Donas do café

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Donas do Café



Leila Vilela Alegrio

Donas do Caf é

Mulheres fazendeiras no Vale do Paraíba (Rio de Janeiro, século XIX)


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A346d Alegrio, Leila Vilela, 1952Donas do café : mulheres fazendeiras no Vale do Paraíba (Rio de Janeiro, século XIX) / Leila Vilela Alegrio. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2011. 136p. : il. ; 23 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-109-6 1. Mulheres - Paraíba do Sul, Rio, Vale - Condições sociais - Séc. XIX. 2. Mulheres Paraíba do Sul, Rio, Vale - História - Séc. XIX. I. Título. 11-5042. CDD: 305.420981532 CDU: 316.346.2-055.2(815.32) 09.08.11

15.08.11

028715

Letra Capital Editora Tels: 21. 2224-7071 | 2215-3781 www.letracapital.com.br


Sumário

Apresentação................................................................................................7 A vida rural da mulher no século XIX.......................................................9 Prefácio da autora........................................................................................13 Introdução....................................................................................................15 A mulher fazendeira do Vale do Paraíba no século XIX..........................21 A vida das mulheres nas fazendas de café no vale paraibano..................32 A educação...................................................................................................36 O casamento.................................................................................................42 O divórcio....................................................................................................49 O divórcio perante a lei...............................................................................56 A mulher na casa de vivenda......................................................................59 Viuvez: independência e liberdade para administrar a vida e a fazenda.........................................................................................69 Cartas reveladoras.......................................................................................99 O Almanaque Laemmert como fonte de consulta sobre mulheres à frente de fazendas de café e outras lavouras................101 Fora das fazendas........................................................................................109 Considerações finais....................................................................................114 Fontes............................................................................................................116



Apresentação

Naquela

manhã de janeiro de

2001, quando encontrei Leila Vilela

Alegrio no terreiro da fazenda Bela Aliança, eu não sabia que uma amizade duradoura começava ali. Ela me pediu para fotografar o exterior da casa sede e me mostrou a vasta coleção de fotos em que registrara a sede de inúmeras outras fazendas. Contou-me que escrevia artigos sobre elas para a “Revista do Café” e que seu interesse pelo assunto nascera em fins de semana passados na região do Vale do Paraíba fluminense. Nos anos que se seguiram aprendi aos poucos (bem aos poucos) a história que, creio eu, levará o leitor deste livro a apreciá-lo melhor. Leila é filha única e seus pais, de origem modesta, sempre trabalharam duro. Menina, ela se habituou a percorrer quase 5 km a pé até a escola pública que freqüentava. A custa de muito esforço ingressou na UFRRJ, no curso de Licenciatura em Química, graduou-se, completou o mestrado e começou a lecionar na própria Universidade em que graduara-se Decidida a alcançar um doutorado pela USP, passou noites dentro de um ônibus entre o Rio e S. Paulo e outras tantas de vigília no laboratório. Tudo isso sem parar de lecionar. Conquistou por fim o título ambicionado e, mais tarde, uma bolsa de pós-doutorado na universidade francesa de Reims. De seu ingresso na UFRRJ até a aposentadoria, foram 20 anos de vida acadêmica em que cada degrau exigiu dedicação e força de vontade para ser galgado. Portanto, a auto-disciplina exercida ao longo de sua carreira

