Fórum de psicanálise e cinema

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ANA LÚCIA SIAINES DE CASTRO NEILTON DIAS DA SILVA Análises cultural e psicanalítica dos filmes: ADORAÇÃO ARITMÉTICA EMOCIONAL ASSÉDIO BABEL CACHÉ EM UM MUNDO MELHOR ESTRELA SOLITÁRIA FATAL HÁ TANTO TEMPO QUE TE AMO KOLYA: UMA LIÇÃO DE AMOR LAVOURA ARCAICA LUGARES COMUNS AS PONTES DE MADISON O SEGREDO DOS SEUS OLHOS SEGREDOS E MENTIRAS SIMPLESMENTE MARTHA TETRO A VIDA DOS OUTROS VOCÊ É TÃO BONITO VOLVER


Copyright © Ana Lúcia Siaines de Castro e Neilton Dias da Silva (Orgs), 2013. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por meio impresso ou eletrônico, sem a autorização prévia por escrito da Editora/Autor. Editor João Baptista Pinto Projeto gráfico e foto da orelha Marina Lutfi / cacumbu Revisão Os autores

CIP- BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C339f Castro, Ana Lúcia Siaines de, Fórum de psicanálise e cinema / Ana Lúcia Sianies de Castro, Neilton Dias da Silva; ilustração Marina Lutfi. - 1ª ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. 216 p.: il.; 15,5x23 cm Inclui bibliografia Sumário ISBN 9788577852093 1. Psicanalise e cinema. 2. Cinema - Aspectos psicológicos. 3. Cinema e literatura. 4. Roteiros cinematográficos - História e crítica. I. Silva, Neilton Dias da. II. Lufti, Marina. III. Título. 13-01334 CDD: 791.43019 CDU: 791.235:159.9 23/05/2013

23/05/2013

Letra Capital Editora Tels: 21 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br


Dedicamos este livro a Waldemar Zusman, com o qual tudo começou, e à inesquecível amiga e comadre, Maria Imelde Pessoa Farah (in memoriam). E a todos os amigos, colegas, alunos e público em geral que nos prestigiaram com sua presença e nos estimularam a continuar, ao trocar impressões e informações sobre os filmes e suas interpretações, ao acrescentar sempre observações importantes e conexas, para que prevalecessem o intercâmbio, o companheirismo e o enriquecimento de todos.


AGRADECIMENTOS Não podemos deixar de agradecer a algumas pessoas em particular, como à Lina Zusman (in memoriam), sempre solícita em nos receber em sua casa para as discussões prévias dos filmes. À querida amiga Maria Helena Ribeiro e equipe, que, com seu entusiasmo, nos levaram para a Casa Social Dercy Gonçalves, onde ficamos por dois anos. À prezada ex-Reitora da UNIRIO, Professora Malvina Tuttman, ao caríssimo ex-Pró-Reitor de Extensão e Cultura, Professor Luciano Maia e ao ex-Decano, Professor Luiz Cléber Gak, pela acolhida ao Fórum, contribuindo para viabilizar o projeto, e ao Professor Sul Brasil Rodrigues, elo fundamental, ao acenar com a probabilidade de realização no CCH, no Auditório Paulo Freire. E à equipe de Coordenação Social da UNIRIO, que sempre divulgou nosso trabalho com muito empenho. Ao Professor Ivan Coelho de Sá, diretor da Escola de Museologia, à Professora Marisa Salomão, chefe do DEPM, do Centro de Ciências Humanas (CCH), às prestimosas colegas Vilma Barbosa Soares e Júnia Guimarães e Silva, pelo companheirismo no apoio aos projetos, e aos técnicos de áudio e vídeo, sempre solícitos.


E, em especial, ao Pró-Reitor de Extensão e Cultura, Professor Diógenes Pinheiro, à querida colega Professora Helena Uzeda, Coordenadora de Cultura, e à Pró-Reitora de Administração, Professora Núria Mendes Sánchez, os quais, pelo empenho, possibilitaram a edição deste livro. Às bolsistas de museologia que participaram dos momentos prazerosos e difíceis do evento, com sua alegria e entusiasmo, ao partilhar e realizar o projeto e o vídeo com os filmes escolhidos. À nossa amada filha e enteada, Marina Lutfi, designer e partilhante do trajeto, com sua contribuição inestimável na identidade visual do projeto e, agora, deste livro. Às sempre queridas: Marialzira Perestrello, nossa eterna madrinha, ao nos encaminhar ao editor da Letra Capital; Dyrce Drach, nossa segunda mãe e sogra, presente em todos os momentos de vida, ambas como âncoras afetivas preciosas. E ao inesquecível Professor Victor José Ferreira (in memoriam) que, com sua amizade e dedicação, divulgou o Fórum por todo Brasil, sobretudo, através do Movimento de Preservação Ferroviária. E a todos que, de alguma maneira, e de modo direto ou indireto, compartilharam conosco durante todos esses anos, nosso eterno agradecimento.



