D. Estêvão Bettencourt, O.S.B.
Curso de Filosofia Mater Ecclesiae
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Editor João Baptista Pinto
Capa Carolina Alves
Editoração Luiz Guimarães
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
B463c Bettencourt, D. Estêvão Tavares, 1919-2008 Curso de filosofia: Mater Ecclesiae / D. Estêvão Tavares Bettencourt. 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 480 p. ; 15,5x23 cm. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7785-295-6 1. Filosofia e religião. I. Título. 14-15082 CDD: 262.52 CDU: 262.5 11/08/2014
14/08/2014
Escola Mater Ecclesiae Edifício João Paulo II Rua Benjamin Constant, 23 - sala 311 - Glória CEP 20241-150 – Rio de Janeiro - RJ Tefefax: (21) 2242-4552
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Apresentação “A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.” (Papa João Paulo II, Carta Encíclica Fides et Ratio, 1998)
Com estas palavras o Santo Padre, o Papa João Paulo II, apresentou ao mundo uma de suas últimas encíclicas. Esta veio ratificar o apreço que a Igreja sempre teve pela filosofia, reconhecendo que ela é um instrumento eficaz para que o homem possa questionar-se à respeito das realidades últimas que concernem à sua origem e ao sentido da sua existência. Sendo assim, a Igreja, na sua sabedoria, percebeu que a filosofia prepara a mente do homem para a teologia. A mesma Igreja sempre reconheceu, também, que a razão tem seus limites. Essa ajuda a fé, mas a fé a transcende, fazendo o homem conhecer, sem mistura de erro, o que se refere à natureza mesma de Deus e ao seu plano de salvação para a humanidade. Dom Estêvão Bettencourt preparou, com esmero, este curso de Filosofia, cuja introdução original mantivemos nas páginas que se seguem. Ele serve como um “propedêutico” à Teologia. Não se deve esperar, então, encontrar aqui uma espécie de compêndio da história da filosofia, porque o objetivo deste curso é bem preciso: trata-se de apresentar os principais tratados da Filosofia de maneira sintética, a fim de que determinados conceitos fundamentais para a Teologia, como o de Ser e Essência, só para citar dois deles, possam estar mais claros na mente dos alunos antes que estes os vejam aplicados ao universo teológico. O texto não sofreu alterações significativas, mas apenas as necessárias para adaptá-lo ao Novo Acordo Ortográfico da Língua Curso de Filosofia 3
Portuguesa e para tornar seu vocabulário mais acessível aos nossos alunos. Apresentamos, também, uma bibliografia atualizada, mas não exaustiva. Procuramos conservar os livros da bibliografia original, mas também acrescentar outros que são, sem dúvida, uma fonte segura onde nossos cursistas poderão aprofundar os conhecimentos aqui apresentados. Esperamos que esta obra possa continuar contribuindo com o crescimento intelectual e, sobretudo, espiritual de todos quanto a ela tiverem acesso. Agradecemos, aqui, de maneira muito particular, a generosidade do Núcleo das Escolas Mater Ecclesiae do Recreio dos Bandeirantes, na pessoa de sua coordenadora, a Sra. Lêda Azevedo da Nóbrega, que tornou possível, através de sua doação financeira, a editoração e o registro da presente obra. Pe. Fabio da Silveira Siqueira Vice Diretor das Escolas de Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida
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Apresentação Caro(a) Cursista, Com prazer apresentamos-lhe um breve Curso de Filosofia. A Filosofia está no auge do saber racional, porque ela procura as causas mais remotas para explicar a realidade. Pensemos em alguém que estuda a vida: existe uma ciência própria a isto dedicada, que é a Biologia. O pesquisador, após muita investigação, ficará conhecendo todas as classificações dos seres vivos, as leis da Genética e da Embriologia, mas ainda poderá ser atormentado por uma pergunta sobre a vida: “Vale a pena viver? Que sentido tem a vida?” Já não é a Biologia que responde, pois a indagação é de outra ordem; a sua resposta não depende de pesquisa experimental, mas da reflexão. Ora, é a tal pergunta que a Filosofia deseja atender; esta é a sabedoria que oferece uma cosmovisão, escalonando e harmonizando os valores entre si numa síntese unitária. Todos nós precisamos disto; aliás, não há quem não tenha sua Filosofia, pois todo ser humano deve saber o que fará do seu tempo, da sua saúde, dos seus talentos, do seu dinheiro...; só pode responder a isto se tem uma cosmovisão. A Filosofia é orientada apenas pelas luzes da razão; já é muita coisa. Acima dela existe a fé, que oferece uma cosmovisão mais profunda, revelada por Deus. Todavia a Filosofia é indispensável mesmo a quem tem fé, porque burila a mente, educa o raciocínio, ajuda a ter conceitos claros – o que é fundamental para uma reta conduta de vida. O nosso Curso seguirá a linha aristotélico-tomista ou a linha da Filosofia Perene, pois há séculos que vai sendo cultivada e aperfeiçoada por brilhantes pensadores, oferecendo respostas coerentes e satisfatórias. Assuma, pois caro(a) cursista, estas páginas com carinho e com... perseverança. O estudo sempre pressupõe uma “santa Curso de Filosofia 5
