Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de lĂngua inglesa Vol. XI
Fernanda Teixeira de Medeiros (ORG.)
Feminismos, Identidades, Comparativismos: Vertentes nas Literaturas de LĂngua Inglesa Vol. XI Fernanda Teixeira de Medeiros (Org.)
Copyright©, Das Autoras, 2013 Editor João Baptista Pinto Capa/Projeto/Diagramação: Francisco Macedo CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F735 – v. 11 Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa, vol. XI. /Fernanda Teixeira de Medeiros (org.). – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013. 160 p.; 14x21 cm. Inclui bibliografia Inclui sumário ISBN 978-85-7785-236-9 1. Literaturas de língua inglesa - História e crítica. 2. Feminismo e literatura. 3. Identidade (Psicologia) na literatura. 4. Etnicismo. 5. Literatura comparada. I. Medeiros, Fernanda Teixeira de, 1965-. II. Título: Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa. 13-06983
CDD: 820.9 CDU: 821.111.09
Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
Sumário
Apresentação Fernanda Teixeira de Medeiros – 7 Um jeito queer de (não) ser: a escrita autobiográfica em Nina Here Nor There, de Nick Krieger Adelaine La Guardia – 11 Poetas árcades e Inconfidência Mineira sob a ótica de Richard Burton Ana Lucia de Souza Henriques – 29 J. D. Salinger: voz dissidente dos anos 1950 Eliane Borges Berutti – 44 Retratos de Shakespeare na ficção brasileira contemporânea Fernanda Teixeira de Medeiros – 57 Práticas autobiográficas: a abordagem de experiências-limite nas literaturas contemporâneas de expressão inglesa Leila Assumpção Harris – 73 The Handmaid´s Tale, de Margaret Atwood: os novos caminhos do uso da fertilidade humana e os diferentes papéis de seus atores sociais Lucia de La Rocque – 87
Repensando o tema do exílio e do corpo ressonante: reflexões em torno de Quicksand, de Nella Larsen Maria Aparecida Andrade Salgueiro – 103 Cenas de sonhos e fantasias: o duplo e o erótico Maria Conceição Monteiro – 115 Empoderamento do sujeito feminino indígena em Storyteller e The Turquoise Ledge: A Memoir, de Leslie Marmon Silko Peonia Viana Guedes – 129 O manuscrito roubado e o poeta elisabetano: encontros no Brasil do século dezesseis Vivien Kogut Lessa de Sá – 145
Apresentação Fernanda Teixeira de Medeiros
Feminismos, identidades, comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa chega ao seu décimo primeiro volume – motivo, sem dúvida, de comemoração, para nós, professoras pesquisadoras do Mestrado em Literaturas de Língua Inglesa do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ. Celebrando a continuidade e a longevidade do projeto, convidamos, este ano, a colaborar no livro, duas articulistas externas, cujos trabalhos dialogam com nossas duas linhas de pesquisa. A linha A voz e o olhar do Outro: questões de gênero e/ou etnia nas literaturas de língua inglesa trouxe a Professora Adelaine La Guardia, da Universidade Federal de São João del-Rei, que realiza pesquisas nas áreas de teoria crítica feminista, literatura de mulheres, gênero e sexualidade; e a linha de pesquisa Literatura e Comparativismo convidou a Professora Vivien Kogut Lessa de Sá, da PUC-Rio e da Universidade de Essex, cuja pesquisa concentra-se atualmente na área de literatura inglesa do Renascimento. É Adelaine La Guardia quem assina o ensaio de abertura do volume, “Um jeito queer de (não) ser: a escrita autobiográfica em Nina Here nor There, de Nick Krieger”, no qual discute, à luz das teorias da autobiografia e da perspectiva queer, um texto produzido segundo um novo paradigma “pós-transsexual”. Partindo desse texto autobiográfico de Krieger, a pesquisadora investiga como o sujeito autobiográfico lida com as convenções, sistemas e instituições que produzem identidades viáveis e inviáveis, forjando, primariamente através da escrita do corpo, modos de existência queer alternativos. Ana Lucia de Souza Henriques dá continuidade à discussão iniciada em seu texto anterior, “Considerações acerca da literatura brasi7