sumário Apresentação 10 Adoração 18 Aritmética emocional 28 Assédio 36 Babel 46 Caché 54 Em um mundo melhor 64 Estrela solitária 74 Fatal 84 Há tanto tempo que te amo 94 Kolya: uma lição de amor 104 Lavoura arcaica 112 Lugares comuns 122 As pontes de Madison 130 O segredo dos seus olhos 138 Segredos e mentiras 148 Simplesmente Martha 156 Tetro 166 A Vida dos outros 176 Você é tão bonito 186 Volver 196 Referências 206


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apresentação

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INTRODUÇÃO

Este livro é resultado de uma seleção de vinte títulos dentre os filmes analisados no FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA, um projeto de extensão da UNIRIO, em parceria com a Associação Psicanalítica RIO-3 e, após sua fusão, com a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, que ensejou esta publicação, a qual, infelizmente, não pôde contar com a colaboração do Dr. Waldemar Zusman, em função de compromissos pessoais incontornáveis. Por mais de 15 anos, o FPC se firma como um canal múltiplo de expressão, pois, no entendimento de seus organizadores, filmes vistos e analisados, do ponto de vista cultural e psicanalítico, granjeiam a condição de uma abertura dinâmica, ou seja, um espaço de ver e de falar, de sentir e de conversar, de perguntar e de perceber as diversas formas associadas aos meandros das fantasias e dos desejos do comportamento humano. O critério na escolha das películas obedeceu, sobretudo, aos discernimentos de predicado e de profundidade, isto é, roteiros que, por sua qualidade cinematográfica intrínseca e por sua coerência psicológica, tinham a desvendar, surpreender e, principalmente, discutir, sob os mais variados ângulos e vértices culturais, psicanalíticos e sociais. Esse amálgama resultou em um processo de descoberta e aprendizado tanto para os frequentadores como para os responsáveis pelo projeto, ampliando em muito as perspectivas de oferecer um painel de discussões que, efetivamente, não se exaure em um único prisma. Em um universo de mais de oitenta títulos, para este livro, optou-se por alguns daqueles que proporcionaram e possibilitaram a compreensão dos conceitos aventados e que, do mesmo modo, renderam estimulantes trocas em suas apresentações, oferecendo uma rara oportunidade de pensar sobre um bom filme e suas relações com a vida de cada um de nós, até porque a penetração do cinema no mundo contemporâneo é indiscutível. Assim, o objetivo deste trabalho é instigar o leitor sobre os filmes analisados, levando-o a assisti-los, e, também, despertar no espectador a curiosidade de ler esse conteúdo e relacionar as duas experiências. Convém esclarecer que as apreciações estruturais e as análises psicanalíticas feitas através dos filmes selecionados não se constituem em críticas cinematográficas. Tratam-se, tão somente, de abrangências culturais e de desvendamentos psicológicos, a partir da trama, da conjuntura dos personagens e de suas motivações emocionais, privilegiando as demandas psicossociais integradas à perspectiva psicanalítica.

