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FIGURAÇÕES DAS AMAZÔNIAS EM MILTON HATOUM E VARGAS LLOSA


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)


Ezilda Maciel da Silva

FIGURAÇÕES DAS AMAZÔNIAS EM MILTON HATOUM E VARGAS LLOSA


Copyright © Ezilda Maciel da Silva, 2017 Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores, bem como as figuras utilizadas. Os erros gramaticais e as opiniões expressas isentam a editora ou os organizadores de quaisquer responsabilidades. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor João Baptista Pinto

Capa/Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães

Revisão Amilton José Freire de Queiroz Simone de Souza Lima

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M138f Silva, Ezilda Maciel da Figurações das amazônias em Milton Hatoum e Vargas Llosa / Ezilda Maciel da Silva. 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2017. 184 p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-508-7

1. Cultura - Amazônia. 2. Patrimônio cultural. 3. Amazônia - Aspectos sociais. 4. Pluralismo cultural. 5. Hatoum, Milton, 1952- - Crítica e interpretação. 6. Vargas, Llosa 1936 - - Crítica e interpretação. I. Título. 17-42966 CDD: 363.69098113 CDU: 351.853(811.3)

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


A gr a decimentos

A

o bom Deus que, em meio a tantas lutas, me permite continuamente evocá-lo e trazer à mente suas palavras contidas em Salmos 116:12: Que darei ao SENHOR por todos os seus benefícios para comigo? Pergunto-me o mesmo. Deus, bendito, olhando para trás e por muitos motivos, reconheço o quanto és bom. Obrigada senhor! Ao meu esposo, companheiro e confidente de todas as horas. Obrigada, amado, pela paciência, apoio e ombro amigo que nunca reclamaste em disponibilizar. À professora Dra. Simone de Souza Lima, responsável por ensinamentos que certamente transcenderam a pesquisa. Aos queridos Amilton, Myully e Andrea, pelo apoio incondicional À Universidade Federal do Acre (UFAC), e ao projeto REUNI, por terem viabilizado ajuda financeira, imprescindível para esta pesquisa. Ao Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade, e todo seu corpo docente, por me possibilitar a oportunidade de realização dessa pesquisa. Esses agradecimentos se estendem a cada um dos professores com os quais pude obter ensino público de qualidade. À minha querida família. À minha família em solo acreano: José Edson, Nires, Aelissandra, Mara, Éder Carlos, Maria, Djalma e todos os demais membros da família Jerusalém. Ao artista plástico Aléx Rodrigues, pelo belíssimo trabalho, especialmente produzido para este trabalho. Aos professores doutores Agenor Saraf, Gerson Rodrigues de Albuquerque e Francisco Bento, por todas as contribuições intelectuais dadas a essa pesquisa. À Faculdade da Amazônia Ocidental (FAAO), em especial a seu Diretor Samuel Vieira Corrêa.



S umário A presentação ..........................................................................9 I ntrodução ..............................................................................15 Capítulo I: F igur ações

das

A ma zôni as :

fronteir as e noma dismos ........................................................19

1. A temática das Amazônias.......................................................19 2. Rotas da figuração – Euclides da Cunha ...............................24 3. As representações das Amazônias no mundo........................36

Capítulo II: A T radução L iterária

das

Amazônias....51

1. A tradução das Amazônias em Milton Hatoum.....................51 2. A tradução das Amazônias em Vargas Llosa..........................68

Capítulo III: E ntrel aça ndo A ma zôni as –

E ntre V ozes

e

C inz as ..............................................................91

1. A palavra “fronteira” em seu caráter dialógico......................91 2. (Rai)mundo e Mascarita: identidades em reconstruções.....100 3. Alteridade e identidade na obra de Llosa.............................131 4. Trocas culturais nas fronteiras: sujeitos em trânsito ...........158

C onclusão ...................................................................................171 R eferênci as .................................................................................179



A presentação Entre sobrevoos latino-americanos – trançando as Amazônias de Ezilda Silva

Filha das travessias pelas terras paraenses e acrianas, a obra

Figurações das Amazônias em Milton Hatoum e Vargas Llosa é resultado de um olhar lançado entre as dobras do pensamento póscolonial e a prática comparatista construídos junto ao Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre, sob a orientação da Dra. Simone de Souza Lima. Desse locus discursivo brota uma rede de percepção inter, trans e multidisciplinar da pesquisadora Ezilda Maciel da Silva, projetando, discursivamente, a força das trocas culturais como chave de leitura sine qua non para mergulhar no labirinto das narrativas latinoamericanas contemporâneas. Concebendo-as como lugares de tânsitos multimodais, a escrita envolvente deste trabalho desloca o leitor para dentro e fora das redes de heterogeneidade cultural dos trópicos, abrindo horizontes teórico-críticos que aportam na dinâmica da diferença através da cartografia do imaginário híbrido. Posicionada na encruzilhada do imaginário intercultural, a escrita de Ezilda Silva desliza entre as malhas discursivas das Amazônias, um deslizamento pelas comarcas culturais, como diria Ángel Rama, para traduzir as opacidades, as marcas e os marcos da diligência do encontro entre o próprio e o alheio das Amazônias brasileira e peruana. Entre (re)costurar as brechas de sentidos, reconfigurandoos como integrantes de uma geografia do deslocamento, do atrito cultural cuja senha faculta a ida e avolta em meio às rodovias interculturais, os caminhos trilhados pelo trabalho da pesquisadora amazônica apontam para exploração de zonas metodológicas que testemunham a força motriz do diálogo entre contextos plurais. Tendo como epicentro esse fio argumentativo, o percurso de leitura construído denuncia como a voz etnocêntrica tentou apagar os vestígios do imaginário dos contextos heterogêneos, fazendo-os viver sob os limites da tentativa de uma vida de pureza cultural, que 9


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se viu abalada com o reconhecimento das conexões e mobilidades espraiadas entre as tramas do Novo Mundo. Com o abalo das redes eurocêntricas, vistas como limitadoras, tornou possível revisitar as cenas do encontro entre sociedades, línguas e culturas das Américas. Assim, o deslocamento em direção à geografia do encontro serve de veículo para decifrar o itinerário de outros sujeitos guiados pelo sentimento da errância intercultural. Mais ainda, o retorno ao cenário dos enredos da história cindida permite projetar outras fricções que, longe de fecharem-se na redoma do medo de interagir, oportunizam a travessia crítica pela solidariedade disjuntiva latinoamericana. Agindo dessa forma, a escritura movente projeta a presença do alheio na zona do próprio das Américas, bem como cartografa as interfaces das conexões europeias, asiáticas e africanas. Disso resulta a expansão da relação rizomática entre as culturas móveis, abrindo reflexões balizadas pela constelação do intercâmbio, cuja lógica não se faz pela edificação do polo superior ou inferior. Por conseguinte, a tônica do encontro entre culturas e continentes vem alimentada pela percepção de histórias testemunhadas pelo alcance da voz de atores culturais híbridos. Ao adotar a envergadura múltipla das relações, os nortes da leitura deste trabalho revelamse cadenciadores da coesão e coerência das redes de conexão de alteridades radicadas da interação latino-americana. Outrossim, o mapeamento da travessia para outros espaços contribui para perceber como o jogo da relação se fortalece com as interferências triangulares forjadas na teia do conhecimento alheio. Tais movimentos articulatórios gesticulam em direção ao itinerário das zonas de alteridade latino-americana. Neste projeto de construção das redes de movência, figura-se o rastro da mobilidade linguística, cultural e ética de sujeitos tecidos em ritmo de diferença. Posicionado, enfim, no limiar dos saberes, este livro consubstancia-se à tarefa precípua de interligar conhecimentos e trajetórias plurais da cosmologia interplanetária. Sendo assim, “dialogar”, “mapear” e “trançar” são três verbos que dão o tom da leitura cruzada desenvolvida entre Milton Hatoum e Vargas Llosa. As narrativas selecionadas como porto de análise são Cinzas do norte e O falador, textos cuja densidade estética abraçam a projeção de diálogos entre línguas, culturas e imaginários plurais. Localizada

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na fronteira das articulações, a régua de medição dos territórios da ficção latino-americana obedece à premissa de que é necessário dilatar o fluxo das trocas, apostando na cartografia da performance de atores culturais os mais diversos possíveis. Premida da atitude reflexiva que problematiza o próprio ato de enunciação, com o fito de fugir às inclinações atávicas do senso comum, a rota de trabalho proposta por Ezilda Maciel parte das figurações das Amazônias, vista a partir de suas fronteiras e práticas de nomadismos. A concepção de fronteira trazida para integrar o corpo das estratégias argumentativas encontra guarida na postulação de que as fronteiras deslizam constantemente, descamando as redes de sentidos jogadas sobre a superfície da memória amazônica. É esse processo de descamação dos jargões que justifica a ruptura das fronteiras consensiosas da poética do contato entre as culturas, alojando-se no limiar das ressignificações dos lugares de passagem. Eles fazem emergir fronteiras cada vez mais móveis, onde a lógica do imaginário desvia-se da edificação dos pilares dos exotismos, mas cede espaço para ressemantizar, entrelaçando o remapeamento das pegadas de ruptura em direção à topografia das paisagens da mobilidade linguística, cultural, étnica e estética das fronteiras latino-americanas. Da noção de fronteiras renegociáveis, logo nasce guiadas pela repactualização com outras alteridades, brota a frente interpretativa do nomadismo cultural. Argumentando a necessidade de reler os escritos de Euclides da Cunha sob os influxos da mobilidade, Ezilda Silva mostra que, circunscrito ao raio do olhar retilíneo, Euclides da Cunha não consegue “ver na região e culturas indígenas uma civilização”. Constatado esse aspecto, a pesquisadora avança no sentido de reconhecer que o nomadismo é uma chave de leitura fundamental para entender os processos de deslocamentos no complexo e rico imaginário amazônico. O nomadismo passa a ser ponto singular para mapear a fluidez das práticas culturais, permitindo outros entrecruzamentos e difusão de experiências intervalares. É desse ponto de vista que, acertadamente, a autora deste livro indica os escritos do autor carioca como uma rota de figuração lapidar para compreender os desdobramentos das imagens projetadas nas produções artísticas amazônicas. Uma indicação que motiva repensar, cotidianamente,

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a dinâmica do reposicionamento das alteridades no contingente das representações culturais contemporâneas, exercitando, portanto, a deambulação para dentro e fora da plasticidade das culturas nômades das Amazônias. Amazônias no plural, um substantivo muito recorrente na agenda dos debates contemporâneos. As Amazônias cartografadas na escrita de Ezilda Maciel passam pela poética da tradução de atores híbridos, enraizados dinamicamente na trama das solidariedades latino-americanas. Solidariedades que nascem da travessia entre dinâmicas linguísticas, bens culturais, traumas e contextos de silenciamentos. As Amazônias indígenas, caboclas, brancas, negras, masculinas, femininas, brasileiras, peruanas, entre outras mais, são os traços da paisagem pintada na vereda da argumentação deste livro. Um texto que, falando da diversidade de olhares, se revela o mais múltiplo possível, aquecendo o grau máximo dos compromissos da literatura comparada hoje, ou seja, transversar e ser transversalizada pela constelação interplanetária dos saberes rizomáticos. A inclinação ao exercício transversalizador é um dos veios mais produtivos que se sobressaem na leitura dos imaginários narrativos de Milton Hatoum e Vargas Llosa. A transversalização acontece do ponto de vista da imbricação interterritorial, teórica e intercultural, revelando um conhecimento apurado das linhas de força da temática sobre discursos, contextos e culturas latinoamericanas. Lidos com acuidade comparatista, os dois escritores dos trópicos traduzem as Amazônias em seus respectivos tons e semitons da poética da migração. Além disso, a escrita da dupla sul-americana (des)(re)territorializa as percepções dos sujeitos em trânsito, divorciados do chauvinismo e do medo de interagir com outros atores, performatizando a energia das trocas culturais. Atravessando rios, culturas e margens móveis, figurações das Amazônias é, portanto, uma obra que entrelaça trajetórias, sujeitos e línguas. É um espaço de movência onde sobrevoam vozes, cinzas e olhares para aquilatar a (re)abertura das redes de sentido sobre o valor da poética do contato entre as culturas latino-americanas. É um convite para entrar na intimidade de um continente da letra onde a bússola de travessia encaminha o leitor para os labirintos da diferença. Uma errância pela palavra alheia, cujo sabor da leitura será conjugado no deslocamento de uma página a outra, momento

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no qual será possível cartografar a marca do entre-lugar de uma intelectual pan-amazônica, radicada entre as fronteiras do Norte e que amplia, neste momento, seu itinerário crítico como doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária da UNB. Para nós leitores, é aberta uma vereda para deslocar-se entre as Amazônias de Milton Hatoum e Vargas Llosa. Voemos, então, entre as páginas desta obra para traduzir as paisagens da voz da pesquisadora Ezilda Maciel da Silva. Voemos e trancemos....! Amilton José Freire de Queiroz Simone de Souza Lima

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I ntrodução

Este livro resulta de estudos, pesquisas e leituras sobre a Ama-

zônia, aos quais me dediquei da graduação ao doutoramento. Em minha trajetória como pesquisadora, instigou-me como a Amazônia foi sendo inventada e propagada, desde os primeiros viajantes até a contemporaneidade, mostrando-me como as ideologias são reavivadas em cada época e de acordo com os interesses envolvidos em cada período da história. Além desse enfoque, busquei refletir a respeito das formas pelas quais as populações amazônicas foram, ao longo do tempo, estereotipadas, degradadas e silenciadas em relatos, e historiografia oficiais, bem como em contos, ensaios, crônicas, poesias e romances. Observei que um número considerado de romancistas, em distintas épocas1, consciente ou inconsciente de seu papel na construção de imaginários, ajudou a endossar, propagar e fixar um discurso que, gradativamente, tornou-se ferramenta eficaz para manter no apagamento as populações nativas dessa região. De forma instigante, notei que, diferindo dos primeiros colonizadores da região que aniquilavam as populações nativas, alguns romancistas como Ferreira de Castro (1898-1974), Alberto Rangel (1871-1945), entre outros, fizeram o mesmo, só que de maneira mais sutil, ou seja, endossando discursos outrora criados sobre a flora, a fauna e as populações amazônicas, e reatualizando-os em suas ficções. À medida que avançava na pesquisa, delimitei meu objeto de estudo e separei os romancistas, de acordo com as nuances que os distinguiam culturalmente; as regiões tomadas como cenário em suas obras; e seus países de origem, a fim de constatar a homogeneidade existente nas figurações que atribuíam aos povos amazônicos, especialmente, aos indígenas e ribeirinhos. Entre os quais pode-se elencar com principais expoentes, Ferreira de Castro, Alberto Rangel, José Eustacio Rivera, entre outros. 1

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Introdução

Diante dessa seleção, considerei eleger os romances de Milton Hatoum e Vargas Llosa como objetos de análise, pois ambos trazem para o centro de suas narrativas, lugares diferentes para pensar, traduzir e narrar o espaço amazônico, servindo, portanto, aos propósitos da pesquisa, quais sejam: trazer à baila várias figurações do espaço amazônico, a partir de traduções que se solidarizem com as populações amazônicas, independentemente de onde elas estejam representadas. Outro ponto a evidenciar é o fato de que a escolha de Milton Hatoum e Vargas Llosa deu-se também em função de que ambos erguem suas arquiteturas romanescas, tendo lugares de fronteira – geográficos, linguísticos, territoriais ou culturais –, como palco de atuação de seus personagens. Esses autores situam os personagens numa imensa fronteira, localizada na parte ocidental da Amazônia, precisamente da região manauara e da peruana, e estendendo-se por outros lugares do globo. Milton Hatoum e Vargas Llosa apresentam, nas narrativas Cinzas do Norte2 (2005) e El Hablador (1987)3, retratos aproximados das particularidades do microcosmo que compõe as duas Amazônias: manauara e peruana. No caso de Hatoum, a narrativa alude ao fim das velhas representações exóticas que traziam a natureza como personagem principal das narrativas e que apresentavam o sujeito estereotipado, estático no tempo e inerte às trocas culturais. Com Llosa, a ideia também se mantém, contudo, ele se centra em demonstrar os problemas de se tratar a alteridade, a partir de modelos homogêneos de cultura e sociedade. A narrativa de Llosa traz para o primeiro plano do enredo a luta das populações indígenas amazônicas para manter práticas culturais ancestrais dentro de um país que se quer uno. Do mesmo modo, relevante também para a escolha desses romancistas, foi o manuseio da língua espanhola, o que facilitou a coleta e a leitura de alguns dados preservados somente nos textos originais, pois boa parte dos romances, especialmente os mais an2

Doravante passa-se a usar a abreviação CN para Cinzas do Norte.

Pertinente se faz esclarecer que a primeira edição da obra El Hablador é de 1987, contudo, para este trabalho adota-se a edição de 2010. 3

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Introdução

tigos, utilizam vocabulários difíceis de serem mantidos nos textos traduzidos. Assim, ante a percepção de que Milton Hatoum e Vargas Llosa, cada um a seu modo, em seu tempo e na sua língua, solidarizam-se na construção de obras romanescas que tematizam a Amazônia e que, além disso, erguem figurações sem o ranço nefasto do exotismo, deduzi que poderia alcançar os propósitos da pesquisa. Construí, então, a hipótese de que os romances desses autores inovam nas diferentes figurações do espaço amazônico, pois o compreendem como repleto de elementos imaginários trazidos desde os processos coloniais. Cabe ainda esclarecer que, ao optar pelo título Figurações das Amazônias em Milton Hatoum e Vargas Llosa, procurei dialogar com as vozes que ecoam nos imaginários e alimentam fantasias sobre as populações amazônicas e suas culturas. Essas vozes reportam-se às de tantos sujeitos silenciados e insepultos trazidos às narrativas por personagens que deixam ressoar histórias, saberes e experiências por muito tempo silenciadas no quadro das figurações amazônicas. A partir de uma abordagem comparativa da literatura, enveredei pela pesquisa bibliográfica, embasada nas teorias pós-coloniais que trabalham com conceitos como: figurações, hibridismo, diáspora, fronteira, diferença cultural, alteridade, minorias étnicas e zonas de contato. Para fundamentar a discussão desses conceitos, vali-me dos textos teóricos de Thomas Bonnici, Boaventura de Souza Santos, Zilá Bernd, Homi K. Bhabha, Sandra Jathay Pesavento, Marli Fantini, Paul Zumthor, Márcio Souza, José Miguel Oviedo, José Carlos Mariátegui, Mary Louise Pratt, entre outros. Os resultados da pesquisa podem ser vistos nos três capítulos que estruturam este livro. No primeiro, trago as principais rotas de figuração feitas a partir do século XX, tomando como ponto de partida os escritos de Euclides da Cunha (2000), justifica-se esta escolha, pois este escritor foi um dos mais influentes na constituição de um pensamento etnocêntrico sobre a Amazônia. No segundo capítulo, intitulado “A Tradução Literárias das Amazônias”, discute-se, na primeira seção, a força das representações na formulação de imaginários, bem como o papel que a lite17


Introdução

ratura exerce nessas construções dos imaginários, de forma a demonstrar como ela é capaz de fundar mundos e reafirmar coerções. Na seção seguinte, aponta-se como Milton Hatoum e Vargas Llosa fazem de suas narrativas traduções verossímeis do espaço amazônico. Pode-se observar que ambos consideram o sujeito e suas experiências como parte elementar desse território. Nas Amazônias de ambos, o determinismo paisagístico perde espaço para as histórias de sujeitos que dialogam, se entrecruzam e se amalgamam para mostrar como o novo, o diferente, surge a partir da interação entre os sujeitos independentemente de onde ele esteja. No terceiro e último capítulo deste livro – intitulado “Entrelaçando Amazônias – entre Vozes e Cinzas” –, a análise se volta para os romances Cinzas do Norte (2005) e El Hablador (1987). Nessa seção, pode-se notar como a ruína de velhos imaginários serviu de base para os romancistas erguerem suas ficções e demonstrarem sujeitos inseridos em tempos e espaços diversificados das Amazônias, e do mundo. Nesse tópico, averigua-se, ainda, que ambos romancistas embaralham paisagens e vozes correlacionadas em uma imensa fronteira, onde cada sujeito é único, singular e heterogêneo, transformando e se deixando transformar nos/pelos espaços, e culturas com as quais entram em contato. Ditas estas palavras, a partir de agora convido meu leitor a iniciar a leitura deste livro, tendo como percurso inicial as formas pelas quais as identidades dos povos amazônicos foram sendo figuradas.

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Capítulo I

F igur ações

das

A ma zôni as :

fronteir as e noma dismos

1. A temática das Amazônias O escritor arma a representação dramática da vida, e escrever não é apenas reconstruir a vida, mas dar-lhe enriquecimento, perfazê-la em suas falhas, exaltá-la em suas belezas. Leandro Tocantins

A temática das Amazônias desperta enorme interesse no

mundo acadêmico e fora dele. Não somente por sua biodiversidade e riqueza natural, mas, sobretudo, do ponto de vista cultural. As Amazônias sempre tiveram, de uma forma ou de outra, o dom de impressionar, maravilhar e envolver aqueles que sobre elas se debruçam. Falar sobre esta região plural solicita a articulação de novas epistemes4, sustentadas por um conhecimento pautado nas experiências sociais dos sujeitos que a compõem, independente de quem as produza. Por meio desse enfoque, a pluralidade epistemológica pode conferir à região uma oportunidade de tornar visível sua diversidade de culturas e comunidades por séculos silenciadas. Neste livro, a finalidade é refletir sobre o papel das figurações na conformação de temporalidades e espacialidades no imaginário móvel das Amazônias. Para levar a termo tal debate, realizou-se, neste capítulo, um mapeamento das principais figurações trabalhadas no universo da escrita de Euclides da Cunha, especialmente das que sustentam a moldura de Um Paraíso Perdido: reunião de ensaios amazônicos5 (2000). A questão principal que se observou neste auSegundo Boaventura de Sousa Santos (2010), epistemologia é toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. 4

É pertinente esclarecer neste momento que, embora se saiba existirem outras figurações e imaginários tão ou mais conhecidos como os dos escritos euclidianos, os que aqui interessam retratar são especificamente aqueles elaborados a partir do século XVIIII. 5

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Capítulo I: F i g u r a ç õ e s

das

Ama zôni as:

fronteir as e noma dismos

tor brasileiro é o modo de figuração do nomadismo praticado na sociedade amazônica. A partir dessa constatação, buscou-se averiguar o mesmo tema nos escritos de Hatoum e Llosa. Para tanto, trabalhou-se na interface da Literatura Comparada e dos Estudos Pós-Coloniais, procurando aproximar criticamente os conceitos de “fronteira, imaginário, nomadismo e hibridismo cultural”, a fim de se entender como se consolidou, ao longo dos anos, o processo de figuração das identidades pan-amazônicas. Neste passo, refletiu-se sobre o conceito de figuração. As explicações encontradas no dicionário Aurélio6 ajudam a nortear as possíveis significações que esta palavra pode ganhar. Nele, lê-se que “figurar significa: 1. Traçar a figura, a imagem de algo. 2. Aparentar, fingir. 3. Representar na imaginação, lembrar, conceber, fantasiar, supor”. Em meio a esse emaranhado de possíveis significações, visualiza-se um substantivo preciso para se nomear as formas pelas quais a Amazônia7 foi sendo fundada nas representações literárias e nos imaginários de muitos de seus “admiradores” – fantasia. Por esse viés, a pesquisadora Zilá Bernd – no contexto das Américas, o qual inclui a região amazônica – afirma que: Os textos inaugurais sobre as Américas, escritos pelos descobridores e mais tarde pelos primeiros viajantes e colonizadores, têm uma característica comum: negar uma identidade aos autóctones, insistindo na negatividade na carência e cunhando, de certa forma, uma matriz identitária marcada pela falta e pela privação (2003, p. 22).

Assim, os primeiros colonizadores do Novo Mundo, por meio de comparações, buscaram atribuir aos povos “recém-descobertos” uma identidade semelhante a sua, pois se consideravam como parâmetro de imagem, cultura e civilidade a serem alcançados. Os efeitos dessas comparações, nos textos escritos pelos viajantes, foram decisivos para cunhar as formas pelas quais as outras culturas seriam vistas. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 6

Todas as vezes que faço uso da palavra Amazônia, no singular, e não Amazônias, refiro-me ao signo de homogeneidade que ela carrega. 7

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Capítulo I: F i g u r a ç õ e s

das

Ama zôni as:

fronteir as e noma dismos

A maioria dessas descrições postulava “um sentimento ambíguo que se ancora em algum lugar entre o pensamento e a recusa” (BERND, 2003, p. 22). Neles, quase sempre, as gentes eram pensadas pela lógica da oposição e exclusão, vistas por uma visão “etnocêntrica, que dividia o mundo entre civilizados e bárbaros” (BERND, 2003, p. 22-23). Desse modo, gradativamente, as figurações feitas por esses viajantes foram “in/fundando” a região amazônica e consolidando ideologias que, de diferentes modos e em diferentes momentos, cunharam, entre outras coisas, o que Zilá Bernd (2003) chamou de “experiência da falta”, ao invés de constatação da existência de sociedades e práticas culturais que, a seu tempo e modo, referendavam as identidades daqueles que as praticavam. Euclides da Cunha foi um dos primeiros escritores modernos a tentar descrever a “Amazônia”, sua produção tanto influenciou como se deixou influenciar pelos antigos discursos e imaginários difundidos sobre a região. Notadamente, na época em que esteve na Amazônia, sua atenção, bem como a das elites brasileiras, estava voltada para a economia caucheira, porém alicerçada nos discursos fundadores. Em seus ensaios, dispostos na obra Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos (2000), pode-se constatar a incrível “força social” e histórica que as ideologias possuem. Neles, a Terra sem História, a Hylae portentosa, é retratada pela mesma ótica de antigos imaginários, embora não fosse essa sua intenção, como se pode notar na carta que envia a Artur Lemos: E, se realmente conseguir escrever o livro anunciado, não lhe darei título que se relacione demais com a passagem onde Humboldt aventurou as suas profecias e onde Agassiz cometeu seus maiores erros. Escreverei um Paraíso Perdido, por exemplo, ou qualquer outro em cuja amplitude eu me forre de uma definição positiva dos aspectos de uma terra que, para ser bem compreendida, requer o trato permanente de uma vida inteira (CUNHA, 2000, p.).8 CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido (ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia). Organização, introdução e notas Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: José Olympio; Rio Branco: Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto do Governo do Estado do Acre, 1986, p. 227. (Edição comemorativa do 80º aniversário da presença de Euclides da Cunha na Amazônia 1905-1985). 8

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Na realidade, Euclides pretendia, conforme escreve a Coelho Neto, em 10 de março de 1905: “escrever um livro no qual pudesse vingar a Hylae maravilhosa, de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a macularam desde o século XVII” (CUNHA, 1896, p.227)9; contudo, ele faz exatamente o contrário: endossa o discurso dos “adoidados” e reaviva um imaginário poderoso para macular a região amazônica. Para prosseguir nesse prisma temático, faz-se necessário apresentar um breve apanhado do contexto histórico que envolvia a Amazônia quando Euclides da Cunha a conheceu. Como é sabido, em 1905, o Brasil presenciou grandes transformações políticas e sociais, sobretudo e especialmente no tocante à economia, em virtude do fim da escravidão no país por volta de 1888, período em que o país experimentava profundas transformações em todos os aspectos da sociedade, tendo por foco a produção do café. Naquele momento, a economia brasileira começava a se desenvolver e acumular capitais, conseguidos, em parte, através das enormes cifras obtidas com a exportação de borracha, que tinha como centro de captação as cidades de Belém e Manaus. Como consequência – embora naquela época poucos as imaginassem assim –, essas duas cidades foram submetidas a profundas transformações, devido ao aumento na produção do látex. Essa produção movimentava grande contingente de pessoas provenientes de todas as partes do país e do mundo, a fim de suprir a escassez de mão de obra e conseguir manter ativa essa economia, o que acabou ocasionando mudanças radicais na infraestrutura e dinâmica sociocultural dessas cidades. Por isso mesmo, nesse período, chegavam nessas cidades muitos migrantes nordestinos e estrangeiros atraídos pelo sonho de acumular riquezas e reconstruir a vida em um lugar oposto à árida paisagem da terra natal. Esses sonhos, somados aos discursos políticos que circulavam naquele momento, com ênfase nas secas, os impulsionavam a buscar as riquezas da região edênica10. 9

Idem, p.227

Essa figuração de Amazônia edênica, construída pelos primeiros viajantes durante o século XV, foi uma das que foram preservadas e difundidas no século XX. 10

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Capítulo I: F i g u r a ç õ e s

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Segundo Durval Muniz de Albuquerque (1999), esse foi o argumento usado pela política para exigir recursos e mobilizar outros Estados em torno da economia extrativista, transformando-a em uma arma poderosa para angariar cifras cada vez mais elevadas de lucros. Além de angariar recursos financeiros, esse tipo de discurso “faz da seca a principal arma para colocar em âmbito nacional o que se chama de interesse dos estados do Norte” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 59). Ou seja, eles foram um dos grandes motivadores das migrações dos nordestinos para a Amazônia, visando com isso a aumentar as cifras da extração, já que a maioria dos nordestinos sonhava com melhores condições de vida, em que houvesse abundância de água, terras para serem ocupadas e boas oportunidades de trabalho. A Amazônia parecia ser esse lugar. Nessa época, a região também passava por momentos de grande tensão. A assinatura do Tratado de Petrópolis11 não significou paz imediata. Bolivianos, peruanos e brasileiros ainda disputavam os domínios de algumas áreas das Amazônias de fronteira, como afirma Iglesias: Até meados de 1904, as tensões se avolumaram no Alto Juruá, em virtude do não reconhecimento (sic) do novo posto aduaneiro pelo governo brasileiro, das reações às violências cometidas por comandantes do exército peruano contra comerciantes, seringalistas e embarcações brasileiras, da cobrança indevida de impostos, e ameaça de revolta dos seringueiros e da inquietação crescente das casas aviadoras de Manaus e Belém quanto ao destino de seus negócios na região (2010, p. 68).

Ante essas circunstâncias, o governo brasileiro, em parceria com o governo peruano, envia à Amazônia uma comissão mista, a fim de realizar o levantamento cartográfico das cabeceiras do Rio Purus e determinar os limites territoriais entre as terras brasileiras e peruanas. Nesse cenário, o engenheiro Euclides da Cunha é nomeaTratado assinado entre o Brasil e a Bolívia em 17 de novembro de 1903, que estabeleceu o fim do confronto armado entre brasileiros e bolivianos pelo território do Acre. 11

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do chefe dessa comissão e assim, em dezembro de 1904, desembarca na Amazônia12.

2. Rotas da figuração – Euclides da Cunha Como é do conhecimento de muitos, essa viagem significou para Euclides da Cunha mais do que uma missão diplomática. Era também a realização de um sonho pessoal que há muito fazia parte da vida do escritor. Por isso mesmo, bem antes de sua chegada à região, já havia lido um vasto material sobre o assunto, como era de costume do engenheiro antes de lançar-se em qualquer empreitada. Assim, por meio da leitura dos viajantes, cronistas, botânicos, geógrafos, cientistas, cartógrafos e literatos, “adoidados”, Euclides idealizava a Amazônia, ou melhor, o que seria este lugar. Exatamente por isso, ao chegar à região, ele inicia uma busca implacável das imagens retratadas em suas leituras primeiras, visando constatar a veracidade dessas descrições. Faz-se necessário relembrar que, nelas, a paisagem paradisíaca ocupa de forma determinante o centro; mas aos nativos relegam-se as margens. Logo na chegada, ele se depara com o primeiro paradoxo. Ao desembarcar nas capitais nortistas, Belém e Manaus, o espanto de Euclides da Cunha foi imediato. Nada do que ouvira ou lera sobre a região havia feito menção a algo parecido. Ainda em Belém, as praças, as avenidas, as pessoas, tudo contrastava com suas idealizações. Ao deparar-se com uma metrópole com requintes europeus se desenvolvendo bem no coração da Amazônia, impressionou-se sobremaneira. Igualmente, Manaus lhe causou grande choque. Nunca lera em relatos e histórias nada que mencionasse a existência de tamanho desenvolvimento no lugar. Essas duas capitais não cabiam em suas idealizações. Como já contextualizado, Manaus e Belém eram exatamente o oposto das demais Amazônias, elas desfrutavam Todas as afirmações feitas sobre Euclides da Cunha a partir deste momento foram reelaboradas com base nos artigos e cartas incluídos no livro: CUNHA, Euclides da, 1866-1909. Um Paraíso Perdido: reunião de ensaios amazônicos. Hildon Rocha (seleção e coordenação). – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. (Coleção Brasil 500 anos). 12

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dos lucros advindos da exploração da borracha e estavam no ápice de seu dinamismo. Por isso, a Amazônia na qual Euclides da Cunha desembarcou em dezembro de 1904, completamente voltada para o processo de extração da borracha, seria a Amazônia que ele posteriormente viria a retratar. A modernidade constatada por ele inicialmente, como sabemos, não passava dos limites urbanos das duas capitais nortistas. À medida que Euclides da Cunha se distanciava das áreas urbanas e adentrava o território amazônico, essa constatação se tornava cada vez mais latente. A esmagadora maioria do território permanecia aquém de qualquer investimento ou modificação por parte da República, levando, de certa forma, os habitantes dessas terras a manterem seus modos de vida, conforme descreve: A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão... A flora ostenta a mais imperfeita grandeza... Completa-a, ainda sob essa forma antiga, a fauna singular e monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os anfíbios, o que é ainda uma impressão paleozóica (CUNHA, 2000, p. 116).

Assim, ao deparar-se com a Amazônia in locus, que em tudo diferia das capitais Manaus e Belém, ele “vê” exatamente figurações e imaginários, conforme se identifica nas descrições anteriores. Dessa forma, retrata a paisagem como entrecortada por imagens apocalípticas que desenham a esfinge representativa de um grande vazio demográfico, idêntico ao que alguns de seus antecessores, viajantes europeus dos séculos anteriores, haviam relatado. Era a mesma paisagem determinista e adversária do homem, por sua vez, concebido como intruso, indesejado e inoportuno. Na Amazônia euclidiana tudo parecia monstruoso e inacabado, pois a natureza ainda estava em total desordem. Se nas descrições dos primeiros viajantes, a paisagem aparecia como inóspita, paleozoica e monstruosa, na pena euclidiana, ela é retratada como inferior a essas imagens prefiguradas: 25


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A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele terror a que se refere Wallace; mas como todos nós desde muito cedo gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas dos não sei quantos viajantes que desde Humbold até hoje contemplam a Hylae prodigiosa, com um espanto quase religioso – sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada (CUNHA, 2000, p. 115 – grifo nosso).