teimosia”, mais ainda o estudo da Filosofia ... Mas a perseverança é o penhor da vitória. Não pare a meio-caminho. Se necessário, peça-nos explicações ou recorra a alguém que oralmente lhe possa esclarecer os pontos difíceis. No fim, você verificará que terá lucrado enormemente estudando Filosofia, de mais a mais que, como diz Sócrates, “uma vida sem busca não é digna de ser vivida”. O seu amigo Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O. S. B.
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Índice Geral Bibliografia......................................................................................... 10 1ª ETAPA: Lógica Formal Capítulo 1: Que é a Filosofia?................................................... 15 Capítulo 2: Que é a Lógica?...................................................... 22 Capítulo 3: A Simples Apreensão............................................. 25 Capítulo 4: O Juízo e a Proposição........................................... 32 Capítulo 5: Raciocínio e Silogismo........................................... 39 Capítulo 6: Silogismo – Modalidades....................................... 47 2ª Etapa: Lógica Material Capítulo 7: Analogia, Univocidade e Predicáveis.................... 59 Capítulo 8: Os Predicamentos – Categorias............................. 65 Capítulo 9: A Matéria do Raciocínio........................................ 73 Capítulo 10: A Matéria das Ciências – Metodologia.............. 80 3ª ETAPA: Cosmologia Filosófica Capítulo 11: A Quantidade (I) – O Descontínuo e o Contínuo.............................................................. 91 Capítulo 12: A Quantidade (II) – Espaço, Movimento
e Tempo............................................................... 98
Capítulo 13: As Qualidades Sensíveis.................................... 106 Capítulo 14: Matéria e Forma (Hilemorfismo)..................... 113 Capítulo 15: A Vida................................................................. 121 Capítulo 16: Evolução – Sim ou Não?.................................... 128 Capítulo 17: Origem da Vida e do Homem.......................... 135 Capítulo 18: A Criação............................................................ 142
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4ª ETAPA: Psicologia Filosófica Capítulo 19: A Alma Humana – Espiritualidade (I)............. 151 Capítulo 20: A Alma Humana – Espiritualidade (II)............ 158 Capítulo 21: A Alma Humana – Espiritualidade (III).......... 164 Capítulo 22: Homem e Macaco.............................................. 168 Capítulo 23: A Alma Humana – Imortalidade...................... 175 Capítulo 24: A Dignidade do Corpo Humano..................... 182 Capítulo 25: O Conhecimento em Geral............................... 190 Capítulo 26: O Conhecimento Sensitivo............................... 197 Capítulo 27: O Conhecimento Intelectivo............................. 204 Capítulo 28: O Conhecimento no Além................................ 211 Capítulo 29: A Linguagem..................................................... 215 Capítulo 30: O Apetite em Geral. Instintos.......................... 225 Capítulo 31: Apetite Sensitivo e Apetite Intelectivo............. 234 5ª Etapa: Metafísica: Teoria do Conhecimento Capítulo 32: Metafísica – O Problema da Verdade............... 243 Capítulo 33: O Dogmatismo................................................... 250 Capítulo 34: Sensismo, Idealismo e Realismo Natural......... 256 6ª Etapa: Metafísica: Ontologica Capítulo 35: O Ser em Si Mesmo........................................... 267 Capítulo 36: O Uno, O Verdadeiro, O Bom.......................... 275 Capítulo 37: Essência e Existência......................................... 281 Capítulo 38: As Causas (I)...................................................... 285 Capítulo 39: As Causas (II)..................................................... 293 Capítulo 40: Causa Perfeita e Participação............................ 301 7ª Etapa: Metafísica: Teologia Natural Capítulo 41: A Existência de Deus (I) – 1ª, 2ª e 3ª Vias....... 307 Capítulo 42: A Existência de Deus (II) – 4ª e 5ª Vias........... 315