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leira em Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, de Richard Burton”, com “Poetas árcades e Inconfidência Mineira sob a ótica de Richard Burton”. Neste segundo momento, aborda anotações do capitão Burton acerca dos homens de letras brasileiros – tomadas como contribuições para os estudos da escrita da crítica e da história da literatura brasileira –, destacando aquelas notas a respeito de poetas árcades cujas vidas estão marcadas pela Inconfidência Mineira. Revisitando o clássico The Catcher in the Rye, Eliane Borges Berutti sublinha em “J. D. Salinger: uma voz dissidente dos anos 1950” a denúncia contra a sociedade norte-americana do pós-guerra feita por um adolescente. Focalizando o protagonista/narrador Holden Caulfield como um porta-voz dos jovens rebeldes de sua época, o artigo examina em que medida o conformismo social, a afluência econômica, o consumismo e a mediocridade reinantes naquela década deram origem à insatisfação daqueles jovens norte-americanos. “Retratos de Shakespeare na ficção brasileira contemporânea” integra a pesquisa de Fernanda Teixeira de Medeiros sobre obras da ficção brasileira recente que dialogam com o universo shakespeariano. Os três romances comentados no artigo, O mistério do leão rampante (1995), O fazedor de velhos (2008) e Essa maldita farinha (1987), os dois primeiros de Rodrigo Lacerda, e o último de Rubens Figueiredo, produzem, cada um, uma certa imagem do poeta e dramaturgo inglês. Embora bastante diferentes entre si, os retratos guardam em comum a presença de contradições e ambivalências, como se só fosse possível pintar Shakespeare com cores e elementos contrastantes. Em “Práticas autobiográficas: a abordagem de experiências-limite nas literaturas contemporâneas de expressão inglesa”, Leila Assumpção Harris discute, a partir da produção literária de escritoras pós coloniais da última década do século XX e da primeira do século XXI, as práticas autobiográficas adotadas pelas escritoras migrantes de expressão inglesa, considerando a fluidez das fronteiras entre autobiografia e ficção, as conexões entre a consciência diaspórica e a expressão literária, o entrelaçamento do pessoal com o coletivo e o papel da literatura na abordagem de experiências-limite. As obras em 8
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foco são The True History of Paradise (1999), de Margaret Cezair Thompson; The Autobiography of my Mother (1996), de Jamaica Kincaid; e Purple Hibiscus (2003), de Chimamanda Ngozi Adichie. O romance da escritora canadense Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (1985), é o objeto de discussão de Lucia de la Rocque em “The Handmaid´s Tale, de Margaret Atwood: os novos caminhos do uso da fertilidade humana e os diferentes papéis de seus atores sociais”. O artigo se desenvolve com base na discussão do romance à luz de três ensaios do campo da Antropologia, e defende a noção de que essa distopia, embora possa ser descrita como sendo de ficção científica, é sem dúvida precursora, pois, ao mesmo tempo em que imagina uma sociedade em que a figura da mãe de aluguel se institucionaliza, aponta para os novos caminhos do uso da fertilidade humana e os diferentes papéis de seus atores sociais. No ensaio “Repensando o tema do exílio e do corpo ressonante: reflexões em torno de Quicksand, de Nella Larsen”, Maria Aparecida Andrade Salgueiro percorre a obra Quicksand com foco na trajetória da protagonista Helga Crane, que se desloca em espaços geográficos e afetivos, em leituras que ecoam ressonâncias de que seu corpo é permeado e que seu corpo permeia. O texto incorpora ainda leitura recente sobre o exílio e os deslocamentos forçados, a partir de escritos de autores da Europa Oriental, tais como Galin Tihanov (2011; 2013). O filme A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel, e o conto “Secret” (1994), de Ivy Goodman, são os dispositivos para uma reflexão sobre o “duplo” em “Cenas de sonhos e fantasias: o duplo e o erótico”, de Maria Conceição Monteiro. Tomando emprestado de Barthes a expressão “terceiro significado”, que configura o que o autor caracteriza como “significação obtusa”, a ensaísta enfatiza a dimensão semântica que o duplo incorpora, ao exceder a mera cópia do referente, para tornar-se uma compreensão poética que se projeta para além da cultura consensual. A investigação sobre as possibilidades e diversidade do gênero autobiográfico produzido por escritoras étnicas contemporâneas é o mote de “Empoderamento do sujeito feminino indígena em Storyteller 9