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intensificou em Leila uma capacidade inata para ser minuciosa e exata nas pesquisas que faz, tanto as científicas quanto as históricas. Isso está patente na quantidade de fontes primárias consultadas e escrupulosamente citadas no final deste volume. Leila chegou ao Vale do Paraíba como turista. D’aí, encantada por sua beleza, começou a estudar a arquitetura dos casarões que visitava. (Seu temperamento não lhe permitia deixar perguntas sem resposta ou explicações pela metade). Passou em seguida a se aprofundar na história das fazendas em que esses casarões se encontravam e, além de ler todos os livros sobre o tema que logrou obter, tornou-se freqüentadora assídua de arquivos públicos, cartórios, museus, bibliotecas e instituições especializadas, onde garimpou e pacientemente analisou testamentos, inventários, hipotecas, partilhas, divórcios... Deve ter sido neste ponto que sua curiosidade sobre as personagens envolvidas brotou e se desenvolveu. Que espécie de gente era aquela, como vivia, como pensava e sentia? Leila documentou as casas sede das antigas fazendas fluminenses numa bela exposição fotográfica intitulada “Portas e Janelas do Café” patrocinada pelo SESC-Rio, que percorreu várias cidades do Estado do Rio, de outubro de 2003 a dezembro de 2004. Um ano mais tarde uma nova exposição com fotos de fazendas, tanto do Estado do Rio de Janeiro, como de São Paulo e Minas Gerais, abrilhantou o Museu do Café, em Santos, intitulada “Solares do Café”. Agora ela nos apresenta “Donas do Café”. Vejo Leila como participante de uma espécie de corrida de revezamento, em que um atleta passa o bastão ao seguinte. (Ela empunhou e está levando adiante os valores e conquistas que sua mãe lhe entregou). Por isso, ao entrar em contato com um punhado de fazendeiras do séc. XIX que lutaram com desassombro para defender o que era seu - família, bens e dignidade pessoal - Leila sentiu a necessidade de criar um elo que as ligasse a nós, a fim de que seu exemplo não continuasse apagado, como o esteve até hoje. Este é um livro de história que relata fatos e costumes fartamente documentados. É também uma manifestação de amor e respeito por mulheres que enfrentaram tarefas, dificuldades e reveses sem perder aquela valiosa energia que alimenta em nós a alegria de viver. Maria Luiza Leão

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A vida rural das mulheres no século XIX

Quando Leila Vilela Alegrio me procurou com seu trabalho sobre a vida das mulheres nas fazendas do século XIX no médio Vale do Paraíba Fluminense, fiquei pensando o quanto é pertinente e importante esse tipo de abordagem. Longe dos trabalhos que buscam feitos e fatos na compreensão do coletivo, analisando o macro, as pesquisas em torno de alguns personagens de gênero comum permitirão elucidar comportamentos, mesmo que a primeira vista possam nos parecer exceções. Nas últimas décadas do século XX e início do presente século tem proliferado o estudo da ‘vida privada’ tirando dos baús domésticos rico e vasto material que aparentemente não contribuíam para a construção da história. Povoavam apenas o imaginário dos romances históricos e as biografias mais aprimoradas. Entender e avaliar a história através de um caleidoscópio muito abrangente, com seus diversos personagens que compõem a realidade, independente do ‘valor’ de cada ator na trama, é quase impossível para o historiador. Assim trazer à luz personagens circunstanciados é fundamental na costura da ‘colcha’ histórica. Em 1989 a museóloga Ely Gonçalves assumiu a direção do Museu Casa da Hera (Vassouras, RJ) e, dentro de um amplo projeto, construiu o debate histórico a partir, exatamente, dos olhares cotidianos

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de seus personagens. Ao criar o Chá Imperial1 cujo personagem principal e fio condutor da história era uma mulher2, Ely Gonçalves abriu um leque de opções que permitiu debater e aprofundar as questões comuns do Segundo Império. Sendo uma mulher, os assuntos podiam variar em todos os campos de interesse, se o personagem fosse masculino, as questões do cotidiano, certamente, não poderiam ser abordadas. A visão romântica, que parte significativa dos historiadores do início do século XX, construiu para as mulheres ao longo do século XIX não confere com a realidade. Tomando como exemplo uma das mulheres nascidas em meados do século XIX, e personagem das mais difundidas – Chiquinha Gonzaga -, até hoje é a sua produção musical o aspecto mais analisado. No entanto, é o fato dela ser a primeira mulher compositora que vai destacá-la no panteon da história. Naquela época o estudo de música era disciplina obrigatória na formação feminina e o piano o instrumento mais difundido. Todas as mulheres daquele período aprendiam música, porém Chiquinha Gonzaga não aceita só reproduzir as partituras existentes ela quer e vai compor, um aspecto que até então só era possível para os homens. Outro aspecto importantíssimo em sua trajetória é sua ascendência negra. Longe dos belíssimos retratos que reproduziam mulheres elegantes e bem vestidas, no cotidiano as esposas de fazendeiros eram as ‘carcereiras’ do lar, papel desempenhado com muito sacrifício e determinação. A fazenda produzia todos os alimentos ali consumidos, só vindo de fora alguns itens que não se disponha no próprio local, como o sal e o vinho. Controlar a produção e confecção dos alimentos exigia que ela fosse a primeira a acordar para dar andamento a máquina doméstica. Supervisionar o salgar das carnes, o defumador, 1