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Capítulo 43: A Existência de Deus (III) – Mistério
do Homem......................................................... 325
Capítulo 44: A Existência de Deus (IV) – Senso Moral........ 336 Capítulo 45: A Existência de Deus (V) – Testemunhos........ 350 Capítulo 46: Os Atributos de Deus (I) – O Ser Subsistente. 360 Capítulo 47: Os Atributos de Deus (II) – Bondade, Infinitude........................................................... 367 Capítulo 48: Os Atributos de Deus (III) – Criação............... 374 Capítulo 49: Os Atributos de Deus (IV) – Criação (Objeções).......................................................... 381 Capítulo 50: Os Atributos de Deus (V) – Conservação
e Pré-Moção....................................................... 387
Capítulo 51: Os Atributos de Deus (VI) – Providência,
o Mal e o Milagre............................................... 393
8ª Etapa: Ética Capítulo 52: A Finalidade da Vida Humana (I).................... 403 Capítulo 53: A Finalidade da Vida Humana (II)................... 410 Capítulo 54: A Lei (I).............................................................. 417 Capítulo 55: A Lei (II)............................................................. 424 Capítulo 56: O Direito............................................................ 431 Capítulo 57: Os Critérios da Moralidade.............................. 438 Capítulo 58: A Consciência (I)............................................... 445 Capítulo 59: A Consciência (II).............................................. 453 Capítulo 60: Virtudes e Vícios................................................ 460 9ª ETAPA: História da Filosofia Capítulo 61: Conspecto Geral................................................ 469
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Bibliografia AGAZZI, Evandro. A ciência e os valores. São Paulo: Loyola, 1977. AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril, 1973. Coleção “Os Pensadores”. AQUINO, Tomás. O Ente e a Essência. Tradução de Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Vozes, 1995. ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução para o português de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2005. 2ª edição. ARRUDA CAMPOS, Fernando. Tomismo hoje. São Paulo: Loyola, 1998. BOCHENSKI, Jozef Maria. Diretrizes do Pensamento Filósofico. São Paulo: Herder, 1977. BORNHEIM, Gerd A. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 2010. 2ª edição. BUZZI, Arcângelo. Introdução ao Pensar. Petrópolis: Vozes, 1984. CAROSI, Paulo. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulinas, 1984. 3 vols. DE RAEYMAEKER, Luis. Introdução Geral à Filosofia. São Paulo: Herder, 1966. DE SOLAGES, Bruno. Iniciação à Metafísica. São Paulo: Herder, 1964. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de J. Guinsbburg e Bento Prado Junior. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Paulus, 2006. JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1961. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores) LADUSÃNS, Stanislavs. Gnosiologia Pluridimensional. São Paulo: Loyola, 1992. 10 Curso de Filosofia
LEME LOPES, Francisco. Introdução à Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1964. MARITAIN, Jacques. Introdução geral à Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1964. MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução do italiano de Benôni Lemos, revisão técnica de João Bosco. São Paulo: Paulus, 2006. 10ª edição. 3 vol. MONDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução do italiano de Benôni Lemos, revisão técnica de João Bosco. São Paulo: Paulus, 2006. 10ª edição. 3 vol. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. PRADO DE MENDONÇA, Eduardo. A Construção da Liberdade. São Paulo: Convívio. 1977. PRADO DE MENDONÇA, Eduardo. Filosofia dos Erros. Rio de Janeiro: Agir. 1977. PRADO DE MENDONÇA, Eduardo. O Mundo Precisa de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir. 1968. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus. 9ª edição. 3 vol. ROVIGHI, Sofia Vanni. História da Filosofia Moderna. São Paulo: Loyola, 2002. SELVAGGI, Filippo. Filosofia do Mundo: Cosmologia Filosófica. São Paulo: Loyola, 1988. VAN STEENBERGHER, Fernand. O Tomismo – Trajectos. Coimbra (Portugal): Gradiva, 1990. VERNEAUX, Roger. Filosofia do Homem. São Paulo: Duas Cidades, 1969. VV.AA. As Ideias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1978. 3 vol.
