Curso de eclesiologia

Page 1



D. Estêvão Bettencourt, O.S.B.

Curso de Eclesiologia Mater Ecclesiae


Copyright © Arquidiocese do Rio de Janeiro, 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da Escola Mater Ecclesiae, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.

Editor João Baptista Pinto

Capa Carolina Alves

Editoração Francisco Macedo

Revisão Pe. Fabio da Silveira Siqueira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B466c Bettencourt, D. Estêvão Tavares, 1919-2008 Curso de eclesiologia: Mater Ecclesiae / Dom Estêvão Bettencourt. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. 382 p.; 15,5x23 cm. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7785-395-3

1. Eclesiologia – Cristianismo. 2. História eclesiástica. 3. Cristianismo. I. Título.

15-26430 CDD: 262 CDU: 27-523 15/09/2015

16/09/2015

Escola Mater Ecclesiae Edifício João Paulo II Rua Benjamin Constant, 23 – sala 311 – Glória CEP 20241-150 – Rio de Janeiro – RJ Tefefax: (21) 2242-4552

Letra Capital Editora

Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Introdução

Com a graça de Deus estamos trazendo à público mais um dos nossos cursos agora transformado em livro: o Curso de Eclesiologia, elaborado originalmente por Dom Estêvão Bettencourt, OSB em 1996. São quase vinte anos, mas a obra mantém a sua atualidade. Seu texto está conservado na íntegra, apenas procuramos atualizar a bibliografia, acrescentar algumas necessárias notas explicativas e corrigir o texto de acordo com o Novo Acordo Ortográfico de 2009. Mantivemos, também, a disposição original do conteúdo, apenas chamando os antigos “módulos” de “capítulos”. Assim sendo, após uma pequena introdução ao tema da Igreja no contexto do símbolo apostólico, os demais capítulos estão divididos em três partes: primeiro, a fundamentação bíblica, exposta nos capítulos 2 a 8; num segundo momento se apresenta uma breve “história da eclesiologia” que vai da patrística antiga ao século XX, exposta nos capítulos 9 a 16; num terceiro momento faz-se um aprofundamento sistemático, que ocupa a maior parte do curso, os capítulos 17 a 42. Procuramos conservar a apresentação original de Dom Estêvão, datada de 08 de dezembro de 1996, endereçada aos cursistas, para que todos, leitores e cursistas, possam sentir na palavra de quem elaborou nossos cursos de Teologia seu desejo de fazer o Cristo mais conhecido e amado, também no mistério da Igreja, que é “como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (cf. LG 1). Pedimos que Maria, mãe e figura da Igreja, como nos diz o Concílio Vaticano II no n. 63 da Lumen Gentium, interceda por todos aqueles que, lendo esta obra, esperam crescer na sua fé e ter aumentado seu amor pela Igreja, nossa mãe. Pe. Fabio da Silveira Siqueira Vice-diretor Curso de Eclesiologia 3



Apresentação

Caro(a) Cursista, Apresentamos-lhe um Curso sobre a Igreja. Tenciona responder a uma necessidade muito viva de nossa população, sacudida por tantas correntes religiosas que se denominam “Igreja” com os mais diversos títulos. Os Módulos subsequentes procuram explorar o conceito de Igreja como Jesus Cristo a fundou e entregou aos Apóstolos. Já se tem dito que o século XX é o século da Igreja. Com efeito, o Concílio do Vaticano I em 1870 pôs em foco a temática, mas não a pôde considerar como desejado, porque foi suspenso prematuramente em virtude da guerra franco-alemã. Ficaram abertas algumas questões, que suscitaram bibliografia sempre mais volumosa nos primeiros decênios do século XX. Finalmente em 1962-65 o Concílio do Vaticano II retomou a tarefa do Concílio anterior e a completou. Ora, tal fato provocou o surto de novas obras sobre a Igreja. Ao mesmo tempo, o grande despertar religioso que começou na década de 1970 e se vai intensificando até nossos dias em numerosas comunidades cristãs não católicas, pôs em relevo, a seu modo, o conceito de Igreja: Que é a Igreja? Como entender seus aspectos diversos assumidos através da história? Como avaliar a autoridade da Igreja? Que valor têm as suas normas éticas? A imprensa sugere o questionamento, falando a linguagem do grande público, estranho ao sacramento da Igreja. Ao mesmo tempo, porém, a própria imprensa tem noticiado que, nos inquéritos de opinião pública sobre as instituições mais confiáveis do Brasil, a Igreja Católica ocupa sempre o primeiro lugar desde 1984, ano em que foi incluída no interrogatório: para ficarmos apenas com a última data, observamos que, aos 26/05/96, o JORNAL DO BRASIL publicou o resultado de um inquérito que atribuiu, Curso de Eclesiologia 5