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e The Turquoise Ledge: A Memoir, de Leslie Marmon Silko”, de Peonia Viana Guedes. O ensaio demonstra como ambas as obras de Silko, contando histórias diferentes e usando modos de narrar diferentes, comprovam a importância da narrativa na formação da identidade pessoal e cultural de indivíduos e comunidades indígenas. Concluindo o volume, o texto “O manuscrito roubado e o poeta elisabetano: encontros no Brasil do século dezesseis”, de Vivien Kogut Lessa de Sá, acompanha a trajetória aventuresca de um manuscrito brasileiro atualmente guardado na Biblioteca Bodleian, na Inglaterra. Analisando os detalhes dessa história e seus personagens principais – os jesuítas que produziam doutrinas cristãs para servir na catequese dos índios brasileiros e o poeta e dramaturgo inglês Thomas Lodge, que roubou o manuscrito durante um ataque corsário a Santos, em 1591 –, o trabalho investiga os resultados deste inusitado encontro cultural entre a Inglaterra elisabetana e o Brasil-colônia. Esperamos que leitores e leitoras deste livro desfrutem da diversidade de seus dez ensaios e contactem, simultaneamente, alguns de seus interesses recorrentes. Os feminismos, identidades e comparativismos a que o título da coletânea alude não se pretendem exaustivos na construção de um panorama do estudo das literaturas de expressão inglesa no presente, mas representam, em contrapartida, uma espécie de ponte entre línguas, culturas, literaturas e tempos históricos distintos; assim como entre o Maracanã e o Canadá; entre o Rio e Essex; entre Minas e Estados Unidos. Contando sempre com o apoio e o incentivo da Coordenação do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ, acreditamos que essas pontes possam seguir sendo construídas, por muitos volumes a vir.
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Um jeito queer de (não) ser: a escrita autobiográfica em Nina Here Nor There, de Nick Krieger Adelaine LaGuardia O paradoxo permanecerá comigo para sempre, a escolha confusa de assumir um nome de homem, muito embora eu não me considere um rapaz. Permitir que palavras como Nick, ou mesmo ele ou ela, criem a minha identidade seria dar um poder absoluto demais a elas. Eu uso as palavras para me expressar e no entanto elas não me definem, não podem cristalizar uma vida em constante fluxo. As palavras são instrumentos de comunicação, como o gênero é um sistema de organização. E mesmo jogando com o sistema, ao escolher o banheiro, um pronome, uma caixinha num formulário, eu o vejo como uma estrutura feita de falhas, uma instituição que oprime a nós todos, com algumas vítimas sofrendo mais do que as outras [...]. Algumas pessoas o vêem como binário, um espectro, um continuum ou um arco-íris. Mas quando eu imagino meu próprio gênero, é com meu olho nas lentes de um caleidoscópio que eu giro, giro, giro. (Nick Krieger)
Introdução As primeiras autobiografias produzidas por transgêneros estruturavam-se sobre o princípio do “disfarce”, que permitia aos indivíduos “passar” como se pertencessem ao sexo oposto, o que produzia um paradoxo: se o objetivo era tornar indiscernível a própria transsexualidade, dificilmente o indivíduo poderia falar nos termos próprios à sua identidade. Observando esse dilema, Sandy Stone, em seu célebre manifesto “pós-transsexual”, publicado em 1991, convoca 11