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1ª ETAPA:
Lógica Formal
Capítulo 1:
Que é a Filosofia?
Lição 1 Noção de Filosofia O pensador grego Pitágoras (século VI a.C.) dizia-se philósophos (filósofo), isto é, amigo da Sabedoria, pois ele desejava chegar à Sabedoria. Essa era, segundo ele dizia, propriedade da Divindade. Pitágoras, portanto, não poderia ser senão um amigo que tentava aproximar-se da Sabedoria. Em consequência, ele chamava Filosofia o conhecimento profundo das coisas ao qual ele aspirava. – Tal é a origem etimológica da palavra Filosofia. Atualmente designamos por Filosofia a ciência de todas as coisas por suas causas mais elevadas, adquirida à luz natural da razão. Expliquemos esta definição:
1.1. A Filosofia é ciência Colocado diante de um fenômeno da natureza (uma trovoada com seus relâmpagos ou um incêndio na mata ou uma seca...), o homem experimenta surpresa e admiração. Espontaneamente ele procura saber a causa desse fenômeno surpreendente. Ele o faz primeiramente mediante a observação da natureza, e assim descobre as causas imediatas dos fenômenos que o cercam, dando início ao que nós chamamos as ciências experimentais: a Física, a Química, a Biologia... Mas o desejo de saber não para aí... Ainda espontaneamente, o homem pergunta a si mesmo: E donde vêm as forças da natureza que causam os trovões, os raios, o calor, o frio? Quais são as causas dessas causas? E qual é a causa última de todas as causas? É esse desejo de saber não apenas enumerando fenômenos, CAPÍTUlo 1: Que é a Filosofia? 15
mas procurando compreendê-los e explicá-los pelas suas causas mais remotas, que nós chamamos Filosofia.1 São Tomás de Aquino exprime claramente o processo da mente humana: “Há em todo homem um desejo natural de conhecer as causas daquilo que percebe. É, portanto, em consequência da admiração sentida em face dos objetos, mas cujas causas lhe permanecem escondidas, que o homem se põe a filosofar. Uma vez descobertas as causas, seu Espírito se tranquiliza. Mas a busca não cessa até que tenha chegado à primeira causa, porque só quando esta é conhecida é que o homem julga conhecer de maneira perfeita” (Suma contra os Gentios III, c. 25). Vemos assim como a Filosofia se diferencia das ciências entendidas no sentido moderno desta palavra. Embora a Filosofia e as ciências naturais procurem explicar os fenômenos por suas causas, notamos que há uma hierarquia ou uma escala de causas; sim, existem causas próximas, inferiores, e causas remotas, de grau mais elevado. Quem descobriu uma causa, pode procurar a causa dessa causa, e assim sucessivamente... até chegar às causas supremas e, finalmente, à Causa Suprema, que basta a si mesma e, além da qual, nada há a procurar. É o que faz a Filosofia, distinguindo-se assim das ciências particulares (Física, Química, Biologia...), que se contentam com as causas próximas dos fenômenos. Do que foi dito, depreende-se que todo ser humano é um pouco filósofo. Mesmo o cientista, que cultiva a área do saber próximo ou imediato, sente necessidade de explicações mais amplas ou globais ou do que se chama uma cosmovisão, uma visão que abranja o universo inteiro