juntamente com a imprensa, à Igreja, 72% de credibilidade à frente de onze instituições. Vale a pena, pois, que nos debrucemos sobre o mistério da Igreja, tão antiga e sempre tão significativa em nossos dias. Quem melhor a conhece, mais a ama; e quem mais a ama, mais ama o Senhor Jesus, que dela é inseparável. É esse Jesus que, por meio da Igreja, nos leva ao Pai. Então como não recordar as palavras de São Cipriano († 258): “Não pode ter Deus por Pai no céu quem não tem a Igreja por Mãe na terra”? Caro(a) cursista, procederemos em três etapas: I. Fundamentação Bíblica; II. História da Eclesiologia; III. Aprofundamento Sistemático. Como complemento, sugerimos-lhe o nosso Curso de História da Igreja. Bons estudos! Pense, e colherá bons frutos. Ficamos à sua disposição. Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1996. Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O.S.B.


Índice Geral Bibliografia..................................................................................09 Capítulo 1: Introdução – “Creio na Igreja”...............................11 1ª ETAPA: Fundamentação Bíblica Capítulo 2: O Povo de Deus na Antiga Aliança (I) ................. 19 Capítulo 3: O Povo de Deus na Antiga Aliança (II)................ 29 Capítulo 4: O Povo de Deus na Antiga Aliança (III)............... 37 Capítulo 5: O Reino de Deus – Evangelhos Sinóticos............. 47 Capítulo 6: A Eclesiologia Joanéia ........................................... 55 Capítulo 7: A Igreja em São Paulo ........................................... 65 Capítulo 8: As Epístolas Pastorais (1/2Tm, Tt) ...................... 75 2ª ETAPA: História da Eclesiologia Capítulo 9: A Patrística Antiga..................................................83 Capítulo 10: O Período Áureo da Patrística (325-451) (I)...........95 Capítulo 11: O Período Áureo da Patrística (325-451) (II)........101 Capítulo 12: O Período Áureo da Patrística (325-451) (III)......109 Capítulo 13: Do Século Xiii ao Século XVI............................117 Capítulo 14: Do Século Xvi ao Século Xviii.........................125 Capítulo 15: Os Séculos XIX/XX............................................135 Capítulo 16: O Século XX........................................................143 3ª ETAPA: Aprofundamento Sistemático Capítulo 17: As Notas da Igreja – Unidade (I).......................153 Capítulo 18: As Notas da Igreja – Unidade (II)......................161 Capítulo 19: As Rupturas da Unidade.....................................169 Capítulo 20: A Santidade da Igreja..........................................179