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Teatro interativo que acontecia na Cozinha da Casa, onde os participantes podiam, além de apreciar um cardápio comum ao século XIX, questionar a história através do diálogo com uma ‘sinhá’. O teatro durou 13 anos ininterruptos, se constituindo em sucesso absoluto, exatamente por trazer sabor e emoção aos fatos históricos. Conceição de Andrade Pinto, amiga pessoal de Eufrásia Teixeira Leite, última proprietária da Casa. Sinhá Conceição, na condição de viúva era senhora e dona de seu destino, freqüentava o mundo masculino com o mesmo desembaraço que discutia o mundo feminino. As cartas de Sinhá Conceição à amiga falando tanto do ‘amigo’ (Joaquim Nabuco) quanto das eleições majoritárias, deram à Ely a chave para entender a permeabilidade entre os dois mundos e, portanto, a chave para o sucesso do teatro criado.

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o armazenamento nas despensas, decidir o cardápio, determinar as quantidades, estabelecer os destinos de cada item, eram algumas das atividades ligadas à Cozinha. Garantir a vestimenta de todos, inclusive a roupa da casa – cama, mesa e banho -, decidir os tecidos as serem adquiridos durante as viagens à Corte ou comprados dos Mascates que abasteciam a fazenda, determinar feitio, corte e costura 3, estabelecer e conservar calçados e os acessórios de indumentárias, eram as tarefas mínimas. Controlar o abrir e fechar das janelas da casa, a conservação da construção, o funcionamento da engrenagem de água e esgoto, são outras atividades. Assim como feitor e o capataz faziam funcionar a produção rural, a ‘sinhá’ cumpria essa função no interior e adjacências da residência. Servir de enfermeira e médica, decidindo qual a hora de mandar chamar o médico, não sem antes consultar as negras com suas ervas e medicamentos, colocava em suas mãos o destino do paciente. E, ainda, receber, entreter e despachar as visitas e os amigos da família, auxiliar o marido e substituí-los quando de suas viagens. Nesse cenário, espartilhos, anquinhas, sapatilhas delicadas, leques, rendas e jóias eram adereços que personificavam a Senhora à rua, no mundo extra muros, no mundo dos retratos. No cotidiano, as ‘mangas de camisa’ eram a realidade mantida afastada dos ‘estranhos’ por ritual de etiqueta rigidamente cumprido, como a que impede uma visita sem aviso e agendamento prévio. Nascidas e criadas para serem ‘rainhas’ do lar, forjadas em educação extremada e treinamento constante, feitas para manterem a aparência do mundo masculino dominante, mas feminino por determinação. O que levou Dr. Joaquim José Teixeira Leite a conferir a condição de analfabeta à esposa na elaboração e assinatura de seu próprio testamento, enquanto há correspondência das filhas dirigidas diretamente à ela, senão o fato de um acordo prévio do teatro masculino. Mulheres das mais diversas posições na escala social brotam dos testamentos e inventários como os aqui abordados por Leila O divórcio por determinação feminina, a querela sobre pensão alimentícia, o adultério, são alguns dos aspectos amplamente negado ao longo da história, talvez para manter a aparência do controle religioso. A lida diária na administração do ‘lar’ terá preparado essas 3

Tudo era manufaturado, as máquinas de costura, raríssimas, só chegaram no último quartel do século XIX.

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senhoras para assumirem suas vidas e os negócios da família, sejam elas solteiras ou viúvas. No caso dessas últimas com o agravante de que herdaram, na maioria dos casos, uma empresa agrícola falida e os exemplos aqui analisados comprova a capacidade de reversão desse quadro. As matriarcas, as senhoras, as nossas ‘sinhá’ não são moças delicadas e frágeis, pelo contrário, são senhoras de muita dignidade e de muita labuta. Dominam a arte dos bilros de renda e dos livros de contabilidade, jogam recursos significativos em apólices e fazem funcionar sistemas complexos de produção, em suma, “pintam e bordam” nas mais diversas posições do jogo social da época. Tenho certeza da oportunidade do tema levantado por Leila, outra mulher de aparência delicada, forjada na labuta diária e forte na defesa daquelas que um dia quiseram calar, ou melhor, abafar. Isabel Rocha Vassouras, agosto 2007