É perceptível a forma como os escritos dos viajantes Humboldt , Frederick Hartt, Agassiz, Chandless, entre outros, serviram de base para moldar o conflito entre a imagem pré-dada nas “páginas singularmente líricas” e a paisagem. Esse “paraíso” descrito por Euclides da Cunha (2000), como isolado do mundo e imerso num grande deserto demográfico e cultural, era ainda pior do que suas idealizações, assemelhava-se à “última página do Gênesis a ser escrita”. Convencido dessas “constatações”, Euclides da Cunha cria e recria para a nação brasileira aquele que seria um dos discursos mais poderosos da modernidade, a fim de preservar algumas figurações e ideologias difundidas pelos primeiros “descobridores” e, consequentemente, manter o apagamento das comunidades indígenas. Com base neles, gerações se deixariam influenciar e moldaram o que hoje muitos entendem por Amazônia. Mesmo pretendendo vingar a Hylae portentosa, ele endossa antigas figurações e arcaicos discursos, utilizando-os para referendar não apenas a paisagem, mas também os indígenas e suas práticas culturais. Assim como fizeram os outros viajantes, Cunha projeta a terra “sem história”, como incivilizada e formada por comunidades de sujeitos propensos à “lascívia, bebedice e furto” (CUNHA, 2000, p. 125): 13

Em 1762 o bispo do Grão-Pará, aquele extraordinário Fr. João de José – seráfico voltairiano que tinha no estilo dos lampejos Vale destacar que, embora Humbold tenha percorrido as Amazônias peruana, colombiana e venezuelana, não teve tempo de adentrar a parte brasileira, pois foi impedido pelos portugueses, sob acusação de ser um espião infiltrado. Este pesquisador, de origem alemã, permaneceu no Peru apenas cinco meses – de agosto a dezembro de 1802. Podem-se obter mais informações no site: www.jmarcano.com/ biografia/humboldt.html. 13

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da pena de Antônio Vieira – depois de resenhar os homens e as cousas, ‘assentando que a raiz dos vícios da terra é a preguiça’, resumiu os traços característicos dos habitantes, deste modo desolador: ‘lascívia, bebedice e furto’. Passaram-se cem anos justos. Procura-se saber se tudo aquilo melhorou; abrem-se as páginas austeras de Russel Wallace, e vê-se que alguma vez elas parecem traduzir, ao pé da letra, os dizeres do arguto beneditino, porque a sociedade indisciplinada passa adiante das vistas surpreendidas do sábio – drinking, gambling, and lying – bebendo, dançando, zombando – na mesma dolorosíssima incidência da vida... (CUNHA, 2000, p. 125).

As adjetivações do “arguto beneditino”, assim como as contidas nos discursos dos “descobridores”, ajudaram Euclides a “enxergar”, na “indolência, barbárie e atraso” dos habitantes dessas terras, a causa do subdesenvolvimento da região. Ele conclui que esses sujeitos não somente eram bárbaros e nômades indolentes, propensos à “lascívia, bebedice e furto”, como também viviam de modo a desfavorecer qualquer forma de “progresso”. Desse modo, segundo Gondim, qualquer que fosse o intento visando ao desenvolvimento da região, este deveria iniciar-se “a partir de um plano pré-estabelecido, onde todos os problemas fossem previstos a priori e o colonizador não deveria receber subsídios do elemento local, mas sua civilização transplantada em bloco para a área a ser ocupada” (1994, p. 228), uma vez que a vida dispersa, errante e propensa à libertinagem da população era um grande obstáculo para alcançar esse resultado. Antes de prosseguir com a lógica desenvolvimentista de Euclides da Cunha, é conveniente ressaltar que para ele “ser civilizado” significava o mesmo que erroneamente ainda significa para muitos de nós: ser urbano, letrado, sedentário. De acordo com Silva & Silva (2010)14, na França Iluminista, o termo civilizado era sinônimo de bom, urbano, culto e educado. Havia, então, um padrão cultural a ser alcançado por todos os povos que desejassem se civilizar. Opondo-se a esse padrão, as palavras “bárbaro” e “selvagem” referenciaSILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2010. 14

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vam àqueles cujas práticas não coincidissem com o modo de vida imposto pelos “civilizados”, ou seja, a urbanidade, o letramento, entre outros conceitos. Assim, bárbaros e selvagens eram todos os que vivessem de uma forma não sedentária e urbana. Igualmente, a acepção iluminista da palavra “civilização” foi empregada por nosso viajante-escritor para qualificar como bárbara e selvagem a forma de vida das populações indígenas, tendo em vista que elas diferiam em seu modo de viver dos padrões das elites urbanas. Seguindo esse entendimento, para Euclides da Cunha, a “civilização” só poderia surgir a partir da implantação de um modelo que exigisse a utilização de estruturas sociais, como igrejas, escolas, leis, entre outros mecanismos que induzissem a população local a abandonar suas práticas nômades e fincar raízes em torno de um lugar, viabilizando, com isso, o surgimento de povoados, cidades civilizadas que trariam a urbanização e o desenvolvimento. Na realidade, o modelo de civilização local, já fortemente estigmatizado pelos antecessores do autor, era o obstáculo que impedia a região amazônica de se desenvolver no mesmo ritmo que suas capitais, por isso, qualquer intento de transformar o lugar deveria considerar a substituição desse modelo. Após concluir que a ocupação nômade – feita por um “povoamento tumultuário, colonização à gandaia, caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz de nosso progresso” (CUNHA, 2000, p.150) –, praticada pelos caucheiros e pelas populações indígenas, não poderia viabilizar formas que pudessem integrar o lugar à nação moderna, ele passa a condenar veementemente os povos “bárbaros e destituídos de cultura”, que praticavam o nomadismo, excluindo-os de seus projetos: Ora, esta circunstância, este afrouxamento das atividades distendidas numa faina dispersiva, a par de outras anomalias, [...] contribui sobremaneira para o estacionamento da sociedade que ali se agita no afogado das espessuras, esterilmente – sem destino, sem traduções, sem esperanças – num avançar ilusório (CUNHA, 2000, p. 336).

Euclides da Cunha refere-se especificamente a duas sociedades formadas em torno da extração do látex: a dos caucheiros e 28


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a dos seringueiros. Embora essas sociedades fossem teoricamente propensas a impulsionar o desenvolvimento da Amazônia, segundo Euclides, era impossível “vencer o deserto” da forma como a exploração vinha ocorrendo. O modelo por elas utilizado era problemático para consolidar a integração da região, tendo em vista que não se ancorava em uma colonização intensiva que viabilizasse o surgimento de estruturas sociais, mas era baseado no nomadismo. Sobre o nomadismo, vale destacar as considerações do ensaísta antilhano Édouard Glissant (2011) feitas no contexto da colonização das Antilhas, mas que também podem ser ampliadas a todos os povos colonizados da América do Sul. Primeiramente, Glissant esclarece que há dois tipos de nomadismo: flecha ou invasor, e circular. De acordo com esse autor, esses dois tipos foram difundidos como sendo apenas um. Assim, as imagens de barbárie, desordem e selvageria associaram-se indiscriminadamente àqueles que praticassem formas de nomadismo, sem que houvesse preocupação alguma em esclarecer as diferenças entre elas. O quase extinto nomadismo em flecha era precipuamente praticado pelos conquistadores que tinham como finalidade galgar novas terras, fosse pela invasão ou pelo extermínio de seus ocupantes. Nesse tipo de nomadismo, executa-se um movimento sempre para frente, sem avaliar os efeitos da conquista, por isso mesmo ele é considerado imprudente e devastador, tendo em vista que destrói tudo a seu entorno, transformando-se num desejo devastador de sedentarismo. Já o nomadismo circular se dá pelo trânsito daqueles que peregrinam de um lugar para outro e são movidos por necessidades específicas, como foi o caso dos nômades habitantes do deserto, das culturas autóctones das Américas ou mesmo dos trabalhadores que circulavam em busca de sobrevivência. Este tipo de nomadismo funciona como um movimento que lança o ser nas relações com outras pessoas, com a fauna, a flora e a terra, fazendo com que, por meio dele, surjam inúmeras possibilidades de relações com o outro. A função deste tipo de nomadismo é “garantir, através dessa circularidade, a sobrevivência de um grupo” (GLISSANT, 2011, p. 22). Pode-se perceber, então, que os dois tipos de nomadismos estão 29


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dissociados da ideia de raiz, de pertença, de se fixar a um lugar, ou seja, de gerar a “civilização” que Euclides da Cunha desejava implantar. Além de vê-los como um, até porque naquela época não se fazia a distinção entre os dois tipos de nomadismo, essa prática já era associada desde o século XVIII à barbárie dos povos vistos na condição de selvagens, exatamente porque eles não se haviam urbanizado e, portanto, sedentarizado. Justamente porque a prática do nomadismo não possibilita, segundo essa visão, o surgimento de sociedades urbanizadas e organizadas em torno de estruturas sociais letradas que pudessem fincar raízes e induzir o indígena a se “civilizar”, ela não servia ao modelo de nação euclidiano. No mesmo caminho que Glissant, a pesquisadora Mary Pratt (1999)15 compreende as relações de circularidade, inerentes aos deslocamentos dos sujeitos, como práticas geradoras do que a autora denomina de “zonas de contato”. De acordo com Pratt, essas zonas são um... [...] espaço de encontros coloniais, no qual as pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas geralmente associadas a circunstâncias de desigualdade radical e obstinada [...] (1999, p. 32).

Ainda segundo essa mesma autora, embora desiguais, as relações geradas a partir dessas “zonas de contato” são capazes de dinamizar as culturas e pôr “em relevo a questão de como os sujeitos são constituídos nas e pelas relações uns com os outros” (PRATT,1999, p.32), por isso mesmo, a partir delas, [...] as relações entre colonizadores e colonizados, ou viajantes e ‘visitados’, [são geradas], não em termos de separação ou segregação, mas em termos de presença comum, interação, entendimentos e práticas interligadas, [embora], frequentemente dentro de relações radicalmente assimétricas de poder (1999, p. 31-32). PRATT, Mary Louise. Os olhos do império. Trad. Jézio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 15

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Com efeito, as reflexões da pesquisadora consolidam nossa compreensão a respeito da prática do nomadismo circular nas Amazônias, tendo em vista que, através dele, a convivência entre os sujeitos e suas práticas culturais vai se reinventando e se dinamizando, fazendo com que as relações se estabeleçam para além das fronteiras culturais. Essas “zonas de contato”, segundo Bhabha, conferem “relevo às diferenças sociais, temporais, que interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade cultural” (1998, p. 23). Desse modo, a prática do nomadismo configura-se como via de acesso a essas “zonas”, em que a separação e a segregação das culturas dão lugar a muitas outras alteridades culturais que se amalgamam até formar novas, por meio do exercício de negociação e reformulação contínua de práticas ainda mais complexas, as quais são geradas performaticamente em cada contato “aqui e lá, de todos os lados, fort/da para lá e para cá, para frente e para trás” (BHABHA, 1998, p. 19). Partindo desses pressupostos, pode-se reafirmar que o nomadismo euclidiano referenda a prática circular dos indígenas como um nomadismo em flecha – até porque no século XIX essas distinções não existiam – e, por isso mesmo, precisa ser combatido, fosse praticado pelos seringueiros, pelos caucheiros, ou pelos “selvagens”. Em qualquer caso, essa conduta deveria ser extinta, pois trazia atraso e impedia que o lugar evoluísse. Tanto o caucheiro, quanto o seringueiro praticavam o nomadismo. O primeiro é assim chamado por extrair o leite da árvore de caucho, processo que exige uma logística totalmente diferenciada de exploração; o segundo, pela extração do leite da seringueira. Para Euclides da Cunha, a prática do caucheiro, que se realizava com o abatimento definitivo das árvores, levava-o ao nomadismo, pois A árvore morre de incisão, onde se geram logo inúmeros carunchos que a atrofiam. Por isso o caucheiro não a conserva numa exploração permanente: derruba-a logo para aproveitar, por meio de incisões circulares, de meio em meio metro, todo o leite que ela possui (CUNHA, 2000, p. 278).

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Essas plantas pertencentes ao gênero Castilloa eram geralmente encontradas em uma extensa área do lado peruano da floresta amazônica, mais precisamente “a partir dos vales de Madre-de-Dios e do Ucaiali, se derrama[va] para o norte transpondo o divortium aquarum do amazonas para ir florescer quase até além do Ituxi e outros rios do Baixo Purus” (CUNHA, 2000, p. 278). As árvores de caucho estavam espalhadas por uma vasta área da floresta, conduzindo naturalmente os caucheiros a viverem uma vida errante e dispersa, tendo em vista que, após a captação do leite do caucho, o extrator se via obrigado a vagar em busca de novas paragens constantemente. Por isso, os peruanos viviam de forma nômade, errante e dispersa pela floresta: O caucheiro é por força um nômade, um pesquisador errante, estacionando nos vários pontos a que chega até que tombe o último pé de caucho. Daí o seu papel no desvendar paragens desconhecidas. Todo o alto Madre-de-Dios e todo o alto Ucaiali foram entregues à ciência geográfica pelos audazes mateiros, de que é Fiscarrald a figura mais completa (CUNHA, 2000, p. 278).

Uma das razões que levaram Euclides da Cunha a condenar a figura do caucheiro foi exatamente sua condição de nômade que estava dissociada das de um sujeito capaz de gerar uma sociedade, fincar raízes ou mesmo difundir uma cultura, o que fazia do caucheiro um civilizado que se barbariza. Por outro lado, Euclides da Cunha via os seringueiros como “destemerosos sertanejos” (CUNHA, 2000, p. 278-279), capazes de vencer o deserto e ocupar a floresta, tornando-a receptível e habitável. Para extrair a seringa, a organização era outra, e a árvore permitia inúmeros sangramentos antes do abatimento definitivo. A população extratora quase sempre se agrupava em torno das áreas ricas em árvore de seringueira (formando os conhecidos seringais). Por isso mesmo, para nosso viajante-escritor, os seringueiros, se assessorados, poderiam consolidar uma formação sistemática, a partir de estruturas sociais, como escolas, leis, comércio, e fazer com que, gradativamente, o lugar fosse sendo povoado e viesse a se desenvolver. Segundo Euclides: 32


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O seringueiro é por força sedentário e fixo. Enleiam-no, prendendo-o para sempre ao primeiro lugar que estaciona, as próprias estradas que abriu, convergentes na sua barraca, e que ele percorrerá durante a sua vida toda. Daí o seu papel, inegavelmente superior, no povoamento definitivo (CUNHA, 2000, p. 279).

Assim, ao constatar os problemas existentes em torno da formação de duas sociedades extratoras – embora os indígenas participassem intensamente como mão de obra ativa na extração do látex, eles não foram citados por Euclides da Cunha como partícipes delas – que deveriam promover a integração entre a Amazônia e as demais áreas do país, Cunha conclui: [...] o caucheiro peruano com as suas tangas rijas, nas montarias velozes, o nosso seringueiro, com os varejões que lhe impulsionam as ubás, ou o regatão de todas as pátrias que por ali mercadeja nas ronceiras alvarengas arrastadas à sirga – nunca intervêm para melhorar sua única e magnífica estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram mil vezes a canoa num tronco caído há dez anos junto à beira de um canal; insinuam-se mil vezes com as maiores dificuldades numa ramagem revolta barrando-lhe de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as canoas sobre os mesmos ‘salões’ de argila endurecida; vezes sem conta arriscam-se ao naufrágio, precipitando, ao som das águas, as ubás contra as pontas duríssimas dos troncos que se enristam invisíveis, submersos de um palmo –, mas não despendem o mínimo esforço e não despendem um golpe único de facão ou de machado num só daqueles paus, para desafogar a travessia (2000, p. 140 - 141).

Conforme o pensamento desse escritor, os “destemerosos sertanejos” possuíam condições para gerar uma civilização. Contudo, o processo de extração da borracha inviabilizava, pelo modo como vinha sendo conduzido, qualquer tipo de mudança positiva no território. Na realidade, de acordo com nosso viajante-escritor, o sistema criado em torno da exploração do látex mantinha a região aquém das políticas públicas e à margem de qualquer mudança positiva. Era perceptível que, nas comunidades formadas em torno desse modelo de exploração, o homem pouco ou nenhum esforço des33


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pendia para modificar o lugar, pois “mal encontra estreitíssima trilha que conduz a vivenda, meio afogada no mato” (CUNHA, 2000, p. 129). Para o escritor, os seringais organizados de forma dispersa não modificariam a “paralisia completa das gentes adoidadas que ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril” (CUNHA, 2000, p. 126). Era preciso combater o nomadismo das populações indígenas, substituindo-o por um sedentarismo e pela urbanização que viabilizasse a criação de povoados e o enraizamento da população no lugar, com vistas a vencer o deserto. Os outros praticantes do nomadismo, embora desconsiderados por Euclides da Cunha como partícipes da exploração seringalista – ou melhor, dos explorados – eram os indígenas. Para estes, o nomadismo não era consequência de uma profissão, mas resultado de uma imposição. O nomadismo a que os indígenas eram obrigados a se lançar, durante o ciclo da borracha, se dava em forma de “correrias”. Segundo o pesquisador Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias (2010), as famosas “correrias” eram um mecanismo patrocinado pela empresa seringalista – caucheiros e seringueiros – para banir os índios das áreas que lhes interessava explorar. Ainda de acordo com o pesquisador (2010), esse nomadismo patrocinado pelos interesses em torno do látex constitui-se como um meio que os indígenas encontraram de se livrar dos constantes massacres promovidos pela empresa seringalista. Os indígenas praticavam-no visando à sobrevivência, pois as “correrias” tanto buscavam a abertura de seringais, quanto a sua captura para fins de comercialização. Segundo Iglesias: [...] a abertura de seringais, a ocupação de (colocações) pelos seringueiros, a presença temporária dos caucheiros, a sobreposição dessas atividades, ensejando, em certos casos, acordo de cooperação entre patrões brasileiros e caucheiros, concorreram para a ocorrência de múltiplos conflitos armados e a realização de ‘correrias’ contra vários grupos indígenas, alguns cujos antigos territórios já estavam ali localizados, outros chegados nos anos anteriores, deslocados a norte, pela gradual chegada de caucheiros e, a sul, pelos seringueiros (2010, p. 80). 34


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Ainda: Com a abertura dos seringais, deparados com a presença de um número crescente de seringueiros e cientes do poderio bélico dos rifles, muitos grupos indígenas optaram por adentrar a floresta, a horas ou dias de caminhada dos locais onde estavam situadas suas malocas e plantações (IGLESIAS, 2010, p. 75).

Precisamente por causa do poderio bélico da empresa seringalista, a prática do nomadismo entre as populações indígenas tornouse uma forma de defesa para garantir sua subsistência e resistir aos massacres ocorridos durante o período de busca de locais apropriados para a exploração do látex. Nessa época, os exploradores guiados por mateiros se instalavam nos locais de áreas ricas em árvores, destruíam as malocas, matavam os adultos mais velhos e capturavam jovens e crianças para vendê-los a “bons preços”, obrigando a população indígena a retirar-se para as “profundezas das florestas” longe da beira dos rios, “para viver não na abundância, mas antes em segurança e em liberdade” (IGLESIAS, 2010, p. 77). Como bem salienta o pesquisador Iglesias (2010), os indígenas se lançavam a um nomadismo cego, onde tudo era deixado para trás, causando-lhes enormes prejuízos materiais e imateriais, não somente por perderem suas plantações, malocas e afluentes de fácil acesso, mas, principalmente, por serem forçados a se reorganizar sem grande parte de sua comunidade, tradições e bens simbólicos. A isso, acrescente-se o fato de que Durante quase duas décadas, a presença indígena seria considerada pelos patrões como eminente obstáculo à consolidação da ocupação, ao funcionamento de suas propriedades e ao trabalho e ‘segurança’ de seus fregueses. Os seringalistas não realizariam qualquer iniciativa para incorporar os indígenas às atividades produtivas, optando por trabalhar com mão-de-obra trazida do Nordeste, utilizada exclusivamente na produção da borracha (IGLESIAS, 2010, p.76).

No ápice do ciclo do látex, nenhuma iniciativa foi tomada para incorporar as populações indígenas às atividades produtivas por35


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que essas comunidades eram consideradas como obstáculos. “Os inimigos” deveriam ser removidos sem qualquer remorso, em vez de incorporados. Esses “selvagens” sofriam atrocidades que eram “justificáveis” pelo interesse dos patrões, tendo em vista que as “feras” representavam perigo para “suas” propriedades e freguesia. Assim, Cunha (2000) também silencia em seus ensaios as atrocidades feitas àqueles que eram considerados o maior obstáculo para a concretização de seus ideais. Limitou-se apenas a referendar o nomadismo praticado pelos indígenas como práticas inerentes aos povos bárbaros e destituídos de cultura. Ao se atentar para o fato de que um dos mecanismos usados pela empresa colonizadora para escravizar as populações indígenas foi a tentativa de sedentarizá-las, compreende-se melhor as condenações euclidianas à prática do nomadismo. Por meio dessas considerações sobre as rotas de configurações amazônicas em Euclides da Cunha, é possível estabelecer um élan entre as traduções da região no campo dos imaginários e as estabelecidas por Milton Hatoum e Mário Vargas Llosa em suas obras. Desse modo, os entrelaçamentos das “cinzas” e das “vozes” nas fronteiras das Amazônias brasileira e peruana, respectivamente, podem ser notados, a partir dos romances Cinzas do Norte (2005) e El Hablador (1987), a seguir referenciados nos capítulos segundo e terceiro deste livro.

3. As representações das Amazônias no mundo A literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de pensar a vida – a nossa e a dos outros –, ela arruína a consciência limpa e a má-fé. A literatura desconcerta, incomoda, desorienta mais que os discursos filosóficos, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. Assim, ela percorre regiões da experiência que os outros discursos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes. Antoine Compagnon

As palavras de Compagnon (2009) em epígrafe afirmam que a literatura possui o poder de libertar o homem das amarras e con36


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venções que o limitam a pensar a vida. Segundo o crítico, isto ocorre porque a literatura é capaz de “desconcertar, desorientar, incomodar” e abalar, de muitas formas, as certezas dos discursos que permeiam os estratos sociais. Ela nos possibilita sentirmos emoções, sentimentos e empatias impossíveis de serem vivenciados por meio de discursos meramente filosóficos. Por esta razão, a escrita enquanto arte literária tem ao longo dos anos servido magistralmente a tal finalidade. Ela tanto endossou as “verdades” postas a juízo por algumas ciências como também as questionou. Por meio dela, identidades, valores, culturas e imaginários foram apagados, resgatados, forjados nos/ pelos discursos e nas representações de que a arte literária se ocupa. À escrita atribuiu-se o poder de (re)fundar coesões, resistências e coerências para o universo das interpretações dos espaços, tempos, corpos e linguagens representadas no mundo romanesco. Por isso mesmo, é pertinente atentarmos para as representações, pois elas são um dos mecanismos mais eficazes para propagar imaginários discursos e tradições. Conforme salienta Silva & Silva (2010), a representação está intimamente ligada ao conceito de imaginário, e diz respeito à forma pela qual um indivíduo ou grupo vê determinada imagem, determinado elemento de sua cultura ou sociedade, de modo que as representações costumam estar intimamente conectadas com as formas de se ver e pensar uma sociedade. E neste sentido, tornam-se capazes de “fundar” novos mundos, perpetuar valores, culturas e tradições. Do latim representare, ou “pôr adiante”, a palavra representação tem sido amplamente usada na tentativa de verbalizar um “processo de substituição que, através de signos nos permite formar o ausente como o presente” (NEIVA JR., 2006, p. 84), possibilitando-nos levar adiante os imaginários sobre culturas, povos e regiões. Ao se representar algo, apresenta-se um substituto, “fabricado” para denotar o original, de forma tal a oferecê-lo como realidade, embora ele seja tão somente as próprias percepções culturais de quem os elegeu. Não obstante, essas percepções terminam por realizar eficazmente uma substituição, pois os imaginários são antes de tudo “o conjunto de imagens guardadas no inconsciente coletivo de um grupo social” (SILVA & SILVA, 2010, p. 213). De modo que a escolha de certos elementos 37


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para representar povos, culturas e etnias depende exclusivamente das argúcias daqueles que as escolheram e, consequentemente, de quais valores querem imprimir, pois eles estão em íntima relação com as formas de ver e pensar uma sociedade. Conceitos mais completos dessa palavra aparecem no dicionário de Ferreira (1999), segundo o qual, o verbete “representação” dá conta de significados como: “1. Ser a imagem ou a reprodução de: 2. Tornar presente; patentear, significar. 3. Estar em lugar de, substituir etc.” As poucas sinonímias aqui transcritas deixam claro que lidar com a representação é laborar com pequenas nuances situadas entre o real e o representado. Como bem salienta Roger Chartier (s/d), em A História Cultural entre Práticas e Representações, as representações devem ser olhadas enquanto matrizes construtoras de mundos sociais. Segundo o historiador, o que está em jogo quando se elege o que se vai representar, é mais do que uma simples escolha, são valores que regem determinada sociedade ou cultura. Na realidade, conforme Chartier, ao se eleger o que se irá representar, escolhe-se a própria ordenação e hierarquização das estruturas sociais, que norteará uma sociedade inteira. Por isso mesmo, As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, s/d, p. 17).

Conforme salienta esse crítico, os interesses dos grupos que tentam impor seus valores de algum modo estão entranhados na própria escolha do que se vai representar e, consequentemente, de quem se vai dominar. Conforme a história tem mostrado, as representações utilizadas pelos homens nunca são despropositadas; por trás delas, sempre estiveram os interesses de uma minoria dominante, sejam eles econômicos, sociais ou culturais; o certo é que estão quase sempre postos a serviço da dominação. Como já exposto no capítulo primeiro deste livro, as representações criadas ao longo da história das Amazônias, por meio da literatura, foram usadas como mecanismos eficazes para garantir 38


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os interesses de uma classe dominante, “criando” identidades estereotipadas e homogêneas. Seja como for, elas serviram eficazmente como instrumento de dominação, propagação e manutenção das ideologias do colonizador, em diferentes épocas. Para Chartier (s/d), as representações construídas em âmbito social: [...] embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, s/d, p. 17).

Como bem salienta o pensador, as representações aspiram à universalidade – embora sejam de valores e concepções eleitas antes de tudo para disseminar valores e ideologias singulares – e têm como finalidade precípua impor mundialmente concepções sociais e culturais daqueles que as elegem. Por isso mesmo, usar de representações para criar a identidade dos povos amazônicos significou primordialmente a manutenção de interesses dos grupos dominantes. Para esses grupos homogeneizar as populações amazônicas também era uma forma de justificar a exploração e degradação daqueles submetidos à opressão do colonizador. Não por acaso, as representações se consolidam por meio de um processo longo e contínuo, onde o que está em jogo é a ordenação e a hierarquização da própria estrutura social dos valores que irá viger nas sociedades, de modo que: A problemática do mundo como representação, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real (CHARTIER, s/d, p. 23-24).

A partir dessa afirmação, pode-se entender que, embora a literatura tenha outrora criado representações que delinearam os interesses dos grupos dominantes; nas últimas décadas, isso não ocorre. Justamente, o intelectual brasileiro Milton Hatoum e o peruano 39


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Vargas Llosa se inserem no grupo de pensadores que se utilizam de seus talentos para traduzir e representar cultural e artisticamente as Amazônias, de forma que suas produções possibilitam novas traduções das populações e culturas amazônicas. Suas ficções têm paulatinamente gestado novos paradigmas de pensamento sobre/para a região e o mundo, mostrando como uma literatura, antes dita regional, é capaz de, conforme afirma Compagnon, levar à revisão de maneiras “convencionais de pensar a vida” (2009, p. 50). Por isso mesmo, as narrativas eleitas como objeto de estudo deste livro possibilitam pensar no sistema de representação da identidade cultural amazônica, por meio de imagens discursivas do espaço amazônico. Trata-se de criações que movimentam os imaginários e possibilitam pensar nas identidades culturais a partir da diferença cultural, embora estejam inseridas em um contexto cultural, social e histórico específico, seus temas são universais. Como bem salienta Duarte (1998), o cenário contemporâneo global já não comporta dicotomias pautadas em modelos comparativos binários e excludentes. No mundo atual, instalouse um paradoxo em torno dessas questões, tendo em vista que as práticas econômicas, políticas e culturais do local estão inseridas no global. De acordo com Duarte, embora amplamente antagônicos, tais modelos integram “a dinâmica global [e] as diferenças locais, transformando-as e sendo por elas transformada”, de modo que o global já não aparece como tentativa de homogeneizar, mas sim “como um agenciamento de particularidades inerentes a cada espaço, a cada etnia, mobilizando variadas culturas” (DUARTE, 1998, p. 33). Precisamente por isso, essas relações são paradoxais, pois embora aparentemente antagônicas, na realidade o local e global, cada um a seu modo, geram movimentos e transformações no outro. Neste caminho, Hall (1997) enfatiza que, em uma sociedade globalizada, os modos de vida, as práticas sociais e os próprios sujeitos são constantemente examinados e reformulados. De acordo com esse crítico, essas são apenas algumas das consequências do intenso processo de transformação a que tem sido submetido o mundo pósmoderno. Nesse contexto, o sujeito, que até pouco tempo atrás era visto como tendo uma identidade unificada e estável, apresenta-se 40


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agora fragmentado, formado não mais por uma identidade, mas por várias. De modo que, pensando essas afirmações no contexto das ficções romanescas que têm por temática as Amazônias, é impossível continuar a representá-las deslocadas do mundo e alheias às relações globais, bem como suas formas e meios de representações. Como é sabido, o sujeito contemporâneo convive com “um eu multifacetado, que lida com os valores globais ao mesmo tempo em que carrega os valores da sua cultura de origem” (DUARTE, 1998, p. 44). Nessa mesma direção, em O Demônio da Teoria (2010), Antoine Compagnon já dedicara extenso capítulo para discutir as representações do mundo por meio da literatura. Segundo esse pensador, faz-se indispensável considerar as relações existentes entre autor, mundo e texto ficcional, tendo em vista que as representações romanescas continuamente embaralham o mundo real ao ficcional, perpetuando valores, tradições e culturas. Os romances escolhidos para análise instrumentam-se também desse embaralhamento para traduzir e montar imagens, sociedades, tempos e culturas das/sobre as populações amazônicas, materializando-as por meio de textos e imagens dotados de juízos de valor. Nos últimos anos, muitos romancistas têm genuinamente se comprometido em inserir em seus mundos ficcionais novos paradigmas de pensamento e (res)significar, por meio de sua escrita, as representações das práticas culturais das populações amazônicas. Conforme salienta a professora Violeta Ref kalefsky Loureiro: A história dos homens na Amazônia tem sido construída a partir de dois eixos norteadores, mas conflitantes: de um lado, a visão paradisíaca criada pela magia dos mitos da região e sobre a região; de outro a violência cotidiana gestada pela permanente exploração da natureza e desencadeada pelos preconceitos em relação a ambos – homem e natureza. [...] Hoje o homem da Amazônia procura reconstruir, sem cessar, uma nova identidade e uma nova forma de vida que lhe possibilite harmonizar uma nova cultura (LOUREIRO, 2009)16. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid>. Acesso em: 09/02/2012 16

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Para Loureiro, o homem da Amazônia tem incessantemente buscado reconstruir sua identidade, por meio de outros mecanismos de representação. De modo que Hatoum e Llosa também têm procurado (res)significar nossas identidades enquanto homens e mulheres amazônicos, que compartilham das experiências globais que interconectam o mundo, mas que respeitam espaços, temporalidades, culturas e, sobretudo, o sujeito que nas Amazônias habita. Igualmente, nos últimos anos, tem sido relevante a produção literária de autores que têm falado da/sobre a Pan-Amazônia através de textos que coadunam representações diversificadas da/sobre as populações amazônicas, assim, constituindo, aos poucos, figurações que abrem fraturas nas já consolidadas como representativas da região. Segundo Maria Zilda F. Cury, Pelas frestas e vazios que criam [os textos literários], abre-se espaço para uma fala diferente, que vai adquirindo a forma enunciativa de uma subjetividade literária particularíssima, cuja textualidade enseja classificação e recorte próprios. Tais textos acabam por construir uma enunciação alternativa, resistente à fixidez identitária que de algum modo nos era imposta e que se entranhou na própria visão que fazemos de nós mesmos ajudando a estruturar a identidade que acreditamos nos distingue. Assim, se põe (sic) em xeque as identidades que nos eram outorgadas, exóticas, estereotipadas, mas que são parte constitutivamente da visão que fazemos de nós mesmos (CURY, 2000, p.168-169).

Por esse viés, Milton Hatoum e Jorge Mario Vargas Llosa têm arquitetado novas figurações para o espaço amazônico, nas quais as identidades e culturas dos povos amazônicos são postas sem hierarquia de valor. Trata-se de representações que coadunam novos paradigmas de compreensão e leitura, pois trazem imagens das Amazônias forjadas a partir de novos paradigmas de pensamento. Essas representações estão ancoradas em valores que possibilitam pensar nas Amazônias reais, aprendidas por meio de representações que as situam no contexto amazônico e mundialmente. Como expressão literária, seguindo a lógica de Compagnon, elas retratam “a realidade

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e [saem] da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos” (2010, p. 123). Finalmente, elas nos mostram que: Descolonizar-se não é simplesmente livrar-se das amarras do poder imperial, mas procurar também alternativas não repressivas ao discurso imperialista, [pois] a descolonização da literatura e da crítica deram um novo e mais aprofundado entendimento ao acadêmico (BONNICI, 2009, p. 274).

Nesse contexto em que as articulações revelam outras imagens das Amazônias para o centro do mundo cultural, cabe lembrar as palavras de Bhabha: A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical de separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única (1998, p. 63).

Considerando tais colocações, faz-se necessário assegurar a diversidade cultural, a fim de romper com ideias totalizadoras que insistem em cegar para a alteridade. Vale destacar a importância das construções romanescas na manutenção e/ou modificação dos imaginários forjados desde os discursos dos colonizadores até os (res) significados pela escrita euclidiana. Conforme salienta a pesquisadora Zilá Bernd em seu livro Literatura e Identidade Nacional (2003, p. 23), a literatura atua, em determinados momentos históricos, como um elo entre a comunidade e seus mitos fundadores, fazendo com que seus imaginários e ideologias tendam a uma homogeneização discursiva. Por isso mesmo, não se deve esquecer que o texto literário pode ser usado como propulsor de discursos libertários, os quais rompam com essa homogeneização e conduzam as comunidades a outras formas de compreensão. A linguagem literária permite ao leitor (res)significar o jogo de poder instaurado na interface dos discursos, e trazer à tona os modos pelos quais as culturas se reconhecem, se entrelaçam e se refazem junto a outras formas de alteridade. Por essa razão, a realização dessa linguagem nas obras El Hablador (1987), de Vargas 43


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Llosa, e Cinzas do Norte (2005), de Milton Hatoum, pode atuar como instrumento de (res)significação do espaço amazônico. Nessa mesma direção, em O Demônio da Teoria (2010), Antoine Compagnon propõe uma nova abordagem para os estudos de teoria, especificamente daqueles que envolvem os mecanismos de construção das composições romanescas. A ideia do autor consiste em direcionar nosso olhar para a história por trás do diálogo formulado entre o autor e o narrador, fazendo com que o texto seja pensado como um “território”, onde é possível embaralhar diferentes identidades. Assim sendo, as identidades dos autores se mesclam às dos narradores, fazendo brotar composições romanescas permeadas das concepções de seus escritores. Desse modo, as concepções do narrador e de seu criador influenciam o leitor, fazendo brotar nas composições romanescas um viés através do qual se pode realinhar as figurações que subjazem às culturas locais, tendo em vista que “a construção da identidade é indissociável da narrativa e consequentemente, da literatura” (BERND, 2003, p. 19). Sob essa forma de pensar, é possível entender o universo romanesco de CN (2005), de Milton Hatoum, e de El Hablador (1987), de Vargas Llosa, como um desses mecanismos eficazes para realinhar figurações. Voltando uma vez mais à epígrafe que ilumina o início deste capítulo, nota-se que ela revela como a escrita literária pode perfazer as falhas de nossas trajetórias de existência e exaltar as belezas da vida, através de suas representações. Por meio delas, podemos realinhar as figurações que subjugavam as culturas amazônicas a outros grupos sociais, língua, nacionalidade, e inseri-las em novos paradigmas de pensamento. A esse respeito, Zilá Bernd esclarece: A história retém os fatos que correspondem, de algum modo, às exigências do momento e aos preceitos do vencedor. Libertando o saber intuitivo, manifesto aos mitos, nas tradições orais e nos ritos religiosos de uma comunidade, o escritor resgata fragmentos da história, secretada no inconsciente da comunidade, impossíveis de serem acessadas de outro modo (2003, p. 83).