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seus pares a se tornarem sujeitos de suas próprias narrativas e se deixarem ler conscientemente, problematizando, no ato de escrever-se, os discursos que os inscreviam historicamente. Respondendo a esse chamado, um número expressivo de narrativas autobiográficas passou a ser publicado nos anos seguintes, o que contribuiu para remodelar profundamente o campo dos estudos transgender. Este trabalho discute, à luz das teorias da autobiografia e da perspectiva queer, uma narrativa produzida segundo esse novo paradigma “pós-transsexual”. Trata-se do texto autobiográfico de Nick Krieger, intitulado Nina Here Nor There (2011), a partir do qual investigo como o sujeito autobiográfico lida com as convenções que produzem identidades viáveis e inviáveis, forjando, primariamente através da escrita do corpo, modos de existência queer alternativos. A análise desse tipo de produção literária, inspirada na perspectiva queer, busca, em geral, deslindar as formas como essas narrativas descentram os pressupostos de gênero que constroem as diferenças e hierarquias sociais a partir de normas culturalmente produzidas, e atravessam linguagens dominantes sobre sexualidades, gêneros e corpos. Como uma das vozes mais representativas da teoria queer, Judith Butler (1999; 1993), ao buscar compreender o processo pelo qual o indivíduo vem a assumir uma posição de sujeito, postula que as identidades são construídas no interior da linguagem e dos discursos. Para a filósofa, o sujeito, longe de se situar numa origem fixa, é instituído em contextos e momentos específicos que lhe permitem adquirir formas múltiplas. A crítica genealógica de Butler se aplica à ideia de que as identidades generificadas são construtos, performances involuntárias de scripts culturais mediados linguísticamente, que, por serem continuamente reiteradas, congelam-se no tempo, produzindo a impressão de um gênero natural e estável. Consequentemente, para Butler, a distinção entre sexo e gênero, enquanto manifestação biológica e cultural respectivamente, cai por terra, uma vez que sexo seria tão culturalmente produzido quanto gênero. J. Halberstam (1999), por sua vez, concebe gênero não como simples performance, mas como “ficção”, que se flagra hoje em 12
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filmes e vídeos, nas postulações da teoria queer ou em resposta às tecnologias da arte cosmética. As ficções de gênero são aquelas em que o corpo assume formas próprias, numa espécie de montagem que mistura e combina “partes do corpo, atos sexuais e articulações pós-modernas da impossibilidade da identidade” (Halberstam: 1999, p. 125). Como argumenta Eve Kosofsky Sedgwick (1990) no Axioma 1 de Epistemology of the Closet, essas ficções atestam que as pessoas são diferentes entre si. Daí que investigá-las implica um mergulho no desconhecido, a partir do qual se pode vislumbrar uma multiplicidade de identidades e eventos que resistem aos eixos comuns de categorização que consideramos naturais ou indispensáveis. Apesar de sua perspectiva essencialista, Jay Prosser (1998) apresentou as proposições clássicas acerca das autobiografias trans produzidas no século XX, em seu estudo seminal intitulado Second Skins: the Body Narratives of Transexuality. Assumindo uma perspectiva centrada na experiência da transição como “roteiro de identidade e de integridade corporal” (Prosser: 1998, p. 6), o autor rejeita certas proposições da teoria queer, particularmente a formulação de Butler do gênero como performatividade, ao insistir na especificidade da experiência transsexual, baseada na importância da “carne” para o ego, na diferença entre sexo e identidade de gênero, no desejo do sujeito transsexual de realmente assumir um outro gênero e, acima de tudo, em sua experiência do corpo que “simplesmente não pode prescindir de sua materialidade”. Como evidência disso, Prosser aponta a fórmula do “corpo errado”, recorrente nas autobiografias trans, como algo que melhor expressa a singularidade da experiência sensória da transsexualidade. A alienação corporal que acompanha essa condição é frequentemente representada como uma sensação de estar “preso no corpo errado” ou a uma “segunda pele” que se tenta descartar a todo custo. Frente a isso, a cirurgia de redesignação sexual, como um “rito de incorporação” (Bolin: 1988, p. 182), constitui uma espécie de retorno do ego através do corpo, que não figura nas narrativas como mutilação, mas como restauração, integração e “remembramento”. 13