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Prefácio da autora

A força e a grandeza da mulher em suas lutas, a firmeza de caráter e a determinação rumo a suas conquistas vieram-me como exemplo entre as paredes da casa de minha mãe. Desde a mais tenra infância, pude vê-la vencer obstáculos, transpor preconceitos, lutar pelo seu espaço numa vida que tantas vezes insistiu em ser-lhe adversa. Lembro-me do seu sorriso zombeteiro, da sua alegria de viver, da sua energia para o trabalho e das suas convicções no amor e na moralidade, que tantas vezes considerei duras e intransigentes. Contudo, foi nesta fonte que bebi, e foi a partir dela que me formei como ser humano. Depois de viver meio século, e na ausência daquela de quem tantas lembranças ainda guardo, é que fui encontrar, nesta recente pesquisa sobre as histórias das fazendas de café no Vale do Paraíba fluminense, o despertar para este tema, que tentarei relatar com o pensamento voltado às minhas origens. Escolhi estudar aquelas que sempre viveram em solo brasileiro, fazendeiras, incluindo alguns poucos exemplos daquelas que administravam seus negócios e suas vidas e aqui enfrentaram todas as resistências e dificuldades típicas de uma sociedade patriarcal e preconceituosa. Tenho consciência da importância e da relevância que tiveram as mulheres pobres e escravas que, com seu trabalho,

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também contribuíram para o engrandecimento de nosso país e que têm sido objeto de estudos de um grande número de historiadores. Algumas filhas de ilustres senhores da região sem dúvida tiveram atitudes muito progressistas para o seu tempo, mas daqui saíram e foram viver na Europa até seus últimos dias. Sem fazer nenhum tipo de julgamento, acredito que, fora do Brasil, longe da sociedade que lhes vigiava a conduta, a vida dessas mulheres certamente foi mais gloriosa do que a daquelas que aqui tiveram de enfrentar os olhos maldosos de seus vizinhos. A vida de uma mulher do campo do século XIX, mesmo que ilustrada e culta, não pode ser comparada com a de uma senhora da corte européia. É preciso ressaltar o caráter rústico, agressivo e hostil do ambiente rural do Vale do Paraíba em que elas viveram e sua luta pela sobrevivência, pela possibilidade de criar e educar seus filhos, de manter, quem sabe, a delicadeza nos gestos e palavras, enfim, ser admirada e contar com o privilégio de ter, antes de seu nome, dona, um título importante para aquelas que não possuíam o de nobreza, por exemplo. Foi pensando nelas que iniciei esta pesquisa, inspirada naquelas que deixaram suas marcas não só na região do Vale do Paraíba fluminense, mas neste imenso Brasil. Marcas por muito tempo ignoradas, mas que começam, ainda que aos poucos, a se revelar.

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Introdução

Novas

têm surgido sobre as mulheres que viveram no século XIX – esposas e companheiras dos senhores de terra – e seu papel na sociedade da época. O pioneiro em tentar revelar a identidade dessas mulheres foi o grande sociólogo e escritor Gilberto Freyre, que em duas de suas obras, Casa-grande e senzala4 e Sobrados e mucambos5, descreve-as como seres subordinados à autoridade do pai e do marido, restritas ao ócio e ao comando das escravas. Mesmo assim, abre um parêntese ao escrever: abordagens

(...) através de toda a época patriarcal, houve mulheres, sobretudo senhoras de engenho, em quem explodiu uma energia social, e não simplesmente doméstica, maior que a do comum dos homens. Energia para administrar fazendas, como donas Joaquinas do Pompeu; energia para dirigir a política partidária da família, em toda uma região, como as donas Franciscas do Rio Formoso; energia guerreira, como a das matronas pernambucanas que se distinguiram durante a guerra contra os holandeses, não só nas duas marchas, para as Alagoas e para a Bahia, pelo meio das matas e atravessando rios 4 5

Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos.

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fundos, como em Tejupapo, onde é tradição que elas lutaram bravamente contra os hereges6.