e explique o valor ou o sentido de cada coisa existente. Quando mais não seja, todo homem é, para si mesmo, uma interrogação... Interrogação da qual ele não pode fugir e para a qual ele tende a procurar uma resposta, se ele quer dar um sentido à sua vida e orientar seus passos no conjunto dos demais seres. Diz muito sabiamente o pensador francês Luís Veuillot († 1883): “A questão de sempre é a de saber se o homem deve nascer, viver, unir-se, morrer; receber, transmitir e deixar a vida como uma criatura de Deus, a Deus destinada, ou como uma larva aperfeiçoada, oriunda unicamente das fermentações do lodo da terra”. A Filosofia pode ser chamada ciência, se por ciência entendermos o conhecimento por causas. 1
16 1ª ETAPA: Lógica Formal
Com outras palavras, pergunta-se: a vida humana será apenas a afirmação de um instante entre dois silêncios? Os homens não passam de candidatos a cadáveres? São apenas futuros defuntos? Antes: nada... Depois: nada? É indispensável a resposta a tais perguntas, se alguém não quer viver ao léu ou sem rumo2.
1.2. A Filosofia é ciência de todas as coisas Com efeito; a Filosofia estuda tudo o que de algum modo existe: os seres inanimados (o universo...), os seres animados ou vivos, o homem, o ser, Deus... Mas, como dito, estuda-os procurando aprofundar os conhecimentos das ciências particulares.
1.3. A Filosofia é ciência adquirida à luz da razão Isto quer dizer que a Filosofia exige raciocínio ou pensamento concatenado. Assim ela se distingue da Teologia, que supõe a luz da revelação de Deus aos homens ou a luz da fé. Ela também se distingue do saber por autoridade (“eu sei, porque alguém digno de crédito me disse...”). A Filosofia se baseia na evidência intrínseca da realidade: – evidência é o que acontece quando se vê que o oposto é impossível; – intrínseca...: tal intuição é baseada no exame direto da questão, não na afirmação feita por uma pessoa de autoridade. Recapitulamos o que foi dito até aqui, recorrendo à terminologia específica: 1) A Filosofia é a ciência de todas as coisas. – Então todas as coisas são o objeto material da Filosofia, visto que o objeto material de uma ciência é tudo aquilo de que se ocupa; 2) ... ciência por causas mais elevadas. A procura das causas mais elevadas ou últimas vem a ser o objeto formal “quo” (= através do qual). Sim; o objeto formal “quo” de uma ciência é o aspecto que a ciência considera no seu objeto material. Por exemplo, a Biologia Concretamente, todo homem deve querer definir o que fará do seu tempo, da sua saúde, dos seus dotes, do seu dinheiro, do seu lazer... 2
CAPÍTUlo 1: Que é a Filosofia? 17
estuda a vida na medida em que inclui processos físico-químicos; a Filosofia considera a vida enquanto é algo cujo sentido se procura (vale a pena viver? a vida tem valor para o homem? a vida do irracional que valor tem?). 3) ... ciência adquirida à luz natural da razão. A luz natural da razão é o objeto formal “sub quo” (= debaixo do qual) da Filosofia, pois o objeto formal “sub quo” de uma ciência é a luz que ilumina a mente do pesquisador. Assim o objeto formal “sub quo” da Teologia é a luz da fé; o da Filosofia é o da razão.