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Nessa perspectiva, alguns escritores atualmente preocupam-se em realinhar figurações até há pouco consolidadas em torno da região amazônica. É o caso, entre outros, do hispano-peruano Jorge Mario Vargas Llosa. Algumas de suas obras tematizam alteridades narrativas, situadas em espaços, tempos e lugares fronteiriços, possibilitando outras leituras do espaço amazônico. A partir das cenas nômades dos corpos de migrantes, imigrantes e nativos, as personagens llosianas tematizam as figurações amazônicas sob a ótica do movimento, dos deslocamentos, vínculos, passagens, encontros e desencontros de diferentes elementos culturais e simbólicos que coabitam no território amazônico. As ficções fechadas e monolíticas, que figuravam o espaço amazônico, em Llosa, dão lugar a uma literatura aberta e plural, a qual não apenas redefine o espaço amazônico, mas também supera as barreiras binárias que por muito tempo conseguiram moldurar a região. Para D’Angelo, os textos de Llosa [...] procuran cantar su himno de gloria, dando relieve a otro cruce moderno: lo oral dentro de ló escrito, el conto entre lós pliegues y líneas de textos imaginários que fijan, para siempre, en la definitividad de la página escrita, la importância de transitos comunicativos aparentemente en oposición (2007, p. 255).

Também segundo esse pesquisador (2007), a literatura amazônica de Llosa funciona em dicotomias de tensão ainda irresolutas diante das hierarquias culturais e/ou à subordinação de uma cultura à outra, que foram acontecendo ao longo da história. Essa subordinação fez com que, dentro do próprio sistema ideológico, surgissem fortes contradições, provocando com isso aporias significativas entre as culturas. Contudo, essas contradições em Llosa se reinscrevem a partir da consolidação de ficções que representam mais além das dicotomias humanas. Llosa, em consonância com D’Angelo: “enfatiza la cuestión de la posibilidad de transmisión del discurso del otro e de su traducibilidad” (2007, p. 256). Do mesmo modo, o escritor manauara Milton Hatoum contribui para o rompimento daquilo que se denomina de “invisibilidade 45


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amazônica”. Suas narrativas são polifônicas, na acepção de Bakhtin (2002).17 Elas deixam ecoar vozes de nativos, migrantes, imigrantes, sem pretender classificá-las. Como muito bem salienta o professor Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira: Quem supunha, por exemplo, da Amazônia só nos viessem episódios de seringueiros e índios massacrados, por certo recebeu com surpresa o texto em surdina de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente (89), em que a vida de uma família burguesa de origem árabe, enraizada em Manaus, se dá ao leitor como um tecido de memórias, uma sequência às vezes fantasmagórica de estados de alma, que lembra a tradição de nosso melhor romance introspectivo (2004, p. 437).

De acordo com o consagrado professor, quando muitos acreditavam que nada pudesse surgir da Amazônia, além de representações preconceituosas sobre a região, surgem ficcionistas do porte de Milton Hatoum, com obras de caráter intimista, cujas histórias passam a projetar representações dramáticas da vida, perfazendo as lacunas deixadas por seus antecessores. As criações de Hatoum se alicerçam em personagens elaboradas sob um leque de possibilidades identitárias, as quais põem em xeque muitas das histórias sobre a região amazônica e o seu povo. Essas personagens foram centradas especialmente nos imaginários, sentimentos e nas figurações de famílias formadas a partir da união de estrangeiros migrantes e nativos, que construíram novos imaginários, ajudando, assim, a realinhar as concepções concernentes ao espaço amazônico. A arquitetura das narrativas hatounianas está marcada pela formação e tradução de corpos físicos e simbólicos em constante deslocamento cultural. De acordo com Kohler: Ao fazer de sua narrativa um espaço de travessias entre diferentes culturas e línguas, apontando para novas possibilidades de construção de identidades móveis, abertas e inacabadas, Milton Hatoum insere-se facilmente na categoria dos escritores BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 17

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migrantes, ou ainda daqueles que o escritor indo-britânico Salman Rushdie (1993:28) chama de ‘homens traduzidos’, não só por conta de sua origem libanesa, mas principalmente porque seu texto põe em cena personagens que vivenciam a experiência da errância, da desterritorialização, do entre dois, e necessitam apreender a traduzir e a negociar entre as linguagens culturais que os cercam e habitam (2008, p. 79).

Com efeito, em seu terceiro romance, CN (2005), Milton Hatoum consolida essas travessias de tradução das quais trata Kohler (2008). No enredo da obra percebemos, entre outras coisas, a sutileza com que são reencenadas as relações sociais que surgem na coexistência entre culturas de migrantes, imigrantes e indígenas. Para tanto, o autor coloca na memória de algumas de suas personagens a defesa de visões etnocêntricas já cristalizadas sobre as populações indígenas, mas que precisam ser realinhadas. Essa afirmação pode ser constatada pelo discurso da personagem Tra(Jano) Matoso, um descendente de imigrantes portugueses que habita na região. Essa personagem herda do pai não apenas as terras conquistadas, mas também a mesma visão etnocêntrica a respeito dos indígenas e de tudo que signifique alteridade. Jano, como é chamado, reproduz concepções sobre as populações indígenas locais que revelam menosprezo: [...] Antes estes índios eram tratados por curandeiros, vigaristas do corpo e da alma. Nós pagamos o doutor Kazuma, mesmo assim continuam brutos e ingratos. Esquecem nosso esforço, nossa dedicação. São como crianças... um dia rezam para nossa Senhora do Carmo, outro dia esquecem a santa e a igreja. A fé dessa gente não está em lugar nenhum (HATOUM, 2005, p. 73).

Vale atentar para o modo pelo qual essa personagem se reporta às práticas dos indígenas, classificando-os como indolentes, atrasados, brutos e ingratos. Percebe-se nessa visão a rememoração de antigas adjetivações pejorativas em relação aos indígenas amazônicos e, por isso mesmo, o protagonista encontra dificuldades em conviver com eles. Em outra passagem da obra, Jano emite sua opinião sobre as populações indígenas e a Amazônia, ressaltando as neces47


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sidades dessas populações de encontrar alguém disposto a “civilizá-las”, pois: [...] dava muito trabalho plantar a civilização na Vila Amazônia. Antes, todo mundo (sic) comia com as mãos e fazia as necessidades em qualquer lugar. ‘Tive que reconstruir quase tudo, Lavo’. Temos que construir tudo o tempo todo. A Amazônia não dá descanso (HATOUM, 2005, p. 70).

A criação dessa personagem expõe as diversas formas, por meio das quais a literatura possibilita essas travessias de existência. Através dela, a heterogeneidade de pensamentos, muitas vezes ocultos pela história, pode ser trazida à tona. Do mesmo modo, em El Hablador, Llosa coloca na memória de um de seus narradores uma visão um tanto ou quanto interessante. Logo no início da narrativa, essa personagem confessa: “¿Sentía ya esa fascinación de embrujado por los hombres del bosque y la Naturaleza sin hollar, por las culturas primitivas, minúsculas, desperdigadas en las colinas montuosas de la ceja de montaña y la llanura de la Amazonía?” (LLOSA, 2010, p. 22). Essa personagem paradoxalmente inicia em Florença, na Itália, sua viagem pela floresta amazônica, através das imagens reavivadas na memória por umas fotos que ali encontrou. A floresta peruana e os indígenas revivem em suas lembranças. Elas instantaneamente levam-na de regresso a seu país de origem: Una vitrina me paro en seco: arcos, flechas, un remo labrado, un cântaro con dibujos geométricos y un maniquí embutido en una cushma de algodón silvestre. Pero fueron tres o cuatro fotografias las que me devolvieron, de golpe, el sabor de la selva peruana (LLOSA, 2010, p. 13).

A captação de imagens de uma vitrine, associadas a fotografias, mostra como a Amazônia continua sendo propagada na Europa. As já conhecidas figurações de paisagem – selva fechada, intocada, culturas primitivas, índios – estão ali molduradas e presas espacialmente, bem como no olhar do narrador que busca encontrá-las. A partir dessas fotografias, algumas aporias são trazidas à tona e denuncia48


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das, por meio do universo narrativo, mostrando que é possível estabelecer o rompimento das barreiras que separavam as culturas. A literatura fornece, portanto, ferramentas eficazes para realinhar as vozes amazônicas e ampliar as potencialidades de novas figurações que insiram um embrião temático do qual brote uma teia de sentidos a respeito dos deslocamentos e das travessias de corpos e falas errantes, espalhados pelo território das linguagens e culturas amazônicas. No próximo capítulo, encontram-se as formas pelas quais as Amazônias foram traduzidas nas construções romanescas de Llosa e Hatoum.

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Capítulo II

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1. A tradução das Amazônias em Milton Hatoum Eu não poderia falar e escrever sobre coisas totalmente alheias à minha vida. Porém, o que é de fato autobiográfico é trabalhado, inventado, adquire nova tintura. É muito difícil encontrar uma correspondência direta entre vida e obra porque a linguagem transcende e reinventa o real. Mas a realidade é sempre um ponto de partida. Cinzas do Norte, nesse sentido, talvez seja o meu romance mais autobiográfico, em que expus o drama moral de uma geração – a minha geração. Milton Hatoum O processo de tradução é a abertura de um outro lugar cultural e político de enfrentamento no cerne da representação colonial. A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É antes a linguagem in actu (énoncé, ou proposicionalmente). E o signo da tradução conta, ou ‘canta’ continuamente os diferentes tempos e espaços entre autoridade cultural e suas práticas performativas. Homi Bhabha O mapa errante da diáspora, a confluência de mundos geográfica e culturalmente separados podem ser reconhecidos na Manaus de Milton Hatoum. Ao surpreender a coexistência errante e paradoxal entre culturas, línguas e tradições distintas e muitas vezes irredutíveis entre si, o romance propicia o encontro de águas sempre a convergir para uma terceira margem ou a figurar numa cartografia de meandros. Marli Fantini Nos textos de Milton Hatoum coloca-se a questão de uma ética dos narradores, de uma reflexão sobre o papel do intelectual no espaço social brasileiro não mais como aquele que ‘fala pelo outro’, mas, antes, como o agente responsável pela criação de brechas de enunciação das falas dos pretensos afásicos culturais. Maria Zilda Ferreira Cury 51


Capítulo II: A T r a d u ç ã o L i t e r á r i a

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Este segundo tópico volta-se à averiguação dos modos de tradução das Amazônias no universo ficcional de Cinzas do Norte18 (2005), do escritor manauara Milton Hatoum, a partir das contribuições de Homi Bhabha, Marli Fantini, Maria Zilda Cury e Luis Alberto Brandão. Para tanto, faz-se necessária uma rápida contextualização dos trânsitos/travessias de Milton Hatoum, o qual circula entre as fronteiras da tradução, docência e literatura, pois dessas experiências, adquiridas durante o percurso profissional do saber/conhecer, nasce um projeto estético/intelectual interligado às práticas cotidianas que potencializam as relações entre línguas, memórias, culturas, territórios, além das temáticas regionalistas. Esse romancista brasileiro lança-se primeiramente às travessias da tradução, pondo em evidência suas experiências pessoais, sobretudo, e especialmente, como intelectual engajado com a região, a fim de retratá-la como centro de criação cotidiana de cultura. Após traduzir a série de ensaios de Edward W. Said, Reflexões sobre o exílio, e Representações do Intelectual (2003), Hatoum comenta: Acho que um intelectual ou um escritor deve ser independente, manter-se fora do poder para criticá-lo. Por isso fiz questão de traduzir um livro de Edward Said: Representações do intelectual. Para Said, o intelectual, longe de ser um cínico ou um especialista, deve ser um crítico ao poder, ao preconceito, à miséria humana e à opressão (HATOUM, 1998, In: JB Online)19.

À consagrada tradução acrescenta-se uma extensa referência de livros, contendo autores como William Faulkner, Gustave Flaubert, Jorge Luís Borges, Joseph Conrad, Guimarães Rosa, entre outros. Hatoum, além de romancista, ensaísta, tradutor e professor universitário, também, é autor de vários contos publicados em revistas, antologias e suplementos literários no Brasil e fora dele. Desta feita: A partir desta página, por medida de economia, somente as iniciais da obra serão utilizadas (CN). 18

BARCELLOS, Paula. Alimento uma esperança desesperada. Entrevista: Milton Hatoum. JB Online, Rio de Janeiro, 20 agosto de 2005. 19

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A tradução também envolve para Hatoum uma travessia, um deslocamento para o passado e para outros espaços. A ficção é o espaço através do qual Hatoum teoriza sobre a problemática da identidade cultural, o deslocamento da memória e a tradução, processo que envolve todo tipo de relação de alteridade (PAGANO, 1999, p. 69).

Trata-se, de fato, de um intelectual que se mostra conhecedor de histórias e culturas, cujas representações literárias são feitas por quem demonstra saber que a literatura pode mais do que formar identidades, pois também possui a incrível força de sedimentar relações de poder. A par dessas “experiências babélicas” vividas por ele mesmo, enquanto intelectual nômade que se lançou a traduzir paisagens e culturas de outras comunidades amazônicas, Milton Hatoum faz da literatura um instrumento útil, profundo e significativo a serviço da cultura. Ele utiliza as experiências dos sujeitos reais para elaboração de novas figurações do espaço amazônico voltadas para a conformação de novas identidades, elaboradas em consonância com outras temporalidades e espacialidades das/nas Amazônias. Através da articulação da diferença e da visualização das inúmeras ligações que permeiam os espaços, os substratos e a vivência dos sujeitos, esse escritor/tradutor, tornou-se assunto garantido em simpósios, colóquios, congressos, seminários e programas de pós-graduação localizados em todo o Brasil e fora dele. Na década de 1970, Hatoum morou em São Paulo, onde se diplomou em arquitetura na FAU-USP. Também trabalhou como colaborador da revista Isto É. Em 1980, viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois, passou três anos em Paris, cursou (sem concluir) um doutorado em Literatura na Sorbonne. Voltou a Manaus em 1984, onde foi professor de Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal do Amazonas até 1999. Atuou ainda como professor visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley), foi bolsista da Fundação VITAE, da Maison des Écrivains Étrangers (França), e escritor residente da Yale University (New Haven/EUA) e do International Writing Program (Iowa/EUA). Vencedor de vários prêmios, incluindo o Jabuti, por duas vezes consecutivas, Hatoum é considerado pela crítica especializada um 53


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dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade. Os enredos hatounianos dialogam com as mais variadas temáticas distribuídas em diferentes áreas do saber: literatura, cultura, historiografia, hibridismo, mestiçagem, nomadismo, errância, enfim, os textos hatounianos, desde o lançamento de seu primeiro romance, Relato de Um Certo Oriente (1989), tornaram-se ferramentas eficazes para a (res)significação das histórias dos muitos sujeitos que vivenciaram o trauma da diferença e do apagamento imputados aos habitantes das Amazônias. Desse convívio e experiência com tantos imaginários, brotam personagens que encenam as diferenças existentes no espaço amazônico. Em seus enredos, as Amazônias aparecem como um lugar de diversidade com inúmeras possibilidades de imbricações culturais, como as do enredo de CN, objeto de estudo do presente trabalho. Publicado no ano de 2005, o romance está parcialmente ambientado na cidade de Manaus, entre meados dos anos 1950 e início dos anos 1980. O título de seu romance – Cinzas do Norte – funciona como uma espécie de itinerário para um passeio, cujo percurso é composto por um cenário estilhaçado, onde tudo termina em cinzas. Cinzas não apenas de um lugar, de uma cidade ou de uma geração, mas de um imaginário que por longa data silenciou as problemáticas e os dramas sociais inerentes ao ser humano; cinzas também de identidades monolíticas representadas como sendo estanques e completas em si mesmas. Assim, CN alude ao fim definitivo das representações essencialistas das Amazônias. Reflexo dessa perspectiva encontra-se já na capa20 do romance. Nela, pode-se ver a fotografia de uma mulher de mãos dadas com uma criança, ambas a contemplar um horizonte sem fim. Olhando-a atentamente, vislumbra-se uma das principais figurações encontradas na narrativa – a paisagem calcinada. Nota-se, então, a ausência de elementos do imaginário sobre o cenário amazônico, como as antigas imagens de paisagens paradisíacas e dos nativos. Nessa capa, essas representações deram lugar ao sujeito. A foto a que fazemos menção encontra-se na capa da edição de 2005, quarta reimpressão, publicada pela Companhia das Letras. 20

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Os traços indefinidos de uma mulher ao lado de uma criança, sem a expressão de seus rostos, refletem a destruição de outro imaginário: o de que o Norte é composto somente por paisagens verdes e não de dramas humanos. A postura introspectiva da protagonista da foto dá a perceber o lugar dos sujeitos em meio às travessias culturais e identitárias, formadas pelas experiências dos deslocamentos físicos e simbólicos, ou seja, a reflexão. Quanto ao enredo, a história se passa entre os primeiros anos do Golpe Militar em 1964. A trama centra-se na amizade entre as personagens Raimundo/Mundo e Olavo/Lavo21, e na relação conflituosa entre aquele e o pai, Trajano Matoso. Compondo ainda a teia das personagens, temos o romance extraconjugal de Alícia, mãe de Mundo, com Ranulfo, tio de Olavo. Como personagens secundários, porém extremamente indispensáveis na narrativa, temos o cachorro de Trajano, Fogo, o artista plástico Arana, a tia de Olavo, Ramira, e o motorista Macau. O romance começa in ultimas res, pelo fim, ou melhor, esse fim dá origem a um começo. O narrador protagonista O(Lavo) inicia a tessitura das histórias que compõem o enredo do romance dizendo: Li a carta de Mundo num bar do beco das Cancelas, onde encontrei refúgio contra o rebuliço do centro do Rio e as discussões sobre o destino do país... Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a força de um fogo escondido... (HATOUM, 2005, p. 9)

Como a força de um fogo que queima os velhos imaginários e impressiona o leitor, a obra vai sendo alicerçada ao longo de 311 páginas, em 20 capítulos, entrecortados pelas cartas do segundo narrador, Ranulfo, ou simplesmente: Tio Ran. A narrativa é composta ainda pela presença de um terceiro narrador, Rai(Mundo), que participa da trama por meio de citações diretas e através de cartas enviadas da Europa ao amigo Lavo. Ainda no fragmento em destaque, vemos que o autor se utiliza Os diminutivos “Lavo” e “Mundo” são o modo como os nomes dos narradores são abreviados. 21

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de um artigo indefinido – uns – para revelar ao leitor a imprecisão da data em que se passa a trama. Essa estratégia colabora para a criação de atmosfera adequada à reflexão memorialista sobre as trajetórias da existência. Anos imprecisos – como também as lembranças o são – dão ao leitor, sob a forma de fragmentos acinzentados, os mosaicos de existência que armam as histórias da vida. “Uns imprecisos anos” também se apresentam crivados de histórias, vivências, deslocamentos culturais que se entrecortam e se entrecruzam de forma tão imprecisa, e indefinida, como o próprio termo. No romance, a relação de amizade entre Lavo e Mundo começa ainda na adolescência, quando os dois amigos cursam juntos o ginásio, no Colégio Pedro II, em 1964. O narrador-personagem, Olavo, é filho de Raimunda e Jonas, que ficou órfão muito cedo quando seus pais morreram em um naufrágio e, por isso mesmo, fora criado por seus tios maternos: Ramira e Ranulfo. Lavo torna-se um advogado conformado e medíocre, sem grandes sonhos a conquistar e sobre quem não sabemos muita coisa. Na trama, ele está sempre às margens dos acontecimentos, juntando os fragmentos do passado que compõem a história de Mundo. A partir do que ouve de terceiros, e das cenas por ele presenciadas, Lavo vai associando as muitas versões e visões que dão sentido lógico à trama. Assim, o elo entre o início e o fim da narrativa de Olavo é a última carta escrita por Mundo antes de morrer, anexada integralmente no final do livro. Mundo e Lavo são dois opostos que retratam rumos diferentes de uma geração marcada pela revolta, violência e opressão. Os dois personagens são a representação de uma juventude que optava ou pela “obediência estúpida ou a revolta” (HATOUM, p. 10). Nos dois personagens essa afirmativa equivale a ser um artista engajado, lutar contra a ditadura e implantar mudanças político-sociais significativas na sociedade da época, ou se conformar em ser um sujeito mediano, submetido aos mandos dos militares. Esse paradoxo que diferencia os dois amigos faz brotar personalidades opostas, onde Mundo é ousado, corajoso e sonhador, enquanto Lavo é retraído, conformado e pacato. Contudo, as duas histórias têm como epicentro a trajetória de vida apenas de (Rai)Mundo, personagem em torno do qual as demais histórias se organizam na narrativa. 56


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Nascido numa família rica e decadente, Mundo protagoniza desde o nome seu desejo de sair em busca dos novos horizontes a partir da arte, por isso mesmo, ele vive uma contenda atormentadora com o suposto pai, o magnata Tra(Jano) Matoso. O pai deseja a todo custo transformar o filho no continuador do império de juta dos Matosos, localizado na Vila Amazônia, próximo a Parintins. O filho, por sua vez, sonha em ser artista. Os desejos de Jano colidem brutalmente com os de Mundo, fazendo com que os dois desenvolvam um ódio mortal. Tudo isso faz de Mundo o portador de uma revolta destruidora, inclusive dele mesmo. No decorrer do romance, surgem intrigas que levam o leitor a conhecer as origens de tanto ódio e revolta. Quanto aos sonhos artísticos de Mundo, esses são encorajados inicialmente por um artista local, Arana, que o incentiva a aprimorar seus talentos. Entretanto, no desfecho da trama, seu primeiro mestre se revela um impostor, no sentido de que produz uma arte descomprometida e oportunista, que retrata uma Amazônia atrelada a estereótipos essencialistas, já consolidados nos imaginários propagados sobre a região. Arana é uma espécie de falsário que explora e agencia os elementos locais para produzir arte por encomenda, comprometida apenas com seus próprios interesses financeiros. Ao personagem Olavo compete narrar a maior parte da trama. Ele vai moldando o enredo com base nas histórias contadas pelas demais personagens e, também, através de trechos das cartas escritas pelo personagem Ranulfo, os quais aparecem intercalados entre os capítulos do romance. Entre outros aspectos, o narrador foca diferentes lugares para se pensar e narrar as Amazônias. A tensão se instaura entre a permanência e a fuga das personagens e as figurações de espaços, lugares e tempos díspares, conduzindo o leitor a ambientar-se em diferentes centros simbólicos – a Vila Amazônia, Parintins, os arredores de Manaus, entre outros. A trama acontece em espaços diversificados de uma mesma região, onde emergem figurações marcadas por transformações geográficas e simbólicas, ocorridas no Norte do país, durante o período da ditadura militar e que acabam por desenhar um novo perfil para a região. Nessas geografias, Olavo narra em primeira pessoa 57


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o que ele mesmo vivenciou enquanto personagem da história. Às lembranças da infância, acrescentam-se também as transformações urbanísticas de Manaus, como a criação de novos bairros, a tirania dos militares, a marginalização dos habitantes nativos. Por meio de fragmentos da memória, Olavo vai compondo o retrato preciso da Manaus da década de 1960. Os deslocamentos dos personagens por entre as paisagens amazônicas, distribuídas em torno dos vários centros simbólicos da narrativa, mostram, entre outras coisas, as muitas possibilidades de tradução do espaço amazônico, voltadas para diferentes temáticas e suas consequências na formação de novas identidades. Como bem salienta Cury (2004, p. 171), na pena hatouniana o espaço Amazônico é “despido de exotismo e composto por espaços geográficos tão diversos que acabam por mesclar-se e paradoxalmente indiferenciar-se”. Nesse espaço, as personagens são compostas com profundidade psicológica e os dramas humanos são ainda mais acentuados na trajetória de vida das mesmas. No fragmento a seguir, percebemos os trânsitos dessas personagens em uma das muitas geografias que existem nesse espaço de matas, rios, igarapés, enfim, um espaço às vezes periférico, às vezes cêntrico. Por entre as longas estradas amazônicas – os rios –, o narrador Ran dá a conhecer o entrelaçamento das paisagens próximas a Manaus, o intenso comércio de produtos que ocorria entre o interior e a cidade, os meandros dos rios e a intensa comercialização de seus produtos amazônicos. Ele [Ranulfo] passava muito tempo fora de Manaus; subia o rio Negro até Barcelos e, na época da cheia, visitava povoados no rio Branco. Viagens longas, de seis a sete semanas [...] Trazia objetos de artesanato indígena, escovas e vassouras de piaçava e sacos de castanhas para serem vendidos na tenda do Américo (HATOUM, 2005, p. 270).

Essas figurações mostram o rompimento da imagem de isolamento, especialmente, dos que vivem floresta adentro. As Amazônias vão surgindo plenas, em meio ao espaço da floresta e da cidade. Sutilmente, os narradores apresentam os pormenores de uma Ama58


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zônia que convive lado a lado com a modernização e a manutenção de hábitos ancestrais da população nativa. No entanto, coexistência não significa harmonia. Percebemos que o narrador Olavo, embora não intervenha nos fatos, alinha sua voz no intento de mostrar a exclusão e a marginalização dos nativos ante as mudanças que ocorrem na região. De um lado estavam os detentores do poder econômico e político da cidade, buscando ampliar suas cifras econômicas e pensando apenas em seus interesses; do outro, a população pobre e miserável sendo cada vez mais explorada e empurrada para as periferias da cidade. Ambos representam o antagonismo econômico e urbanístico pelo qual passava Manaus no início da implantação da Zona Franca, no referido período, conforme demonstram os fragmentos abaixo: A sala do palacete, sóbria, com poucos móveis e objetos. Reparei na cristaleira, com vidro também nas laterais, miniaturas de soldados e de máquinas de guerra; ao lado da vitrola, uma estante com livros e discos. Na parede oposta, a fotografia de um casarão de frente para o Rio Amazonas. O luxo maior vinha de cima: um estuque antigo com figuras de liras, harpas, cavaletes e pincéis (HATOUM, 2005, p. 31).

Ou ainda: As cinco casinhas da Vila da Ópera, enfileiradas, se intrometiam como uma cicatriz num quarteirão de sobrados austeros; o acesso era por uma servidão de três metros de largura, e, à direita, um portão de ferro vedava a entrada de uma mansão moderna, cujo quintal cercava o pequeno pátio de nossa casa... Tio Ran olhou os tabiques caídos com manchas de umidade, circulou teatralmente pela sala minúscula e resmungou: ‘Não vou morar aqui. Onde estão as castanheiras pra gente armar a rede? É muito apertado, mana. E triste demais’ (HATOUM, 2005, p. 26).

Temos aqui as imagens de duas realidades díspares. De um lado, a luxúria e a ostentação, e do outro, a pobreza. Nesse contexto, percebe-se a condição dos nativos diante da brutalidade da tão sonhada sociedade industrial, que os isola e os marginaliza ainda mais.

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Entre as muitas faces dessa marginalização, a população nativa da região, de um modo geral, é obrigada a mudar-se para bairros sem infraestrutura e novamente é posta à margem não apenas cultural, mas também territorialmente. Para esses seres, a perspectiva de melhoria é mínima. Historicamente, da forma como foi executado o projeto de modernização e reurbanização de Manaus, a população de baixa renda era cada vez mais empurrada para as periferias da cidade, sendo obrigada a viver à beira de igarapés fétidos ou mesmo em bairros isolados do centro de Manaus. Mais uma vez, esses anônimos representavam aquilo que a nação desejava esconder, pois aos olhos dos militares essa população representava atraso, subdesenvolvimento e miséria. Trazemos outra cena que também chama a atenção: [Mundo] Curvou-se, pôs as mãos entre as barras de ferro e ficou assim por uns segundos; quando se afastou, vi uma família de índios catando as moedas que jogara; moravam ali, entre o gradil e a fachada da casa em ruínas... Cheiro de óleo queimado, de madeira verde. As canoas embicadas na praia balançaram com a agitação dos catraieiros, que acenavam para ele (HATOUM, 2005, p. 39).

Neste fragmento, o narrador, com leveza, dá a conhecer algumas cenas do cotidiano desta outra Amazônia, desconhecida por muitos de nós. A posição introspectiva do protagonista perante o gradil, olhando o indígena que mendiga as moedas jogadas por ele ao chão em uma ruela de Manaus e, ao mesmo tempo, o lugar desse indígena nessa sociedade, ou melhor, às margens dela, mostram ao leitor um microcosmo da sociedade da época. O cheiro de madeira verde que se mistura ao de óleo queimado funde-se simultaneamente ao odor da miséria e das misteriosas paisagens trazidas à memória através das lembranças de um passado que tenta resistir ao presente avassalador. Essa Manaus de CN é a mistura de tudo isso, compondo outro espaço. Outra figuração que destacamos é a das imagens da casa de Ramira, localizada no Morro da Catita, que aguçam no leitor os cheiros e sabores da floresta ainda preservada em uns poucos bairros 60


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de Manaus. Uma Amazônia urbana na qual cidade e floresta, modernidade e tradição, se imbricam a todo instante, compondo mais um mosaico. Nessas muitas faces da cidade/floresta aparecem ruas, igarapés, rios, bairros, construções arquitetônicas inspiradas nas tradições de migrantes, imigrantes, ou seja, cenários construídos a partir da coexistência de seres humanos em meio a hierarquias de valor e que ajudaram a imbricar as práticas culturais da região. A chegada dos japoneses na região é um exemplo dessas imbricações histórico/sociais: [...] em 1945 o velho Matoso comprara a propriedade de uma firma japonesa. Oyama, o pioneiro, homem lembrado por todos, trouxera da Índia sementes de juta. Viera com a família em 1934; mais tarde chegaram dezenas de jovens agrônomos de Tóquio, passaram uns dias na Vila Amazônia e viajaram para o rio Andirá, onde fundaram uma colônia (HATOUM, 2005, p. 70).

Essa colônia retratada nas páginas de CN, retoma, pelo viés histórico, a primeira leva de japoneses a se instalar na região do Amazonas por volta de 1934. Nessa época, a presença de imigrantes japoneses e portugueses ajudava a intensificar o processo de implantação da cultura da juta. Após a decadência do segundo ciclo da borracha, essa foi a cultura que ajudou a região a manter-se economicamente viva, diante dos mercados nacional e internacional até meados de 1964, quando os militares decidiram consolidar o projeto de implantação da Zona Franca de Manaus, almejando, sobretudo, resguardar as fronteiras nacionais. Considerando os fatos apresentados até o presente momento, pode-se conjeturar que as andanças e os deslocamentos que permeiam a formação do escritor contribuíram sobremaneira para concretizar essas travessias reais e metafóricas de sua produção. Essa “essência” nômade associada às andanças pelo mundo pode ter culminado na consolidação dessas travessias de existência, possibilitando-lhe olhar com mais sensibilidade e clareza as imbricações culturais ao seu entorno. Os deslocamentos contínuos aos quais se submeteu o guiaram rumo ao conhecimento de inúmeras formas de alteridade. De acordo com Zilá Bernd: 61


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O espírito migrante não é apenas geocultural, ou seja, associado ao deslocamento de um território a outro; trata-se sobretudo de deslocamentos de natureza ontológica e simbólica, em direção à experiência da alteridade. Mesmo os escritores que não são propriamente migrantes, isto é, que não são nômades, diaspóricos ou migrantes, oriundos de diferentes países, podem vivenciar a experiência do exílio (BERND, 2010, p. 311-312).

Ou seja, os deslocamentos do manauara também podem ser entendidos como de natureza ontológica. A essência dessa natureza faz com que seja impossível a apreensão da alteridade em categorias de classificação. Ao dar voz ao sujeito e não falar por ele, característica constante em grande parte das narrativas que tinham por temática as Amazônias, o escritor deixa emergir a essência humana. A trajetória de deslocamentos físicos realizados por Hatoum está também marcada por experiências baseadas em uma realidade que ele mesmo presenciou no decorrer dos anos, especialmente dos que viveu em Manaus. Experiências “babélicas”, suficientemente eficazes para inserir em seus textos novos tópicos de abordagem pensados por quem também viveu a experiência do exílio. Para que se adentre o território itinerante das traduções hatounianas, é conveniente esclarecer, neste texto, o senso comum em torno da palavra “tradução”. Comumente associada a um mero fenômeno comunicativo, o termo é cercado de ambiguidades. A maioria das pessoas costuma limitar a palavra tradução ao processo de transmissão e compreensão dos sentidos envolvidos nas palavras escritas em outras línguas, considerando apenas o aspecto estritamente verbal. Contrariamente a esse pensamento, a tradução a que nos referimos neste trabalho diz respeito aos deslocamentos e travessias culturais, entendidos por nós enquanto processo de recriação cultural. Voltemos uma vez mais às palavras de Homi Bhabha, utilizadas na epígrafe que abre este capítulo: A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É antes a linguagem in actu (énoncé, ou proposicionalmente). E

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o signo da tradução conta, ou ‘canta’ continuamente os diferentes tempos e espaços entre autoridade cultural e suas práticas performativas (BHABHA, 1998, p. 313).

Nota-se que a reflexão do autor contém a essência da tradução que interessa destacar neste capítulo, pois ao tratar dos processos de abertura de outro lugar situado no cerne das representações, o crítico indiano leva seu leitor a ver a tradução enquanto ato performático que se (re)faz continuamente. Esse processo performático dizima tempos e espaços no limiar das fronteiras culturais. Isso faz com que a cultura seja entendida como um produto dinâmico e aberto, assim como um verbo que abrange várias possibilidades de uso e transformação. É nesse espaço que insurge o ato performativo de tradução cultural. Ainda segundo Bhabha (1998), a cultura deve ser pensada e abordada enquanto construção dinâmica, o que certamente requer consciência e visão diferenciadas em relação às práticas culturais. Para o crítico: O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia de viver (BHABHA, 1998, p. 27).