E, mais adiante, refere-se às fazendeiras: Tais mulheres que, na administração de fazendas enormes, deram mostras de extraordinária capacidade de ação – andando a cavalo por toda parte, lidando com os vaqueiros, com os mestres-de-açúcar, com os cambiteiros, dando ordens aos negros, tudo com uma firmeza de voz, uma autoridade de gesto, uma segurança, um desassombro, uma resistência igual à dos homens – mostram até que ponto era do regime social de compressão da mulher, e não já do sexo, o franzino, o mole, o frágil do corpo, a domesticidade, a delicadeza exagerada. Mostram-se capazes de exercer o mando patriarcal quase com o mesmo vigor dos homens. Às vezes com maior energia do que os maridos já mortos ou ainda vivos porém dominados, excepcionalmente, por elas7.

Algumas contradições, portanto, foram encontradas e, embora a sujeição feminina tenha sido mais contundente que a masculina, a subordinação da mulher ao homem não deve ser considerada o único princípio da estrutura social brasileira do século XIX. É provável que esta idéia tenha surgido em virtude do constante anonimato das mulheres, mas reavaliando a trajetória de determinadas personagens, percebemos que algumas desempenharam papéis importantes na história do Brasil durante os períodos colonial e imperial. Revelando-se grandes administradoras e participando dos acontecimentos com desenvoltura, elegância e determinação, algumas demonstraram ter um caráter forte ao tomar decisões importantes, e podem mesmo ser vistas ocupando posição de vanguarda, considerando-se a estrutura repressiva da sociedade da época, sobretudo no que se referia à mulher. “Uma mulher já é bastante instruída quando lê corretamente as suas orações e sabe escrever a receita da goiabada. Mais do que isso seria perigo para o lar”, diz um provérbio português. Para o escritor Charles Expilly, o conteúdo deste provérbio levou a mulher a uma condição na qual “os bordados, os doces, a conversa com as negras, o 6 7

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Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos op. cit., p. 209. Gilberto Freyre, op. cit., p. 210.

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cafuné, o manejo do chicote, e, aos domingos, uma visita à igreja eram todas as distrações que o despotismo paternal e a política conjugal permitiam às moças e às inquietas esposas8”. Não podemos negar que rígidas regras obrigavam-nas a assumir uma posição em que a obediência ao marido ou ao pai era fundamental. De fato, elas não tinham o direito de expressar opiniões e desejos, principalmente em público, pois querer era resultado de força e poder, prerrogativas exclusivamente masculinas. Ainda assim, a mulher exercia o poder da doçura e da dignidade, virtudes que sabiamente usava para dirigir a família e, mansamente, ocupar seu espaço. De acordo com os termos da legislação que vigorava na época, para além das obrigações comuns da mulher, o marido tinha grande autoridade sobre a esposa, como demonstra o jurisconsulto Lafayete Pereira em Direitos de família, obra publicada em 1869. O homem, em virtude do poder marital, possui: 1º O direito de exigir obediência da mulher, a qual é obrigada a moldar suas ações pela vontade dele em tudo o que for honesto e justo; 2º O direito de escolher e fixar o domicílio conjugal, no qual a mulher deve acompanhá-lo; 3º O direito de representar e defender a mulher nos atos judiciais e extrajudiciais; 4º O direito de administrar os bens do casal, podendo dispor dos móveis livremente, dos imóveis com as restrições da lei9.

O visconde de Taunay, em romance de 1872, mostra a protagonista, Corina, como uma jovem determinada, senhora de suas idéias e direitos, ao mesmo tempo preocupada com a beleza e o bem-estar10. Não podemos afirmar se a mulher descrita por Taunay era a que ele vislumbrava para o futuro ou se o autor fazia suas observações num momento em que a mulher começava a desempenhar papéis relevantes na sociedade. Controlando-as quando ainda eram jovens, os pais tinham como principal preocupação arranjar-lhes bons casamentos e, em 8 9 10

Charles Expilly, Mulheres e costumes do Brasil, p. 269. Lafayete Rodrigues Pereira, Direitos de família, p. 70-71. Visconde de Taunay, Manuscrito de uma mulher.

