveira 13
ou do que a cidade já teve e não tem mais. Todavia, surpresas existem. No final da tarde a oeste do fim de Manaus vê-se o pôr do sol da Ponta Negra sem igual na cor, na perspectiva e no tempo, como se toda a beleza se resumisse no espaçotempo de um crepúsculo. É como se os versos de Arnaldo Garcez, cantados por Pereira, “Ponta negra cinza, Quase azul” se configurassem em Ponta negra cinza, quase colorida. O pôr do sol de Manaus, a partir da Ponta Negra foi eternizado numa das mais belas páginas da literatura brasileira, um poema escrito por Mário de Andrade quando por aqui esteve em julho de 1927, reproduzido no livro Fotógrafo e turista aprendiz: “E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez crepúsculo em toda a abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava, um céu todinho em rosa e ouro, depois lilás e azul, depois negro e encarnado se definido com furor. Manaus a estibordo. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com olhos cheios de lágrimas”. Com os olhos cheios de lágrimas ficamos a ver a cidade a partir do rio, mas isso não basta. Já escrevi alhures que deveria haver na Ponta Negra um monumento com o poema de Mário de Andrade. Cada vez que o lêssemos deveríamos nos indignar com a especulação imobiliária, com a busca do lucro a qualquer custo e com a falta de ação política dos gestores e da sociedade que foram destruindo a beira e colocando a cidade de costas para o rio. O rio Negro na frente de Manaus já foi nossa sala de visitas, depois a nossa cozinha, agora talvez seja a nossa privada, em que aquele prédio inacabado e em ruínas próximo à foz do Tarumã, possivelmente financiado com recursos públicos, é o exemplo acabado, sem tirar nem pôr, da nossa incúria. Se você não pode ou não quer ver a cidade a partir do rio, pelo menos aproveite um fim de tarde e vá à Ponta Negra, veja o pôr do sol, leia o poema de Mário de Andrade, isso não repõe a beira do rio como ela era, mas quem sabe dará forças para retardar a transformação acelerada da beira em orla. 14 Crônicas da minha (c)idade
O velho e surrado centro
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etorno ao centro, de vez em quando passo por lá, mas de modo sistemático, com olhar atento nos detalhes para catar o mínimo escondido, exercitando a curiosidade estreita e aguda para descobrir o encoberto, como escrevia Machado de Assis há mais de um século. Nesses dias de “festas” em que o centro é um turbilhão de gente que vai e vem numa confusão de corpos e de espíritos, lá estávamos nós, parando nas praças, nos prédios, olhando as fachadas, ensinando, aprendendo e sobretudo se indignando. Embora haja tapumes aqui e ali dando a ideia de que se está em reforma, o que se vê é o abandono de dar dó. Praças sujas, com poucas plantas, bancos quebrados, monumentos pichados e barracas de comilança por todos os lados. Um quadro lastimável. O abandono das praças, que, de certo modo, é o abandono do centro, mostra que nos falta muito em termos de políticas urbanas, uma vez que nos falta o desdobramento dos aconteceres, porque nos falta o entendimento de que nas cidades contemporâneas há um ritmo que aniquila os espaços, exigindo de todos, tanto do poder público como da sociedade, ações rápidas, caso contrário, imediatamente ocorre a degradação da paisagem urbana. Por que o centro é importante? O centro é o berço da cidade, é a sala de visita, lugar privilegiado dos encontros e da sociabilidade. É o lugar simbólico e se constitui como identidade dos cidadãos, contrapondo-se aos espaços apropriados para a troca mercantil, por exemplo, os shoppings, lugares de privação da cidade. Os espaços do centro são os únicos efetivamente públicos e numa cidade carente de parques e de áreas verdes como Manaus, isso é muito mais relevante.
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