Curso de Eclesiologia 7


Capítulo 21: “Creio na Igreja Católica” (I)..............................187 Capítulo 22: “Creio na Igreja Católica” (II) - Missão..............197 Capítulo 23: “Creio na Igreja Católica” (Iii) - Ecumenismo..... 205 Capítulo 24: “Creio na Igreja Apostólica”...............................213 Capítulo 25: O Primado de Pedro...........................................223 Capítulo 26: A Sepultura de São Pedro – Arqueologia..........231 Capítulo 27: A Sepultura de São Pedro – Objeções...............241 Capítulo 28: A Sucessão de Pedro...........................................251 Capítulo 29: A Igreja, Povo de Deus........................................261 Capítulo 30: Os Leigos na Igreja (I) – Sacerdócio Comum...... 269 Capítulo 31: Os Leigos na Igreja (II) – A Consagração da Eucaristia (I)......................................... 277 Capítulo 32: Os Leigos na Igreja (Iii) – A Consagração da Eucaristia (Ii)........................................ 287 Capítulo 33: Os Leigos na Igreja (Iv) – A Consagração da Eucaristia (Iii)...................................... 297 Capítulo 34: Os Leigos na Igreja (V) – Profetas e Pastores...................................................................... 305 Capítulo 35: Os Leigos na Igreja (Vi) – “Christifideles Laici” (I) ...................................................... 315 Capítulo 36: Os Leigos na Igreja (Vii) – “Christifideles Laici” (II).......................................................325 Capítulo 37: A Estrutura Hierárquica da Igreja.....................333 Capítulo 38: “Fora da Igreja Não Há Salvação”......................341 Capítulo 39: Estado do Vaticano – Por Quê? (I).....................349 Capítulo 40: Estado do Vaticano – Por Quê? (II)...................359 Capítulo 41: A Comunhão dos Santos.....................................365 Capítulo 42: “A Igreja, Minha Mãe”........................................373

8 Curso de Eclesiologia


Bibliografia BARRERO, A. Povo Santo e Pecador. São Paulo: Loyola, 1994. CARCOPINO, J. Études d’histoire chrétienne. Paris: Albin Michel, 1953. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. CONCÍLIO DO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. CONCÍLIO DO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. CONGAR, Y.M.-J. Introdução ao Mistério da Igreja. São Paulo: Herder, 1966. CONGAR, Y.M.-J. Jalons pour une Théologie du Laïcat. Paris: Editions Du Cerf, 1964. DE LUBAC, H. La foi chrétienne. Paris: Editions Du Cerf, 2008. DE LUBAC, H. Meditation sur l’Eglise. Paris: Editions Du Cerf, 2003. DE LUBAC, H. Paradoxe et mystère de l’Eglise. Paris: Editions Du Cerf, 2010. DENZINGER-HÜNERMAN. Compêndio dos Símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas e Edições Loyola, 2007. DIANICH, S. et NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja. Aparecida: Editora Santuário, 2007. DIANICH, S. La Chiesa: Mistero di Comunione. Torino: Marietti, 1975. FAYNEL, P. L’Eglise. 2 vols. Paris: Desclée, 1970. FEINER-LÖHRER, Mysterium Salutis. Vol. IV, tomos 1-6. Petrópolis: Vozes, 1975-1977. FRANCISCO, PAPA. Evangelii Gaudium: a alegria do Evangelho. Roma: Vaticano, 2013. GOMES, C. Riquezas da Mensagem Cristã. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1981. GUARDUCCI, M. Le reliquie di Pietro. Città del Vaticano, 1965. GUARDUCCI, M. Pietro ritrovato. Verona, 1970. JOÃO PAULO II, PAPA. Carta Encíclica Ecclesia De Eucharistia. Roma: Vaticano, 2003. JOURNET, C. L´Èglise du Verbe Incarné. 3 vols. Paris: Desclée, 1942, 1951, 1969.