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sua ambição de apresentá-las como moças prendadas, bem-educadas, bem-vestidas e com certa cultura, acabaram por conceder a elas a oportunidade de estudar. Mesmo restringindo-se ao essencial, foi a educação e o aprendizado de outras línguas o que lhes permitiu ir além da leitura das orações, das receitas e cartas e chegar aos romances. Já em meados do século XIX, elas se dedicavam à leitura de jornais e, com certa ousadia, enviavam cartas no desejo de verem suas idéias sobre a sociedade e o mundo publicadas. Nesta época, os folhetins atingiam grande sucesso, e muitos de seus autores – apesar dos pseudônimos masculinos – eram mulheres. Os estudos aconteciam em colégios de freiras ou em casa, com preceptoras, em geral européias. As mulheres eram preparadas para a vida doméstica e para o papel de esposa e mãe. Como candidatas a um casamento, estavam sempre em dia com a moda, e não se furtavam de apresentar-se com belíssimos vestidos, feitos de ricos tecidos importados da Europa, e jóias, fazendo da moda uma revolução que alterava vestimentas, penteados, etiquetas e costumes. As mulheres quase sempre se casavam com o pretendente escolhido pelo pai, que fazia a seleção de forma a aumentar o patrimônio, ainda que o noivo fosse parente próximo, para que a fortuna permanecesse na família. Em alguns casos, a escolha ultrapassava os limites do Vale do Paraíba, com uniões matrimoniais que pudessem aumentar também o prestígio político da família, ou seja, a intenção era aumentar seu poder socioeconômico. Pelo exposto até agora, conclui-se que, de fato, as mulheres não podiam de forma alguma abrir as asas e dar vôos próprios. No entanto, à medida que surgem novos estudos, torna-se difícil acreditarmos que a mulher tenha sido mesmo este ser tão submisso, apesar de todas as restrições, de todas as convenções sociais e leis que lhes eram impostas. Que papel desempenhava a mulher do século XIX na sociedade, num universo masculino altamente conservador? Do ponto de vista urbano, alguns exemplos de figuras femininas que sobressaíram, principalmente, nas artes, chamam a atenção. Estes casos sugerem que a mulher sempre procurou alcançar um lugar de destaque, que foi em busca de seu espaço e de seus ideais, de sua emancipação, e que alcançou seus objetivos quando assim o desejou – apesar dos obstáculos e dificuldades que cerceavam suas conquistas. Embora alguns argumentem que tais exemplos constituem me-

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ras exceções, não podemos desconsiderar que eles se mostram bastante reveladores, pois apontam a ousadia destas que foram sempre estigmatizadas como sendo o sexo frágil. Esta fragilidade não impediu que tivessem um caráter forte e determinado. É sabido que, na virada do século XIX, a efervescência cultural e econômica do país tinha lugar na cidade do Rio de Janeiro, capital do império. Foi nesta cidade que aos poucos foram surgindo as primeiras manifestações feministas nas classes média e alta, da parte de algumas mulheres insatisfeitas com os papéis sociais que tradicionalmente lhes eram conferidos. O universo feminino, que até então estivera restrito à família, que se limitava à criação e educação dos filhos e à administração do lar, entrou numa fase de grandes transformações com a participação da mulher em diversas frentes do mercado de trabalho. Já no limiar do século XIX, a chegada da luz a gás, do telefone, da fotografia e das estradas de ferro estimulou e facilitou mudanças políticas e sociais. Era o progresso industrial que avançava, e com ele a mulher, sempre reivindicando sua emancipação. O renomado estudioso Alberto Lamego, em O homem e o brejo, de forma eloqüente escreve sobre o importante papel que desempenharam as senhoras de Campos dos Goytacazes ao travarem uma luta, liderada por Benta Pereira Barreto e sua filha Mariana, para eliminar da região norte o despotismo centenário exercido pelo visconde de Asseca e sua família. Em suas palavras, “Mutação completa sofre a mulher nesse período. No ciclo da pecuária e na fase das engenhocas, Campos oferecera extraordinária anomalia às normas familiares transportadas com os portugueses para o Brasil. A reclusão da mulher não existiria nessa massa em contínua turbulência. Nada de encarceramentos, de recatos acauteladores, de ciumadas doentias e ferozes. A mulher é livre. Tão livre, que os motins em praça pública são por elas encabeçados. E não se trata de classe baixa, de mulherio arruaceiro. É a flor da terra. Benta Pereira, grande fazendeira, é quem recebe os conspiradores e planeja o levante. Ela e sua filha Mariana Barreto são quem o chefiam pelas ruas de Campos, à frente do povo amotinado11”. 11

Alberto Lamego, O homem e o brejo, p. 135.