O ponto fundamental destas palavras do crítico indiano é o “novo”, o que surge a partir da reflexão, reequilíbrio, (res)significação das diferenças existentes entre culturas anteriormente estranhas. O “novo” nos dá a oportunidade de estudar e não aprisionar os sentidos que as diferenças podem ocupar, permitindo assim traduções, por meio das quais essas mobilidades apareçam. Nessa mesma linha de raciocínio, Jorge Larrosa, em seu ensaio Ler é Traduzir (2004), alerta para a hermenêutica envolvida nos processos de tradução, mesmo daqueles estritamente verbais. Para Larrosa (2004), a tradução é algo inerente à compreensão do próprio 63


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ser humano. Ela envolve mais do que a equivalência de palavras de uma língua a outra. É um processo no qual estão envolvidas enormes variações temporais, socioculturais e individuais. A hermenêutica neles requerida exige o esforço de entender a difícil tarefa de mediar não apenas as línguas entre os indivíduos, mas, sobretudo, seu passado, presente e cultura. Assim, a tradução se torna um convite para pensarmos uma comunidade plural, afirmando e não negando a condição babélica de todos os seres humanos: “A tradução não é em absoluto uma prática anti-babélica, mas ao contrário, babeliza ela mesma: a tradução é a experiência babélica de babel” (LAROSSA, 2004, p. 83). A experiência a que Larossa (2004) denominou de Experiência da Paixão é aquela que transforma o sujeito moderno acomodado, conformado e incapaz de indagar o mundo em que vive, em um sujeito que, embora não seja constante e seguro de si mesmo, detém a possibilidade de dialogar com o mundo, desarticular e articular, de ser mais observador, sendo, portanto, capaz de indagar como as histórias foram forjadas a partir do que dizem os exploradores e os literatos sobre as regiões do mundo. O próprio Hatoum se encarrega de emitir sua opinião a respeito desse tipo de experiência: [...] há, como é natural, elementos de minha vida e da vida familiar. Porque minha intenção, do ponto de vista da escritura, é ligar a história pessoal à história familiar: este é o meu projeto. Num certo momento de nossa vida, nossa história é também a história de nossa família e a de nosso país com todas as limitações e delimitações que essa história suscite (HATOUM, 1993. In: Revista Hottopos). 22

Portanto, fica assinalado ao longo dessa afirmação que tanto a experiência, como a paixão dão ao sujeito possibilidades eficazes para combater a percepção linear do pensamento dialético. Vimos que a experiência é algo próximo à paixão, o que capacita o sujeito antes manipulado pelos aparatos sociais a olhar a diverFragmento da entrevista concedida a Aida Hanania, em São Paulo, ano IV, n. 6, 2001. 22

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sidade a partir de uma perspectiva que Beatriz Sarlo (2005) denominou de “olhar político”. No livro Paisagens Imaginárias, Sarlo discute a importância do olhar político. Em meio a suas reflexões, essa pesquisadora nos convida a atentar para “o menos visível, menos audível, em discursos e práticas que escapam pelas fissuras” (SARLO, 2005, p. 60). Segundo a intelectual argentina, o olhar político traz à tona o que geralmente não se vê e põe em voga questões que, do ponto de vista social, não dariam visibilidade às diferenças. O olhar político, com força política, ideológica e militante, é o que nos possibilita romper com o olhar histórico, com o fixo, com o imutável, com o que ordena e disciplina, com o que produz sentidos e os cristaliza. Nesse caminho, as produções hatounianas apontam para esta cisão de que nos fala Sarlo (2005). Em entrevista concedida ao jornal Gazeta do Povo, em 22 de outubro de 2006, Hatoum declara: “prefiro descrever um lugar que conheço profundamente”. O intelectual brasileiro dá a perceber que suas experiências pessoais serviram de base para alicerçar suas invenções, mostrando não apenas a indissociabilidade entre a realidade e a ficção, mas também o lugar de um intelectual que se lançou a realizar as travessias de tradução, a partir de suas experiências pessoais, sobretudo e, especialmente, como escritor engajado com a região, que busca retratá-la como centro de criação cotidiana de cultura. Hatoum é o que se pode chamar de escritor/tradutor. Escrevendo a partir de um lugar marcado pela superabundância de culturas, este manauara traz temáticas carregadas de sentidos ideológicos, políticos e militantes. Suas temáticas voltam-se para as travessias de existência e os deslocamentos que ocorrem no cerne de todas as culturas. Seus textos, em consonância com Fantini, são como [...] um território itinerante a emergir de espaços de migração e ‘ex-tradição’ oferece a imagem de novas formas de relações identitárias – transitórias, fluidas, errantes – que se deixam interpenetrar pela pluralidade de diversos cruzamentos territoriais e culturais (2004, p. 174).

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Assim, os processos de tradução cultural, ou travessias culturais, estudados em uma perspectiva nômade, se dão a partir da recriação de espaços e da reconfiguração de imaginários, coexistindo com sujeitos nos quais as experiências sociais trazem à tona a impossibilidade de se representar a região junto a categorias fixas e isoladas. Portanto, a região amazônica já não é mais representada por meio de exotismos e estigmas homogeneizantes. Mesmo apresentando personagens migrantes na totalidade de suas obras, este elemento não limita as letras hatounianas a uma escrita dita migrante ou mesmo regionalista. O próprio autor se encarrega de explicar suas andanças pelo prisma da tradução cultural: O nacionalismo e o patriotismo exacerbado podem levar à intolerância, podem cegar nossa visão crítica. Um outro acontecimento foi decisivo. Não foi fácil sair de casa tão cedo, sabendo que não podia mais voltar. Mesmo assim, não houve resistência na minha família e andei pelo mundo. Um dos pontos mais altos da literatura do Ocidente é o poema de Goethe: Divã oriental-ocidental. Ainda jovem Goethe leu o Alcorão e a poesia de autores islâmicos, e entendeu que não há hierarquia entre as culturas. Essa é uma das definições de literatura: a percepção do outro23. (HATOUM, In: Entrevista a Irinêo Netto: Rascunho, Curitiba, julho de 2012).

Partindo deste pressuposto, pode-se observar que os tópicos de abordagem nas obras deste escritor não são casuísticos. Reconhecido mundialmente pelos traços contemporâneos presentes em suas narrativas, Hatoum consegue propor temas universais a partir do elemento local. Como por exemplo, o caso do drama familiar, uma constante em seus romances. Em CN, essa temática é ainda mais intensa, sendo consolidada através do ódio entre pai e filho. Embora a temática da imigração não seja o epicentro da narrativa, é a partir dela que podemos visualizar com mais clareza os trânsitos e deslocamentos existentes na região amazônica, tendo em vista serem esses NETTO, Irinêo. Obstinação no lugar de musas e oráculos: entrevista com Milton Hatoum. Rascunho, Curitiba, julho, 2012. 23

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imigrantes significativamente importantes para a realização dessas travessias culturais. Com efeito, ao apresentar a coexistência de fronteiras errantes e paradoxais entre as culturas, o autor toma como exemplo possível a própria vida: Na minha infância, a convivência com o Outro exterior aconteceu na própria casa paterna. Filho de imigrante oriental com uma brasileira de origem também oriental, eu pude descobrir, quando criança, os outros em mim mesmo. [...] Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantes-viajantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial. [...] Por outro lado, os amazonenses que haviam migrado para a capital, traziam no imaginário as lendas e os mitos indígenas. Na Pensão Fenícia, as vozes desses nativos faziam contraponto às dos imigrantes orientais: vozes dissonantes, que narravam histórias (HATOUM, 1993)24.

Pode-se perceber, então, que é possível realizar diferentes figurações do espaço amazônico, através de um pequeno microcosmo da região, representado a partir da tradução de um espaço performático e rico por natureza. Essas traduções fornecem subsídios para refletir sobre a impossibilidade de se enquadrar a região em categorias de classificação. Nesta mesma direção, o peruano Mario Vargas Llosa apresenta outra das muitas Amazônias, também captada e exposta a partir de elementos que se fundem nas crenças, cores, ritmos, cheiros, temporalidades e espacialidades diversificados da região amazônica, como passa-se a demonstrar a seguir.

HANANIA, Aida. Entrevista – Milton Hatoum. Disponivel em: http:// www.hottopos.com/collat6/milton1.htm#_ftn2. 24

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2. A tradução das Amazônias em Vargas Llosa Uma língua já é, em si, uma série de traduções mútuas entre várias microlínguas. Microlínguas que já são traduções de formas sempre distintas de percepção e de interação com o real. Luis Alberto Brandão La raíz de todas las histórias es la experiência de quien las inventa, lo vivido es la fuente que irriga las ficciones literarias [pues] en toda ficción, aun en la imaginación más libérrima, es posible rastrear un punto de partida, una semilla íntima, visceralmente ligada a una suma de vivencias de quien la fraguó. Vargas Llosa [As Amazônias, são] um verdadeiro universo povoado de seres, signos, fatos, atitudes que podem implicar múltiplas possibilidades de análise e interpretação. [...] João de Jesus Paes Loureiro [...] la literatura amazónica, [de Vargas Llosa] insertada en su pertenencia latinoamericana, se reescribe en búsqueda de un sistema más complejo, que considera como regiones, culturales, aquellas zonas de frontera que se presentan, al mismo tempo, como espacios comunes a las naciones... Biagio D’Angelo

Neste tópico, as reflexões se voltam para o exame das figurações contidas nos escritos do peruano Jorge Mario Vargas Llosa, especificamente, para aquelas projetadas no universo romanesco de El Hablador (1987). A partir delas, o enfoque recai sobre outras representações do espaço amazônico inscritas em temporalidades, espacialidades e geografias, conforme veremos, distintas das projetadas por Milton Hatoum, mas que também refletem as inúmeras possibilidades de se pensar, narrar e traduzir as várias facetas da cosmogonia cultural amazônica. Antes, porém, de examinar as figurações llosianas, faz-se necessária uma breve menção dos percursos e travessias realizados por esse autor no decorrer de uma vida profissional nômade, marcada pela transformação de um saber/conhecer da arte literária, 68


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intrínseco a intelectuais que se deslocam e, por isso mesmo, são formados entre espaços políticos sociais e culturais diversificados. Parte-se da concepção de que esses percursos ajudaram Llosa a multiplicar os ângulos de abordagem de suas ficções e o auxiliaram na realização de um projeto estético/intelectual comprometido em retratar temas em prol da liberdade e da justiça social inerente às humanidades, fazendo desse intelectual um artista de suma importância para (res)significação das Amazônias. Esse direcionar de sentidos decorre de movências, deslocamentos e traduções marcadas, antes de tudo “pela ruptura, com um grupo ou um lugar, pela ausência de itinerário fixo, pelo caráter imprevisível do trajeto, flutuando ao sabor dos objetos encontrados no caminho” (BERND, 2010, p. 322). Nascido na cidade de Arequipa, Peru, e graduado pela Universidade Nacional Mayor de San Marcos nos cursos de Letras e Direito, desde o ano de 1959, quando recebe a bolsa de estudos Javier Prado, para cursar o doutorado na Espanha pela Universidad Complutense de Madrid, Jorge Mario Vargas Llosa lança-se definitivamente a um nomadismo, sobretudo intelectual, através dos meandros de sua escrita literária. Esses percursos o conduziram a geografias, culturas e espaços variados da América Latina e do mundo. Bolívia, França, Espanha, Inglaterra e Itália são alguns dos países percorridos pelo intelectual, cujas “experiências babélicas”25, vividas em paisagens e geografias de diferentes continentes, fazem dele um pensador singular na história das letras peruanas e latino-americanas, como bem salienta a pesquisadora Raquel Bouvet: [...] o nômade intelectual se engaja no percurso que alia descoberta e repetição: descoberta de autores de todas as épocas, de Sobre o assunto, recomendamos a leitura do trabalho de pós-doutoramento de Simone de Souza Lima (2014), pesquisadora da Universidade Federal do Acre. Partindo de uma visão crítica sobre textos produzidos desde o século XVI até o XX, a pesquisadora acriana abre um leque de possibilidades comparatistas a despeito dos processos de nomadismo, errância, trânsito, travessia. Tudo isso guiado por uma proposta de leitura centrada na cartografia da Amazônia Babel, metáfora que dialoga com os pactos de visibilidade e dizibilidades das línguas no contexto da margem amazônica. 25

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textos de tradições diferentes, de regiões de paisagens, de comunidades de culturas outras que serão revisitadas muitas e muitas vezes (2010, p. 324).

Assim, aliando um estilo de vida nômade a um percurso repleto de novidades, Vargas Llosa foi consolidando sua trajetória intelectual, de modo propício para tecer e entrelaçar, em suas ficções, valores, tradições, culturas e regiões com maior sensibilidade. Com efeito, ao lançar-se ao sabor dos objetos culturais, embates e rupturas que a vida nômade faculta, este tradutor cultural consegue realizar travessias importantes para valorar as questões humanitárias. Dessa forma, ele se posiciona política e socialmente como figura pública, que ultrapassa não apenas as fronteiras físicas, mas, sobretudo, as dicotomias impostas por uma minoria dominante, cujo “padrão” cultural imposto às maiorias dominadas, de certa forma, impediam/dem a realização de mudanças necessárias nas formas de se pensar, ver e valorar as estruturas políticas, sociais, culturais e literárias da América Latina. Essas traduções iniciam-se ainda na juventude do autor, quando este começa sua militância intelectual. Tendo presenciado de perto a apatia dos intelectuais peruanos ante as opressões dos ditadores Manuel Odría (1948-1956) e Velasco Alvarado (1968-1975), Vargas Llosa prontamente percebeu que deveria buscar alternativas literárias e políticas para romper com a inércia daquela geração de pensadores conformados com os horrores das ditaduras, como salienta o próprio Vargas Llosa, ao refletir sobre o papel que competia a eles assumirem naquele momento: Os intelectuais tiveram tanta responsabilidade quanto os militares pelo que ocorreu no Peru durante aqueles anos, principalmente nos primeiros sete – de 1968 a 1975, os do general Velasco –, em que se adotaram todas as soluções equivocadas para os grandes problemas nacionais, agravando-os e precipitando o Peru numa ruína [...]. Eles [os intelectuais] aplaudiram a destruição pela força do sistema democrático, que, por defeituoso e ineficiente que fosse, permitia o pluralismo político, a crítica, a vida sindical e o exercício da liberdade (1994, p. 306).

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Em virtude dessa consciência, o escritor tomou como projeto de vida a construção de uma arte que pudesse materializar nas letras uma contestação às arbitrariedades exercidas por aqueles que deveriam questionar o poder. Foi então que Llosa decidiu buscar, na literatura, subsídios para uma formação distinta dos intelectuais de sua geração. Neste propósito, ele se embrenha nas letras de William Faulkner, Gustave Flaubert, Sartre, Albert Camus e outros, a fim de sanar inquietações intelectuais e políticas que o angustiavam. Direta ou indiretamente, as influências destes pensadores forjaram sua consciência a respeito do papel de um escritor/intelectual, comprometido com as questões políticas, históricas, culturais e sociais que atravessam as humanidades. Autor de um prolífero acervo ficcional, o peruano adiciona a seu currículo diversas produções, entre elas: romances, ensaios e peças teatrais, totalizando mais de 20 trabalhos. Destacamos em detrimento de outras obras renomadas: A Casa Verde (1966), Conversas na Catedral (1969), El Hablador (1987), Elogio da Madrasta (1988), O Paraíso na Outra Esquina (2003), Travessuras da Menina Má (2006), e tantas mais que, de igual maneira, corroboraram para consagrá-lo como um dos mais importantes nomes da literatura latino-americana. A admirável lista de premiações galardoadas ao escritor dispensa mais apresentações: Prêmio Leopoldo Alas (1959), o Biblioteca Breve em (1966), o Prêmio Rómulo Gallegos (Venezuela), e o mais recente: Nobel de Literatura do ano de 2010. Todos eles comprovam o que seus leitores já haviam constatado em suas produções, ou seja, a genialidade de um intelectual que consegue arquitetar, em suas narrativas, os dramas humanos que permeiam os substratos da sociedade contemporânea, reordenados por meio de um gesto insubmisso, materializado por meio de “uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude filosófica ou opinião para (e também por) um público” (SAID, 2005, p. 25), próprios de Vargas Llosa. Militarismo, degradação humana, violência, corrupção são algumas das temáticas abordadas em seus romances. Todas elas refletem a maestria do autor em retratar questões voltadas para a li71


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berdade individual, política e social dos indivíduos que compõem a sociedade de seu tempo, em especial a peruana. Ainda que, de um modo geral, suas obras sejam autobiográficas, isso não o impede de representar, através de suas personagens, os dramas humanos existentes em seu entorno. Muito pelo contrário, este artifício é usado com a sutileza de quem detém a sensibilidade de analisar, refletir e questionar as disparidades humanas, observadas a partir de experiências vividas pelo escritor, político e ativista atuante. Como bem afirma Vargas Llosa: Para inventar, eu sempre necessito partir de uma realidade concreta. Não sei se ocorre com todos os romancistas [...] Então, é por isso que geralmente eu me documento, visito os lugares onde ocorreram as histórias, mas nunca com a idéia de simplesmente reproduzir uma realidade, mesmo porque sei que isso não é possível, que ainda que quisesse fazê-lo... (1936. In: SETTI, p. 65-66).

No romance El Hablador (1987), escolhido como corpus desta pesquisa, essa afirmação se faz verdadeira precipuamente porque foi pensada a partir de uma experiência vivida pelo autor em 1958, quando conheceu de perto a realidade dos aguarunas e dos huambisas26, tribos localizadas no interior da Amazônia peruana, na região conhecida como “Alto Maroñon”. Esse contato o fez despertar para a necessidade de trazer à baila a existência de duas comunidades no mínimo antagônicas: os indígenas que ainda vivem no território amazônico e os que habitam as metrópoles peruanas. A partir de então, Llosa inicia uma extensa pesquisa sobre algumas etnias, e escolhe a machiguenga para ser retratada sob a forma de ficção romanesca. E assim, após anos de estudo surge a obra El Hablador (1987). Relatada por dois narradores alternadamente, a história se passa entre as décadas de 1950 e 1980, entre os espaços da Europa e a Amazônia peruana. O primeiro narrador, um peruano da alta sociedade, culto, elegante, viajado, a quem nominaremos de narTribos indígenas descendentes da família etno-linguística dos jibaro–jibaro, que atualmente habitam nas proximidades das províncias Condorcanqui e Bagu, no Peru. 26

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rador transcultural27; e o segundo, Saul Zuratas, conhecido como “Mascarita”. O enredo centra-se no desaparecimento de Saul Zuratas (Mascarita), bem como o envolvimento deste com os contadores de histórias da tribo indígena machiguenga28. O narrador transcultural narra externo à história os capítulos um, dois, quatro, seis e oito, temporariamente transcorridos nos anos de 1953, 1956, 1958, 1963 e 1981. Na trama, é ele o responsável por instigar o leitor a participar da polêmica em torno da questão de que se deve ou não incorporar as culturas indígenas no processo de modernização das sociedades peruanas. Quanto a Mascarita, cabe a ele narrar os capítulos três, cinco e sete da obra, bem como conduzir o leitor no mundo mítico das cosmogonias e cosmologias amazônicas. Compondo ainda o quadro das personagens, temos o casal de linguistas Schneil, Rosita Corpancho, Salomão Zuratas, pai de Saul, José Matos Mar, Raúl Porras Barrenechea e o papagaio Gregório Sansa. Assim, a história se organiza em torno dessas duas vozes narrativas, perfeitamente alternadas e definidas. Ambos os relatos são intercalados de forma a organizar o todo textual. Embora tanto o narrador transcultural, que acreditamos se identifica com o alter ego do próprio Vargas Llosa, quanto à personagem Mascarita, aparentemente, estruturam seus discursos em dicotomias de valor, escrita A expressão transculturação surgiu no campo da antropologia a partir de 1934. Porém, só em 1940, o antropólogo cubano Fernando Ortiz, no livro Contrapunteo del tabaco e del azucar, a utilizou com maior especificidade. A partir de então esta expressão, passou a ser usada para explicar as diferentes etapas pelas quais as culturas passam durante o processo de migração de uma para as outras. Daí, ao nominarmos esse narrador de transcultural, referimo-nos a um sujeito ficcional pensado a partir dessa expressão reutilizada pelo legado de Ortiz, como é o caso de Angel Rama, que em 1971, num artigo intitulado “Los procesos de transculturación en la narrativa latinoamericana” sugere, entre outras coisas, que a transculturação é uma alternativa para fugirmos do regionalismo cultural, tendo em vista que ela nos permite incorporar às culturas ditas regionais novos elementos de procedência externa ou não a tradições antigas pensadas sob novas focalizações, possibilitando, assim, a rearticulação de imaginários políticos, éticos e linguísticos, tal qual este narrador llosiano. 27

Os machiguengas são índios descendentes da família linguística dos arahuacas, que vivem nos estados peruanos de Cusco e Madre de Dios, e atualmente, representam cerca de 3,62% da população indígena peruana. 28

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e oralidade, civilização e barbárie, sedentarismo e nomadismo, isolamento e contato. Na realidade, eles estrategicamente conduzem o leitor até o espaço poroso, porém privilegiado, de onde é possível visualizar diferenças e realinhar figurações sobre as culturas amazônicas. Este espaço é a fronteira que se interpõe entre essas dicotomias. Logo na capa da obra deparamo-nos com a primeira tarefa: perceber a ambiguidade no título da obra: El Hablador tanto pode comunicar ao leitor um sentido depreciativo atribuído a uma pessoa que fala muito, mente, ou mesmo, nada tem a dizer ou, ainda, a alguém que sabe fazer mais do que falar, pois vale-se do dom da oratória e da persuasão para encantar, envolver e maravilhar aqueles que o escutam. Assim, o leitor pode, de antemão, iniciar a leitura atento às estratégias narrativas, bem como às polêmicas levantadas em torno de várias questões, por exemplo, a valoração do uso da oralidade/escrita, modernidade/atraso, o contraponto entre os dois narradores, enfim, embates e oposições, que alicerçam as nuanças da trama e conduzem o leitor pelos meandros da arte literária. Outro aspecto que destacamos na obra é o fator tempo. O romance é arquitetado sob duas estâncias temporais: o tempo cronológico do narrador transcultural e o tempo mítico, e atemporal dos mitos machiguengas. O primeiro, como já dissemos, está temporalmente definido entre as décadas de 1950 e 1980, e através da memória do narrador transcultural. Nesse período, voltamos a um tempo cronológico preciso, com referências a fatos históricos significativos para a história do Peru, tais como: as ditaduras ocorridas nessas décadas. Esses fatos acabam situando o leitor em diversos tempos arquitetados pelo narrador transcultural. Quanto à segunda esfera temporal, descrita pelo narrador Mascarita, só é possível identificá-la, por meio das lendas, mitos e magias que envolvem a história dos machiguengas. Esta instância não obedece à cronologia da primeira; seu tempo, como já dissemos, é regido por uma lógica mítica e atemporal. No tocante às personagens, o narrador transcultural aparenta ser um sujeito partícipe da elite peruana, pois suas conversas, seu ponto de vista e seu discurso, em muitos momentos se assemelham 74


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aos das elites dominantes, embora ele mesmo consiga ultrapassar esses discursos. Da Europa, ele decide concluir um projeto pessoal adiado durante um quarto de século. Isto é, escrever a história dos machiguengas. Já Saul Zuratas ou Mascarita, como é chamado pelos amigos, é o humilde órfão de mãe, fruto do matrimônio entre um judeu e uma crioula peruana. Ele recebe este apelido devido a uma mancha, de nascença, peluda e vermelha que lhe cobre metade do rosto, provocando espanto e repúdio em quase todos a seu redor. Apesar da aparência, ele é estimado por aqueles com quem convive, não somente por sua inteligência, bondade e paciência, mas também pela serenidade que demonstra possuir. Mascarita, ainda jovem, decide visitar alguns parentes maternos no interior do Peru. Lá, toma conhecimento da existência de uma tribo – os machiguengas –, que tentava manter-se isolada do contato com o mundo dos “brancos”, preservando hábitos, como o de deslocar-se constantemente por entre as geografias amazônicas peruanas, preservando, assim, suas cosmologias e cosmogonias vivas, principalmente, por meio da ajuda de seus contadores de histórias ambulantes. Desde então, secretamente, Mascarita dedica-se ao aprendizado e conhecimento da língua machiguenga, das práticas culturais dessa etnia, sua forma de vida, suas histórias. Após a morte do pai, ele opta misteriosamente por trilhar outros caminhos, abandonando a faculdade, os amigos e a vida na cidade, para tornar-se um “falador” e lutar em favor da causa indígena. Como vimos, os dois narradores llosianos são sujeitos ficcionais nômades, que se lançam naquele que parece ser o único destino certo dos que se deixam envolver pelos sabores das descobertas – a errância. Uma escolha, que naturalmente forja lugares nos quais a estabilidade e a fixidez das certezas cedem vez às relações gestadas nos/pelos movimentos. Na obra, essas relações são propostas a partir da recusa dos narradores em permanecer em um só lugar, em uma só língua, cultura ou mesmo uma identidade, o que acaba por romper a ideia de pertença ou raiz única. Tal estratégia romanesca remete novamente aos ensinamentos de Édouard Glissant (2011) sobre a poética existente nas relações rizomáticas, metaforizadas por ele para demonstrar que as identidades, assim como as raízes rizo75


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máticas, também, se espraiam e se multiplicam, impossibilitando a pertença e fixidez das origens puras. Para o ensaísta antilhano, a pureza identitária pode ser pensada, por meio da metáfora da raiz, sinônimo de pertença a uma só origem, vista como pura, fechada e completa em si mesma. A raiz, nessa acepção, mostra-se como oposta ao rizoma, que, embora seja uma raiz, caracteriza-se pela desmultiplicação (GLISSANT, 2011). O rizoma estende-se em rede e se abre a tudo quanto consiga vincular-se, sem nenhuma pretensão imutável de manter-se completo em si mesmo. Assim, ao passo que mantém o enraizamento, o rizoma também recusa a ideia de totalidade e conserva em sua base a concepção de que ele não abandonará sua origem, apenas se desvinculará da ideia de imutabilidade. Por essa analogia, Glissant (2011, p. 21) mostra que os sujeitos, bem como seus pensamentos, variam constantemente e acabam se abrindo nas relações, nas interações com os demais, fazendo com que estes realizem exercícios impossíveis de serem executados pelo viés da pureza identitária e cultural. Nessa linha de raciocínio, os narradores llosianos são criados através de um processo de “tradução”, no qual suas identidades são deslocadas e emancipadas da ideia primeira de pertença cultural que, mesmo mantendo seu vínculo com a original, ainda assim, se espraia e se abre a outras possibilidades de trocas, tal qual no exemplo do rizoma utilizado por Glissant, no contexto da cultura caribenha. Por essa razão, entendemos que o romance é ambientado em dois espaços que divergem, mas se assemelham, conservando suas particularidades, bem como deixando transparecer suas semelhanças, por meio de uma tradução cultural em que Florença e Amazônia peruana são postas lado a lado. Tudo começa quando um peruano da alta sociedade, o narrador transcultural, localizado na cidade de Florença, dispara os gatilhos da história dizendo “Vine a Firenze para olvidarme por un tiempo del Perú y de los peruanos y he aquí que el malladado país me salió al encuentro esta mañana de la manera más inesperada” (LLOSA, 2010, p. 13). Paradoxalmente, esse narrador trilha um percurso inverso às narrativas que comumente lemos, pois é da Europa que ele inicia 76


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seus movimentos por entre as culturas, línguas e paisagens amazônicas. Movimentando-se pela cidade italiana de Florença, ele capta e reproduz nuances de uma geografia repleta de espaços, ambientes, esculturas, imagens e paisagens, que se entrecortam, se embaralham e deixam emergir nuances captadas por um olhar que traduz em movimento e, no decorrer de um percurso, que incorpora em seu trajeto diversas representações culturais. Como bem salienta Bouvet (2010), os objetos, as paisagens, as pessoas, finalmente, o que se encontra quando se lança a um percurso, abre a todo instante a possibilidade de refletirmos sobre os deslocamentos não apenas físicos, mas, sobretudo, do imaginário, das lembranças, vestígios, resíduos, que se vão aliando à reconstrução de novas formas de se verem e pesarem as identidades. Um nomadismo ou errância – o que embora para a autora signifiquem coisas diferentes –, ainda assim, são marcados pela mobilidade e trazem à tona tradições, comunidades e culturas outras que foram e serão revisitadas, muitas vezes, por meio dos deslocamentos e das traduções culturais a que se vê compelido a realizar o nômade. Um deslocamento precipuamente estimulado pela mudança do pensamento, e que faz com que nossa forma de ver as coisas se torne “uma antítese à realidade alicerçada na prepotência e que nega outras formas de interpretação do mundo” (BOUVET, 2010, p. 302). Por isso mesmo, logo nas primeiras páginas, os narradores llosianos já anunciam seu propósito de se movimentar, percorrer e vasculhar o “imenso espaço” de um “único lugar”, a memória, como bem nos adverte o narrador transcultural: La memoria es una pura trampa: corrige, sutilmente acomoda el pasado en función del presente. He tratado tantas veces de reconstruir aquella conversación de agosto de 1958 con mi amigo Saúl Zuratas, en esa chinganita de sillas desfondadas y mesas cojas de la avenida España, que ahora ya no estoy seguro de nada, salvo, quizás, de su gran lunar color vino sangre, que imantaba las miradas de los parroquianos, de su alborotado mechón de cabellos rojizos, de su camisita de franela a cuadros rojos y azules y de sus zapatones de gran caminante (LLOSA, 2010, p. 109).

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Esse “espaço” possibilita aos narradores fazerem uso de estratégias narrativas capazes de romper as diferenças e aproximar, geográfico, cultural e discursivamente, esses dois espaços aparentemente antitéticos. Através da memória dos narradores, Llosa realinha os imaginários em torno dessas duas culturas e os movimenta por entre as figurações existentes em torno deles, fazendo com que, dessa estratégia narrativa, brotem novos paradigmas de pensamento. Taticamente posicionado em Florença – lembremos que a ela é atribuído o adjetivo “berço” da Renascença, portanto, há a respeito dela um imaginário consolidado no que concerne a sua superioridade cultural, e a sua representatividade para a chamada “alta cultura” –, Llosa encontra um espaço singular para que seu narrador crie no imaginário do leitor novas figurações, elaboradas por meio de suas experiências errantes. Assim, o narrador transcultural llosiano vai sutilmente aproximando essas duas culturas, a amazônica e a florentina, e criando novas figurações elaboradas pelo olhar de um narrador nômade que a todo instante vê e apreende o novo e, mais ainda, opta apenas pela descoberta e redescoberta de valores outros. Vejamos como ele opera. Primeiramente, o narrador apresenta lugares e monumentos que remetem o leitor a um imaginário mundialmente difundido sobre a importância da cultura italiana: “Había visitado la reconstruída casa de Dante, la iglesita de San Martino del Vescovo y la callejuela donde la leyenda disse que aquél vio por primera vez a Beatrice, [...] el pasaje de Santa Margherita...” (LLOSA, 2010, p. 13). Todas essas descrições ligadas ao espaço e à cultura renascentista florentina, como já sabemos, são mundialmente difundidas como ícones da “alta cultura”. Contudo, e paradoxalmente, em meio a seu deleite artístico e paisagístico, o narrador transcultural encontra em seu percurso fotos expostas em uma galeria de arte que, imediatamente, o trazem de volta às paisagens e culturas amazônicas; assim ele as descreve: Los anchos ríos, los corpulentos árboles, las frágiles canoas, las endebles cabañas sobre pilotes y los almácigos de hombres y mujeres, semidesnudos y pintarrajeados, contemplándome fijamente desde sus cartulinas brillantes (LLOSA, 2010, p.13).

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De modo que, logo nas primeiras páginas do romance, começamos a entrar no jogo do narrador. Ele fixa os olhos nas imagens da cultura italiana e se lança por entre os espaços amazônicos, tentando imaginá-los da forma como eles estão postos nas representações fotográficas. Assim, repleto de resíduos espaciais, temporais e culturais, o narrador vai abrindo as frestas das representações culturais e fazendo ceder às fundações dos imaginários em torno dessas duas culturas. As fotos expostas na galeria sinalizam de antemão que a trama se abrirá às representações dessas duas geografias culturais assim postas: Florença, a cidade italiana ícone das mais renomadas culturas do mundo; e a Amazônia peruana, propagada discursivamente por muitos, como uma das mais primitivas culturas da humanidade. Desta feita, elas agora estão sendo postas lado a lado e, melhor ainda, sendo figuradas da Europa para as Amazônias, e para o mundo por meio de imaginários, captados e reproduzidos por memórias outras. Aqui, Llosa não apenas reaviva um imaginário, mas também mostra “como o escritor latino-americano brinca com os signos de outro escritor, de uma outra obra” (SANTIAGO, 2000, p. 21), fazendo o que já alertava Santiago ainda na década de 1970: O imaginário, no espaço do neocolonialismo, não pode ser mais o da ignorância ou da ingenuidade, nutrido por uma manipulação simplista dos dados oferecidos pela experiência imediata do autor, [seus escritos devem se afirmar] mais e mais como uma escritura sobre outra escritura (SANTIAGO, 2000, p.21).

Como bem salienta Santiago, o escritor latino-americano não pode limitar-se à ingenuidade de reproduzir um modelo preestabelecido, pelo contrário, ele deve libertar-se das amarras de uma escritura presa a modelos canonizados. Nesse desígnio, o narrador llosiano não apenas brinca com os signos representativos da “alta cultura”, como também reinventa um bilinguismo linguístico que, inclusive, quebra a distância estabelecida como barreira para isolar essas duas línguas: ao dizer “Vine a Firenze”, além de sutilmente pronunciar, quase que de maneira imperceptível, o italiano, ele também mostra a proximidade entre as duas línguas, o italiano e espa79


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nhol. Estas línguas, aliás, descendem do mesmo tronco linguístico e guardam muitas semelhanças entre si, assim como as culturas. Desse modo, o narrador llosiano é posicionado num lugar, em uma língua e em um status social privilegiado para desvelar as formas pelas quais cada cultura tem sua relevância e significação para as diversas sociedades, visto que o próprio narrador se constitui em meio a duas culturas, duas línguas. Por fim, ele habita as fronteiras do discurso da ficção. Por essa razão o narrador transita entre as culturas, os signos linguísticos e os imaginários sem hierarquias de valor. Quanto à retratação imagética dos “anchos ríos, los corpulentos árboles”, contidas nas fotos, avistadas em seu percurso, ele as utiliza para ultrapassar as fronteiras geográficas, culturais e históricas existentes entre os dois espaços já mencionados, mostrando onde e como são criados os imaginários. Mesmo aparentemente etnocêntrico, como somos induzidos a vê-lo inicialmente, esse narrador, na verdade, anula, no plano geográfico, cultural, linguístico e histórico, as diferenças existentes entre dois mundos aparentemente antitéticos – a Amazônia e Florença –, por meio exatamente dessa estratégia narrativa que há pouco se fez referência. Com ele, as fronteiras culturais, linguísticas e simbólicas se desfazem e permitem que as personagens se movam de um lugar a outro, por isso mesmo, os dois discursos foram narrados desde lugares díspares. Llosa apresenta, em El Hablador (1987), figurações amazônicas que dão luz aos lugares opacos, elaboradas a partir dos meandros não percorridos pela história, localizados em regiões de fronteiras nas quais as pessoas, as opiniões e as culturas se entrecruzam, possibilitando o surgimento de um novo espaço cultural. Há, no enredo, uma imagem que merece ser aqui retratada: Los Florentinos tienen fama, en Italia, de ser arrogantes y de odiar a los turistas que los inundan, cada verano, como un río amazónico. En este momento es difícil comprobar si ello es cierto porque casi no quedan nativos en Firenze. Han ido partiendo, poco a poco, a medida que aumentaba el calor, cesaba la brisa de las tardes, se escurrían las aguas del Arno y los zancudos tomaban posesión de la ciudad. Éstos son verdaderas miríadas 80


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volantes que resisten victoriosamente a repelentes e insecticidas y se encarnizan contra sus víctimas de día y de noche, sobre todo en los museos. ¿Son las zanzare de Firenze los animales totémicos, ángeles protectores de Leonardos, Cellinis, Botticellis, Filippos Lippis, Fray Angélicos? Parecería. Porque es al pie de estas estatuas, frescos y cuadros donde he recebido la mayor parte de las picaduras que me han averiado brazos y piernas ni más ni menos que cada vez que viajo a la selva peruana (LLOSA, 2010, p. 256-257).