Curso de Eclesiologia 9


JOURNET, C. La Theologie de L’Église. Paris: Desclée, 1958. L’AMI DU CLERGÉ, 7/06/1956, pp. 369s (Saint Pierre inhumé au Vatican). L’OSSERVATORE ROMANO, ed. Semanal portuguesa de 06/04/1980 e 13/04/1980. MERSCH, E. Le Corps Mystique du Christ. Études de Théologie Historique. Paris: Desclée, 1936. MONDIN, G. B. La Chiesa: Primizia del Regno. Bolonha: Dehoniana, 1992. PALUZZI, G. San Pietro in Vaticano. Roma, 1970. PIÉ-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia. São Paulo: Edições Loyola, 1998. RATZINGER, J. Compreender a Igreja Hoje: vocação para a comunhão. Petrópolis: Vozes, 1992. RATZINGER, J. Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 20052. RATZINGER, J. O Novo Povo de Deus. São Paulo: Edições Paulinas, 1974. SCHLÖSSER, F. Uma Igreja para o mundo. São Paulo: Loyola, 1972. SCHMAUS, M. A Fé da Igreja. Vol. IV. Petrópolis: Vozes, 1978. SESBOÜÉ, B. [direção]. História dos Dogmas. Tomos I-IV. São Paulo: Edições Loyola, 2002. SULLIVAN, F. A. Noi Crediamo la Chiesa. Roma: Piemme, 1990. TERNANT, P. Igreja. In: LÉON-DUFOUR, X. et allii. [direção]. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 201211. cc. 431-441. TROMP, S. Corpus Christi quod est Ecclesia. Roma, 19462. VAN DEN BORN, A. Igreja. In: VAN DEN BORN, A. [redator]. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 20046. cc. 709-715. VASELY, J. M. et BASSO, M. La “Confessio Sancti Petri” della Basilica si San Pietro in Vaticano. In: Notitiae, n. 162. 1980. Città del Vaticano, pp. 17-20. VENETZ, H-J. Foi assim que a Igreja começou. Aparecida: Santuário, 1995. VV.AA. [Instituto Diocesano de Ensino Superior de Würzburg]. Teologia para o Cristão de Hoje. Vols. I-IV. São Paulo: Loyola, 1975.

10 Curso de Eclesiologia


Capítulo 1:

Introdução – “Creio na Igreja”

Capítulo 1: Introdução – “Creio na Igreja” 11


Ao abrir nosso tratado sobre a Igreja, desejamos considerar numa visão global o tema que os Módulos subsequentes esmiuçarão em suas modalidades. Para tanto, recorremos à estrutura do símbolo de fé dito “Símbolo Apostólico”, que se pode dividir em três partes, pois é uma profissão de fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

Lição 1 “Creio no Espírito Santo” Professando “Creio em um só Deus Pai todo-poderoso”, o cristão põe em relevo a obra do Pai na história da salvação: é Ele “o Criador do céu e da terra”. Assim o Pai é apresentado como o Princípio, Aquele que, criando, desencadeia todo o processo da história subsequente. Ao professar a fé no Filho, o cristão afirma a obra salvífica do Filho: “Ele se fez homem, nascendo de Maria Virgem; padeceu, morreu, ressuscitou e subiu ao céu, donde voltará para julgar os vivos e os mortos”. Assim se apresenta o Filho como o novo Criador, Aquele que dá origem a uma nova humanidade posta em comunhão com a vida do próprio Deus; fomos feitos filhos no FILHO. Quanto ao Espírito Santo, a profissão de fé parece nada ter a dizer que corresponda à sua ação na história da salvação; é uma sentença seca e lacônica, que quebra a simetria do Credo. Depois de “Creio no Espírito Santo”, vem uma série de afirmações, que pertencem a outro plano ou ao plano das coisas criadas: “Creio na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna”. Estes cinco últimos artigos do Credo parecem estar fora de propósito ou sem nexo entre si e sem conexão com os antecedentes. Na verdade, esta incoerência se deve simplesmente a uma falha de tradução do texto grego para o latim e para o português. Com efeito, quem estuda as origens do Símbolo Apostólico, verifica que ele provém do rito do Batismo antigo. Este sacramento era ministrado imergindo-se três vezes o catecúmeno na água da piscina batismal. Antes de cada imersão, o oficiante lhe perguntava: “Crês em Deus Pai?”, “Crês em Deus Filho?”, “Crês no Espírito Santo?”. Esta terceira interrogação já no fim do século II foi ampliada, de modo a se dizer: “Crês também