Lição 2 A Abstração Observamos uma propriedade da razão humana3. é abstrativa ou pratica a abstração. 1. Que é abstração? Abstração, de modo geral, é considerar uma coisa sob um aspecto, prescindindo de outros aspectos da mesma coisa. Isto acontece, por exemplo, com os nossos sentidos: num carro em movimento, os olhos só percebem a cor, os ouvidos só percebem o ruído,... prescindindo de outras características desse carro (o odor, a temperatura...); numa flor, os olhos só percebem a cor; o olfato só percebe o perfume; o tato só percebe a flacidez... Assim também procede a nossa inteligência. Com efeito, mediante os sentidos externos (visão, audição, olfato, tato...) percebemos diversos indivíduos humanos: Pedro, Maria, Joãozinho, Francisquinha..., uns são masculinos, outros são femininos; uns são velhos, outros são jovens; uns são grandes e gordos, outros são pequenos e magros... Pois bem, a nossa inteligência ou raFique registrada aqui a diferença entre razão humana e inteligência. Inteligência é a faculdade que apreende a essência de cada coisa (por exemplo, a essência da pessoa humana é ser racional). A inteligência pode ser intuitiva, indo diretamente à essência de cada criatura; tal é a inteligência de Deus, que com um único olhar espiritual vê a essência de cada criatura. A inteligência pode ser discursiva ou racional; é a nossa, também chamada razão. Nós só chegamos a definir as essências percorrendo um discurso interior ou depois de muito indagar a nós mesmos: o que é essencial em tal ou tal objeto? Erramos, corrigimo-nos... e finalmente chegamos a uma resposta adequada. 3
18 1ª ETAPA: Lógica Formal
zão abstrai da masculinidade e da feminilidade, da gordura e da magreza, da velhice e da juventude, que tornam esses indivíduos bem diferentes uns dos outros, e define que tais indivíduos têm a mesma essência. São seres humanos; o essencial, neles, não é ser homem ou mulher, gordo ou magro,... mas é ser viventes racionais. Assim nossa inteligência procede por abstração. Ela concebe as ideias de virtude, de bem, de triângulo ..., ideias4 que excluem as características pelas quais a virtude é tal virtude (humildade, caridade), o bem é tal bem (um copo de água para quem tem sede), o triângulo é tal triângulo (equilátero ou isósceles...). 2. Há três graus de abstração: a) Abstração física, que prescinde ou abstrai das qualidades sensíveis (cor, som, odor...) de um objeto material. É o que fazem as ciências naturais; estas estudam as plantas (Botânica), abstraindo da cor desta rosa, do tamanho deste eucaliptus, do peso desta vitória-régia... As ciências naturais têm por objeto o calor como tal, o peso como tal, a velocidade como tal, a luz como tal; b) a abstração matemática é a que prescinde das qualidades e só considera as quantidades (os números, as figuras); a linha, o ângulo, o triângulo, as centenas, os milhares...; c) a abstração metafísica é a que considera o ser como ser, abstraindo de qualidades e quantidades. Concebe as noções de ser, verdade, bondade, unidade... Disto tudo se segue que os conceitos são cada vez menos determinados à medida que nos elevamos na abstração. A ideia de ser é a menos determinada de todas, pois convém a tudo o que é (pedra, planta, animal irracional, homem, Deus) e a tudo o que pode ser (concebemos belas ideias que só existem em nossa razão). Inversamente, o indivíduo (João, este pássaro, esta cadeira...) é a realidade mais determinada.
Lição 3 Divisão da Filosofia Há diversas maneiras de dividir a Filosofia. Partiremos do fato de que a Filosofia é o saber por causas úl4
Em Filosofia usam-se como sinônimos os vocábulos ideia, noção e conceito.