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ESCOPO CONCEITUAL

Ao longo dessa experiência enriquecedora, confirma-se que a vinculação entre Psicanálise e Cinema é mais profunda do que aparenta à primeira vista. Ambas as áreas nascem no início do século XX, atendem à necessidade do homem de saber mais sobre si mesmo, ainda que de forma idealizada através do Cinema, e no processo terapêutico a partir das sessões de Psicanálise, pelas portas abertas por Freud e seus seguidores. Por conseguinte, a parceria entre esses dois fecundos campos funciona, em muitos momentos, como um elo reconciliador com a vida, com as angústias e com as demandas pessoais. Do mesmo modo, a percepção de que o Cinema exerce enorme fascínio ao longo de gerações corrobora o que Carrière (2005) analisa em seu livro, O segredo da linguagem do cinema: “uma experiência aberta, em permanente transformação, escapando de regras que o possam aprisionar, mas envolvendo a todos com sua magia”. Serão essas as razões pelas quais as pessoas são atraídas ao cinema? Na verdade, o filme é uma realidade virtual onde o indivíduo sente a vida do personagem, como se fosse vivenciada dentro de um mundo real, como ele o vê. Desde criança, desenvolve-se a curiosidade de querer penetrar na vida e no comportamento dos outros, seja para reprovar o que não gosta em si mesmo seja para exaltar seus próprios ideais. Sem se dar conta, a pessoa, ao assistir filmes diversos, inconscientemente, reconhece situações que se assemelham a seus próprios processos internos, e utiliza a película como auxílio para tentar elaborar sua problemática. O público vivencia essa experiência cinematográfica, em parte como ela é e, em parte, em função do imaginário que nela coloca. Assim sendo, realiza de maneira protegida ou a revivência de seus fantasmas persecutórios mais recônditos, quando a trama a isso se presta, ou se deixa levar por fantasias prazerosas e gratificantes. Quando o indivíduo apreende uma situação interna conflituosa, e, no cinema, consegue vê-la reavaliada por outro ponto de vista, sente-se auxiliado em resolvê-la, e isso lhe dá a esperança de lidar melhor com suas questões. Em sintonia, destaca-se a afirmação de Fernandes (2010), ao comentar que o espectador entra no filme e o vivencia de uma maneira tão próxima do sonho, quer dizer, do inconsciente e, em tamanha intensidade, que, não raro, ele próprio se surpreende gritando, torcendo ou transpirando de emoção.

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Filósofos e ensaístas, como Roland Barthes e Rudolf Arnheim1, entre outros, debruçaram-se sobre os efeitos do Cinema na vida das pessoas. A noção de realidade alterou-se muito após o advento da cinematografia, e o efeito de sua linguagem modificou a articulação racional ampliado em um veículo memorial. Gostar ou não gostar de um filme revela uma concepção de mundo, identificação que resulta em arroubo emocional, mais do que estético. Por conseguinte, o Cinema que desenvolve sua própria dicção e gramática, reconstrói valores e identificações, enquanto a Psicanálise estimula a plenitude da verbalização, como um caminho para expressar os conflitos, os entraves e os traumas que impedem a plena compreensão da realidade interna. Como sustentáculo criativo e peculiar aos filmes, a fotografia, com suas múltiplas nuances, e a trilha sonora, através de sua estrutura musical, se constituem em condutores estéticos e emocionais, auferindo uma plenitude figurativa e uma percepção visual e melodiosa envolvente, contribuindo para a fruição imagética e memorial. O vínculo proposto entre a Psicanálise e o Cinema se fortalece com a triangulação obtida com a Museologia, naquilo que essa área tem de perspectiva cultural, entendida como uma contribuição à memória social, como um suporte às identidades e, sobretudo, como reforço à noção de pertencimento. Freud (1966), em sua obra Psicopatologia da vida cotidiana, demonstra a natureza complexa de nossa memória, cuja seleção não indica vestígios mnemônicos significativos, mas sim a formação de uma memória oculta, muitas vezes mergulhada no esquecimento (Castro, 1997). A memória, miticamente, vivencia a imagem em palavra, ponteia o silêncio ao falado, aproxima a emoção do conhecimento. Entre o visível e o oculto, mantém-se uma relação comum para conservar o olhado, o ouvido, o sentido, o apreendido. Assim, uma representação, uma sonoridade e um gesto provocam rememorações inesperadas, desconhecidas. A ponte com a Museologia, nesse contexto, beneficia a integração com uma linguagem compartilhada, potencializa o capital cultural formado pelo acesso ao viés psicanalítico em conjunção com a sociologia da cultura, naquilo em que essa experiência favorece a democratização dos saberes, da descoberta e do conhecimento. Integrando uma temporalidade que se fusiona em passado, presente e futuro, pois se nutre de acontecimentos tornados fixos na memória, as reminiscências reconstroem-se e ativam-se, no sentido imanente de viver e 1  Para Arnheim (1989), o espectador é o criador dos sentidos do que vê na tela, enquanto Barthes (2006) afirma que o cinema tomou a direção da narrativa ficcional, suscitando questões sobre o que aconteceu no passado, em uma virtualidade construída pelo próprio enredo, que alcança o sujeito.