12 Introdução


no Espírito Santo, no seio da Santa Igreja (en te hagía ekklesía) para a ressurreição da carne?” A Tradição Apostólica de S. Hipólito Romano em meados do século III era ainda mais explícita: “Et credis in sanctum, bonum et vivificantem Spiritum purificantem universa in sancta Ecclesia?”, isto é: “Crês no Santo, bom e vivificante Espírito, que purifica todas as coisas no seio da Santa Igreja?” Assim queriam os cristãos dizer que a ação do Espírito Santo na história da salvação é a de vivificar a Igreja. Ele existe e opera na Igreja para a ressurreição da carne, ou seja, para rematar a obra de Jesus Cristo, levando à plenitude, em cada cristão, a Redenção e configurando a Cristo os discípulos de Cristo. Esta terceira parte do Credo foi sendo ainda acrescida do enunciado de novas manifestações do Espírito Santo, que professamos na fórmula atual, de modo que se deveria ler o final do Credo do seguinte modo: “Creio no Espírito Santo (que existe e opera) na Santa Igreja Católica (a qual é) a Comunhão dos Santos, (para que haja) a remissão dos pecados (em vista de) a ressurreição da carne e (de) a vida eterna”. Deste texto depreende-se que a Igreja é Santa, porque vivificada pelo Espírito Santo, como obra prima do Paráclito. Ela possui a garantia da indefectibilidade em assuntos de fé e de moral, porque animada pelo Espírito. A Igreja é dita “a Comunhão dos Santos”. Esta expressão traduz o grego koinonía ton hagíon, que se deve entender como comunhão de coisas santas, antes do mais. Essas “coisas santas” são os méritos de Cristo, dos quais cada cristão é feito participante pelo Batismo; visto que todos participam desse mesmo tesouro, todos comungam entre si, fazendo a comunhão de pessoas santas... pessoas santas na medida em que comungam com os méritos de Cristo, que é o Santo por excelência. A remissão ou o perdão dos pecados é o fruto imediato da comunhão do cristão com a Igreja vivificada pelo Espírito. O próprio Jesus associou a remissão dos pecados ao envio do Espírito Capítulo 1: Introdução – “Creio na Igreja” 13


Santo, quando na noite de Páscoa soprou sobre a face dos discípulos e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem não os perdoardes, não serão perdoados” (Jo 20,22s). Tendo recebido o perdão dos pecados, o cristão cultiva uma vida nova, “um tesouro em vaso de argila” (2Cor 4,7), tesouro que tende a desabrochar sobre o próprio corpo humano no dia da ressurreição da carne ou no fim dos tempos. Daí seguir-se-á a vida eterna ou a bem-aventurança dos justos. É nestes termos que se esboça o conceito central de Igreja, o conceito que o Concílio do Vaticano II mais incutiu, que é o de IgrejaSacramento. Sim, a Igreja é uma realidade divino-humana; através de instrumentos humanos e elementos sensíveis, Cristo comunica a sua graça a quem participa desse sacramento: “A Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (Lumen Gentium n 1; ver nºs. 9.48; Gaudium et Spes nº 42.45...)1 Este Módulo é completado pelo Módulo 41 deste Curso: A Comunhão do Santos. Bem diferente deste conceito é o que está subjacente ao seguinte episódio, narrado pelo Pe. Flaviano A. Valente em seu livro “La Iglesia y las sectas. Pesadilla o Reto?” ( México, 1993) pp. 109s: Certa vez o Pe. Flaviano viajava de Merida a Chetumal no México, tendo a seu lado um ancião de gravata desatada (pois fazia muito calor), portador de uma Bíblia nas mãos. Perguntou-lhe: “Em que setor trabalha você? – “Sou pastor, respondeu o ancião”. – “Pastor que cuida do seu rebanho?” – “Sim, eu prego a Palavra de Deus” – “E como se chama a sua Igreja?” – “Respondeu, indicando um nome raro... “E quem fundou essa Igreja?” – “Eu a fundei”. E explicou a origem da sua Igreja: “Eu era católico beberrão. Nunca ia à igreja. Certa vez fiquei muito doente e dirigi-me a Deus em fervorosa oração: ‘Meu Deus, se eu me curar por completo, eu me entregarei totalmente a Ti fundando uma Igreja’. Pois bem; fiquei bom e me entreguei totalmente a Deus pregando a sua palavra. Fui logo a Merida, onde consegui uma Bíblia numa livraria. Comecei a estudá-la ouvindo programas de rádio. Quando me senti mais seguro, construí uma cabana de folhas de palmeira no pátio da minha casa e pus-me a convidar as pessoas para que viessem ao culto. Coletando os dízimos, as primícias e as oferendas – tenha em vista que o dízimo é sagrado, porque está na Bíblia –, pude substituir o templo de palmeiras por outro de lenha. E assim continuei até construir vinte templos. Atualmente tenho sob a minha responsabilidade uns vinte templos com trinta pastores e uns quinhentos seguidores. Desta maneira minha Igreja vai adiante com a bênção de Deus”. Jesus fundou uma única Igreja, à qual prometeu sua assistência infalível; cf. Mt 16,16-19. Aos homens não é lícito fundar de novo a Igreja! 1