No fragmento acima transcrito, o narrador transcultural descreve minuciosamente aspectos concernentes ao território florentino e os aproxima ao espaço amazônico. Florença se assemelha ao espaço amazônico, principalmente no tocante às cores e riquezas, bem como a sua eminente vulnerabilidade cultural, diante da fluidez das culturas. Tais quais as populações indígenas amazônicas, os florentinos também são descritos como vulneráveis às mudanças sociais, temporais e culturais. Assim, ao passo que valora a cultura florentina, o narrador transcultural também se atém às particularidades da Amazônia. Vale salientar que o artifício de alternar entre a visão etnocêntrica e não etnocêntrica faz do narrador transcultural a representação de nossa própria dificuldade em assumir uma postura mais ética ante os conflitos culturais a que estão colocadas as culturas amazônicas. Especialmente, se apresentadas por pessoas ideológica e imaginativamente colonizadas, pois mesmo sabendo de sua importância, conhecendo sua história, ainda assim, muitas vezes, reproduzem discursos ideologicamente comprometidos com valores outros. Embora tenhamos as ferramentas indispensáveis para rompermos com esses discursos, como, por exemplo, a experiência da convivência, mesmo assim não o fazemos. Desas forma, as temáticas que permeiam a obra El Hablador, tais como oralidade/escrita, permanência/deslocamento, entre outras, são engenhosamente arquitetadas, ou melhor, apresentadas para nos instigar a rompermos com os tentáculos do poder29 colonialista que aprisiona nossas mentes. Sobre o tema, indicamos a leitura do artigo “Os tentáculos do poder – a tessitura da monstruosa (e nostálgica) Amazônia”, apresentado no XII Congresso Interna29

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Trata-se, de fato, de um romancista que parece saber que “uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (SAID, 2005, p. 10), de modo que sua preocupação em criar, político, social e ideologicamente, personagens que rompam com um sistema binário repleto de valores que, em si mesmos, são excludentes, demonstra um compromisso ético, político, social e cultural perante as desigualdades humanas. O que mais uma vez nos remete aos dizeres de Said, ao ressaltar o papel dos intelectuais diante das sociedades de seu tempo. O narrador transcultural demonstra, no decorrer do capítulo oitavo da obra, que a identidade cultural amazônica constitui-se, artística, simbólica e representativamente, como uma herança cultural mais ou tão antiga quanto o Renascimento italiano e, portanto, não menos valiosa. Deixemos que fale o narrador: [...] hablar como habla un hablador es haber llegado a sentir y vivir lo más íntimo de esa cultura, haber calado en sus entresijos, llegado al tuétano de su historia y su mitología, [rompendo com] sus tabúes, reflejos, apetitos y terrores ancestrales. Es ser, de la manera más esencial que cabe, un Machiguenga raigal, uno más de la antiquísima estirpe que, ya en aquella época en que esta Firenze en la que escribo producía su efervescencia cegadora de ideas, imágenes, edificios, crímenes e intrigas, recorría los bosques de mis país llevando y trayendo las anécdotas, las mentiras, las fabulaciones, las chismografías y los chistes que hacen de ese pueblo de seres dispersos una comunidad y mantiene vivo entre ellos el sentimiento de estar juntos, de constituir algo fraterno y compacto (LLOSA, 2010, p. 25).

No fragmento acima transcrito, o narrador llosiano nega de maneira incisiva que as culturas amazônicas sejam primitivas, invertendo os valores existentes em torno delas. Na verdade, ele convida o leitor a pensar em como as culturas amazônicas podem ser valorosamente iguais à “alta” cultura europeia. Esta é uma das razões por que Edward Said (2005) enfatiza, em Representações do Intelectual, o cional da ABRALIC, em 2011, pela professora doutora Simone de Souza Lima. 82


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papel dos romancistas na sociedade do século XX, pois através de seus romances, eles detêm a possibilidade de reescrever e valorar as manifestações culturais. De acordo com o estudioso palestino, cabe aos intelectuais alicerçarem suas ficções romanescas em valores universais, como a verdade, a liberdade, e buscar sempre que possível destacar os elementos comuns às grandes narrativas, tais como a liberdade humana e verdade. Ao refletir sobre as percepções do filósofo italiano Antonio Gramsci, contidas nos Cadernos do Cárcere (1936-1937), Said (2005) destaca uma famosa frase gramsciana: “todos os homens são intelectuais, mas nem todos desempenham na sociedade função de intelectual”. Para Gramsci, conforme Said (2005), os intelectuais podiam ser agrupados em duas categorias: os tradicionais, tais como: professores, clérigos, administradores, que sempre fazem a mesma coisa; e os chamados intelectuais orgânicos, ou seja, os que se deixam usar para organizar interesses, conquistar mais poder para si e para seus financiadores, e atuam diretamente ligados a valores financeiros, tornando-se meros capitalistas. Olhando para as reflexões gramscianas, Said (2005) as define como uma espécie de premonição do que se tornaram os intelectuais modernos, especialmente os do século XX, formados para exercer tantas profissões, cujos valores profissionais visam apenas à aquisição de muitos dígitos da moeda corrente. Por isso mesmo, Said (2005) persevera ao alegar que intelectual não pode ser representado por qualquer pessoa, pois essa atribuição requer vocação e comprometimento, especialmente, quando ele se vê obrigado a debater questões embaraçosas, confrontar dogmas, ortodoxias e agir pautado em valores morais que tomem por premissa a compreensão de que todos os seres humanos têm direito de contar com comportamentos decentes que valorem a liberdade e justiça por parte dos poderes e nações do mundo, que precisam ser denunciados e combatidos. Por essa razão, Said (2005) afirma que há uma linha muito tênue entre o privado e o público, entre as histórias pessoais e valores escritos por um intelectual, pois esses escritos refletem posturas que provêm tanto das experiências pessoais, como das posições políticas 83


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que cada um toma, fazendo desse profissional um indivíduo com vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo, de modo que a postura intelectual perante a vida pública moderna também será refletida no teor de suas produções romanescas. Para o autor: As representações do intelectual, suas articulações por uma causa ou idéia diante da sociedade, não têm como intenção básica fortalecer o ego ou exaltar uma posição social. Tampouco tem como principal objetivo servir a burocracias poderosas e patrões generosos. As representações intelectuais são a atividade em si, dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e incansavelmente devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o indivíduo e coloca-o em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando intervir por meio dela são duas características essenciais da ação intelectual (SAID, 2005, p. 33).

Nesse sentido, acredita-se, neste texto, que Vargas Llosa é esse intelectual, pois ele realiza um fazer literário pautado em experiências advindas de um saber/conhecer que revela sua própria postura ética ante as problemáticas humanas. Essas experiências são nominadas por ele, como “demônios” que o atormentam e o compelem a exercer uma consciência social mais ampla e realista a respeito de seus deveres profissionais. Esses contatos geram inquietações tão fortes que o incomodam e o obrigam a traduzí-las sob a forma de arte. Assim, no entender dele: [...] la creación literária es una tentativa de recuperación y a la vez de exorcismo de ciertos fantasmas. Cuando uno escribe, está tratando de liberarse de algo que lo atormenta, que no es de todo claro para él, e a la vez está tratando de rescatar, de revivir, de salvar del olvido cierto tipo de experiência que ló han marcado mas profundamente que otras y que no quiere dejar morir, que no quiere que desaparezcan (Vargas Llosa, citado In: Oviedo, 1984, p. 64-65).

Sob essa forma de pensar, o intelectual não se limita a inventariar temas casuísticos, eles sobrevêm – ou pelo menos deveriam 84


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sobrevir – de uma atividade intelectual voltada para a defesa dos direitos dos menos favorecidos e, sobretudo, para a reflexão das problemáticas humanas, com vistas a viabilizar a liberdade e o conhecimento a todos aqueles que os desejem alcançar. Por essa razão, Vargas Llosa destaca que as escolhas temáticas e políticas de um intelectual não podem ser fortuitas, uma vez que elas ajudam a consolidar valores e a construir pensamentos, pois: [...] un autor más es elegido por ciertos temas o por ciertos personajes que los elige libremente. Digamos, ser elegido por ellos puede dar una idea falsa, talvez de lo que quiero decir; pero mi impresión es que no es gratuita la elección de un tema para escribir. Creo que cuando elige escribir sobre determinado asunto, es porque de alguna manera ese asunto ha tocado una fibra íntima muy importante o porque se relaciona con alguna problemática que para uno es sustancial, o porque viene a llenar un vacío, o porque hay como un reconocimiento con ese tema, con ese personaje de algo que uno sin saber lo andaba buscando desde antes. Por lo menos en mi caso, cada vez que he elegido, entre comillas, un tema he tenido esa sensación, de que ese tema lo he elegido en realidad porque ese tema ya me había elegido a mí de antemano (Vargas Llosa. In: Revista Espetáculo (UCM), n° 20, 13 julho, 2001)30.

Como bem enfatizou o romancista, um autor é escolhido, ao invés de escolher certos temas, tendo em vista que seu compromisso primeiro é levar a cabo uma obrigação maior – a de se colocar a serviço da sociedade através de sua arte. Por isso mesmo, acreditamos que, no romance El Hablador (1987), há um toque íntimo de quem foi escolhido e não escolheu tematizar sobre as questões culturais amazônicas. Segundo o próprio Llosa, a partir da experiência que teve ao conhecer a Amazônia peruana, ele sentiu o desejo de traduzir para a escrita literária as disparidades indígenas existentes em seu país. Essa experiência o instigou a mostrar para a América Latina e para o mundo quais são as fronteiras que verdadeiramente separavam, geográfica, cultural e hierarquicamente, povos, culturas Fragmento retirado da entrevista concedida a María Elvira Luna Escudero-Alie, em Harvard University, em 13 de julho de 2001. 30

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e etnias, onde quer que elas estivessem. Na obra, o intelectual/escritor arquiteta a narrativa com base numa realidade profundamente ancorada em valores que dignificam as diferenças sociais e culturais das sociedades menos favorecidas. Essas diferenças são trabalhadas no enredo, através de estratégias narrativas que unem dois mundos antagonicamente separados por hierarquias humanas. A partir de duas experiências vividas in locus por Llosa, em 1958 e 1964, no espaço amazônico da floresta peruana, o autor teve a oportunidade de conhecer, de perto, as condições de vida da população que representam 47,7%, ou seja, quase metade dos habitantes do país: os indígenas. Esse contato o fez abrir os olhos para a necessidade de trazer à baila as condições econômicas, sociais e culturais em que vivem as comunidades indígenas localizadas no território amazônico, coexistindo em tempos, espaços e geografias totalmente díspares de um mesmo país. Essa experiência o inquietou de tal maneira que Llosa se viu compelido a levantar questões de extrema importância em prol das comunidades indígenas. Sua atitude novamente remete às observações de Said (2010), quando afirma que os intelectuais representam ou, pelo menos, deveriam simbolizar, uma seleta parcela da humanidade. Isso exige a habilidade para retratar nas artes um ponto de vista comprometido com a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa, já que eles são possuidores de mecanismos poderosos para resgatar o exercício da liberdade e da justiça entre os menos favorecidos, de modo que: [...] o intelectual [deve agir] com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com padrões de comportamento decente quanto a liberdade e a justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas (SAID, 2005, p. 26).

Esses princípios intelectuais dos quais trata Said (2005) remetem a um modo de viver marginal e exilado, que acaba por impor ao fazer intelectual um movimento nômade, aberto e constante, de86


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dicado a experiências que o ajudem a manter-se liberto das amarras culturais, simbólicas e materiais, criadas pelos homens, pois: É na vida pública moderna – vista como um romance ou uma peça teatral e não como um negócio ou matéria-prima para uma monografia sociológica – que podemos ver e compreender mais prontamente por que os intelectuais são representativos não apenas de um movimento social subterrâneo ou de grande envergadura, mas também de um estilo de vida bastante peculiar, até irritante, de um desempenho social que lhes é único. E não há lugar melhor para encontrar as primeiras descrições desse papel do que em certos romances incomuns do século XIX e começo do século XX (SAID, 2005, p. 28).

Exatamente porque os romances trazem o posicionamento de seus autores é que percebemos, com clareza, a escolha estilística presente em escritos de Vargas Llosa, como, por exemplo, a criação de um narrador livre, liberto de hierarquias, que pode e transita sobre duas culturas, como sendo um exercício concreto de seu dever intelectual. Além disso, na obra em foco, o autor polemiza o território amazônico, bem como suas culturas, povos e etnias livres errantes, totalmente alheios a categorias fechadas, monolíticas e homogeneizantes. Vejamos a postura do narrador transcultural no fragmento a seguir: [Hoy], como cuando los invadieron los ejércitos incas, los exploradores, conquistadores y misioneros españoles, los caucheiros y madereros republicanos, los buscadores de oro y los inmigrantes serranos del siglo XX. [...] la historia no avanza ni retrocede: gira, se repite. Pero, aunque los destrozos a la comunidade hayan sido muy grandes por efecto de todo esto, lo probable es que una buena parte de ellos, ante los trastornos de los últimos años, haya optado para sobrevivir por el reflejo tradicional: la diáspora... (LLOSA, 2010, p. 261).

Aqui o narrador afirma que, apesar das invenções, destruições, invasões a que vêm sendo submetidas ao longo dos anos as culturas amazônicas, ainda assim, boa parte delas sobreviveram e se dinamizaram por meio de nomadismos, diásporas, movimentos 87


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e contatos que se entrelaçam e se reinventam e, portanto, também se modificam, abrindo sutilmente uma fenda nas velhas hierarquias culturais. Desta feita, o sujeito ficcional também é outro, que pode e deve falar sobre e de outro lugar preso apenas pela instabilidade identitária. Por isso mesmo, Llosa posiciona seus narradores em um lugar do qual se pode rememorar, por meio de imagens e lembranças, o princípio de que todas as culturas, à sua maneira, são grandes e importantes. É nesse sentido que Florença é lugar propício para se apreciarem três ou quatro imagens de um homem sentado de cócoras, rodeado de ouvintes imóveis que o escutam com extraordinária concentração e relembrar, de lá, como os próprios peruanos veem e conscientes ou inconscientemente instigam a hierarquização das práticas culturais concernentes às comunidades indígenas. Como sabemos, desde a colonização da América peruana pelos espanhóis, as civilizações indígenas que resistiram à empresa colonizadora vêm sendo paulatinamente fragmentadas e marginalizadas, até mesmo por seus próprios compatriotas, seja por meio do desprezo, do apagamento cultural e mesmo territorial, seja através do genocídio – fazendo conflitar marcas simbólicas e valores, inclusive entre os indígenas peruanos. Na obra, esse conflito é retratado pelo papel hegemônico do Instituto Linguístico de Verão, implantado pelos missionários entre os indígenas amazônicos para propagar no meio deles os valores da cultura ocidental. Com efeito, os dois narradores da obra polemizam essa questão, mimetizando como a própria sociedade peruana se divide em meio a essas questões. De um lado Mascarita e do outro o narrador transcultural. Ambos representam posição da sociedade peruana perante essas questões. Vejamos os fragmentos a seguir: [...] Saúl Zuratas desconcertó a todos proclamando que las consecuencias del trabajo de los etnólogos eran semejantes a la acción de los caucheros, madereros, reclutadores del Ejército y demás mestizos y blancos que estaban diezmando a las tribus. –Dijo [Zuratas], que hemos retomado el trabajo donde lo deja-

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ron los misioneros en la Colonia –añadió–. Que nosotros, con el cuento de la ciencia, como ellos con el de la evangelización, somos la punta de lanza de los exterminadores de índios (LLOSA, 2010, p. 43,44). [...] –Ellos [os linguistas] son los peores de todos... Se incrustan en las tribus para destruirlas desde adentro, igualito que los piques. En su espíritu, en sus creencias, en su subconsciencia, en las raíces de su modo de ser. Los otros les quitan el espacio vital y los explotan o los empujan más adentro. En el peor de los casos, los matan físicamente. Tus lingüistas son más refinados, los quieren matar de otro modo (LLOSA, 2010, p.110). Los linguistas [..] tenían, detrás de ellos, un poder económico y una maquinaria eficientísima que les permitiría tal vez implantar su progreso, su religión, sus valores, su cultura. ¡Aprender las lenguas aborígenes, vaya estafa! ¿Para qué? ¿Para hacer de los indios amazónicos buenos occidentales, buenos hombres modernos, buenos capitalistas, buenos cristianos reformados? Ni siquiera eso. Sólo para borrar del mapa sus culturas, sus dioses, sus instituciones y adulterarles hasta sus sueños. Como habían hecho con los pieles rojas y los otros, allá en su país (LLOSA, 2010, p. 111).

Como é fácil perceber, os dois narradores llosianos debatem a respeito da destruição das culturas amazônicas, que há muito vem sendo realizada na região, seja pelos primeiros colonizadores, caucheiros, madeireiros, linguistas, entre outros. O fato é que, sob o pretexto de modernização e civilidade, novamente, essas culturas se veem oprimidas, senão destruídas sob o mesmo anátema usado há séculos pelos primeiros colonizadores, a fim de justificar as atrocidades dispersadas a essas culturas. Ambos os narradores mostram que, mesmo na atualidade, essa marginalização ainda gera disparidades culturais, políticas e sociais de proporções avassaladoras, fazendo com que, esse enquadramento das diferenças gere categorias de valor, a própria sociedade peruana julgue e condene o nível de “civilidade” das tribos indígenas, tendo por base, é claro, a capacidade destas em assimilar e repetir as práticas “civilizadas” dos compatriotas “modernos”. Assim, os dois 89


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narradores llosianos mostram de que maneira o Peru preserva uma “civilidade” na qual quase metade da população é descendente de índios ou mestiços e, ainda, reproduz as ambivalências, estereótipos e exclusões no cerne dos próprios mestiços peruanos. A esse respeito, Santos (2010) recorda que, nos dois últimos séculos de história, reinou em meio às discussões da sociedade ocidental uma reflexão epistemológica que eliminou o contexto cultural e político de produção e reprodução do conhecimento, levando-nos a assentar nossos valores numa lógica colonialista e capitalista, sem que ao menos atentássemos para isso. Como consequência, ao longo dos anos essa “in\lógica” foi suprimindo “as práticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela servia” (SANTOS, 2010, p. 16), levando-nos a aceitar naturalmente o que o crítico denominou de “epistemicídio, ou seja, a supressão dos conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena” (2010, p. 16). Ainda segundo o mesmo autor, esse “epistemicídio” se faz presente nas formas de justapor e valorar as culturas. Por isso mesmo, a constatação desta dicotomia na sociedade peruana é amplamente explorada por Vargas Llosa, como mecanismo para inserir novos paradigmas de pensamento, que sejam propensos a criar, entre outras coisas, relações sociais mais harmônicas entre as diferenças, gestando assim novas epistemes. Isto posto, cabe especificar, no próximo capítulo, os meandros pelos quais as composições romanescas de Hatoum e Llosa ensejam em suas temáticas novos paradigmas de pensamento e novas figurações do espaço amazônico, que apontam para uma mesma direção – a fronteira que une e separa todas as culturas.

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Capítulo III

E ntrel aça ndo A ma zôni as – E ntre V ozes e C inz as 1. A palavra “fronteira” em seu caráter dialógico [...] a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar. Homi K. Bhabha Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia. Guimarães Rosa Hoje, todas as culturas são culturas de fronteira. Nestor Garcia Canclini

Neste tópico, após a discussão de conceitos, como tradução, nomadismo e representação no campo da ficção literária, pretendese examinar o caráter dialógico da palavra “fronteira”. Um termo tão abrangente e complexo quanto os demais aqui discutidos. Seja no âmbito físico, linguístico, cultural ou epistemológico, a partir das últimas décadas do século XX, muito se tem falado sobre “fronteira” para referir-se ao lugar onde se pode perceber o híbrido, o mestiço, o diferente. Embora a noção de fronteira ainda esteja fortemente arraigada a imaginários que a vinculam à ideia de território, espaço físico e delimitação geográfica, essa palavra vem sendo paulatinamente realocada de seu sentido meramente dicionarizado para situar de forma aporética o lugar onde as dinâmicas das relações regem o limiar dos processos de heterogeneidade. Em face dessa realocação conceitual, a fronteira tem sido metaforizada como o espaço intersticial de práticas culturais que comportam sentidos e diferenças libertos da noção de fixidez e território. Para Bernd, “Isto porque, a metáfora na visão clássica, quando empregada em obras literárias, principalmente, é tida como uma estratégia 91


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de discurso utilizada a fim de ornamentar o texto” (2010, p. 270), de modo que, o uso da metáfora fronteira também privilegia uma mobilidade de sentidos enquanto lugar em que se pode revelar/desvelar ficcionalmente os sentidos das travessias, trânsitos e mobilidades culturais de nosso tempo. Nessa mesma direção, Sandra Jatahy Pesavento (2000), em seu célebre artigo “Além das Fronteiras”, já alertava para a importância de se pensar esta palavra como marco que aponta para sentidos socializados de reconhecimento e passagem. Para a autora, o conceito de fronteira avança para além do domínio de construções simbólicas e de pertencimentos, onde o que comumente chamamos identidade corresponde a uma referência imaginária que se define pela diferença. Segundo a estudiosa: As fronteiras, antes de serem marcas físicas ou naturais, são sobretudo simbólicas. São marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que guiam a percepção da realidade. [...], são produtos dessa capacidade mágica de representar o mundo por um mundo paralelo de sinais por meio do qual os homens percebem e qualificam a si próprios, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo (PESAVENTO, 2000, p. 36).

No plano simbólico, como bem salientado por essa pesquisadora, as fronteiras servirão como mecanismos para separar os corpos sociais e representá-los enquanto construções imaginárias, pois elas são antes de tudo simbólicas e, por isso mesmo, podem ser usadas para instituir certas referências vinculadas à origem e ao pertencimento. O que significa que pensar nas identidades fronteiriças é pensá-las alheias aos elementos representacionais ligados a essa origem e pertencimento imutável. Como bem salienta a pesquisadora, tais elementos são geralmente usados para definir os indivíduos enquanto atores sociais, forjando espaços, diga-se, geralmente pensados para manter ou adquirir algum poder. Seja no âmbito político, cultural ou econômico, o certo é que as fronteiras instituídas ao longo da existência da humanidade têm servido para demarcar e assegurar hegemonias em diversos âmbitos. 92


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Pelo exposto, percebe-se que as fronteiras vêm sendo traçadas, enquanto marcos simbólicos, manuseados por homens, para demarcar e categorizar a si próprios, enquanto modelo político, econômico e cultural. Ainda, segundo Pesavento, [...] a fronteira é, sobretudo, encerramento de um espaço, delimitação de um território, fixação de uma superfície. Em suma, a fronteira é um marco que limita e separa e que aponta sentidos socializados de reconhecimento. Com isso, poderíamos ver que mesmo nesta dimensão de abordagem fixada, pela territorialidade e pela geopolítica, o conceito de fronteira já avança para o domínio da construção simbólica de pertencimento a que chamamos identidade e que corresponde a um marco de referência imaginária que se define pela diferença (PESAVENTO, 2000, p. 36).

Essa tônica argumentativa adotada por Pesavento considera que a dimensão de fronteira, enquanto território, abrange para além dos termos difundidos socialmente. De acordo com a pesquisadora (2000), o uso do termo aponta para sentidos socializados de reconhecimentos que abrangem, aceitam e incorporam as diferenças. O que implica compreender o termo não mais como o lugar que separa, mas, ao contrário, um espaço, onde se socializa e se reconhece todo tipo de manifestação cultural. Nessa mesma direção, Homi K. Bhabha (1998) dá significativas contribuições dentro da chamada crítica pós-colonial contemporânea para esse debate acerca da fronteira. O estudioso indo-britânico concentra seus esforços para demonstrar que nossa existência na contemporaneidade é marcada por um momento de trânsito, no qual espaço e tempo se entrecruzam para formar figuras complexas de diferença e alteridade. Segundo Bhabha (1998), é teoricamente inovador e politicamente crucial pensarmos na necessidade de irmos mais além das narrativas de subjetividade para então focarmos naqueles processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais, pois segundo o crítico:

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A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os ‘limites’ epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes [...]. É nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente, do além (BHABHA, 1998, p. 23-24).

A ênfase dada pelo crítico recai sobre os movimentos de articulação e desarticulação que ocorrem entre os sujeitos, especialmente os pós-modernos que, transitando constantemente entre os limites epistemológicos dessa nova condição, presenciam experiências a partir das fronteiras simbólicas, sendo constantemente obrigados a negociar e agenciar todo tipo de diferença e alteridade. Em face disso, esses sujeitos situados nessas fronteiras imbricam vozes, etnias e culturas mostrando como é possível instaurar o novo, o diferente, sem o ranço nefasto do colonialismo. Nesse viés, Marli Fantini (2004) acrescenta as seguintes contribuições: No atual contexto de mundialização, conjugar diferenças se impõe como uma nova necessidade, e as fronteiras emergem enquanto o espaço de sombra onde circulam, imbricadas e superpostas, diversas manifestações mescladas pela intervenção do plurilinguismo e da transnacionalidade. Viver a experiência do confronto com outras culturas, ocupar espaços desabitados, adotar práticas nômades, ser frontier ou border na hibridez babélica da zona fronteiriça, longe de se restringir à noção traumática de exílio enquanto perda de relação identitária, contribui para a permeabilização do trânsito entre o ‘eu’ e o ‘outro’ e para a preservação das diferenças (FANTINI, 2004, p. 175).

O ponto fundamental dessa reflexão centra-se em focar nos espaços que possibilitam esses encontros, tendo em vista que eles geram complexas figuras de diferença e alteridade. Figuras que se formam a partir do cruzamento de tempos, espaços e realida-

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des culturais distintas e que, por isso mesmo, abrem rachaduras nos discursos que defendem identidades sólidas e imutáveis. Esses cruzamentos tributam para fundação de novos espaços construídos sob a égide de relações que dinamizam toda sorte de trocas culturais. Longe de assumir um passado histórico conhecido pela negação das alteridades, especialmente as amazônicas, essas relações gestadas na “hibridez babélica da zona fronteiriça” contribuem, como afirma Fantini (2004), para a preservação das diferenças gestadas pela presença do diferente. Relações, aliás, apreensíveis apenas sob a ótica de olhares em trânsito, próprios dos que se movimentam. Articulando os dizeres de Fantini às reflexões de Bhabha, é possível depreender que esses movimentos fendem o presente e abrem “entre-lugares”, os quais fornecem um terreno propício para a elaboração de estratégias de subjetividade que nos levam mais além dos discursos de hegemonia cultural. Um além que, segundo Bhabha, pode ser entendido como: [...] distância espacial, marca um progresso, promete o futuro; no entanto nossas sugestões para ultrapassar a barreira ou o limite – o próprio ato de ir além – são incogniscíveis, irrepresentáveis, sem um retorno ao ‘presente’ que, no processo de repetição torna-se desconexo e deslocado (1998, p. 23).

Bhabha (1998) considera que o sentido mais amplo do pós-modernismo31 reside no além, uma palavra que simboliza mais do que uma distância espacial. Trata-se de uma metáfora para transportar os sentidos de um espaço de intervenção do aqui e agora que requer estreita sintonia com os conceitos de novo e de diferente, pois o além de que fala Bhabha abre a possibilidade de trocas fluídas com esse novo, e diferente. De acordo com Silva & Silva (2010), Bhabha valoriza exatamente esse pós-colonialismo que discorda das ideias modernas que Sobre o conceito de pós-moderno recomendamos a leitura do conceito dado por SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2010. 31

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legitimam as desigualdades entre raças e nações. Por isso mesmo, Bhabha tenta rever o pós-moderno a partir do pós-colonialismo do Ocidente. Ainda no tocante às ideias desse estudioso (1998), ele enfatiza que a chamada crítica pós-moderna precisa ultrapassar os valores da pós-modernidade e incorporar em suas atuações formas de saberes que ajudem a reconstruir as histórias e vozes dos sujeitos marginalizados sem o ranço do etnocentrismo. Estas especificidades fronteiriças de que trata Bhabha (1998) se coadunam com a ideia de que pertencer a um território é antes de tudo assumir que se é parte desse corpo, mas, nem por isso, ter de a ele enraizar-se culturalmente, pois convivendo com o diferente é que se percebe que as fronteiras são criações humanas. No mesmo âmbito de debate, Sandra Jathary Pesavento (2000) observa que as fronteiras simbólicas comumente demarcam mais além das geografias físicas. Conforme a autora: [...] se a fronteira cultural é trânsito e passagem, que ultrapassam os próprios limites que fixa, ela proporciona o surgimento de algo novo, e diferente, possibilitado pela situação exemplar do contato, da mistura, da troca, do hibridismo, da mestiçagem cultural e étnica (2000, p. 37).

Essa questão levantada pela pesquisadora incide diretamente sobre a situação do homem pós-moderno e para nosso estudo especificamente; o amazônico. Como já se afirmou neste livro, ao longo da história, as Amazônias carregaram adjetivos bastante etnocêntricos. Embora essa região sempre tenha sido um lugar de passagem que, em diferentes momentos da história abrigou povos, culturas e etnias de diversas partes do globo, ela sempre foi isolada simbolicamente desse processo de trocas culturais. E mesmo que, nessa gigantesca fronteira, o novo sempre tenha estado presente, ele foi impedido de aparecer. O certo é que, enquanto lugar de passagem e, portanto, de imbricações, as Amazônias sempre acolheram todo tipo de diferença e alteridade. Olhando para um contexto mais atual, pode parecer que se está em uma era, na qual a ideia de nação caminha mais do que nunca lado a lado com os processos globais, onde os trânsitos, 96


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travessias e deslocamento dos sujeitos modernos ajudam a tornar ainda mais visíveis as trocas culturais, os hibridismos e as misturas que ocorrem em nosso cotidiano, fazendo com que o “imaginário da distância espacial – viver de algum modo além da fronteira de nossos tempos – [dê] relevo às diferenças sociais, temporais, que interrompem nossa noção conspiratória da contemporaneidade cultural” (BHABHA, 2008, p. 23). Essa noção de contemporaneidade de que fala Bhabha pode ser pensada a partir das relações que ocorrem entre os sujeitos contemporâneos, entre os quais as identidades culturais podem ser entendidas como pontos instáveis de identificação. Nesses pontos, as fronteiras abrigam posições sem garantias, onde o tempo e os sujeitos não podem se constituir com uma identidade produzida estavelmente. Nessa mesma direção, Duarte (1998) aponta para algumas mudanças epistemológicas favorecidas pelo processo global. Segundo Duarte, devemos ver essas mudanças: [...] não como uma estratégia de se encampar a todos buscando um denominador comum, o que é redutor e perigoso por abrandar as diferenças a ponto de torná-las irreconhecíveis; mas sim como um agenciamento de particularidades inerentes a cada espaço, a cada etnia, mobilizando variadas culturas (1998, p. 33).

Promovendo uma reflexão dessa questão levantada por Duarte (1998), pode-se deduzir que a globalização agencia e media as particularidades entre o global e o local, mobilizando entre as culturas diversas práticas culturais, sem ter que necessariamente assumi-las enquanto raiz imutável. Isto possibilita que as culturas se integrem globalmente sem a necessidade de serem negadas ou, no dizer de Duarte, anuladas. Ainda no que concerne a essa integração, Edward Glissant (2005) já alertava para a necessidade de abertura no tocante à complexidade do diverso, em oposição a todo pensamento de sistema e enraizamento. Para Glissant: [...] os sistemas de pensamento ou os pensamentos de sistema não mais possibilitam o contato com o real, não mais fornecem a compreensão ou a dimensão do que realmente acontece nos

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contatos e nos conflitos de cultura. Porque a dimensão errática – que segundo a ciência do caos é a dimensão dos sistemas deterministas de múltiplas variáveis – tornou-se a dimensão de ‘Todo-o-mundo’ (2005, p. 104).

Considerando as colocações de Glissant (2005), é possível compreender que as dinâmicas atuais impossibilitam a essencialização de uma identidade ou mesmo do que, de fato, acontece nos contatos e nos conflitos que se dão entre as culturas. Essa realidade, segundo o estudioso, abrange todo o mundo, e impossibilita que os sujeitos se isolem, o que acaba por forjar verdadeiras poéticas de relações. Nessa mesma direção, Mario Benedetti (1996), em sua celebre obra El Ejercicio del Critério, já alertava para a necessidade de se considerar que: Partir de la región, a los efectos de la criación literaria, no implica la sumisión a (ni el descarte de) modos dialectales (...). Partir de la comarca es asumila en tanto ser humano (...). Es também mirar el mundo, entender el mundo, vivirlo, sufrilo, gozarlo, pero no con la actitud neutra de los desarraigados, sino con la mirada preocupada, imaginativa y profunda de los que tienen los dos pies sobre una tierra. Saber a que sitio se petenece no implica la exigência de vivir en ese sitio, pero habilita en cambio inmejorablemente para compreender a quienes viven donde quiera (1996, p. 37).

Como bem salienta Benedetti (1996), olhar o mundo implica, entre outras coisas, vivê-lo, aproveitá-lo, e até mesmo sofrer, sem, contudo, ter de estar em um lugar para a ele pertencê-lo. Isso se considerarmos que saber de onde vem não significa ter de estar ou conservar uma identidade, raiz, pelo contrário, representa mover-se, mobilizar-se, habilitar-se a conhecer melhor suas particularidades. Em que pese a isso, nesta época de instabilidades e mutações culturais, onde as experiências de territorialização e desterritorialização ajudam a melhor compreender as dinâmicas culturais e sociais de nossos tempos, é de se pensar que elas também nos impulsionem a rever conceitos antes assentados sobre a égide das certezas de pertença e identificação, sobretudo, com os avanços tecnológicos 98


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e a expansão cada vez mais rápida da globalização que, na contemporaneidade, reorganiza os espaços e propicia um diálogo mais ágil entre as culturas. Nessa perspectiva, Nestor Garcia Canclini enfatiza que: Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moderna quando criam mercados mundiais de bens materiais e dinheiro, mensagens e migrantes. Os fluxos e as interações que ocorrem nesses processos diminuíram fronteiras e alfândegas, assim como a autonomia das tradições locais; propiciam mais formas de hibridação produtiva, comunicacional e nos estilos de consumo do que no passado. Às modalidades clássicas de fusão, derivadas de migrações, intercâmbios comerciais e das políticas de integração educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as misturas geradas pelas indústrias culturais (2006, p. XXXI).

Esses processos globalizadores de que trata Canclini aguçam ainda mais as interações culturais, fazendo com que os fluxos e deslocamentos, que se dão entre os sujeitos, desestabilizem o mito de pureza identitária imposta etnocentricamente desde a colonização. De modo que esse espaço fronteiriço, seja no mundo real ou ficcional, apresenta-se crivado de bandeiras culturais e histórias que diminuem nossa noção de distância espacial. Por fim, resta-nos dizer que, embora estejamos diante de uma realidade em que o termo “fronteira” ainda está fortemente arraigado à noção de território, territorialidade e, portanto, à ideia de “Estado nação”, essa metáfora tem cada vez mais se deixado reformular a partir de sentidos simbólicos, os quais nos ajudam a compreender as complexas relações de diferença e alteridade em que estamos inseridos. Nas páginas que se seguem, mostraremos como no caso específico da literatura, esta metáfora tem sido usada para mediar a representação entre o mundo real e a ficção de forma tal a se perceber que transitar entre fronteiras é antes de qualquer coisa uma forma de reinventarmos nossa própria existência.