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de resistir, em cuja dimensão ontológica o cinema, assim como o museu, sustenta sua função de resgate na supressão do sujeito e na revivência das lembranças e dos esquecimentos. Forçoso reiterar que os conceitos psicanalíticos, mesmo mantendo sua estrutura científica própria, atravessam o cotidiano das pessoas cada vez com maior visibilidade, deixando de ser um código fechado aos iniciados e alcançando uma plateia ávida por compreender determinados aspectos da realidade e da vida em geral. Sem medo de banalizar, pode-se ponderar que a função mágica do Cinema se aproxima da terapêutica psicanalítica, cujos resultados, nesses muitos anos de filmes analisados e discutidos, acumulam-se incontáveis depoimentos e percepções trazidas pelo público que os compartilha, tanto pessoalmente como por meio eletrônico. O público, ao se integrar no enredo, sem se transformar em simples voyeur, convive com o tempo e o espaço da narrativa, construídos de forma lógica como um sistema simbólico, que tangencia, mesmo que artificialmente, a questão do imaginário na Psicanálise e a memorialidade na Museologia.

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BREVE HISTÓRICO DO FÓRUM

O Dr. Waldemar Zusman introduziu, pioneiramente, em 1981, a projeção de um filme seguida de debate com a plateia, em espaços diversos, por alguns anos. Porém, em 1996, quando era presidente da Associação Psicanalítica RIO-3, o psicanalista convidou o Dr. Neilton Silva, à época diretor do Instituto de Ensino da mesma entidade, para fundarem, juntos, o FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA, como um projeto de atividade científica. As primeiras exibições ocorreram na Sala de Vídeo da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, com grande afluência de público. Em face de uma demanda maior de espaço, no ano seguinte o FPC funcionou no IBAM e, posteriormente, no Centro Empresarial de Botafogo, até 1999, quando foi interrompido por motivos profissionais dos coordenadores. Mas, como entusiasmados que são pelas relações entre Psicanálise e Cinema, a partir de 2002, retomaram o projeto no Centro Israelita Brasileiro (CIB), por um ano. Com a mudança para a Casa de Convivência Social Dercy Gonçalves, em Copacabana, o FPC passa a contar com a participação da professora doutora e museóloga Ana Lúcia de Castro, na análise cultural dos filmes, conquistando um público diversificado e maior visibilidade, preservando a proposta de apresentação e análise de filmes cujo conteúdo proporcionasse amplo debate. A parceria firmada entre a UNIRIO e a AP RIO-3, atual SPRJ, em 2006, representa uma oportunidade de ampliar o evento, reestruturado como projeto de extensão, apresentado na Sala Vera Janacopulos, na Reitoria, onde ocorre nas últimas sextas-feiras do mês, com grande afluência. Se, de início, o público-alvo eram os profissionais da área Psi, ao se deslocar para o espaço universitário, a divulgação expandiu-se para professores e alunos de variadas áreas, assim como para o público em geral, sempre interessados nessa discussão. Com um intento que não se esgota, e que não pretende ser o único ponto de vista a ser discutido, a relevância de promover um debate informal, mas consistente, representa a oportunidade de transformar um encontro de cinema em um programa enriquecedor. Se a Psicanálise se insere, integralmente, na vida intelectual, afetiva e mental das pessoas, possibilitando o entendimento de conflitos, neuroses e psicoses, muitas vezes incompreensíveis ao público leigo, o Cinema, por sua vez, como disse o mestre espanhol, Luis Buñuel (1982), “é o melhor instrumento para exprimir o mundo do sonho, da emoção e do instinto”.

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Adoração


título original ADORATION país de origem CANADÁ lançamento 2008 duração 100’ elenco ARSINÉE KHANJIAN, SCOTT SPEEDMAN, RACHEL BLANCHARD roteiro ATOM EGOYAN fotografia PAUL SAROSSY trilha sonora MYCHAEL DANNA direção ATOM EGOYAN sinopse

Quando sua classe de francês traduz uma reportagem sobre um terrorista que plantou uma bomba na bagagem da namorada grávida, Simon começa a penetrar no passado tenebroso de sua família. Os motivos que resultaram na morte de seu pai, Sami, e de sua mãe, Rachel, atiçam sua vida no mundo real e virtual. Diante da crise familiar, o confuso adolescente, que vive com seu tio Tom, fecha-se cada vez mais, abrindo-se apenas para sua misteriosa professora de francês, Sabine. premiação

FESTIVAL DE CANNES / Prêmio do Júri Ecumênico curiosidade

Mychael Danna, autor da trilha, Paul Sarossy, diretor de fotografia, e Arsinée Khanjian, atriz e esposa do diretor, são parceiros constantes em vários trabalhos de sua filmografia.