14 Introdução


Lição 2 O caso de Vitorino A realidade da Igreja-sacramento é ilustrada por um episódio narrado nas Confissões de S. Agostinho (I.VIII, 2,4): “Vitorino era um ancião muito sábio, versado em todas as artes liberais; lera e criticara extensamente inúmeras obras de diversos filósofos; fora professor de muitos nobres senadores e, como prêmio pelo seu excelso magistério, merecera e aceitara que lhe levantassem uma estátua no Foro Romano, coisa que se costuma considerar a honra máxima. Até então adorara os ídolos, e participara nos seus sacrilégios sagrados, como estava de moda em quase toda a arrogante nobreza romana, que acolhia favoravelmente o culto de Osiris, os deuses monstros de todo gênero... Contava-me Simpliciano2 que Vitorino lia e investigava as Escrituras Sagradas, e estudava minuciosamente todos os escritos cristãos; e que um dia lhe disse não em público, mas em privado e com todo o segredo: – ‘Sabes que já sou cristão?’ Simpliciano respondeu-lhe: – ‘Não acreditarei em ti nem te terei na conta de cristão, enquanto não te vir na Igreja de Cristo!’ Vitorino, ironicamente, respondeu: – ‘Mas serão as paredes que fazem os cristãos?’ Esse ‘já sou cristão’, Vitorino o disse muitas vezes a Simpliciano, mas este sempre lhe respondia o mesmo; e Vitorino, da mesma maneira, sempre retrucava com a ironia das paredes. Acontece que Vitorino temia ofender os seus amigos, soberbos adoradores de demônios; pensava que, do alto da sua babilônica dignidade, como se fossem cedros do Líbano ainda não derrubados pelo Senhor, esses amigos cairiam sobre ele como terríveis inimigos, se publicamente se fizesse cristão. Mas, depois das suas profundas leituras, tornou-se forte e receou ser negado por Cristo diante dos seus anjos, se tivesse medo de confessá-lo diante dos homens. Percebeu que se tornaria réu de grande pecado, caso se envergonhasse dos sacramentos da humildade do Verbo de Deus e não se envergonhasse dos sacrilégios sagrados dos soberbos demônios... Simpliciano foi o sucessor de S. Ambrósio, Bispo, na cátedra de Milão a partir de 397.

2

Capítulo 1: Introdução – “Creio na Igreja” 15


Envergonhou-se desse vazio, e envergonhou-se de desprezar a verdade, e, num repente, inspiradamente, disse a Simpliciano: – ‘Vamos à igreja, quero fazer-me cristão’. Simpliciano não cabia em si de alegria, e foi com ele. Instruiu-o nas primeiras noções dos sacramentos, e Vitorino deu a inscrever o seu nome para ser – não muito depois – regenerado pelo Batismo, ante a surpresa de toda a Roma e a alegria da Igreja”. Este episódio recorda bem que a Igreja não é simplesmente um templo de pedras, mas é, sim, uma realidade viva, que nos incorpora a Cristo, fonte de vida e salvação. Para chegar a Cristo, o cristão passa pela Igreja, e, para chegar à Igreja (Sacramento), vai à igreja de pedras. Perguntas 1) Por que é que o Símbolo dos Apóstolos parece nada dizer sobre o Espírito Santo? 2) Na verdade, que é atribuído ao Espírito Santo na história da salvação? 3) Que significa “Comunhão dos Santos”? 4) Que se entende por “Igreja-Sacramento”?

16 Introdução


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.