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De fato, Benta Pereira, nascida em 1675 e falecida em 1760, e sua família entraram para a história quando decidiram, com mão-de-ferro, expulsar de Campos os Assecas, que aterrorizavam a população com a cobrança de impostos exorbitantes, confisco de bens, degredo, masmorras e assassinatos. Nada deteve essa mulher, que montava a cavalo, usava grandes estratagemas de luta e resistência, liderou um grupo de senhoras que entraram porta adentro na câmara para reivindicar os direitos do povo e acabou por inspirar a frase estampada na bandeira da cidade de Campos: Hic ipsae matrone prol lure pregnant, ou seja, “Aqui até mesmo as mulheres lutam pelo direito”.

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A mulher fazendeira do Vale do Paraíba no século XIX

A curiosidade me conduziu de forma ardorosa a abordar o papel exercido pelas mulheres no meio rural da cafeicultura, que trouxe para o Rio de Janeiro, no século XIX, prosperidade, riqueza, luxo, fartura, decadência e, como conseqüência de diversos fatores, a posterior extinção da cultura cafeeira em nosso Estado. De que forma as mulheres atuaram nesse contexto até então exclusivo dos homens? São muitas as questões que nunca foram levantadas, e que, por isso mesmo, ficaram sem resposta. Na tentativa de compreender melhor esta ocupação – mulher fazendeira –, debrucei-me sobre fontes primárias encontradas em diversos arquivos, principalmente no estado do Rio de Janeiro, para, solitariamente, tentar traçar um perfil deste ser esquecido pela imprensa e, sobretudo, pela literatura do século XIX. Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala, destaca duas fazendeiras de comportamento matriarcal que se tornaram figuras históricas12. A primeira delas, dona Joaquina Pompeu, como era conhecida Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco Souto Mayor de Oliveira Campos, casou-se com Inácio de Oliveira Campos, que, após um problema de paralisia, deixou a cargo de sua mulher 12

Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, p. 505.

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a administração das fazendas, situadas no município de Paracatu, antiga vila de Paracatu do Príncipe, no oeste mineiro. Entre elas, estavam as fazendas Gado Bravo, Novilha Brava, Tapera e Cotovelo, produtoras de gado de corte e de leite. A segunda senhora, dona Francisca do Rio Formoso (Francisca da Rocha Lins Wanderley), era proprietária de um engenho de açúcar em Pernambuco. O ensaio de Barreto intitulado “Fatos reais ou lendários atribuídos à família Barreto” relata um episódio que ficou conhecido como um dos atos de prepotência de dona Francisca: Pelo engenho passava grande carregamento de açúcar conduzido em carros de bois. Trazia a marca JMW, iniciais de um preto abastado que adotara o nome de João Maurício Wanderley. Dona Francisca mandara parar os carros e colocar no chão todas as caixas, nas quais um carpinteiro, com forte enxó, ia inutilizando o W, riscando-o da madeira. Concluído o serviço e recolocadas as caixas no carro, determinou que seguisse o comboio e que ao seu dono fosse dito que Wanderley era nome de branco e que pessoa ou coisa pertencente a negro não tinha o direito de passar pelo seu engenho com tal denominação. Vingou-se o preto argentário, comprando o trapiche Rio Formoso e expedindo ordens para que fosse retirada a mercadoria de dona Francisca, porquanto daquela data em diante não se receberia ali açúcar de Wanderley branco13.

Em seu artigo “À mesa com uma família ‘mineira’ do século XVIII”, Meneses destaca dona Ana Perpétua Marcelina da Fonseca, com sua “cuidadosa relação de despesas com mantimentos” da fazenda, “enumerando os gastos mês a mês”, no período em que se fazia o inventário do seu marido14. Nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro, encontramos o exemplo de dona Mariana, proprietária de um engenho em Santa Cruz, que causou agradável impressão à viajante Maria Graham, que relata assim sua passagem pela propriedade da fazendeira: “Tivemos aqui uma recepção das mais polidas por parte de uma bela mulher, 13 14

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Carlos Xavier Barreto, Fatos reais ou lendários atribuídos à família Barreto, p. 11. José Newton Meneses, À mesa com uma família “mineira” do século XVIII, p. 80.