Apresentação no FÓRUM DE PSICANÁLISE E CINEMA 28/05/2010


ANÁLISE CULTURAL // ANA LÚCIA DE CASTRO

Atom Egoyan é considerado um dos melhores cineastas canadenses, ao lado de David Cronenberg, de língua inglesa, e Denys Arcand, de língua francesa. Com prêmios nos Estados Unidos e na Europa, o diretor, nascido no Cairo, de descendência armênia e naturalizado canadense, oriundo de uma família de pintores, veio para o Canadá com três anos e formou-se em Relações Internacionais e em Música, sendo o piano seu instrumento de deleite. Adoração mescla, com considerável desenvoltura, imagens de webcams, registros de filmes de celular e linguagens audiovisuais contemporâneas, na busca de inserir questões familiares em sua forma e em seu conteúdo. Para obter material para o filme, o diretor criou um espaço virtual de comunicação na Internet, foi a escolas para mostrar aos alunos a história criada pelo personagem e observar suas reações. Os depoimentos dos colegas de Simon provêm de educandos desse colégio, e não de atores. Como uma de suas características recorrentes, Egoyan obtém sempre uma atmosfera delicada e introspectiva, estabelece paralelos entre tragédias coletivas e dramas individuais e, principalmente, desdobra estruturas narrativas enigmáticas que exigem do espectador empenho constante de decifração. Tudo isso está presente no filme, que mescla também uma reflexão sobre a intolerância em relação à cultura islâmica com uma trama familiar intrigante, colocando o aparato tecnológico como mediador dos conflitos. Provocante ao testar os limites entre o real e o imaginário, as aparências e os simulacros, as mentiras e as verdades que encobrem e justificam os segredos acumulados, o diretor constrói o tema em tempos distintos: ficção, realidade e projeção vão desenhando na tela um caleidoscópio imagético e emocional, pois nada é o que parece ser à primeira vista. Suas referências no cinema vão de Ingmar Bergman a Federico Fellini, Michelangelo Antonioni e Luis Buñuel a Robert Bresson. Mas sua linguagem cinematográfica se desenvolve a partir de tramas que o absorvem e o fazem olhar o mundo à sua volta, como os conflitos domésticos, foco recorrente em sua filmografia, afirmando em entrevistas que o luto da família lhe interessa; em qualquer filme, “ela é discutida como a menor unidade social em nossa sociedade, o que faz dela um tema inesgotável”. Egoyan diz que a história familiar não é tão simples como aparenta. Cada núcleo tem sua mitologia, e seus membros vivem e morrem por essas tradições. Só quando se desconstroem essas narrativas, há chance de se alcançar algum tipo de entendimento.

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O diretor debate que a juventude tem pouca confiança em suas próprias memórias ou em sua experiência de vida. Por isso, precisa dos equipamentos tecnológicos, conferindo um sentido de verdade, de experiência, que só o presente oferece. Para ele, a questão passa também pela noção de tempo, com uma velocidade e uma aceleração que são preocupantes, pois as pessoas não têm oportunidade para pensar, razão pela qual querem registrar tudo. Consequência: a construção de identidades abstratas, sem raiz na realidade e na vivência. O filme levanta debates sobre os sentidos do extremismo político, ao mesmo tempo em que a situação familiar se revela a partir de planos e contraplanos da memória. A mescla de um forte clima de suspense faz o filme se direcionar a uma contenda acalorada sobre terrorismo e intransigência religiosa, levando a cogitações sobre a origem dessas paixões. Apoiando-se em um fato real, busca o entendimento do papel da mídia e da tecnologia na vida contemporânea, e seus efeitos na construção das identidades, recolocando, como eixo central, uma história passada em 1986, na qual um jordaniano cuja namorada irlandesa grávida viaja para Israel, no voo da El Al, com uma bomba em sua bolsa, sem que ela soubesse de nada, até os seguranças a encontrarem. Mesmo que não se tenha prendido ao desfecho, a importância da questão ficou como uma interrogação a ser desvendada, na medida em que busca perceber melhor o que leva um ser humano a fazer tal escolha. A trilha sonora, do maestro canadense Mychael Danna, premiado e reconhecido internacionalmente, é intensa, intermitente, dando conta das variadas narrativas e, ao mesmo tempo, unifica todas as reminiscências e lembranças. A fotografia de Paul Sarossy pontua as nuances da trama fragmentada com luzes diferenciadas e sutis, enquanto que Arsinée Khanjian contribui com sua atuação para o clima intrigante da personagem. Egoyan, montando uma estrutura inteligente e complexa, mistura fato e fantasia, obrigando o espectador a interpretar e a submergir com a câmera para captar os sentimentos mais ocultos dos personagens, sendo Adoração um belo estudo sobre a natureza humana e suas contradições. Sempre reafirmando suas raízes armênias, seu filme Ararat recupera e documenta a destruição dos armênios pelos turcos, em 1915, com imagens e filmetes da época, e reconstrói o terror do que ocorreu naquele país. Quando suas atividades lhe permitem, revisita a Armênia, pois, como ele diz em entrevistas sobre o assunto, “o que o incomoda é o esquecimento, a negação da história, fatos que afetaram diferentes gerações”.