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A crítica de Prosser ao construtivismo de Butler é emblemática de uma tendência dos estudos trans de conferir primazia à materialidade corporal como discurso fundador, para legitimar a diferença e a especificidade da subjetividade transsexual. As proposições teóricas de Prosser buscam evidenciar a materialidade como aquilo que supostamente estaria oculto ou sendo ignorado por trás da performatividade. Essa postura se torna problemática, por se valer de binarismos (interior x exterior; corpo x psique; materialidae x discursividade) e por pressupor que a experiência do corpo possa se dar fora do domínio linguístico. Para Gayle Salamon (2010), a insistência de Prosser de que o corpo transsexual é “incontestavelmente real” o conduz exatamente ao Real, domínio de plenitude e completude que existe apenas fora da linguagem, mas que, de fato, é fundamentalmente incompatível com a própria subjetividade. Entretanto, como Butler reafirma em Bodies that Matter, a materialidade não apenas existe, mas é também condição para a própria subjetividade: “Os contornos e a morfologia corporal não são apenas implicados numa tensão irredutível entre o psíquico e o material, mas constituem essa tensão” (1993: p. 16)1. A partir das proposições acima, pode-se interrogar como o corpo figura em Nina Here Nor There, de que forma é representado, e como as experiências corporais dialogam com as convenções e paradigmas de gênero, sexualidade e normalidade.
Muito Além do Gênero Nascido em Nova York, Nick Krieger mudou-se aos vinte anos para São Francisco, na California, onde publicou inicialmente textos de viagem hoje incluídos em diversas antologias nos Estados Unidos. Em uma entrevista concedida à fotógrafa Angela Jimenez2, o autor explica que seu texto se inciou como um projeto sobre a comunidade queer: “Escrever era um meio de descobrir o que realmente era ser transgênero. Eu não sabia de nada. Não conhecia nenhum transgênero. A certa altura, comecei de fato a explorar minha própria rota de gênero. Foi nesse 14
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ponto que resolvi transformá-lo numa história pessoal.”3 A narrativa de si apresenta-se aqui como uma construção performativa, já que, em vez de encenar um ego que teria dado origem a um eu autônomo e pré-discursivo, este é flagrado como um efeito do próprio discurso autobiográfico. De fato, a escrita de Krieger se constitui como sítio dinâmico que reflete múltiplas performances identitárias, funcionando como uma espécie de espelho das relações sociais, dos modelos comportamentais e dos discursos disponíveis em seu contexto, a partir dos quais o sujeito busca se posicionar sempre de forma provisória e marcada por oscilações dinâmicas. Assim, o texto apresenta não o indivíduo autônomo das narrativas autobiográficas convencionais, mas a diferença da identidade marginalizada que se desdobra através das fronteiras fluidas da relacionalidade, em vez das diferenciações em relação à alteridade. Assim também, o texto assume o caráter não apenas de uma escrita de si, podendo ser lido como uma biografia ou uma autobiografia dos outros. Em outras palavras, o relato do narrador é refratado através das histórias alheias ali registradas, à maneira dos textos confessionais ou etnográficos, que extende o autos à coletividade. A vida numa república de transgêneros, a convivência social no bairro Castro de São Francisco e o diálogo com pessoas como Greg, Bec, Jess, Erin e Melissa, todos em processo de transição, abrem novas perspectivas que permitem ao narrador perceber o gênero não como uma marca, mas como um amplo espectro de possibilidades ou rotas de identidade: Ultimamente, parecia que esses caras trans, como a maioria das pessoas os chamavam, estavam em toda parte – nos bares, livrarias, parques, na minha casa, na minha rua – sua presença refutando o que eu sempre havia tomado como fato, de que aqueles com um F em suas certidões de nascimento eram automaticamente mulheres. (Krieger: 2011, p.11)4
Naquele ambiente, era impossível para mim distinguir o que os sinais de gênero significavam para as pessoas – coisas como brincos, estilos de cabelo, preferência por roupa íntima e pêlo corporal – se 15