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2. (Rai)mundo e Mascarita: identidades em reconstruções A ruína é um ponto de partida para se rememorar e recriar. Milton Hatoum Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas, fotografadas –, atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. (...) Toda imagem é um mundo, um retrato. Alberto Manguel A representação é um processo pelo qual institui-se um representante, que em certo contexto limitado tomará o lugar do que representa. Jaques Aumont

A partir das reflexões feitas sobre as representações, apresenta-se, neste tópico, as principais imagens das Amazônias presentes nos romances CN e El Hablador. Objetiva-se demonstrar como os autores revelam as nuances entre homem/paisagem, global/local, ficção/realidade, de forma a engendrar no cotidiano dos leitores as “relações de imagens (não gratuitas) que constituem o capital inconsciente e pensado do ser humano” (COELHO, 1999, p. 212). De acordo com a Enciclopédia Koogan/Houaiss (2000), a imagem é uma metáfora que transporta os sentidos de uma palavra para a linguagem figurada, de modo a emprestar ao objeto uma representação mental sensível para o entendimento do leitor. Além disso, a imagem transforma-se também em linguagem objetiva, tendo em vista que ela consegue transportar para os textos discursivos as representações mais compreensíveis. Nessa mesma direção, Eduardo Neiva Jr. (2006) compreende a imagem como uma síntese que se apresenta sob a forma de cores, traços e outros elementos visuais, que, quando lidos separadamente, não dizem nada, mas que, se postos em estágio de correlação, deixam emergir dados visuais perceptíveis aos olhos do espectador sensível, na hora de efetuar essa correlação. Nesse sentido, consideramos que as imagens/linguagens pre-

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sentes nos dois enredos atuam como um encadeamento de eventos que, juntos, deixam emergir um mosaico singular das histórias, vidas e experiências culturais dos povos amazônicos, plenamente captados, a partir desse encadeamento de que se tratou anteriormente. São imagens que viabilizam a descrição de heterogeneidades sociais, econômicas e culturais de grupos marginalizados. Ainda a respeito das imagens, Aumont (1993) recorda que o trabalho de reconhecimento e seleção de qualquer imagem apoia-se quase que, exclusivamente, na memória ou, mais precisamente, em uma reserva de formas, objetos e arranjos espaciais que, apesar das distorções e lapsos, são eficientes na ativação das reminiscências. Assim, geralmente, as imagens são guardadas para garantir algo, porquanto elas “prevalecem sobre datas, acontecimentos pontuais, marcas que a história conta; é como se a imagem estivesse (e de fato está) em suspensão no tempo” (BERND, 2010, p. 259), exercendo a função primeira de reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo visível, de tal forma que passamos a associá-las, sempre que preciso for, para o reconhecimento de certas informações. É, portanto, no plano da revelação imagético/discursiva de um imaginário aparentemente paralisado que as prosas de ficção de Hatoum e Llosa vão explorando e lançando outros olhares sobre o projeto de modernidade forjado no contexto das culturas amazônicas. Os narradores dessas obras testemunham as travessias dos sujeitos no território das identidades porosas presentes nas figurações literárias e nos revelam figurações geralmente apagadas em outros painéis ficcionais. Assim procedendo, os mundos ficcionais de CN e El Hablador mapeiam e incorporam em sua matéria romanesca imagens nas quais é possível identificar entre outros acontecimentos os efeitos das políticas de modificação econômica do espaço urbano na vida do homem amazônico, especialmente no tocante às dinâmicas sociais trazidas na esteira desses processos, que obrigaram paulatinamente centenas de milhares de sujeitos a construírem e desconstruírem os sentidos de suas existências. Trata-se de imagens discursivas que revelam, no plano ficcional, como os sujeitos, no caso em questão, os amazônidas, foram 101


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jogados num processo de transformação econômica e urbana, e se viram obrigados a recompor suas identidades brutalmente fraturadas, no decorrer de uma busca desesperada por espaços nos quais pudessem redefinir seu território e resistir aos efeitos nefastos do neocolonialismo que pairou sobre as populações amazônicas no século XXI. Sobre uma dessas formas de atuação do neocolonialismo no contexto amazônico, Márcio Souza, em A Expressão amazonense (1946), tece alguns comentários dignos de nota: A implantação da Zona Franca, como uma medida federal, não fugiu a nenhuma tradição. Também ela veio como uma medida de fora para dentro, diferente apenas no espaço e no tempo das soluções do Marquês de Pombal ou de Getúlio Vargas. [...] Cresceu separada e invadiu a vida amazonense, afastando-se praticamente da compreensão por parte do povo [...] a Zona Franca com sua estratégia ligada às multinacionais, ao comércio de importação e ao modelo agropecuário, abre ainda mais a região ao exterior, promovendo uma economia dependente, altamente espoliadora e prejudicial (1946, p. 157).

Nas palavras de Souza (1946), acima transcritas, temos uma imagem um pouco mais detalhada sobre como se deu o processo de implantação da Zona Franca de Manaus. De acordo com o autor, o modelo adotado para este fim foi ancorado principalmente em mecanismos pensados de fora para dentro da região, e voltados para os interesses de uma minoria. Ou seja, os resultados desse empreendimento eram direcionados a outros e não aos moradores daquela região. As medidas adotadas, bem como as exigências para supri-las eram impossíveis naquele momento de serem satisfeitas pelos moradores locais, logo, essas políticas desenvolvimentistas trazidas para promover modificação foram tão maléficas para as populações nativas daquela época, como foram as dos primeiros colonizadores. Dentro desse contexto de transformações econômicas e arquitetônicas, a Amazônia manauara vai surgindo no enredo por entre cheiros, cores e sabores espalhados nos muitos discursos produzidos sobre a região e que, de certa forma, estão abrigados na memória de

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viajantes – brasileiros, peruanos, estrangeiros, indígenas, caboclos, negros e muitos outros –, que vão sendo resgatados para entrever as ruínas de uma imagem/metáfora, a qual se deixa ler sob outras faces e segundo a experiência individual de cada leitor, incluídos os próprios autores/leitores. Assim procedendo, a literatura se apropria de imagens pictóricas para inserir nas narrativas imagens representacionais que forneceram um caminho de resistência e denúncia contra o colonialismo que ainda vige sobre as populações Amazônias. Especialmente porque Hatoum traz para o enredo o período conturbado e violento da ditadura militar, que precedeu a implantação da Zona Franca de Manaus. No romance CN, essa apropriação imagética se dá a partir do fazer artístico de duas personagens em especial, (Rai)Mundo e Alduino Arana, personagens com propostas artísticas distintas, justapostas na trama para revelar imagens em nada condizentes com as de longa tradição no repertório de imagens das Amazônias. Na realidade, elas são contrárias, por exemplo, às das conhecidas paisagens verdes, de indígenas macaqueados, animais exóticos. Noutro âmbito de debate, as atuações das personagens Mascarita e do Narrador transcultural32, de El Hablador, resgatam, a partir de uma foto, o retrato maior da Amazônia peruana, onde também é possível entrever as condições de vida das populações indígenas décadas após a quebra física do jugo colonial espanhol, bem como as polêmicas que ainda giram em torno da integração dessas comunidades ao território peruano espanholizado. Embora já mencionado no capítulo primeiro deste trabalho, não é demais lembrar que, ao nominarmos esse narrador de transcultural, referimo-nos a uma sujeito ficcional pensado a partir da expressão transculturação cunhada por Angel Rama, em 1971, num artigo intitulado “Los procesos de transculturación en la narrativa latinoamericana”. Nele, o crítico sugere, entre outras coisas, que a transculturação é uma alternativa para fugirmos do regionalismo cultural, tendo em vista que ela nos permite incorporar às culturas ditas regionais novos elementos de procedência externa pensados sob novas focalizações, possibilitando, assim, a rearticulação de imaginários políticos, éticos e linguísticos, tal qual o faz este narrador llosiano. 32

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Postos em estágio de correlação, as trajetórias dessas personagens revelam nuances de uma “zona de contato”, estabelecida entre literatura, história e geografia, que deixam emergir histórias, vidas e tempos no limite tênue entre o espaço físico e simbólico. As Amazônias presentes em CN e El Hablador seguem um caminho no qual é possível estabelecer pontos de encontro e desencontro com representações romanescas ambientadas em território amazônico e produzidas em períodos anteriores a estes, fazendo brotar “laços de solidariedade”33 entre a literatura brasileira e a peruana. Isso porque elas entremeiam uma imagem maior – a do imaginário sobre a pan-amazônia – e nos levam a um lugar no qual a região assume a face das misturas, das trocas e do dinamismo constatável entre quaisquer sujeitos que globalmente se integrem – um lugar fronteiriço. Feita esta rápida contextualização, passemos agora a apontar algumas imagens presentes em CN na tentativa de deixar aflorar esses aspectos de que falamos. 2.1 Os estereótipos As imagens trazidas na narrativa deflagram as ruínas de uma modernidade decadente, erguida sob a égide de representações que se movimentam e desvelam as transformações às quais o espaço e as culturas amazônicas vêm sendo submetidos. Essas imagens possibilitam-nos rastrear a força com que os estereótipos foram engendrados em nosso cotidiano. Nesse momento, faz-se necessário destacar que, em detrimento de muitas cenas merecedoras de apreciação, nossa análise focará apenas alguns retratos da atuação dos artistas Mundo e Arana, pois eles, a nosso ver, são os que melhor refletem a construção/produção de algumas imagens, o que não diminui em nada a força das demais cenas presentes na trama. As imagens significativas dessa modernidade aparecem no enredo sob vários ângulos de visão. Em uma imagem maior, tem-se o ABDALA JUNIOR, Benjamim. De vôos e ilhas: Literatura e Comunitarismos. São Paulo: Ateliê, 2003. 33

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retrato geral da região, no qual o Norte parece, assim como a Fênix, surgir das cinzas para denunciar o que restou dessa área após décadas de exploração e degradação. Nessas imagens percebem-se, sobretudo, os efeitos materiais dessa modernidade no território físico simbólico e imaginário das populações manauaras. Já nas imagens menores, é possível ver, de maneira mais detalhada, como foi se dando a degradação moral, social e econômica dos sujeitos amazônicos, jogados nesse processo, sem nenhuma chance de inclusão econômica, social e cultural. Esse retrato menor de que falamos é mostrado no enredo, a partir da trajetória artística da personagem Mundo, o portador de um talento, que “além de emanar das mãos também vinha do olhar” (HATOUM, 2005, p. 16). Um olhar atento e observador que encontrou na arte a única alternativa possível para dar vazão às dores de uma geração de jovens oprimidos pelas mudanças econômicas, pela ditadura militar e por toda incerteza que precedeu ao processo de implantação da Zona Franca de Manaus. Esse olhar reflete imagens com a apreciação de detalhes minuciosos como este logo a seguir: Antes de conviver com Mundo no Ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da praça São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado nas pedras que desenham ondas pretas e brancas. Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o desenho: um barco torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar uma faixa branca [...]. Foi o primeiro desenho que ganhei dele: um barco rumando para um espaço vazio... (HATOUM, 2005, p. 12).

Pode-se conjecturar que este seja “um barco torto e esquisito” rumando perseverante na escuridão de um horizonte em busca de espaços nos quais pudesse desembarcar seus ocupantes. Um barco talvez repleto de seres que, como seu desenhista, estavam errantes,

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perdidos e estilhaçados em meio a transformações que os empurravam, no dizer de Marc Augé (2007) a “não lugares”, como o que foi mostrado na imagem/metáfora do barco. Um espaço liberto sobre o rio em harmonia com a errância, onde as experiências podiam se dar em pleno movimento de desterritorialização. Com essa expressão artística que dá voz, diga-se, voz de desespero, a personagem Mundo inicia sua atuação romanesca mostrando o sentimento que sufoca, não somente a ele mesmo, mas a muitos outros que estavam emergindo, quase naufragando sem um barco, onde pudessem se abrigar dos escombros desse mundo repleto de ruínas. Não por acaso, Hatoum (2005) faz da produção artística dessa personagem uma ferramenta que ajuda a romper com a ideia de “essência” amazônica e subverte do jugo neocolonial os imaginários das populações amazônicas. A arte de Mundo prima em retratar as condições em que vivem as muitas vítimas de uma modernidade problemática, que cegou para a dinâmica da região e desconsiderou toda e qualquer forma de alteridade. Vejamos essa imagem a seguir: Mundo tirou o papel do bolso e mostrou o desenho: queria espetar uma cruz de madeira queimada diante de cada casinha do Novo Eldorado; ao todo oitenta cruzes. Depois ia pendurar trapos pretos nos galhos da seringueira no meio do descampado (...) ‘a ideia é também queimar o tronco da árvore’, acrescentou... (HATOUM, 2005, p. 147-148).

Antes, porém, de passarmos às considerações a respeito dessa imagem discursiva, gostaríamos de destacar que buscamos a ajuda de um artista local, o acriano Alex Azevedo, a fim de reconstruir algumas imagens verbais e torná-las visualmente constatáveis. Vale destacar que essa e as demais imagens visuais postas neste livro não pertencem à obra CN. Em seu processo de criação, Rodrigues idealizou e deu visualidade às imagens que lhe vinham à mente, ao ler as figuras verbais do Campo de Cruzes, obra de arte planejada e descrita pela personagem hatouniana Mundo. Uma dessas imagens pode ser vista a seguir:

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AZEVEDO, Alex José Rodrigues de Campo de Cruzes – 201334 Grafite, 21 x 29,7cm

Observando essa ingerência externa feita pelo artista Azevedo, visualizamos nesse esboço a imagem da obra de Mundo. Ao que parece, essa imagem/metáfora pensada para descrever o bairro Novo Eldorado, em muito se parece com as imagens discursivas trazidas pela personagem, ou seja, ambas se assemelham, em nosso entendimento, a uma imagem de abandono, não da parte dos moradores, mas dos governantes. Essa imagem reflete, ainda, uma “estética” da crueldade dispensada sob a forma de tratamento para com as populações locais que sofriam em espaços como esses projetados para garantir a exclusão.

É de extrema relevância destacar que a presente representação artística – bem como as demais que o leitor encontrará no decorrer deste capítulo – é apenas uma das muitas possibilidades de leituras visuais que se pode obter lendo as imagens discursivas contidas no romance CN e El Hablador. Como bem destaca Mangel (2001), “a imagem dá origem a uma história, que por sua vez dá origem a uma imagem”. Assim, a história de CN deu origem à imagem, que dará origem à outra, e assim sucessivamente. 34

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Ao visitar esse conjunto habitacional, Mundo ficou abalado com as condições de vida a que estavam submetidos os moradores desse bairro, e decidiu denunciá-las através da confecção de uma obra nomeada por ele de Campo de Cruzes. Nessa obra, ele pretendia usar as casinhas do bairro, bem como a própria paisagem calcinada, como elementos constitutivos de um memorial levantado em favor dos moradores desse bairro, na tentativa de denunciar suas condições de vida e tirar da invisibilidade o tratamento dado a esses moradores. Expandindo ainda mais essa discussão, entendemos que as cruzes enunciam física, social e culturalmente as incontáveis mortes de inocentes sacrificados em função de um delírio que jamais foi o deles. Desse modo, Campo de Cruzes é o retrato fiel da exploração moderna na vida das populações anônimas da Amazônia manauara. Na memória da personagem Mundo, Hatoum (2005) retoma visivelmente os traumas causados a tantos sujeitos que tiveram suas vidas arruinadas em prol dessa modernidade às avessas, onde as cruzes nada mais são do que uma forma de denunciar, de dentro, o teor das políticas programadas em desfavor dessas comunidades. Demonstrando um bairro repleto de pobreza, miséria e degradação, no lugar de uma vida abundante com riquezas impensáveis, Hatoum (2005) transporta para a ficção não apenas um nome mítico, mas também o retrato das condições sociais da região manauara no período que antecedeu a implantação da Zona Franca de Manaus. Ele insere paradoxos nos quais já não cabem mais as imagens de uma Amazônia paralisada. E neste sentido podemos dizer que o escritor (2005) não apenas subverte o imaginário do leitor no tocante a essa modernidade às avessas, mas também o trai, para denunciar uma forma violenta e eficaz de neocolonialismo, materializado nesse período pelas ações dos militares que, numa busca insana de modernizar o espaço urbano amazônico, expugnaram das vistas da sociedade as comunidades ribeirinhas, realocando-as para áreas, onde os mortos ainda não eram cadáveres.

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Soma-se a isso a ausência de uma política governamental voltada para as necessidades das comunidades ribeirinhas que, sem ter para onde ir, eram cada vez mais empurradas para áreas desestruturadas e distantes do perímetro urbano, áreas nas quais viver tornavase um martírio, pois a política neocolonialista era cruel e opressora. A propósito do neocolonialismo, em A expressão amazonense, Marcio Souza salienta que no período da implantação da Zona Franca de Manaus também era o período... [...] das obras de fachada, das ruas asfaltadas com fins eleitorais, das inaugurações e do total desconhecimento de planejamento urbano. A cidade com um contingente humano vindo do interior, expande-se em favelas que recebem o bucólico nome de bairros. (1946-1977, p. 150).

A reescrita tem por finalidade a quebra da ocultação da hegemonia canônica e, em razão desse retrato, invisível aos olhos de muitos ficcionistas, a imagem que se divulgava desse processo de modernização dava conta dessas imagens de fachada flagradas por Souza. Nelas o que se destacava são as obras impostas como imagens de modernidade, tais como: ruas asfaltadas, prédios. Era importante visualizar esses “vetores” de progresso. Não por acaso, Hatoum (2005) substitui as luzes reluzentes do mítico El Dorado pelo marrom das cinzas e o negro dos trapos pendurados nas cruzes do bairro “Novo Eldorado”. O ficcionista desloca as imagens de fachada da modernidade manauara, fazendo uso de um retrato às avessas dessa modernidade violenta e excludente que, no século XX, escondeu, marginalizou e novamente desprezou as populações amazônicas, o neocolonialismo. Outra vertente dessa retratação surge ao contrapormos o fazer artístico da personagem Mundo aos de Arana, mentor inicial de Mundo, e seu verdadeiro pai, como se descobre ao final da narrativa. Arana é o “artista da terra” que conhece, de perto, o cenário da região, mas opta por pintar uma Amazônia desfigurada e engajada com sua própria exaltação.

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A entrada da personagem Arana na teia narrativa surge como contraponto para refletirmos sobre o papel do artista visual na reinserção dessas comunidades na pauta de debate, bem como pensar nas atitudes às vezes ingênuas de muitos artistas nativos diante desse neocolonialismo disfarçado de civilidade. Se considerarmos que muitos deles alcançam condições intelectuais e financeiras para lutar contra essa exploração, mas dificilmente o fazem, podemos conjecturar que Hatoum (2005) mimetiza nessa personagem os atos de um oportunista que, embora seja filho da terra, tenha tido em suas mãos talento e poder aquisitivo, político e intelectual, para lutar em prol dos menos favorecidos, ainda assim, não o fez, o que se constitui também em uma forma de denúncia contra esses artistas. Nesse emaranhado de conjecturações, as atitudes da personagem Arana tornam-se semelhantes às do histórico Julio César Arana Del Avila, um dos maiores barões do caucho no Peru35, que explorou, torturou e enriqueceu à custa do trabalho escravo de centenas de milhares de indígenas. Ao final desse processo, ainda, foi enaltecido pelos governantes de sua pátria, que reconheceram o penoso serviço de civilizar incessantemente os trópicos peruanos, condecorando-lhe com méritos e honrarias. Com características semelhantes, Hatoum (2005) traz para a trama de CN um ser ficcional com atributos similares a esse ser real. A personagem ficcional explora, mente, rouba e, mesmo assim, é reconhecido pela sociedade como um genuíno “artista da ilha, um pintor talentoso” (2005, p. 228, 264). Outro dado relevante sobre o sujeito histórico diz respeito a sua história ter sido sempre cercada de controvérsias. Julgado no famoso caso de Putumayo, no qual foi acusado de escravizar, matar e torturar brutalmente centenas de indígenas, Arana não apenas foi misteriosamente absolvido, como também meses depois foi condecorado pelos peruanos em reconhecimento ao trabalho penoso de acumular uma das maiores fortunas, adquirida com recursos do Disponível em: http://www.banrepcultural.org/blaavirtual/revistas/credencial/abril2003/curioso.htm. 35

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caucho, torturando, escravizando e praticando todo tipo de atrocidades com as populações indígenas. A personagem ficcional, por sua vez, também explora indígenas, meninos pobres, meninas interioranas, e tal qual o Arana histórico, foi reconhecido pelos políticos da cidade, contudo, a morte que ele promove, retratando a paisagem em detrimento do sujeito, agencia um tipo de morte ainda mais cruel e duradora das comunidades amazônicas: o esquecimento. Outro aspecto importante a destacar na construção dessa personagem diz respeito aos mecanismos com os quais Hatoum desconstrói as “maravilhas” difundidas pela construção neocolonialista da modernidade. Ao usar a nomeclatura mítica para camuflar as condições de moradia do bairro e o preço que a população amazônica pagou, e ainda paga por essa pretensa modernização, o autor reescreve, por outro ângulo, as formas existentes para forjar a imaginação. A propósito da reescrita, Thomas Bonnici (2009) afirma que a literatura pós-colonial narra e cria ficcionalmente os excluídos fazendo uso de certas técnicas literárias significativamente diferentes das da ideologia ocidental, o que implica dizer que os ficcionistas pós-coloniais procuram reescrever as histórias desses sujeitos, inserindo vozes, fragmentos e imagens comumente desprezados nas narrações. Para o autor, [...] questionamento dos vários temas, enfoques, pontos de vista da obra literária em questão os quais reforçavam a mentalidade colonial. Logicamente, a reescrita desemboca na subversão dos textos canônicos e na descrição dentro do processo subversivo (BONNICI, 2009, p. 271).

Nesse sentido, acreditamos que Hatoum (2005) não somente reescreve as histórias dos sujeitos antes ocultos nas retratações ficcionais da região, mas também empreende a traição de uma tradição, pois ele subverte do jugo colonial literário uma escrita antes batizada de regional. Ainda de acordo com Bonnici (2009), após a constatação de que os povos colonizados eram representados ficcio-

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nalmente de maneira a favorecer certos imaginários e que, portanto, também ajudaram a difamar a cultura e a identidade desses povos, muitos autores têm procurado (res)significar suas narrativas a partir de narrações historicamente construídas pelos colonizadores, de forma a se perceber o “sistema eurocêntrico de valores e [...] a sociedade a partir da perspectiva daquelas vozes que foram silenciadas ou excluídas” (BONNICI, 2009, p. 11). Isso implica dizer que atualmente muitos têm sido os ficcionistas que vêm tentando criar obras literárias à luz de novas formas de abordagem. Esse dado reveste-se de fundamental importância, pois, considerando que a literatura pós-colonial cria uma estética a partir do excluído, percebemos que esta estética confere traços singulares ao enredo de CN. Nesse sentido, Hatoum atribui a alguns de seus personagens nomes que também evocam essa possibilidade de reescrita, como, por exemplo, os nomes de Arana e Mundo, um deles já mostrado por nós anteriormente e que evoca fazeres historicamente representativos da historiografia oficial. Ainda no tocante à reescrita, pode-se afirmar que ela consegue inserir na pauta de reflexão as condições sociais da maior parte dos sujeitos amazônicos que vivenciaram esse processo de modernidade nominado por nós como às avessas. É por meio dessa reescrita que Hatoum (2005) torna visível o preço que a região pagou e, de certa forma ainda paga, para manter as luxúrias de uma minoria ancorada na mão de obra escrava de milhares de índios, ribeirinhos, negros, nordestinos, exterminados e insepultos, que perderam suas vidas em prol de uma modernidade que jamais foi a sua. Cabe salientar, ainda, que a reescrita hatouniana traça um viés para compreendermos nas atitudes de muitos outros Aranas, formas modernas de colonialismos e opressões, disfarçadas, como podemos ver, de produções artísticas, sistemas econômicos, línguas, ou, em manifestações artísticas que ocultem o sujeito das retratações. Ainda a exemplo desse tipo de projeto artístico, vejamos as imagens discursivas trazidas a seguir:

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O artista também recebera uma encomenda, não de Jano ou Alícia, mas de um executivo japonês de uma das novas fábricas de Manaus. Disse que o pedido lhe dera muito trabalho. Não perguntei do que se tratava. Bastou olhar as fotos coloridas de araras numa parede. Duas, de asas abertas, cresciam numa tela, e prometiam voar num céu dourado que iluminava a floresta. Arana disse que os executivos japoneses e coreanos nem falavam português, mas davam muito valor a arte: compravam quadros sem pechinchar, e isso era raro na nossa cidade (HATOUM, 2005, p. 169).

Ou ainda: Arana quis me mostrar uma de suas pinturas recentes: paisagem de um rio margeado por uma mata densa e pássaros num céu luminoso. Observei o quadro e olhei de esguelha para Mundo. ‘Que tal?’, perguntou Arana. ‘Parece pintura de um naturalista ou viajante’, comentei. [...] ‘É um quadro encomendado’, justificou ele. ‘O gosto não depende só de mim, depende, de quem [paga]’ (HATOUM, 2005, p. 130-131).

A partir desses fragmentos, recortamos um pequeno contexto da produção artística de Arana no qual a pintura depende da encomenda. E, ao que parece, uma encomenda baseada num imaginário bastante difundido sobre o determinismo paisagístico da região e, diga-se ainda, paralisado na mente desses compradores estrangeiros. Nesse sentido, acreditamos que, ao pintar sob encomenda a paisagem amazônica, Arana não apenas endossa o teor exótico desse tipo de imaginário, mas também o reinscreve na mente de estrangeiros e compatriotas. Finalmente, são essencialismos que supervalorizam a paisagem em detrimento dos sujeitos, que aparecem nas telas de Arana pintados com as tintas da invisibilidade. Vejamos a imagem a seguir:

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AZEVEDO, Alex José Rodrigues de. Sem Título – 201336 Grafite, 21 x 29,7cm

Tal qual a imagem anterior, esta foi materializada a partir da leitura da obra CN, portanto, tampouco pertence a ela. Pareceu-nos interessante reproduzi-la para mostrar visualmente ao leitor o teor Destacamos novamente que a presente representação artística – bem como as demais que o nosso leitor encontrará no decorrer deste capítulo – é apenas uma das muitas possibilidades de leituras visuais que se pode obter lendo as imagens discursivas contidas nos romances CN e El Hablador. 36

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da arte de Arana, pois, ao imaginarmos paisagens verdes, matas, bichos etc., geralmente, as condensamos em imagens paralisadas em nosso imaginário. Contrapondo às imagens pictóricas do Campo de Cruzes, mostradas anteriormente a estas, também recriadas pelo artista visual Alex Azevedo, percebemos que ambas concentram mensagens bem distintas. Como já se afirmou, as telas de Arana são centradas no exotismo que endossa a natureza amazônica como original e determinista. Já as de Mundo, ao contrário, reproduzem a pobreza, miséria, exploração, de modo que, em ambas, a morte do sujeito amazônico é o único elemento comum. Na primeira imagem, a morte dos sujeitos tem a aspiração de ser elemento de denúncia e subversão; já na segunda, almeja-se mostrar a cegueira e a dominação ideológica do artista. Assim procedendo, a narrativa se coloca a serviço da imaginação e movimenta em nosso imaginário coletivo imagens que têm grande tradição no repertório das Amazônias. Ao contrapor o fazer artístico de Mundo e Arana, Hatoum (2005) nos possibilita recriar imagens que não se subordinam a documentações históricas e se recusam a assumir a natureza como paralisada, homogênea, única e original. Vejamos mais uma imagem discursiva a seguir: Arana me convidou a entrar. A maior novidade vinha do alto: bichos empalhados, imensos e tristes, presos por fios de tucum amarrados nas vigas de aço. Flutuavam, encerrados em caixa também de vidro, com seres sequestrados da floresta e imobilizados para sempre. Por um momento ficamos imóveis, escutando o canto de algum pássaro intruso que mergulhava na vegetação e escapava pela abertura. Alguma coisa me incomodou, então percebi que ali no centro todos os animais nos fitavam. A luz incidente nas placas acendia seus olhos, que brilhavam na penumbra. Isso tudo tem algo tétrico, pensei; uma decoração macabra, nada mais. Ouvi um risinho diabólico e logo a voz: ‘Quando chove, eles ficam encantados’. ‘Entram na minha floresta e se sentem no Paraíso’ (HATOUM, 2005, p. 228-229).

Ao dizer “entram na minha floresta e se sentem no Paraíso”, Arana mostra ironicamente o teor imitativo de sua floresta encantada – 115


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um pastiche pobre fabricado para aqueles que têm, como referência artística, imagens deslocadas, tidas como sinônimo de cultura. Os bichos empalhados, bem como sua floresta, foram imobilizados para sempre nas telas e memórias dos muitos que, como ele, veem um exotismo “encantado”, repleto de animais, mata virgem, índios e rios, como sendo a realidade de milhares de quilômetros de extensão que compõem o território amazônico. Trata-se de uma imagem homogeneizada, atrasada e desconectada do mundo amazônico. Desse modo, são retratações destorcidas do que de fato é o patrimônio cultural e social das comunidades amazônicas, ou seja, rico, plural e heterogêneo. A propósito de nossas formas de pensar as culturas e práticas sociais a partir de modelos hegemônicos e deslocados das peculiaridades de cada povo e região. Canclini adverte: Precisamos pensar-nos simultaneamente como diferentes, desiguais e desconectados, ou melhor, como diferentes-integrados, desiguais-participantes e conectados-desconectados. Num mundo globalizado, não somos só diferentes, só desiguais ou só desconectados. As três modalidades de existência são complementares. [...] portanto, partir de processos de oposição, como o são a diferença, a desigualdade, a desconexão [fazemos a], escolha necessária de um pensamento crítico, não-conformista. Mas, ao mesmo tempo, é necessário, para evitar maniqueísmos, entender estas formas de oposição em relação aos modos afirmativos de existência que os acompanham (2009, p. 99-100).

No dizer de Canclini (2009), precisamos pensar a nosso próprio respeito, como seres diferentes, desiguais e desconectados, para então seguirmos adiante. Contudo, esse pensamento requer, antes de tudo, um olhar sobre a diferença, pela ótica da heterogeneidade, pois, sendo diferentes, desiguais e desconectados, certamente, não há possibilidade de sermos homogeneizados e encobertos por representações estáticas e imutáveis, deslocadas da realidade dos sujeitos que a vivenciam. Não obstante, o reconhecimento dessa heterogeneidade implica revelar que, a seu tempo e modo, as diferenças nos singularizam, sem com isso necessariamente nos subjugar às

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demais culturas. Em relação aos elementos reproduzidos nas telas de Arana, equivale a traduzi-los como expressões macabras e violentas usadas em favor da ocultação dessas diferenças, desigualdades e desconexões das comunidades amazônicas, em relação às demais culturas do mundo. Vejamos a última imagem discursiva das obras de Arana: Agora, Arana transformava toras de mogno em animais enormes, que nem metiam medo, nem surpreendiam, nem emocionavam. Suas telas que traziam paisagens com caboclas e índias nuas, a pele acobreada e um sorriso complacente, eram pastiches pobres de Gauguin e das pinturas do salão nobre do Teatro Amazonas. A técnica não era menos impecável que o exotismo. Num dos quadros, uma plateia de índios extasiados assistia a uma ópera (HATOUM, 2005, p. 227).

Nessa imagem discursiva pode-se observar, especialmente, objetos artísticos que resgatam uma vertente historicamente ligada à arte enquanto imitação folclórica. A paisagem consegue mascarar os acontecimentos e desvirtuar as identidades dessas populações, pois ela paralisa os imaginários, instigando devaneios. Por outro lado, o fazer artístico da personagem Mundo incorpora na trama retratos discursivos que seguem na contramão dos de Arana. Essa outra face é trazida quando Hatoum (2005) desloca os habitantes dos cinturões de miséria de Manaus e os insere bem no centro da temática artística de Mundo, para denunciar os efeitos de um progresso implantado às avessas e aquém das populações menos favorecidas. São imagens discursivas que ajudam a mimetizar paisagens amazônicas bem distintas daquelas vendidas por Arana. Por isso mesmo a trajetória artística da personagem Mundo segue na contramão de nossas idealizações. Sendo a personagem filho de um magnata que também explorava as populações nativas, Mundo, ao menos em tese, era mais propenso que Arana a assumir os discursos e a ideologia da sociedade dominante. Contudo, ao invés de reproduzir o discurso e as práticas do pai, ele opta por trilhar caminho inverso e decide, de dentro da sociedade dominante, denunciar as desigualdades dessa relação. E, nes117


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te sentido, podemos também dizer que Hatoum (2005) subverte o imaginário do leitor. Ao erguer ficcionalmente um personagem que, pertencendo ao poder de dentro dele, se rebela, Hatoum mostra que é possível subverter as ideologias. Desse modo, a combinação do plano da realidade, como teias da ficção, resulta em um arranjo dinâmico para retratar a história de povos marginalizados e oprimidos. Como as imagens verbais, postas no fragmento a seguir: Mundo contou que no internato tinha pesadelo com a paisagem calcinada: a floresta devastada ao norte de Manaus. Visitara as casinhas inacabadas do Novo Eldorado, andara pelas ruas enlameadas. Casinhas sem fossa, um fedor medonho. Os moradores reclamavam: tinham que pagar para morar mal, longe do centro, longe de tudo... Queriam voltar para perto do rio. Alguns haviam trazido canoas, remos, malhadeiras, arpões: a cozinha, um cubículo quente; por isso levavam o fogareiro para a rua de terra batida e preparavam a comida ali mesmo (HATOUM, 2005, p. 148).