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Memória como questão: Armênia de Anton Egoyam

Denominada oficialmente de República da Armênia, é um país sem costa marítima, localizado em uma região montanhosa na Eurásia, entre o mar Negro e o mar Cáspio, no sul do Cáucaso, fronteira com a Turquia a oeste, Geórgia ao norte, Azerbaijão a leste, com o Irã ao sul, e localizado na Ásia. A Armênia foi povoada desde os tempos pré-históricos e era o suposto local do Jardim do Éden bíblico. Situado no planalto, entorno da montanha bíblica do Ararat, que, segundo a tradição judaico-cristã, significou o local onde a Arca de Noé encalhou após o dilúvio. Com extensas relações sociopolíticas e culturais com a Europa, e sendo a menor das repúblicas da extinta União Soviética, o país configura-se em um Estado unitário, multipartidário, democrático, com uma antiga e rica herança étnica e histórica. Devido à sua posição estratégica, entre dois continentes, a Armênia, ao longo dos séculos, foi invadida por diversos povos, como assírios, gregos, romanos, mongóis, persas, árabes, turcos e russos. Entre 1915 e 1923, o país sofreu o que os historiadores consideram o primeiro genocídio do século XX, imposto pelo Império Otomano, ao qual estava submetida. Toda a população armênia passou a ser tratada como um inimigo, em uma onda de limpeza étnica. As mortes foram estimadas em 1,5 milhão de cidadãos, e a deportação de outros milhões que, fugindo das perseguições, tomaram o rumo de países como França, Estados Unidos, Argentina, Brasil, Líbano e muitos outros, fato que se configura como uma das maiores diásporas pelo mundo, e negada até hoje pela República da Turquia. O Império Otomano foi um Estado turco que existiu entre 1299 e 1922, e que, em seu auge, compreendia a Anatólia, o Médio Oriente, parte do norte de África e do sudeste europeu. Fundado por Osman I, do árabe Uthmãn, de onde deriva o nome, sua capital era a cidade de Constantinopla, tomada do Império Bizantino em 1453. Nos séculos XVI e XVII, constava como uma das principais potências da Europa. Seu declínio começou ao longo do século XIX e terminou por ser dissolvido após sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Ao final do conflito, o governo otomano desmoronou e seu território foi partilhado. Atualmente, após a queda da União Soviética, a Armênia é membro de mais de 40 diferentes organizações internacionais, incluindo ONU, Conselho da Europa, Banco de Desenvolvimento da Ásia e Organização Mundial do Comércio. Nomes famosos da música mundial são armênios ou descendentes, como o famoso compositor Aram Khachaturian, a cantora americana Cher e o intérprete francês Charles Azsnavour.

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ANÁLISE PSICANALÍTICA // NEILTON SILVA

Adoração fala da intolerância e do ódio existentes na natureza humana, expressos sob a forma de patriotismos, de conflitos político-religiosos e culturais, postos em movimento, radicalmente, após o dia 11 de setembro. E apresenta, também, formas de amor determinadas, em graus diferentes de amadurecimento pessoal. O filme é descrito em uma linguagem de fragmentação da memória, em idas e vindas determinadas pela emoção, o que cria alguma dificuldade para a percepção dos limites entre o real e o imaginário. O diretor e roteirista desperta no espectador um clima de confusão e perplexidade, o mesmo método adotado pelo personagem ao lidar com seus interlocutores. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola o drama de Simon, que se espraia pela internet e põe em movimento nas pessoas os sentimentos e os conflitos de suas próprias experiências individuais. Quem é Simon? Um adolescente sensível, tímido e solitário que, contudo, cria com seu laptop toda uma rede de comunicação com colegas e seus respectivos amigos e familiares. Ele convive, há tempos, com um conflito particular e internalizado e, quando a professora de francês propõe um exercício de criatividade, solta o que está preso, usando pontos que lhe parecem de contato com a maneira como vive sua história. Quer que todos sintam sua criação como se fosse sua verdadeira história, para com eles discutir os próprios sentimentos, as próprias vivências. E, aí, um tema bom de discutir: o que leva uma pessoa a escrever um livro, a criar e, muitas vezes, a se tornar um artista? Dostoievsky é sempre descrito como aquele que tentou elaborar a própria culpa através de sua vasta obra. Proust, com Em Busca do Tempo Perdido, em meio a seus tormentos, tenta criar e recuperar a fantasiosa vivência de uma infância com personagens idealizados. Diz-se que Kafka, uma pessoa solitária com relacionamentos mínimos, procurou transmitir o viver em um mundo indiferente, incompreensível e hostil, seu mundo pessoal. Cada um procura, a seu modo, explicitar suas angústias, tentando dar um destino a elas. Pois bem, Simon assim o fez. Ele vivia em um mundo interno dividido, como se contivesse várias pessoas dentro dele. Segundo disse, foi criado para odiar seu pai, sentimento que uma pessoa querida, o avô, lhe inculcava com constância e intensidade. Ao mesmo tempo, amava esse pai porque convivera com ele em um clima amoroso e feliz. Convivendo com sentimentos contraditórios, filmava o avô