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de tom senhoril, que encontramos na direção de seu engenho, o que é fato interessante”15. E diz, mais adiante: Dona Mariana conduziu-nos ao engenho, onde nos deram bancos colocados perto da máquina de espremer, que são movidos por um motor a vapor, da força de oito cavalos, uma das primeiras, senão exatamente a primeira instalada no Brasil. (...) A máquina a vapor, além dos rolos compressores no engenho, move diversas serras, de modo que ela tem a vantagem de ter a sua madeira aparelhada quase sem despesa16.

Não resta dúvida, neste caso, de que Maria Graham surpreendeuse com o fato de encontrar uma mulher no comando de um engenho, e com um maquinário dos mais modernos para o início do século XIX. Esse é apenas mais um retrato pintado em cores vivas que não deixa escapar aos olhos a capacidade empreendedora e progressista de muitas senhoras que viveram naquela época. O cônsul Langsdorff, quando em expedição pelo Brasil, encontrou no Estado do Mato Grosso dona Anna, que dirigia a fazenda Jacobina, com mais de duzentos cativos. A fazendeira atraiulhe a atenção e o fez registrar em seu diário de viagem: (...) o que havia, porém, de notável era que essa mulher, tão corpulenta e que mostrava ter cinqüenta anos, andava e mexia-se com agilidade de uma garrida mocetona. Sua fisionomia, seu olhar e a boca exprimiam simultaneamente a energia, a fraqueza e a bondade. Todos os escravos e agregados a estimavam tanto quanto a temiam, sendo com efeito a mãe de toda a redondeza, principalmente pelos cuidados com que tratava os enfermos e pelos socorros que com pródiga mão distribuía aos necessitados. (...) não quero que meu genro se ocupe da lavoura, disse-nos dona Anna; isto é bem para mim que nasci no meio dos trabalhos do campo17.

É possível encontrarmos, na história do Engenho da Serra – mais 15 Maria Graham, Diário de uma viagem ao Brasil, p. 338. 16 idem. 17 Alfredo Taunay, A expedição do cônsul Langsdorff ao interior do Brasil, p. 238. A fim de facilitar a leitura e torná-la mais agradável, atualizamos a grafia dos textos da época, preservando-se, no entanto, os nomes próprios.

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tarde denominado fazenda do Bangu e, hoje, o bairro de Bangu, na cidade do Rio de Janeiro, também uma ilustre senhora que se tornou lendária e foi proprietária da referida fazenda desde que se tornou viúva, em 1798, até 1855: dona Anna Francisca de Castro Moraes e Miranda18. Vale reproduzirmos o relato de Gerson Brasil, em seu livro História das ruas do Rio, ao retratar dona Anna Francisca no comando de sua propriedade: Foi Barcelos Domingues o fundador da sua famosa fazenda Bangu, que muito mais tarde, nos últimos anos do setecentismo e até os tempos de dom João VI, no Rio de Janeiro, muitas pendências e confusões provocaria nos seus vizinhos, entre Realengo e Campo Grande, as comentadíssimas confusões de dona Anna Bangu desses nossos antanhos sertanejos (...). Passando de mão em mão, ela viera a pertencer na segunda metade do século XVIII ao sargento-mor José Corrêa de Castro e a seguir a dona Anna de Castro, sua viúva – e aqui – falando-se de mulher à frente de fazendas e engenhos, uma das coisas [que] mais admiração provoca hoje em que manuseio esses velhos documentos do Arquivo Nacional é o grande número delas que aparece na movimentação da vida agro-pecuária do Recôncavo e do sertão carioca, como se ao herdarem as propriedades de seus maridos ou pais ou irmãos, não se intimidassem diante das novas responsabilidades assumidas, mas, pelo contrário, as recebessem alegremente, e para ampliá-las, nem que fosse à custa de seus vizinhos, com os quais muitas até apreciam gostar de comprar pendências (...). O caso de dona Anna Bangu é típico, nesse particular, pois através de vários recursos à justiça procurou estender seus limites territoriais através das [terras] de alguns sitiantes em torno e até as do convento do Carmo em Realengo, que muito trabalho teria para não perder o que era deles, então até representados sobretudo pelo frei Miguel. 18

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AN, Sesmaria, Requerentes: Santos, Isidoro Pereira dos e Proença, Lucio Manuel de, Litigantes: Castro, Anna de, Caldeira, Ildefonso de Oliveira, Souza, Manuel Joaquim.

Leila Vilela Alegrio


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