Com essa imagem, ainda ligada com a reprodução do Campo de Cruzes, almeja-se desvelar ainda algumas questões. Inicialmente, notamos a evocação de um nome bastante conhecido, Eldorado. Contudo, à medida que vamos sendo informados dos detalhes que caracterizam esse lugar, percebemos que esse Novo nada possui de rico, belo e encantado; na realidade, é ele tão somente o resultado de anos de colonização. Cada detalhe na imagem desse Eldorado evoca retratos de miséria e degradação, o que acaba levando o leitor a evocar mentalmente cenas totalmente contrárias às paralisadas nesse nome. Por isso mesmo, percebemos que, a partir desse imaginário paralisado em torno do mítico El Dorado, Hatoum (2005) subverte o imaginário do leitor, incorpora à matéria romanesca retratos reais de um bairro de Manaus, onde os moradores experimentavam condições de vida nada semelhantes às idealizadas em torno do El Dorado mítico. Na realidade, o ficcionista transporta para a obra imagens discursivas semelhantes às condições de vida das populações ribeirinhas realocadas para bairros distantes do perímetro urbano de

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Manaus. Nesses bairros, o cenário repleto de miséria, pobreza e degradação mais lembrava lugares de expugnação do que de moradia. Tanto é que essas imagens fornecem apenas um dos retratos das condições sociais daqueles que conseguiram encontrar nesses territórios “Eldorados” de penúria e discriminação social. Como dissemos, nesse Novo Eldorado, os mortos não são cadáveres, mas seres humanos marcados pela diferença e exclusão, condenados a viver com o que restou de suas memórias. Esses moradores são o retrato dos milhares de expatriados por um sistema neocolonialista que jogou as populações ribeirinhas, indígenas e tantos mais – que tentaram a ele se integrar em bairros, como o Novo Eldorado, construídos mais além das proximidades de seus locais de moradia, excluindo-os e condenando-os ao abandono – na extrema miséria e no distanciamento de um sistema econômico pensado fora da realidade das populações locais. A descrição das casinhas, bem como das ruas enlameadas, são “equivalentes”, um tanto ou quanto antagônicas, da cidade, onde havia ruas de ouro. O mito do El Dorado, como se sabe, foi discursivamente forjado no século XVI para nomear um lugar no qual as riquezas inimagináveis moviam os homens a saírem numa busca alucinada. Em contraposição a essa imagem, o bairro Novo Eldorado também é fruto de uma busca alucinada, não por ouro ou riquezas, mas por lugares onde se pudesse viver em condições dignas de existência. Esse Eldorado também é, ainda, o retrato do pesadelo experimentado por aqueles que carregaram em sua trajetória uma vida repleta de sofrimentos e agonias, vividas em cubículos quentes numa situação degradante. Cabe salientar, ainda, que essa realocação provocou rupturas traumáticas, sobretudo nos hábitos e nas identidades dessas comunidades que, deslocadas de seus lugares de origem, foram obrigadas a buscar desesperadamente formas de readaptar-se e redefinir-se física, econômica, cultural e socialmente em territórios completamente diferentes dos seus. Experiências traumáticas que marcaram o corpo e a memória de milhares de índios, ribeirinhos, migrantes e tantos outros que tiveram suas trajetórias de existência violentamente esfaceladas. 119


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Eis as imagens sintomáticas dos traumas e feridas produzidas na pele e na memória das centenas de milhares de ribeirinhos, índios e tantos outros que vivenciaram os signos da violência imputados como reflexo da imposição capitalista pelos “donos” do poder. Enfim, a partir dessa retratação das condições de vida no conjunto habitacional, Hatoum (2005) evidencia na arte, como a destruição da liberdade do outro pode ser mascarada por um sistema que atua de forma lenta e eficaz sem qualquer compaixão, o que, na feliz expressão de Nestrovski & Seligmann-Silva (2005), pode ser compreendido como “uma ferida na memória” (p. 86) coletiva e individual do ser humano. Sobre essas feridas, podemos ainda, tanto do ponto de vista individual como do coletivo, dizer que elas revelam um retrato fiel dos traumas e barbáries imputados aos habitantes da Amazônia manauara e nos fornecem características valiosas para reconhecermos a grandeza desses traumas. Como bem enfatizam Nestrovski & Seligmann-Silva: [...] uma outra característica sintomática do trauma, extremamente importante para a reflexão sobre a representação de catástrofe e, mais especificamente, para a teoria da representação da Shoah, é a literariedade da recordação da cena traumática (2005, p. 87).

“A literariedade da recordação da cena traumática” sobre a tortura em CN, confere visibilidade ao complexo estado de dor das personagens envolvidas no processo de modernização do espaço urbano manauara. Pela tradução dessas experiências, o texto de Hatoum (2005) leva às últimas consequências o manejo do cenário violento no qual vivem os agentes sociais envolvidos nesse ambiente de barbárie. Interpretadas, essas imagens evidenciam ainda o princípio de que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (BENJAMIM, 1987, p. 226). Por isso mesmo, acreditamos que esse momento foi artisticamente representado por Mundo num monumento pensado, a partir 120


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de dentro, do acontecimento, onde se busca a representação entre as palavras, as imagens, as recordações, e os esquecimentos, ou seja, a retratação de um sentimento individual e ao mesmo tempo coletivo de uma comunidade esfacelada pela opressão neocolonialista. Sobre formas de se expressar artisticamente os traumas coletivos de um modo geral, Eugenia Vilela, enfatiza que: Pela arte, não se traduz o intraduzível da dor – a dor na terceira pessoa é uma ficção –, mas cria-se o espaço de manifestação possível ao toque, através da disseminação do sofrimento vivido por quem o sofreu desde dentro. [...] Dizer as imagens e as palavras – os olhos e as vozes – é a única forma de dar visibilidade à impossibilidade de sentido de certos acontecimentos (2010, p. 250-251).

Há uma visibilidade de acontecimentos, para usar a expressão de Eugenia Vilela que, de alguma forma, é transcrita na arte da personagem Mundo. Pois o monumento Campo de Cruzes, produzido por Mundo, consegue, a nosso ver, trazer à tona imagens do sofrimento coletivo das centenas de expatriados que queriam voltar para a beira dos rios, para seus lugares de origem, mas não podiam, pois estavam obrigados a aprender a conviver com a dor provocada pelos efeitos nefastos dessa “mudança” forçada, imposta numa geografia reorganizada em prol das normas capitalistas. Algumas expressões comentadas pela personagem Mundo a esse respeito são dignas de nota: Tanta natureza pra quê? Sorva e pupunha por cinquenta centavos..., disse Mundo [...] Os moradores da beira do rio. Foram jogados no outro lado da cidade. A área foi toda desmatada, construíram umas casas... Sobrou uma seringueira. Quer dizer, o tronco e uns galhos... a carcaça (HATOUM, 2005, p.144).

Percebe-se, na imagem discursiva transcrita, que as condições de vida dos moradores do Novo Eldorado são o reflexo da força coercitiva de uma modernidade que não conseguia absorver as diferenças. Uma modernidade, aliás, forjada na base de um imaginário homogêneo e desfavorável às comunidades locais, como um todo. 121


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Veja que as riquezas naturais não possuem valor mercadológico; “cinquenta centavos” é o montante que se consegue alcançar pelo fruto regional, porém esse mesmo produto, quando aproveitado por empresas multinacionais ou falsários como Arana, alcança valor econômico elevado. Embora essa neocolonização apresente “roupagem” diferente da de seus antecessores, os objetivos eram os mesmos da exploração colonialista ocorrida anteriormente no espaço amazônico, ou seja, o lucro pessoal. A Zona Franca de Manaus foi pensada alheia às condições socioculturais da região; na realidade ela se configurou igual aos modelos que outrora havia, desconsiderando a diversidade cultural de povos, línguas e etnias. As populações locais deveriam se adequar às exigências mercadológicas adotadas desse sistema, para que não fossem dele excluídas e novamente acusadas de serem pobres, beberrões e preguiçosos, “assim como no antigo discurso hegemônico, que atribuía aos pobres a responsabilidade pela sua situação” (“trabalham pouco”, “não têm iniciativa”)... (CANCLINI, 2009, p. 94). A propósito desse projeto universal de globalização, cuja matriz obedece a um modelo cultural único e totalitário, o escritor, poeta e filósofo caribenho, Édouard Glissant, traz em seu livro Poética da Relação (2011) considerações que merecem aqui ser retomadas. Segundo o pensador, o mundo ocidental constitui-se historicamente arraigado em modelos intransigentes, monologuistas e dialéticos. Esses modelos “preservam” a liberdade física e cultural de seus “adeptos” tomando por base práticas culturais aceitas pelos padrões da cultura ocidental. É o que Glissant (2011) nomeia de identidade raiz. Essa metáfora, diga-se, usada primeiramente por Deleuze e Guattari na coleção Mille Plateaux (1976), serve ao autor como imagem basilar para exemplificar o teor homogêneo do projeto universal ocidental, construído a partir de um modelo intolerante e fechado em si mesmo, que, em regra, adota padrões linguísticos, financeiros e culturais completamente alheios à lógica da diversidade. Para Glissant (2011), a ideia de preservar culturas, línguas e identidades ligadas a uma raiz única é um engano, pois a raiz, assim como o único, esconde o múltiplo e aniquila-o em detrimento do ser. Ou 122


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seja, as trocas e as interações que se dão entre os sujeitos que se movimentam e, com eles, suas culturas, consequentemente, acabam sobrepujando o estático e o imutável. Opondo-se à concepção de identidade enquanto raiz, o autor propõe um agir ancorado numa Poética da Relação, onde as relações gestadas, a partir da coexistência entre diferentes línguas, culturas e etnias, abre-se para novas possibilidades culturais. Nessa poética, as relações estariam voltadas para a heterogeneização das línguas, culturas e sociedades, sendo, portanto, possível a implantação de políticas aptas a absorver e a dar visibilidade a diferentes aspectos das identidades e suas manifestações culturais, lutas políticas, linguísticas e literárias. Essa concepção é diretamente representada por Glissant (2011) numa metáfora que ele nomeia de rizoma, ou seja, uma raiz que se abre, se espraia e absorve as diferenças culturais dos povos que entram em contato uns com os outros. Por isso, conforme o autor, a ideia de raiz enquanto matriz identitária é um engodo, ela reforça um projeto capitalista global e aniquila completamente o dinamismo em função do imutável, pois consegue levar a cabo um sistema de produção ancorado em mapas políticos culturalmente homogêneos. Nesse sistema, difunde-se a ideia de unidade ao mesmo tempo em que se omite e camufla sob o discurso da integração e da intolerância para com o outro. Uma “integração” planejada, aliás, a partir de mercados transnacionais e mundiais, que buscam estratégias para legitimar sua hegemonia política, econômica e linguística, sob a aparência de benefícios. Não por acaso, Glissant (2011) propõe pensarmos esse processo de globalização ocidental, como sendo uma nova forma de conquista mercantilista, onde só o Ocidente impõe e domina o mercado mundial. Contra esse processo o autor relembra ainda que, no contexto do Caribe, forjou-se a base do rizoma, ou seja, a digêneses. A saber, um nascimento cultural que diverge do mito da pureza identitária de raiz única, exemplificado por Glissant (2011), através das relações gestadas no interior dos navios negreiros, onde o sofrimento e o terror forjaram nos sobreviventes formas inéditas de trocas cultu123


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rais e possibilitou às culturas estarem ali e em outras partes, sendo ao mesmo tempo abertas e enraizadas, livres e, ao mesmo tempo, presas sobre o mar. O autor lembra ainda que: A errância não provém de uma renúncia nem de uma frustração em relação a uma situação de origem que se tivesse deteriorado (desterritorializado) – não é um ato determinado de recusa, nem uma pulsão incontrolável de abandono. Por vezes, é abordando os problemas do Outro que nos encontramos a nós mesmos (GLISSANT, 2011, p. 27).

Nesse “encontro de nós mesmos”, afirma Glissant (2011), podemos perceber que o mapa político desse sistema capitalista é muito divergente do cultural, e que embora tenhamos nos libertado do jugo colonial físico, ainda estamos presos pelo mental, pois esse sistema continua a subjugar os povos a uma ideia de raiz única e totalitária. Isso acontece, é bom que se diga, porque o pensamento ocidental segue a lógica da homogeneidade e faz com que as culturas desiguais vivam em grande contradição. Lendo as reflexões de Glissant (2011), e fazendo-as dialogar com o enredo de CN, percebemos que a narrativa de Hatoum (2005) é uma espécie de metáfora desse rizoma glissantiano, pois ela incorpora e expõe imagens discursivas ancoradas no viver das várias comunidades que, mesmo se encontrando em meio a processos de exploração e degradação, estão gestando novas formas de resistência e subversão. Comunidades que, mesmo sofrendo as consequências de existirem num sistema onde os modelos preestabelecidos conflitam com os modos de vida local, continuam lutando por resguardar sua liberdade. Como é o caso, por exemplo, dos moradores do conjunto habitacional Novo Eldorado que, mesmo estando em meio ao sofrimento de ter que viver afastado das margens de rios e igarapés, e ter que aprender a conviver com práticas sociais completamente diferentes das suas, ainda assim, tentavam coexistir improvisando e recriando novas formas de integração. Por outro lado, na imagem do Campo de Cruzes, Hatoum (2005) denuncia ainda a força da imposição neocolonialista que incidiu so124


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bre os menos favorecidos. Nesse período, a degradação do espaço físico é também a dos próprios sujeitos, especificamente no período que antecedeu à implantação da Zona Franca de Manaus. Consideramos, nesse sentido, que o Novo Eldorado figura como um ato de ridicularização às tentativas de modificar a paisagem e transformá-la nesses lugares surrealistas. Outra imagem, aliás, bastante significativa dessa afirmação, é mostrada na retratação das condições de trabalho e moradia das populações que ainda permanecem próximas à floresta: Vi vários deles, [dos trabalhadores] magros e tristes, na ilha das ciganas, em Saracusa, Arari, Itaboraí, e até no paraná do Limão. Cortavam juta com um terçado, secavam as fibras num varal e depois as carregavam para a propriedade... [...] A maioria dos empregados morava em casebres espalhados ao redor de Okayama Ken... (HATOUM, 2005, p. 71).

Décadas após a denúncia da exploração da mão de obra gomífera na Amazônia manauara, o sistema usado para o plantio e cultivo da juta continuava condicionando os trabalhadores basicamente às mesmas condições usadas outrora nos galpões seringalistas. Os trabalhadores continuavam sendo explorados nas mesmas condições de outrora, diga-se, com uma “singela” diferença: agora eram oprimidos não somente pelos patrões, mas também por um sistema que, embora lhes “permitisse” ir e vir a qualquer hora, não tinham condições sociais de fazê-lo. Ou seja, continuavam presos às amarras sociais. Por isso mesmo a arte da personagem Mundo denunciava imagem que conflitava com as pinturas de Arana. Mundo não conseguia imprimir em sua arte uma paisagem verde e exuberante quando a realidade social dos sujeitos gerava um cenário de pobreza e degradação. Para Mundo era necessário transformar a linguagem/ imagem num instrumento que revelasse essa nova paisagem escondida por traz da roupagem da modernização, era necessário, [...] inventar novos monstros e enterrar de uma vez por todas a nossa natureza. Elogiou os dois artistas que conheceu no Rio.

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Um mora em Nova York, outro em Berlim. [...] Fez pouco dos meus quadros e objetos, e me chamou de pintorzinho da floresta. Não admiti. Um fedelho pôr o dedo no meu nariz! (HATOUM, 2005, p. 170).

Ao inventar novos monstros, além de retratar imagens intoleráveis aos olhos dos governantes, Mundo também traz à tona as mazelas escondidas por trás das paisagens, em regra, usadas para maquiar as condições sociais de boa parte das comunidades amazônicas. São imagens que resvalam na superfície da história oficial e que, por isso mesmo, trazem retratos como os da sujeira, abandono dos bairros pobres da cidade, ou ainda da prostituição adulta e infantil, são descrições nas quais a arte funciona como imagem que retrata a gravidade dessa situação. De acordo com Manguel (2001), para que certa imagem seja convertida em uma obra de arte, o espectador deve ser levado a fazer uma leitura iluminada das cenas elaboradas a partir de experiências adquiridas no mundo real e transpostas do plano pictórico. O que, articulando as imagens discursivas presentes em CN, equivale a entender que essa transposição se dá a partir da representação das imagens reais para o plano da ficção. Ainda sobre a imagem, Neiva (2006) enfatiza que: A percepção do mundo visível depende de um processo seletivo e racional. A representação é construída de tal forma que, quando percebo, represento imediatamente. A imagem nos parece autônoma porque se confunde com o real e não há nada ao qual se subordine (2006, p. 14).

Em CN essa percepção é refletida em imagens discursivas, como as referentes à prostituição que ocorre na região. Se no primeiro plano vimos as imagens de exploração e marginalização do sujeito, diante do processo de implantação dessa modernidade na Amazônia, é preciso destacar nele uma outra consequência. Ou seja, o desenho das condições sociais das meninas interioranas que, atraídas pelo sonho de melhorias nos grandes centros, são transformadas em objetos sexuais “invisíveis” aos olhos dos

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governantes que, aliás, são os que também fazem uso desses “objetos” humanos. Vejamos uma imagem mais aproximada de como se dá e por quem se dá essa exploração. Observemos o fragmento a seguir: Um motor em pane, doutor Jano, vamos ajudar’. O patrão não queria, Macau insistiu: o socorro é obrigatório... [...] ‘Gente graúda. O dono do barco é o chefão dos comerciantes, seu amigo [...] Era um barco cheio de meninas e com uns três ou quatro homens. Mundo reconheceu a voz: coronel Aquiles Zanda...[...] ‘Nossa máquina enguiçou’, disse Zanda. Pula para cá, Jano. Traz teu filho. Vamos brincar um pouco.’[...] viu o filho pular para o convés, se juntar aos homens, beber com eles, mexer com as meninas. A que estava perto de Mundo vestia short e camiseta; morena e baixinha ria de graça que nem criança; parecia menos jovem que as outras, tinha peitos crescidos... (HATOUM, 2005, p. 65-66).

Nessa imagem, Hatoum (2005) resgata a condição social de muitas outras meninas, centenas delas que, na ilusão de uma vida mais “amena”, são atraídas pelo sonho de melhorias nos grandes centros. Elas deixam suas famílias, seus lugares de origem, sua cultura, em busca de um sonho capital, mas acabam sendo duplamente exploradas pelos homens, pela sociedade e pelos impactos da opressão neocolonialista, refletida em consequências, como as mostradas acima. Elas são iludidas a pensar que estar na cidade é melhor, mas sem oportunidades de trabalho e condições de sobrevivência, acabam na miséria, “optando” pela prostituição. Nessa imagem discursiva, vemos ainda que essas meninas são exploradas por quase todas as classes sociais, cafetinas, militares, estrangeiros, pelo sistema e pelos homens, enfim são “guerreiras que dão um duro danado pra encher o bucho” (HATOUM, 2005, p. 271), prostituindo-se em qualquer hora e lugar: Perto do palácio da justiça meninas de short e camiseta saíram da sombra dos oitizeiros. Lábios vermelhos brilhavam, depois sumiam. Viram o carro preto e avançaram, juntas, para rua de pedras. Jano olhou para mim e riu secamente (2005, p. 34).

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Os efeitos desse “progresso”, que marginaliza, oprime e devasta, como vimos, estão presentes até mesmo no centro da cidade. Se antes bordéis e prostitutas eram encontrados às margens da cidade ilhada, com os empreendimentos capitalistas, a prostituição alcançou até o centro de Manaus. Como se pode depreender, a tão sonhada “modernidade” expandiu ainda mais o retrato das ruínas sociais e proporcionou uma transformação “paisagística” de grande notoriedade. Não obstante, essa imagem de uso e exploração do sexo feminino, fruto também desse progresso às avessas, é o retrato da opressão a que vem sendo submetido o sexo feminino desde o período colonial. Sobre o assunto, Thomas Bonnici (2009) afirma que, nas sociedades pós-coloniais, a mulher foi duplamente colonizada. A ela lhe foi imposta uma condição de inferioridade e subserviência ao homem. Essa condição que, no contexto da obra, se reflete nas cenas de escravidão, prostituição e transformação da mulher em objeto sexual de uso particular e coletivo. Sobre o assunto, Bonnici observa que: Há estreita relação entre os estudos pós-coloniais e o feminismo. [...] na história do Brasil, a mulher sempre foi relegada ao serviço do homem, ao silêncio, à dupla escravidão, à prostituição ou a objeto sexual. [...] Efetivamente, a dupla colonização causou a objetificação da mulher pela problemática da classe e da raça dos contos de fada europeus e da legislação falocêntrica apoiada por potências ocidentais (2009, p. 266-267).

De modo que essa postura etnocêntrica também é desvelada nas imagens de exploração presentes na obra de Hatoum (2005). Essas imagens, junto às demais, marcam a representação ficcional dessas ruínas sociais, geográficas e culturais no período que antecedeu a implantação da Zona Franca manauara. Por trás do ímpeto de narrar, Hatoum (2005) contrapõe as duas faces de uma mesma região, de modo a se perceber que as representações, assim como os sujeitos amazônicos, podem e devem ser realocados de posições marginais e postos junto às demais culturas. Ainda em relação ao contexto da modernidade, em Culturas 128


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Híbridas, Nestor Garcia Canclini (2006) expõe importantes reflexões acerca da falta de políticas culturais voltadas para as especificidades de cada lugar. Segundo o crítico, na América Latina: A modernidade é vista então como uma máscara. Um simulacro urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais [...] As oligarquias liberais do final do século XIX e início do XX teriam feito de conta que constituíram Estados, mas apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento subordinado e inconsistente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão em mil revoltas e na migração que ‘transtorna’ as cidades (CANCLINI, 2006, p. 25).

Articulando os dizeres de Canclini (2006) ao processo de modernização das Amazônias manauara em CN, veem-se esses efeitos refletidos nas faces por trás das máscaras de desenvolvimento e progresso. Em razão dessas condições reais, Hatoum (2005) opta por resgatar, através de sua ficção, um imaginário marginal e até certo ponto subversivo, pois as imagens criadas em função das atuações de Mundo e Arana tornam-se uma forma de contestação e denúncia ante um invólucro de apagamento e ocultação que há décadas paira sobre as populações amazônicas, até porque, como salienta Gilbert Durand: [...] uma sociedade não é uma fotografia imobilizada e instantânea de um certo estado social. Como todo ser vivo ou todo ser pensante, ela <<dura>>, inclui-se numa duração concreta que ela segrega. [...], As <<margens>> [dessas imagens] são uma espécie de reserva cultural e social, enquanto as transformações do tempo desgastam. Provocam fissuras na sociedade dominante (1996, p. 175-6).

Nesse sentido, “a representação e captação de uma imagem expressa a forma como determinado grupo social vê e explica um elemento de sua sociedade” (SILVA; SILVA, 2010, p. 214), de modo que toda “imagem apresenta-se como um momento de globalidade do envolvimen129


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to do indivíduo com seu mundo imediato e seu mundo distante passível de produzir a união entre a sensibilidade e o entendimento” (COELHO, 1999, p. 206). Nesse sentido, as imagens/linguagens trazidas no fazer artístico de Hatoum e Llosa “se apropriam [dessas] unidades de imagens ditas locais, encontram-se todas aquelas derivadas de uma inserção física concreta do homem num mundo historicamente determinado” (COELHO, 1999, p. 213), e instituem personagens capazes de trazê-las para o primeiro plano de visão. Seguindo esse enfoque de raciocínio e compreensão, percebemos que o trabalho de seleção e reconhecimento de qualquer imagem apoia-se quase que exclusivamente na memória, pois ela se vale de uma série de arranjos e formas, os quais nos fazem estabelecer um diálogo entre as imagens idealizadas e as que já temos, de forma a fazer-nos sentir a sensação específica de já conhecermos uma determinada retratação, além de nos capacitar a confrontá-las com os valores envolvidos nessa relação. Nesse caminho, parece-nos oportuno destacar novamente que a construção dessas personagens nas obras aqui trazidas possibilita a quebra do silenciamento imposto aos sujeitos amazônicos que, impedidos de se pronunciarem sobre os horrores ocorridos no decorrer de um processo de modernidade “programada”, se viram obrigados a calar. Especialmente, porque nas trajetórias das personagens presentes nessas duas obras, vê-se o dinamismo gestado a partir do contato entre sujeitos que empreendem o que Édouard Glissant (2011) nominou de Poética da Relação. Em meio a essa poética, o pensamento teórico glissantiano escamoteia as identidades a partir das relações gestadas em circunstâncias como a errância e os deslocamentos dos sujeitos. Tais relações, longe de significarem rupturas, promovem novas poéticas, pois essas identidades, na realidade, são tributárias do modo como cada sociedade participa das relações globais. É bom lembrar que, segundo Glissant, a identidade rizomática condena o imigrante a realizar exercícios culturais contínuos impossíveis de serem pensados sob a lógica da fixidez. Para o crítico, o exílio se torna proveitoso quando é vivido, não como expansão de território, mas como uma procura 130


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do outro. O “imaginário da totalidade permite esses desvios, que afastam o totalitarismo” (GLISSANT, 2011, p. 27). A verbalização das poéticas glissantianas no terreno das obras de CN e El Hablador se dá a partir dos deslocamentos físicos e simbólicos das personagens, por entre línguas, geografias e culturas fazendo brotar relações que aliam descoberta e redescoberta de paisagens, espaços, culturas e sujeitos pela pan-amazônia. Em CN, como vimos, esse deslocamento se dá a partir da trajetória artística e interacional da personagem Mundo. Um ser ficcional que deambula na captura dos outros espaços e sujeitos que possam ajudá-lo na construção artística. Mundo é o cidadão do vasto mundo, no qual os espaços identitários são heterogêneos e as alteridades são consubstanciadas nas relações.

3. Alteridade e identidade na obra de Llosa No mesmo âmbito de debate, Llosa (2010) incorpora no enredo de El Hablador espaços geográficos heterogêneos, consubstanciados entre alteridade e identidade que incorporam à narrativa a presença de povos ainda mais marginalizados no conjunto das populações pan-amazônicas, os indígenas peruanos da etnia machiguenga. Esses pequenos grupos – assim dizemos porque os machiguengas, diferentemente de outras tribos amazônicas, vivem em pequenas comunidades formadas por famílias nômades que se deslocam sempre em busca de lugares onde possam encontrar melhores condições de sobrevivência – pertencem à família linguística dos arawakas. Eles possuem histórias forjadas a partir das travessias culturais advindas de hábitos bastante singulares na trajetória das comunidades indígenas amazônicas. Ao descrever o processo de deslocamento desse povo, Llosa (2010) insere ao enredo de El Hablador culturas que se desdobram e se interagem num jogo de duplos, fazendo surgir figuras como a do Hablador Machiguenga, que se assemelha à função do escritor na sociedade moderna, e a do próprio Mascarita, que desdobra sua personalidade em várias faces.

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Diferentemente da maioria das tribos da região, estas, além de serem perseguidas e exploradas por caucheiros, madeireiros e homens brancos, de um modo geral, sofrem ainda perseguições dos próprios indígenas pertencentes a outras etnias. Atualmente, os machiguengas encontram-se espalhados no sudeste peruano, mais precisamente, nos departamentos de Cuzco e Madre de Dios, geralmente, dispostos às proximidades dos rios Urubamba e seus afluentes, Picha, Timpiá, Manu e Camisea37. As práticas sociais, as formas de organização grupal, o estilo nômade, bem como a cultura machiguenga, de um modo geral, motivaram Llosa a incorporar no centro de sua narrativa imagens verossímeis das condições dos povos indígenas peruanos. Especialmente porque essa etnia reflete bem o retrato das condições sociais a que ainda estão submetidas a quase totalidade das populações indígenas peruanas. Ou seja, o isolamento, a exclusão e a marginalização frente ao Peru moderno. Essas imagens/linguagens incorporam à narrativa retratos expressionistas das dicotomias existentes no Peru em torno da preservação/inclusão dessas comunidades nas políticas desenvolvimentistas do território amazônico peruano. Aqui a ficção dá lugar à representação de um mundo que, conforme esclarece Mariátegui (2007), embora tenha libertado-se territorialmente do domínio colonial dos espanhóis, continua preso a uma forma de colonização tão eficaz quanto a física, ou seja, a ideológica. Somam-se a essas condições políticas governamentais nada favoráveis à mudança desse quadro que, segundo Mariátegui (1958), continuam motivando a implantação de estruturas sociais e ideológicas diretamente arraigadas aos ideais dos primeiros colonizadores, de modo tal que, mesmo nos dias atuais, as classes dominantes ainda reproduzem condutas muito parecidas às dos carrascos espanhóis se querendo superiores ante as culturas indígenas. Não obstante o distanciamento físico, social e cultural implantado desde a colonização, durante o período das ditaduras militares Informações coletadas no site http://www.peruecologico.com.pe/etnias_machiguenga.htm. 37

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peruanas essa situação se agravou ainda mais, fazendo com que as comunidades indígenas já estigmatizadas fossem afastadas de uma possível incorporação diante das demais áreas do país. Pois, se para o Peru “visível”, as ditaduras militares trouxeram efeitos nefastos, de incertezas e opressões; para essas populações, houve a certeza de serem novamente escravizadas e banidas. Em síntese, a independência política do Peru quase nenhum benefício trouxe para as comunidades indígenas de um modo geral, pois elas continuaram sendo exploradas, marginalizadas e duplamente banidas. Como bem esclarece Mariátegui: [...] en el Perú no hemos tenido en cien años de república, una verdadera clase burguesa, una verdadera clase capitalista. La antigua clase feudal – camuflada o disfrazada de burguesía republicana – ha conservado sus posiciones.[...] España nos trajo el Medioevo: inquisición, feudalidad, etc. Nos trajo luego, la Contrarreforma: espíritu reaccionario, método jesuítico, casuísmo escolástico. De la mayor parte de estas cosas nos hemos ido liberando, penosamente, mediante la asimilación de la cultura occidental, obtenida a veces a través de la propria España. Pero de su cimiento económico, arraigado en los intereses de una clase cuya hegemonía no canceló la revolución de la independencia, no nos hemos liberado todavía. Los raigones de la feudalidad están intactos. Su subsistencia es responsable, por ejemplo, del retardamiento de nuestro desarrollo capitalista (2007, p. 40-2).

Em que pese a esses efeitos, após quase um século da independência formal e política, essas diferenças socioculturais continuam promovendo um distanciamento cada vez mais visível, sobretudo e especialmente porque, nas últimas décadas, as populações indígenas estão requerendo seus lugares de direito nas políticas públicas de um país que também é o seu. É desse cenário de embates políticos, econômicos e culturais, que Llosa (2010) incorpora em seu fazer ficcional as dicotomias presentes nesse Peru que se quer uno, mas que se encontra dividido ante a aceitação das diferenças culturais. Nesse sentido, parece-nos que, a palavra mais adequada para traduzir a essência dessa obra é paradoxo, considerando que boa parte dos estudos realizados sobre 133


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essa narrativa se instauram dentro da tradição crítica que tenta resolvê-la. Pode-se notar que Llosa (2010) propõe exatamente a expressão do teor paradoxal que, atualmente, circula nas várias camadas sociais, sem a preocupação de resolvê-lo. Ele expõe esse paradoxo e deixa o leitor livre para fazer suas próprias conclusões. Mas, o que é um paradoxo? Como podemos conceituá-lo nesse contexto global? De acordo com Cristina Costa e João Carlos Agostine, no livro Global e Local no Mundo Contemporâneo, pode-se afirmar que: Existem diferentes sentidos para a palavra paradoxo. Podemos entendê-la como a oposição irreversível de forças e tendências observáveis na realidade, ou, aproximando-nos do campo da lógica, como uma argumentação que nos leva fatalmente a conclusões contraditórias. Também é possível utilizá-la para nos referirmos a argumentos que, parecendo verdadeiros e razoáveis, se mostram falsos quando tentamos submetê-los à experiência, ou, ao contrário, a afirmações que, parecendo inicialmente absurdas, se mostram, na prática, absolutamente apropriadas. [...] Qualquer que seja, no entanto, o sentido que se dê a essa palavra, o paradoxo parece expressar da forma mais adequada possível a nossa realidade, na atual fase de nossa história em que transformações radicais nos obrigam a rever crenças, posições e determinismos (In: DUARTE, 1998, p. 5).

O procedimento estrutural de El Hablador, bem como em quaisquer obras que apresentem questões paradoxais, expõe exatamente isso: a necessidade de revisão das verdades, bem como de seu questionamento, ou seja, longe de tentar julgar ou mesmo resolver essa problemática social, a ficção de Llosa (2010) apenas expõe a representação das ambivalências que compõem a sociedade peruana. Ela coloca em cena personagens que incorporam deslocamentos físicos e imaginários, pensados para capturar os sujeitos a partir de um presente aparentemente imóvel e, assim, dá visibilidade aos extratos que compõem a sociedade peruana. Não por acaso, a obra incorpora vozes, pontos de vista e opiniões que embaraçam o leitor e o obrigam a entrar em contato com questões polêmicas. Contudo, cabe a ele formular suas próprias 134


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conclusões a respeito desse Peru repleto de incertezas, ambiguidades e contradições. Outro dado importante a mencionar é a acuidade do autor junto à temática indígena: diferentemente de outros escritores latino-americanos que tentaram incorporar a presença indígena em suas narrativas38, Llosa (2010) se distancia dessas categorias essencialistas de representação porque não apenas descreve o índio, mas mostra de fato quem são e como são minimamente, usando representações arraigadas nas heterogeneidades que individualizam os machiguengas dos demais índios peruanos. Assim, como que guiado pelos longínquos ecos da iconografia colonial, Llosa (2010) se apropria de imagens pictóricas para fabular sua narrativa a partir de recursos imagéticos que revelam outras Amazônias perdidas no desconhecimento de muitos de nós. Tudo começa quando o narrador, a quem nominamos de narrador transcultural – exatamente porque nele vemos a representação de um personagem cosmopolita que, apesar de falar de dentro da cultura ocidental espanhola, transita por muitos espaços sem que a eles se prenda –, acaba fazendo de um passeio, no qual pretendia esquecer-se do Peru e dos peruanos, um instrumento para resgatar da invisibilidade as populações indígenas desse país. Passeando nas ruas da belíssima Florença de Dante e Maquiavel, esse narrador é subitamente atraído por uma exposição de fotos postas numa pequena galeria. Ao olhá-las, como que arrebatado pela nostalgia do país de origem, dali mesmo ele inicia um trabalho primoroso de expor as contradições entre as alteridades peruanas. Trata-se de uma experiência motivada pelo uso de uma memória que funciona como mecanismo para o narrador pôr em destaque a representação ficcional identitária. Assim, Llosa (2010) expõe em sua ficção a constatação de que há no país uma dupla perspectiva valorativa da cultura indígena, a saber, uma intra e outra supranacional. Ao posicionar um de seus narradores a milhares de quilômetros do território peruano, o escriNo caso específico da literatura brasileira, podemos mencionar José de Alencar, Santa Rita Durão, entre outros, que tentaram realizar essa incorporação. 38

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tor atesta como é possível pelos bosques da memória romper com as barreiras geográficas, culturais e históricas existentes entre dois espaços aparentemente antitéticos. A primeira imagem desse paradoxo surge quando o narrador fita o olhar numa sequência de fotos expostas numa pequena galeria florentina; entre as fotos, uma chama especialmente sua atenção. La fotografía que esperaba desde que entré a la galería, apareció entre las últimas. Al primer golpe de vista se advertía que aquella comunidad de hombres y mujeres sentados en círculo, a la manera amazónica – parecida a la oriental: las piernas en cruz, flexionadas horizontalmente, el tronco muy erguido –, y bañados por una luz que comenzaba a ceder, de crepúsculo tornándose noche, estaba hipnoticamente concentrada. Su inmovilidad era absoluta. Todas las caras se orientaban, como los rádios de una circunferencia, hacia el punto central, una silueta masculina que, de pie en el corazón de la ronda de machiguengas imantados por ella, hablaba, moviendo los brazos. Sentí frió en la espalda. [...] Todavía alcancé a echar una última ojeada a la fotografía. Sí sin la menor duda Un hablador (LLOSA, 2010, p. 16-17).