CAPÍTUlo 1: Que é a Filosofia? 19
timas. Ora, há causas últimas propriamente ditas (além das quais não é possível retroceder) e causas últimas impropriamente ditas ou causas últimas dentro de um determinado gênero. O saber por causas últimas propriamente ditas é a Metafísica. Esta é a sabedoria no sentido estrito da palavra. Chega até Deus, considerado à luz da razão. O saber por causas últimas impropriamente ditas vem a ser, dentro da Filosofia, a Filosofia da Natureza. Esta se subdivide em Cosmologia Filosófica (que estuda a origem do mundo, o movimento, o tempo, a vida e a sua origem), e Psicologia Filosófica ou Racional (que estuda a alma humana e suas faculdades...). À Filosofia da Natureza e à Metafísica antepõe-se a Lógica (propedêutica, que ensina a pensar corretamente, evitando vícios do raciocínio) e pospõe-se a Ética, que difere dos tratados anteriores por ser Filosofia prática ou Filosofia que dirige os atos humanos para o seu Fim Supremo, ao passo que os tratados anteriores são especulativos ou não têm em vista senão o puro conhecimento. Donde se segue o seguinte quadro geral da Filosofia: I. Lógica
{ {
Formal ou Menor5 Material ou Maior
II. Filosofia da Natureza Cosmologia Filosófica Psicologia Racional ou Filosófica6
{
Teoria do Conhecimento III. Metafísica Ontologia Teologia Natural ou Teodiceia IV. Ética
{
Geral Especial ou Filosofia Social
No presente Curso, proporemos a Filosofia elaborada inicialmente pelo filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) e desenvolvida As subdivisões serão explicadas quando for abordado cada tratado. Distingue-se da Psicologia Experimental e do tratado de Teorias e Sistemas Modernos de Psicologia (as escolas de Freud, Jung, Gestaltismo, Behaviorismo...). 5 6
20 1ª ETAPA: Lógica Formal
por São Tomás de Aquino (1225-1274). É dita “Filosofia aristotélico-tomista”. Tem por fundamento a distinção entre potência e ato: potência é a possibilidade de perfeição; ato é a perfeição realizada. A Igreja recomenda a Filosofia assim cultivada e proposta por S. Tomás de Aquino como sendo “um patrimônio filosófico perenemente válido” (ver Código do Direito Canônico, cânon 251); não exclui, porém, “a pesquisa filosófica dos tempos atuais” (ibd). No próximo Capítulo começaremos o percurso dos tratados filosóficos, que serão expostos na ordem atrás apresentada.
Perguntas 1) Que é Filosofia? Que é ciência por causas últimas? 2) Como se distingue das ciências naturais ou particulares a Filosofia? 3) Como se distingue da Teologia a Filosofia? 4) Que é abstração? Em quantos graus existe? 5) Quais são os tratados de um Curso Filosófico? 6) Que se entende por “Filosofia aristotélico-tomista”?
CAPÍTUlo 1: Que é a Filosofia? 21
Capítulo 2:
Que é a Lógica?
2.1. Noção de Lógica A Lógica é “a disciplina que ensina as regras mediante as quais a razão humana pode adquirir, com ordem, facilidade e sem erro, o conjunto das ciências” (S. Tomás de Aquino, In Post. Analyt., livro I, lectio 10). Com outras palavras: o vocábulo Lógica vem do grego logos, razão. Donde se segue que a Lógica é a ciência que ensina a raciocinar corretamente para chegarmos ao conhecimento da verdade. Em todos nós existe uma Lógica natural ou espontânea, ou um certo bom senso, que nos leva a usar adequadamente as nossas faculdades intelectuais. Mas este bom senso é inconsciente; é também insuficiente para enfrentarmos problemas de grande relevo. Daí a importância da reflexão da razão sobre si mesma, para que descubra e formule as normas do pensar correto. Para ilustrar quanto dizemos, eis alguns exemplos de falso raciocínio, em que a Lógica é ofendida: Tal juiz é venal. Tal outro também o é. Logo, todos os juízes são venais. A Lua é um planeta como a Terra. Ora, a Terra é habitada. Logo, a Lua é habitada. Quatro e dois são seis. Logo, quatro são seis e dois são seis. Este remédio não fez efeito; nem aquele outro o fez. Logo, os remédios para nada servem.
2.2. Divisão da Lógica Distinguimos a Lógica Formal ou Menor e a Lógica Material ou Maior.
22 1ª ETAPA: Lógica Formal