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atacando seu pai, como um modo concreto de afirmar esses ataques e, ao mesmo tempo, o defendia por dentro, certamente com a mesma intensidade. Vale dizer que, no modelo familiar, só o avô falava; tanto o tio, Tom, quanto a mãe de Simon, Rachel, e, possivelmente, sua avó, ouviam e fugiam, ou se opunham silenciosamente. Seus pais morreram em um acidente quando ele tinha entre 8 e 9 anos. Muitos eventos cercando essas mortes permaneceram nebulosos, do que se valia o avô para doutriná-lo sobre a monstruosidade de um pai primitivo, diferente, de outra cultura, que entrara na família e acabara com o paraíso, chegando a matar a própria mulher. Na verdade, o avô nunca aceitara, edipicamente, que a filha o trocasse por outro homem, e a fustigava com toda a intensidade de seu ódio. Esse senhor dominava a família com suas opiniões e com seu ódio, no dizer de Tom, seu filho, e colocava do lado de fora, nas pessoas, os sentimentos que não podia ver em si mesmo. Assim, ele induzia que a desintegração estava em Samy, o pai de Simon, e em sua gente – os árabes –, pois os teria introduzido em sua cultura, sua casa, com toda a violência e primitivismo, enquanto ele seria cheio de virtudes e manteria no lar mulheres santas, com as quais se relacionava idilicamente. Na medida em que colocava, dentro dos outros, partes de si com as quais não podia lidar, aparentemente, se via com qualidades, com pureza, mas, na verdade, se enrijecia e ficava sem elementos para ver a verdade de suas falhas e consertá-las. Tom denuncia, em off, que as reuniões de família, quando estavam juntos no Natal, eram odiadas por todos, por causa das atitudes do pai. Na visão paterna, Tom só “era bom com as mãos”; no resto, era incompetente e rejeitado. Reprimindo seu ódio, temia a própria agressividade porque, segundo dizia, o desejo era explodir esse pai. Cresceu sem se permitir ser hostil na vida e sem afirmar suas opiniões; não pôde ser bem-sucedido profissional ou emocionalmente. Mas Rachel, a irmã, parecia amar o irmão, via qualidades nele e o escolheu para cuidar de Simon e afastá-lo do ambiente doentio da casa do pai. Simon, por sua vez, tivera conhecimento de que seu pai, por razões diversas, não teria querido, a princípio, sua gravidez, embora, depois, parecesse feliz. Para uma criança, o fato de tomar conhecimento de que os pais, em algum momento, não quiseram seu nascimento, desperta muita mágoa e, não raro, um sentimento de que tentaram livrar-se dele, de que almejaram matá-lo. Os psicanalistas acompanham muitos desses casos na análise de adulto. Na visão de Simon, mais especificamente, o pai teria querido matá-lo e, assim, seria avaliado como um assassino, na visão do avô. Em uma aula de francês, a professora pede que cada aluno crie uma história a partir de uma notícia de jornal, segundo a qual um terrorista, procu-

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rando explodir um avião com destino a Tel-Aviv, não hesita em pôr explosivos na bagagem da mulher grávida e sacrificá-la juntamente com o filho, a fim de eliminar 400 passageiros. Simon descreve aquele fato como sua própria história e sua mente é um caldeirão em efervescência. Faz questão de que todos acreditem nessa versão e que possam com ele discutir na Internet o mais abertamente possível. Por que será que ele fazia isso? Certamente não sabia, mas, como outros escritores, tentava entender ou elaborar suas contradições e seus conflitos. A mente humana é muito rica na busca de soluções. Desde bebê, a criança coloca a angústia que não suporta dentro da mãe, e esta, sintonizada, compreende e devolve de uma maneira tranquilizadora, entendendo a comunicação que a criança faz através do choro: “Não é nada, não, meu filho, é o vento, é só um barulho, é sede, é fome...”. Por toda a vida, esse mecanismo de colocar a angústia dentro do outro, na esperança de alcançar respostas, são conservados e apaziguadores. Claro que, com o crescimento, tornam-se mais aprimorados e complexos. Pois bem, com um tema de mobilização universal, tragédia em meio a conflitos familiares, tendo o terrorismo como pano de fundo, Simon conseguiu, mais facilmente, introduzir pelos meios tecnológicos suas angústias na cabeça das pessoas. E de um modo completo, já que cada grupo de indivíduos, por problemas pessoais, passou a encarnar uma parte sua, ou melhor, o mundo interno contraditório e dividido em que se debatia. Tornaram-se concretas, nas falas expressas pelas pessoas, as racionalizações, críticas e defesas que o atormentavam por dentro. E estas se referiam às acusações ao pai pelo monstruoso ataque perpetrado versus o desejo de humanizá-lo com justificativas como: ele sacrificou seus bens mais preciosos pelo idealismo de uma causa nobre. Seria um bárbaro ou um herói? E Simon, a vítima impotente, como se situar? Nosso personagem passou a acompanhar e intermediar as discussões, agora explicitadas pelos participantes do site no mundo externo. Em determinado momento, tira seu hamster de dentro de uma gaiola e o põe para se exercitar, representando bem o que estava começando a ver com mais clareza: ele estava andando em círculos como o animal e corria o risco de ter de voltar para o enclausuramento de sua mente-prisão. Importante foi o fato de o tio chamá-lo para conhecer melhor seu pai: era um homem sensível, com um passado de trabalho com instrumentos musicais, um luthier que se apaixonara por sua mãe, exímia violinista, e que, através de uma voluta, pequena parte importante do violino, colocara-se presente no instrumento, ou seja, dentro dela, de maneira definitiva.

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Para Simon, ele não parecia ser um terrorista. Foi buscar os desenhos feitos pelo pai e, após cuidadoso estudo da estrutura do violino, demorou-se longamente na compreensão e no estreitamento da relação com ele. Foi emergindo e se fortificando, cada vez mais, uma verdade interna e tomou suas resoluções. Voltando à casa do avô, pegou os desenhos do presépio de madeira que representava, santamente, um quadro familiar feliz, juntou-os e tocou fogo em tudo, jogando, no meio, a câmera que documentava toda a pregação de ódio e mentiras sobre o pai, que o desintegrava. Em seguida, serrou, destacou e separou a voluta do violino, significando o pai, que encerrou amorosa e concretamente em sua mão. O tio, com problemas financeiros, agora, podia se desfazer do violino, como desejava; o pai estava integrado dentro dele. Outro personagem a se investigar é Sabine, a professora, uma pessoa muito importante em todo o desenrolar da história, que desencadeia todo o processo, finalizado em seu apartamento. É ela quem inspira, de uma forma ou de outra, o título do filme: Adoração. Em determinado momento, diz: “Perdi a família, perdi tudo e Samy me salvou”. Ao se sentir vazia, sem nada seu, precisando ir atrás do marido, recolhe as migalhas periféricas, secretamente, para se preencher e à sua vida. O avô de Simon, como se viu, tem mecanismos para lidar com a ansiedade, colocando dentro do outro aquilo que não gosta em si mesmo – o primitivo, o violento, o insensível. Sabine, ex-mulher de Samy, faz diferente, coloca o bom dela dentro da pessoa escolhida. Seus ideais de vida, qualidades mais valorizadas por ela, são introduzidas em Samy, resultando em sentir-se empobrecida, enquanto o interlocutor se enriquece aos seus olhos, pelo que já tem e pelo que nele depositou. Consequência: torna-se dependente, em um sistema de verdadeira adoração, como se fosse a uma divindade. As vantagens desse funcionamento não são lógicas; são infantis, emocionais: ela fica com um salvador à sua disposição para as situações difíceis. Ao se separar dela carregando suas riquezas afetivas, ela estava com ele. Dizia: “Eu nunca o deixei ir” e, para não perder seus valores, o acompanhava do modo que pudesse. Não podia ter filhos, se sentia vazia, e Simon, filho de Samy, seria, também, seu filho. Possivelmente, sua salvação prosseguia através da família deixada pelo amado, que seria dela também. Continuou cuidando de Simon e querendo ajudar Tom, na elevação da autoestima e em um relacionamento mais afetivo. Era a forma de amor que estava ao seu alcance, naquele momento.

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