Ao localizar essa imagem, como que envolto por uma bruma de lembranças e emoções intensas, o narrador mergulha nas lembranças que guarda a respeito das comunidades indígenas peruanas. Trata-se de lembranças fortes, guardadas desde os tempos em que tinha controversas discussões com Saul Zuratas, um amigo dos tempos de faculdade, que defendia a cultura e as comunidades indígenas peruanas, especialmente, a machiguenga. Com essa imagem, Llosa (2010) recupera na memória desse narrador outras imagens que ajudam a tirar da invisibilidade e do esquecimento os indígenas do Peru amazônico. Mas antes de prosseguir-mos, vejamos novamente a imagem pictórica feita a partir da imagem discursiva fornecida pela obra. Novamente, esclarecemos que a presente representação artística é apenas uma das muitas possibilidades de leituras visuais que se pode obter lendo as imagens discursivas contidas no El Hablador:

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AZEVEDO, Alex José Rodrigues de. Sem Título – 201339 Grafite, 21 x 29,7cm

Na imagem, vemos que o artista reproduz visualmente a descrição de uma foto, tirada num momento em que o fotógrafo condensou uma cena na qual essa comunidade de índios sentados em círculo olha para um homem no centro, quase que hipnotizada por sua voz. Do centro do círculo parece emanar harmonia, luz, encantamento. Esse homem, dentro da cultura dessa etnia, realiza a importante tarefa de manter, entre as tribos nômades que a compõem, a conservação de uma tradição milenar desse povo, ou seja, contar histórias. Assim, junto à bela imagem que esta fotografia evoca, Llosa (2010) insere também outra: a das ambiguidades em torno da presença indígena no Peru. Com efeito, é a partir desse retrato que, aliás se converte na própria obra, o autor consegue verbalizar uma imagem bastante amEssa imagem também é uma das muitas interpretações que podem ser feitas a partir da leitura do romance. Por isso mesmo, enfatizamos que ela foi reproduzida sob encomenda, especialmente para este trabalho, e, portanto, não faz parte da obra El Hablador. 39

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pla do que é o Peru do século XX, ou seja, repleto de ambivalências, ambiguidades e contradições étnicas. Esse retrato é incorporado na obra, sobretudo a partir da reprodução das vozes dissonantes quanto à preservação ou incorporação da cultura indígena. De um lado, as vozes daqueles que respeitam e tentam compreender as diferenças; do outro, as dos que adotam concepções fortemente etnocêntricas40 sobre esses povos. Justapostas, essas vozes ajudam a revelar as nuances de um território também perdido no decorrer da história dessas outras Amazônias. Por isso mesmo, as vozes dos narradores llosianos reproduzem ambivalências tão marcantes no imaginário do leitor. No enredo, essas vozes aparecem marcadas principalmente pelas atuações do narrador transcultural que, como já dissemos anteriormente, é indiscutivelmente um representante da cultura letrada ocidentalizada, portanto, de dentro dela expõe sua visão. Esse narrador é Mascarita, descendente de judeu com uma crioula peruana, que incorpora e defende as práticas culturais da etnia machiguenga. Contudo, não é demais lembrar, ambos advêm da mesma formação cultural, embora compartilhem concepções inicialmente diferenciadas no tocante às populações indígenas amazônicas, porém, ao final, essas concepções se equivalem. Trata-se da representação de um país que insiste em cegar para a existência de um mundo, para usar a feliz expressão de Canclini (2009), “diferente, desigual e desconectado” da modernidade, em prol da minoria dominante – o mundo indígena machiguenga –, ainda invisível às vistas de boa parte dessa sociedade. Tomando de empréstimo os dizeres de Canclini no tocante às diferenças surgidas a partir de modelos econômicos globais, pode-se destacar o seguinte fragmento, em que este pensador afirma que: Para as antropologias da diferença, cultura é pertencimento, e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fazendo parte das De acordo com Silva & Silva (2010), o etnocentrismo pode ser definido como uma visão de mundo fundamentada rigidamente nos valores e modelos de uma dada cultura; por ele, o indivíduo julga e atribui valor à cultura do outro a partir de sua própria cultura. 40

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elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual desses recursos econômicos e educativos. [...] Para definir cada um desses três termos, é necessário pensar os modos pelos quais se complementam e se desencontram. (2009, p.15-16).

Retomando as palavras de Canclini (2009), pensar esses modos pelos quais as culturas se desencontram, representa considerar também as marcas dessa globalidade fissurada, onde os interesses capitais de uma economia que se quer global, sobrepujam e sufocam as diferenças. Não por acaso, Llosa (2010) posiciona seus narradores em lócus41 diretamente opostos aos valores sociais vigentes, para expor através do mundo romanesco essas diferenças advindas da implantação dessa modernidade fraturada. Os narradores llosianos percorrem espaços desde os quais se pode visualizar um percurso repleto das ambivalências que afloram no dia a dia dos peruanos. No fragmento a seguir essa afirmação é claramente constatável: A veces, para ver hasta dónde podía llevarlo «el tema», yo lo provocaba.[a Mascarita] ¿Qué proponía, a fin de cuentas? ¿Que, para no alterar los modos de vida y las creencias de unas tribus que vivían, muchas de ellas, en la Edad de Piedra, se abstuviera el resto del Perú de explotar la Amazonía? ¿Deberían dieciséis millones de peruanos renunciar a los recursos naturales de tres cuartas partes de su território para que los sesenta u ochenta mil indígenas amazónicos siguieran flechándose tranquilamente entre ellos, reduciendo cabezas y adorando al boa constrictor? ¿Debíamos ignorar las posibilidades agrícolas, ganaderas y comerciales de la región para que los etnólogos del mundo se deleitaran estudiando em vivo el potlach, las relaciones de parentesco, los ritos de la pubertad, del matrimonio, de la muerte, que aquellas curiosidades humanas venían practicando, casi sin evolución, desde hacía cientos de años? No, Mascarita, el país tenía que desarrollarse. ¿No había dicho Marx que el progreso vendría chorreando sangre? Por triste que fuera, había que aceptarlo. No teníamos alternativa. Si el precio del desarrollo y la industrialización, para los dieciséis millones de Lembremos que os dois narradores llosianos transitam por espaços culturais opostos, ou seja, cultura letrada x cultura oral, cidade x floresta etc. 41

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peruanos, era que esos pocos millares de calatos tuvieran que cortarse el pelo, lavarse los tatuajes y volverse mestizos – o, para usar la más odiada palabra del etnólogo: aculturarse –, pues, qué remedio (LLOSA, 2010, p. 31-32)

O diálogo acima transcrito entre o narrador transcultural e Mascarita está repleto de vozes sociais que demonstram o teor das opiniões envoltas nessa questão. Essas vozes, que mimetizam as da sociedade peruana em geral, vão acompanhadas de uma série de perguntas. Posicionado do lado dos peruanos ocidentalizados, o narrador transcultural representa momentaneamente as vozes de muitos peruanos que possuem concepções fechadas no tocante à incorporação das culturas indígenas. O narrador transcultural inicia suas indagações fazendo as seguintes perguntas: por que deveriam 16 milhões de peruanos renunciar aos recursos naturais e às potencialidades agrícolas de uma área que mede aproximadamente a quarta parte do território peruano em prol de 60 ou 80 mil indígenas primitivos que ainda conservam práticas arcaicas em função de uma sobrevivência num sistema baseado na idade da pedra? A resposta a essa e a muitos outros questionamentos em torno do assunto revela antes de tudo o etnocentrismo que ainda vige neste país. Considerando que mais da metade da população peruana é de origem indígena, esse país não deveria ser assim. É bom lembrar que essa oposição da sociedade letrada diante dos costumes indígenas no Peru dá-se em função principalmente de valores capitalistas que, como sabemos, advogam visões no mínimo equivocadas da modernidade, na qual se valora uma cultura a partir da porcentagem de assimilação da cultura ocidental. O que vale é o “progresso” capitalista, mesmo que ele venha jorrando sangue, como disse o narrador, e extermine as “curiosidades humanas, estagnadas no tempo” (2010, p. 23). A propósito dos interesses envoltos nessa aura capitalista, Édouard Glissant escreve o seguinte: Muito simplesmente, duas condições estão aqui reunidas: tratase de uma cultura que se projetou no mundo (visando dominálo), trata-se de uma língua que foi considerada universal (visando

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legitimar a tentativa de dominação). As duas intenções, não desprovidas de uma dose evidente de generosidade, culminarão no pensamento de um Império. Nestas condições, o pensamento poético está em alerta: sob o fantasma da dominação, procurou o mundo realmente vivível (2011, p. 35).

Verbalizando as palavras de Glissant (2011) ao contexto da narrativa de Llosa, compreende-se que esses adjetivos colocados na memória desse narrador reproduzem ecos das vozes de muitos peruanos inseridos numa sociedade capitalista e intolerante, que não encontrou ainda formas harmônicas de conviver com o outro. Pois essa cultura projetada, para usar novamente as palavras de Glissant (2011), quer-se homogênea em função de um projeto maior, que é a implantação de seu próprio modelo econômico, social e cultural, e, nesse modelo, não há lugar para culturas diferentes. Em um desses modos de atuação das políticas econômicas está a degradação das culturas orais que, conforme sabemos, se constitui na maioria das vezes como a base das culturas indígenas. Mas o que é a voz? Por que ela é tão importante na propagação desses valores? Por que as culturas baseadas na oralidade são tão inferiorizadas? Numa entrevista dada a André Beaudet na Rádio Canadá, Paul Zumthor, quando indagado sobre a importância da voz nas culturas de um modo geral, dá alguns nortes que nos servirão sobremaneira para responder a essas indagações. Deixemos que fale o pensador: [...] dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de arte (ZUMTHOR, 2005, p. 61).

Nas palavras de Zumthor, chama a atenção o conceito de centralidade que foi dado à voz e o poder que dela emana. Segundo Zumthor (2005), do conjunto de valores manuseados no uso da voz, podemos destacar poderes incríveis dentro das culturas, pois a voz é capaz de criar inúmeras formas de arte e consequentemente de culturas, o que explica essa demonização por parte do Ocidente às

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culturas dos povos que se baseiam em práticas orais. Cabe salientar, portanto, que extinguir ou inferiorizar as culturas que se baseiam na oralidade não é apenas ingenuamente modernizá-las, mas, sobretudo, dominá-las. Nesse sentido, compreendemos que as vozes reproduzidas na obra de Llosa (2010) são importantes para compreendermos de que maneira os valores de uma cultura são capazes de fundar e hierarquizar outras. Desse modo, acreditamos que Llosa reproduz essas vozes na memória de seus narradores também para mostrar as nuances por trás da questão da preservação do uso da oralidade entre os indígenas do país. Em nossa sociedade, como se sabe, as vozes da sociedade dominante estão voltadas para a difusão de um modelo raiz, no qual se valora a escrita baseada na cultura grega. Outro dado relevante é que a maioria dos escritos indígenas tampouco é considerada como tal; ao não se basearem nas normas da cultura letrada dominante, eles também não “podem” ser usados para integrar o grupo a esse sistema global. Ainda no tocante à voz, Zumthor esclarece que: [...] a voz ultrapassa a língua; é mais ampla do que ela, mais rica. É evidente, qualquer um constata em sua prática pessoal que, em alcance de registro, em envergadura sonora, a voz ultrapassa em muito a gama extremamente estreita de efeitos gráficos que a língua utiliza. Assim, a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca como uma presença (2005, p. 63).

Essa presença de que fala Zumthor, na obra em destaque, pode ser constatada a partir do confronto entre os ecos das vozes daqueles que defendem o capitalismo e as daqueles que decidiram trilhar outros caminhos, em prol da aceitação diante da diferença. Essa multiplicidade de vozes está representada em El Hablador, através de seus dois narradores. Se, para o narrador transcultural, o progresso deveria chegar ainda que fosse jorrando sangue, para Mascarita, não; era preciso levar em conta outras questões, como as postas logo a seguir;

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–¿Nos dan derecho nuestros autos, cañones, aviones y Coca– Colas a liquidarlos porque ellos no tienen nada de eso? ¿O tú crees en lo de «civilizar a los chunchos», compadre? ¿Cómo? ¿Metiéndolos de soldados? ¿Poniéndolos a trabajar en las chacras, de esclavos de los criollos tipo Fidel Pereira? ¿Obligándolos a cambiar de lengua, de religión, de costumbres, como quieren los misioneros? ¿Qué se gana con eso? Que los puedan explotar mejor, nada más. Que se conviertan en zombies, en las caricaturas de hombres que son los indígenas semi aculturados de las calles de Lima (LLOSA, 2010, p. 37).

Nessa fala de Mascarita, Llosa (2010) incorpora uma belíssima reflexão. Nossas tecnologias, formação cultural e sistemas econômicos, usados no decorrer da história para maltratar, subjugar e exterminar as culturas daqueles que não se assemelhavam às nossas, realmente nos dão o direito de continuar exterminando sociedades e práticas cultuais diferentes das nossas? Não por acaso, as perguntas de Mascarita vêm acompanhadas de respostas silenciosas e, até diríamos, enfáticas quanto ao alto grau de colonização de nossa mente. Uma colonização, aliás, sutil e enganosa, que se revitaliza em nossas práticas cotidianas, diga-se, com imensa naturalidade. Sobre o assunto Mary Pratt (1999a), em Literatura e História, registra a seguinte reflexão: A descolonização do conhecimento inclui o dever de compreender as maneiras pelas quais o Ocidente (a) constrói seu conhecimento do mundo em linha com suas ambições econômicas e políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos de outros e as capacidades produtoras de conhecimento de outros. Ambos os mecanismos foram de máxima importância na produção de sujeitos do imperialismo e colonialismo (1999a, p. 21-22).

Com efeito, nas palavras da pesquisadora há informações importantes para nossa reflexão. Em primeiro lugar, no tocante à construção do conhecimento, percebemos que, de um modo geral no enredo de El Hablador, o paradoxo gira em torno principalmente dessa questão, pois a maioria dos membros daquela sociedade está

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ancorada em modelos econômicos que subjugam as demais formas de conhecimento. Por isso mesmo, os indígenas daquele país são considerados pela maioria dos peruanos como empecilho para o progresso. Não por acaso, o narrador Mascarita se posiciona do lado dos que refletem sobre a construção de um conhecimento cultural. Entre os indígenas equivale, antes de tudo, a dizer que eles não têm essa reflexão; ou em caso contrário, que eles não servem aos ideais desse sistema. Quanto às perguntas feitas pelo narrador Mascarita sobre a questão indígena, o silêncio dado como resposta também inclui outras vozes que, no dizer de Orlandi (2007), movimentam os sentidos. Conforme a pensadora: Ele [o silêncio] é sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, o que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa (ORLANDI, 2007, p. 24).

Articulando as palavras de Orlandi (2007) e fazendo-as dialogar com o enredo, podemos compreender que o sentido do silêncio precedido das perguntas de Mascarita funciona como resposta para explicitar o porquê dos peruanos, bem como o porquê de muitos de nós ainda conservarem esse tipo de pensamento das culturas diferentes das nossas, ou seja, ter a mente colonizada. Essa forma de resposta, ou seja, o silêncio, dá à narrativa um dinamismo que suscita no leitor muitos outros sentidos. Ao não responder a essas questões verbalmente, o narrador possibilita ao leitor ouvir muitas outras opiniões. Assim pensando, incorporá-los não é apenas jogá-los no sistema capitalista e forçá-los a adotar nossas concepções e valores, pois existem outras questões por trás. Mascarita apresenta uma explicação um tanto apurada para justificar essa separação. Segundo ele, obrigá-los a adotar nossa língua, cultura ou religião não significa incorporá-los aos valores capitalistas, mas na maioria das vezes é uma forma de exterminá-los física, cultural e moralmente. Para Mas144


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carita, nossa força cultural não nos dá direito de subjugar os diferentes. Pois, em geral, ocorre essa imposição, os sujeitos que pertencem a outras culturas são obrigados a viver em condições como a do indígena andino posto no fragmento a seguir: El serranito que echaba baldazos de aserrin en El Palermo tenia esos zapatos – una suela y dos tiras de jebe de llanta – que fabrican los ambulantes y sujetaba su pantalón remendado con un pedazo de cordel. Era un nino con cara de viejo, de pelos tiesos, unas negras y una costra rojiza en la nariz. Un zombie? Una caricatura? Hubiera sido mejor para el permanecer en su aldea de los Andes, vistiendo chullo, ojotas y poncho y no aprender nunca el espanol? (LLOSA, 2010, p. 37).

Nessa imagem discursiva, em que um indígena aparece trabalhando num bar no centro de Lima, a fisionomia que é lida pelo narrador dá conta de descrevê-lo como um velho. O sofrimento e as condições econômicas dessa criança, conforme o relato do narrador, fazem com que se pareça com um zumbi com traços de velho; ela aparece limpando o cuspe dos bêbados que frequentam o bar limenho. A leitura que o narrador faz do indígena, quanto a suas vestimentas, o tipo de emprego e as características físicas, não deixam dúvidas de qual seja o lugar delegado a ele nesse processo de “transformação/inserção” das culturas indígenas na modernização. Como se percebe, a sociedade que advoga essa integração, na maioria das vezes, é a mesma que nega aos indígenas condições sociais para alcançá-la. Esse indígena descrito pelo narrador como sendo “criança com cara de velho”, sem nome e sem rosto, perdeu não apenas sua dignidade, como inclusive seus traços de pertença coletiva. Ele expressa na face o sofrimento físico, social e moral experimentado por aqueles desconectados desse capitalismo às avessas. Essa imagem recupera e denuncia uma imagem maior, representativa de outras centenas de milhares de indígenas que, como este, levaram expresso no rosto e no corpo o sofrimento de quem presenciou na pele os horrores da opressão. Para esse indígena, abdicar de sua cultura e tentar incorporar-se às práticas ocidentais dos peruanos espanholizados, não lhe garantiu uma vida melhor. Como 145


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tantas outras, esta “criança com cara de velho”, sem nome, também é o retrato panorâmico do sofrimento expresso nas centenas de rostos dos que deixaram suas famílias, costumes e tradições, para adaptar-se a essa modernidade que jamais foi a sua. Ele é apenas mais um ocupante da margem capitalista. Por outro lado, os que decidem permanecer em suas comunidades tampouco estão isentos de “decidir” por esta “incorporação”: Una expedición de blancos y mestizos de Santa María de Nieva, una factoría a orillas del río Nieva [...] había llegado una semanas antes que nosotros a Urakusa. Todas las autoridades civiles del poblado, más un militar de una guarnición de frontera, formaban parte de ella. A Jum, que salió a recibirlos, le partieron la frente de un linternazo. Luego, quemaron las cabañas de Urakusa, golpearon a los indígenas que pudieron echar mano y violaron a varias mujeres. A Jum se lo llevaron a Santa María de Nieva, donde lo sometieron a la vejación de raparlo. Luego, lo torturaron en público. Lo azotaron; le quemaron las axilas con huevos calientes y, finalmente, lo izaron a un árbol, como se hace con los paiches del río para que se escurran. Luego de tenerlo allí unas horas, lo soltaron y le permitieron volver a su Pueblo (LLOSA, 2010, p. 87).

A violência transcrita no fragmento em destaque se deu principalmente em função dessa tentativa de “incorporação”. Após ter tido contato com as noções capitalistas, esse indígena desejou praticar esses ensinamentos. Contudo, ao tentar implantá-los em sua aldeia, foi duramente repreendido. O teor da violência empregada para esta repreensão demonstra até que ponto este líder indígena e sua comunidade podem adotar os valores capitalistas. Como se pode perceber no fragmento, a adoção dos valores capitalistas até pode acontecer na cultura indígena, desde que não implique deslocar a hegemonia dos poderosos. Observemos que brancos, mestiços, autoridades civis do povoado, militares das guarnições de fronteira, enfim, quase todas as classes sociais desse povoado, uniram-se para covardemente bater, estuprar e violentar, física, moral e culturalmente, mulheres, adultos e crianças de uma comunidade de urakusas que tentou libertar-se da exploração trabalhista. 146


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Nessa imagem Llosa (2010) também denuncia o comportamento das autoridades que possuem o poder/dever de defendê-los, mas, ao invés disso, participaram dessa e de muitas outras chacinas escondidas por trás da história indígena. É interessante ainda observar como os gestos violentos e atrozes desses carrascos são empreendidos por quem parece ver nos indígenas animais irracionais e ferozes, sem qualquer laço de parentesco ou semelhança com eles. Conforme consta na imagem discursiva, todos, absolutamente todos dessa comunidade, consentiram com o estupro, a violência e a tortura de seus semelhantes. Todos assistiram, seja com a atitude física, seja através da omissão, à tortura desse líder indígena de nome Jum e a permitiram. A acusação? Ter descoberto que: [...] él y los suyos eran inicuamente explotados por los patronos con los que comerciaban. [...] Ellos mismos fijaban el precio de lo que compraban y pagaban en especies – machetes, anzuelos, ropas, escopetas –, cuyos precios también determinaban a su capricho y conveniencia (LLOSA, 2010, p. 87-88).

Poderíamos nos perguntar se descobrir o valor do dinheiro foi mais trágico para Jum do que tem sido para tantos outros indígenas que abandonam sua cultura em busca dos valores ocidentais. Contudo, ao que nos parece, as imagens dessa tortura física manifestam claramente a resposta a essa indagação, pois a violência dispensada sobre mulheres, crianças e adultos mostra de fato o tratamento dado àqueles que parecem estar “diferentes, desiguais e desconectados”, para usar novamente a feliz expressão de Canclini (2009), das práticas ocidentais capitalistas. Outro dado importante a destacar diz respeito às intenções por trás do discurso de modernizar e incorporar. Pois se os indígenas deixam seu lugar, suas famílias e, de certa forma, seus hábitos e vão para a cidade, são explorados, excluídos e marginalizados. Se decidem permanecer em suas aldeias, manter seus hábitos harmonicamente e dali mesmo tentar essa incorporação junto aos setores capitalistas, são da mesma forma limitados por seus exploradores que, em atos coercitivos como a tortura de Jum, acabam demarcando até 147


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onde os indígenas podem aceder nessa incorporação. Em todo caso, é como diz Mascarita: [...] Lo que se está haciendo [com os indígenas] en la Amazonía es un crimen. No tiene justificación, por donde le des vuelta. Créeme, hombre, no te rías. Ponte en el caso de ellos, aunque sea un segundo. ¿Adónde se pueden seguir yendo? Los empujan de sus tierras desde hace siglos, los echan cada vez más adentro, más adentro. Lo extraordinario es que, a pesar de tantas calamidades, no hayan desaparecido. Ahí están siempre, resistiendo. ¿No es para quitarse el sombrero? (LLOSA, 2010, p. 30)

Ao mimetizando tantas atitudes verídicas de maus tratos para com os indígenas peruanos, Llosa (2010) coloca na memória do narrador Mascarita indagações que nos levam a perceber as formas modernas de executar esses crimes. As perguntas de Mascarita são respondidas com o silêncio. Silêncio que ecoa respostas que apontam para a grandeza de um povo que há séculos vem sendo subjugado, mas ainda continua lutando incessantemente por respeito dentro das estruturas hierárquicas e econômicas de seu país. O que, tomando de empréstimo as palavras de Zumthor, equivale a ver nesse silêncio vozes que jazem inaudíveis, pois conforme salienta o pensador: A voz jaz no silêncio; às vezes ela sai dele, e é como um nascimento. Ela emerge de seu silêncio matriarcal. Ora, neste silêncio ela amarra os laços com uma porção de realidades que escapam à nossa atenção despertada; ela assume os valores profundos que vão em seguida, em todas as suas atividades, dar cor aquilo que, por seu intermédio, é dito ou cantado (2005, p. 63).

Não por acaso, o ficcionista representa a violência cotidiana dispensada para com a população indígena, fazendo uso de mecanismos como este mencionado por Zumthor, ao referir-se às vozes escondidas por trás do silêncio. Silêncio, diga-se, precedido de vozes, muitas vozes, usadas nesse contexto como instrumento para denunciar as figuras carrascas e etnocêntricas escondidas na figura de militares, caucheiros, madeireiros, etnólogos, linguistas, enfim, de quase toda a sociedade peruana ocidentalizada. 148


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Como se pode perceber, nossa exposição inicial a respeito desse paradoxo põe em evidência algumas imagens discursivas que refletem os males de um sistema indiferente às particularidades de cada cultura e região. Tentamos mostrar, nas imagens llosianas, retratos que denunciam outras formas de imposição de uma modernidade até aqui qualificada por nós como às avessas. Entretanto, há outra imagem ainda mais forte que consegue instaurar em nossas mentes reflexões sobre as sutis formas de se colonizar o outro: a que é trazida para o enredo a partir da incorporação do Instituto Linguístico de Verão, “una institución que, en los cuarenta años de vida que lleva en el Perú, ha sido objeto de virulentas controvérsias” (LLOSA, 2010, p. 25). Essa instituição, para alguns, destrói desde dentro as culturas indígenas, pois esse instituto atua no território amazônico peruano inculcando os valores da cultura ocidental no cerne da indígena, ou seja, que o trabalho do instituto causa danos equivalentes à destruição empreendida pelos colonizadores espanhóis aos indígenas nas primeiras décadas após o “descobrimento”. Por outro lado, seus defensores veem na atuação dessa instituição uma solução eficaz e possível para se conseguir a integração entre indígenas e sociedade ocidentalizada. O certo é que, em meio a muitas contestações e contradições, esse instituto, há 40 anos, atua no território peruano de modo bastante polêmico. Assim, pode-se deduzir que as palavras postas na boca desses narradores llosianos expõem com acuidade essa problematização. De um lado Mascarita reproduz as vozes daqueles que veem essa instituição como uma prolongação dos interesses capitalistas e, do outro, o narrador transcultural expõe os argumentos dos que entendem na atuação dessa instituição a única possibilidade para a integração. Logo nas argumentações iniciais sobre esse assunto, o narrador transcultural suscita claramente algumas questões concernentes à polêmica em torno dessa problemática. Diz o narrador: ¿En qué consiste la misión del Instituto? Según sus enemigos, es

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un brazo del imperialismo norteamericano, que, bajo la coartada de la investigación científica, realiza trabajos de inteligencia y uma labor de penetración cultural neocolonialista entre los indígenas amazónicos.[...] Pero también son adversarios suyos algunos sectores de la Iglesia Católica – principalmente, los misioneros de la selva – que lo acusan de ser nada más que una falange de evangelizadores protestantes disfrazados de lingüistas. Entre los antropólogos, hay quienes le reprochan pervertir a las culturas aborígenes, tratar de occidentalizarlas e incorporarlas a una economía de mercado. Algunos conservadores critican la presencia del Instituto en el Perú por razones nacionalistas e hispánicas.[...]«Tenga cuidado, esos gringos tratarán de comprárselo.» Para él, era intolerable que, por culpa del Instituto, los indígenas selváticos aprenderían probablemente a hablar inglés antes que español (LLOSA, 2010, p. 83).

A justaposição das vozes expressa nesse fragmento, bem como a reprodução de algumas opiniões que circulam socialmente a respeito desse instituto, demonstra quão polêmica é a questão. Por meio dessas vozes aqui reproduzidas, Llosa (2010) expõe os paradoxos de um país dividido entre dar credibilidade ou desacreditar o trabalho dessa instituição no território amazônico peruano. São opiniões diretamente opostas sobre a atuação dos linguistas, o que de certo modo também acaba sendo a representação ficcional da impossibilidade de se chegar a um consenso no tocante a essa questão. Sobre a atuação dos linguistas no território brasileiro, os estudos realizados por D’Angelis (1999), no âmbito da situação do indígena, fornecem informações que relacionadas às críticas no enredo de El Hablador fornecem importantes reflexões. Segundo D’Angelis, a presença da maior parte dos linguistas nas aldeias brasileiras representa uma tensão cotidiana, pois, embora não pareça, o linguista/professor bilíngue na maioria das vezes separa os objetivos dos métodos de atuação que serão aplicados em suas práticas de ensino, o que para o pesquisador resulta em enormes problemas, pois:

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Determinados objetivos só se conseguem com métodos apropriados e, do mesmo modo, com determinados métodos só se conseguem determinados objetivos. Se o professor não tem a compreensão das relações entre método e objetivos, ele pode ser instrumento ingênuo da aplicação de determinados métodos pensando que eles levam seu trabalho aos objetivos que ele sonha, mas, prática, servindo para os objetivos que outros planejaram (1999, p. 40).

Conforme salienta o pensador, a intenção por trás da ação às vezes até é boa, mas a falta de compreensão do uso de certas ferramentas metodológicas pode significar a contramão dos objetivos propostos, podendo inclusive tornar-se um instrumento de destruição programada do outro. Como exemplo, D’Angelis (1999) menciona a atuação do SIL (ex-Summer) no Brasil, o instituto linguístico responsável pela instalação e difusão de um método que os linguistas nomeiam de transnacional. Nesse método, [...] a língua materna (indígena) é empregada na escola apenas até o momento que a criança tenha dominado a segunda língua, a língua da maioria étnica (ou, do Estado Nacional). É um grande erro, ou uma grande ingenuidade (ou uma grande mentira, quando é uma alegação do SIL) pensar que esse tipo de programa valoriza a língua indígena só porque ela é usada na escola, nas series iniciais, inclusive para a alfabetização. De verdade, programas de bilinguismo transnacional desvalorizam as línguas maternas, porque a criança compreende claramente que sua língua só serve para falar em casa, mas não serve para aprender nada! Tudo o que é interessante, e tudo que existe para se ler, está [na língua da cultura ocidental]. (D’ANGELIS, 1999, p. 40).

No fragmento transcrito, o estudioso esclarece que as crianças indígenas são ensinadas desde cedo, diga-se, por pessoas com interesses às vezes até puros, que sua língua é inferior e inútil, e que esse ensinamento vem sob a aparência de valorização da língua materna, um método aparentemente ingênuo, mas que, comprovadamente e em curto prazo, consegue resultados nada inofensivos. O pesqui-

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sador comprova que, para interferir-se na cultura do outro, são necessárias mais do que boas intenções; é preciso conhecimento para reconhecer que os métodos do SIL e de quase todos os institutos usam a própria língua como principal instrumento para subjugar as práticas culturais dos povos que irão receber esses ensinos. Como bem coloca o pesquisador e professor/linguista: Ele [o professor] pode ser o agente educador numa situação de conflito e mudança, comprometido com as defesas dos valores, da história e da cultura milenar do seu povo, ou pode ser um agente de mudança, comprometido com os valores, a história e a cultura da sociedade nacional dominante (D’ANGELIS, 1999, p. 35).

Como exposto pelo pesquisador, o preconceito nem sempre se manifesta de forma detectável. Às vezes, ele simplesmente se camufla nas escolhas dos elementos da outra cultura. É a partir dessa escolha, aparentemente ingênua, que o professor acaba se tornando um destruidor, pois, embora não perceba, ela acaba inculcando na mente das crianças a ideia de que sua cultura é valorosamente inferior. Em El Hablador, entre os ideais dos linguistas, sobressai a incorporação dos valores culturais do Ocidente, tais como a língua e religião, por isso, a personagem Mascarita incorpora e reproduz as vozes daqueles que condenam a presença do instituto porque acreditam que ele seja o braço neocolonial do Ocidente impregnado entre os indígenas. Os que advogam esse pensamento veem nessa instituição a desgraça moderna dessas comunidades, conforme se pode notar no fragmento a seguir: [...] las consecuencias del trabajo de los etnólogos eran semejantes a la acción de los caucheros, madereros, reclutadores del Ejército y demás mestizos y blancos que estaban diezmando a las tribus. – Dijo que hemos retomado el trabajo donde lo dejaron los misioneros en la Colonia – añadió. Que nosotros, con el cuento de la ciencia, como ellos con el de la evangelización, somos la punta de lanza de los exterminadores de indios (LLOSA, 2010, p. 43)

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O narrador expõe no fragmento anterior o entendimento de que o instituto seria o continuador dos interesses do colonizador, o símbolo maior da destruição iniciada pelos espanhóis, pois ensinar-lhes a língua espanhola, cultura e religião, é tão maléfico quanto a ponta de uma lança, na qual a extremidade representa o poder econômico implantado para impulsionar e garantir a valoração da cultura ocidental no cerne da machiguenga, e a ponta dessa lança representaria o extermínio total das práticas culturais desse povo. Mas por que é tão destruidor o ensino de outra língua aos indígenas? De acordo com Etienne Samain (1989), todas as sociedades empregam lógicas e objetivos próprios em suas formas de comunicação, para estruturar seus conhecimentos, de forma que a comunicação costuma estar diretamente ligada aos valores culturais. Segundo o estudioso, não podemos confundir nem misturar os objetivos comunicacionais de cada povo, pensando que, ao implantar uma língua numa comunidade, também se implantam seus valores culturais. Destarte o pesquisador indaga: Com quem os índios se comunicam? Quais os interlocutores, os protagonistas da existência e da vivência indígena? Responderia que evidentemente dialogam entre si, mas também com suas ‘divindades’ ou heróis culturais; que dialogam com os espíritos de seus mortos, como também com os gênios que provocam seu universo natural. [...] poderia responder ainda que os índios dialogam com a Lua, o Sol, as constelações, com os movimentos e as particularidades do tempo, e do espaço, os bichos do mato, as aves e os peixes... (SAMAIN, 1989, p. 141-142).

O interessante nas respostas do pensador é o fato de que não se implanta uma língua simplesmente, pois se toda língua traz seus valores culturais marcados por peculiaridades próprias, por trás do ensino bilíngue, evidentemente, também estão os valores religiosos que se quer difundir. Conforme salienta o pesquisador, na estrutura primeira das línguas indígenas estão valores que certamente não se confundem com os das línguas oficialmente usadas em prol do capitalismo.

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Em se tratando do objetivo primeiro dos professores bilíngues do Instituto Linguístico de Verão, o casal de linguistas americanos instalados na aldeia machiguenga não destoa muito dessas constatações. Ao que parece, o casal Schneil era movido primeiramente pelo intuito religioso, assim, após mapear as línguas indígenas, ensinavam a espanhola. O que implica compreender que o instituto, embora reconheça, não aceita que os indígenas machiguengas mantenham suas deidades. Por outro lado, apreender a escrita baseada na cultura grega também significa a negação de uma forma de escrita que, embora não baseada na grega, também serve perfeitamente aos interlocutores dessa língua. Por esta razão, afirma Mascarita, subjugá-los à religião e à escrita ocidental é uma forma de extermínio tão ou mais eficaz quanto a dos primeiros colonizadores. Contudo, Llosa também incorpora ao enredo as opiniões daqueles que manifestam ideias totalmente contrárias no tocante ao papel desse instituto, como se pode ver na passagem a seguir: [...] sus amigos, como Rosita Corpancho, defendían el Instituto con argumentos pragmáticos. La labor de los lingüistas – estudiar las lenguas y dialectos de la Amazonía, establecer vocabularios y gramáticas de las distintas tribos – servía al país, y, además, por lo menos en teoría, estaba cautelada por el Ministerio de Educación, que debía dar el visto bueno a sus proyectos y recibía copias de todo el material recogido por el Instituto. Mientras el propio Ministerio o las Universidades peruanas no se tomaran el esfuerzo de hacer ese trabajo, convenía al Perú que alguien lo hiciera. De otro lado, la infraestructura montada por el Instituto en la Amazonía, con su flotilla de hidroaviones y su sistema de comunicaciones por radio entre la base de Yarinacocha y la red de lingüistas viviendo en las tribus, también era aprovechada por el país, ya que los maestros, funcionarios y militares de remotas localidades selváticas solían, y no sólo en casos de emergencia, recurrir a ella (2010, p. 83-84).

Como se pode perceber, há também aqueles que veem no instituto uma possibilidade de mapear e incorporar as culturas indígenas às dos demais peruanos. Desse lado, as argumentações também 154


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suscitam questões polêmicas. Para seus defensores, o Instituto realiza o trabalho que os intelectuais peruanos se recusam a fazer, o que de certo modo não deixa de ser uma crítica à omissão dos intelectuais peruanos ante a diversidade cultural e linguística. Daí que Llosa suscita na memória do narrador a seguinte questão: se não o faz o instituto, quem fará? Assim como as demais proposições levantadas pelos narradores llosianos, cabe ao leitor formular suas próprias respostas. No que tange a essa questão, pelo menos em teoria, os estudos realizados entre os indígenas machiguengas eram submetidos ao Ministério da Educação que, por sua vez, autenticava e controlava todo e qualquer trabalho linguístico desse instituto. Trabalho que, como visto, também se mostra ineficaz, pois os evangélicos estavam ali com propósitos bem claros: traduzir a Bíblia para a língua machiguenga. Não obstante a infraestrutura e o aparato tecnológico desse instituto, diziam seus defensores, serviam a militares, professores, funcionários e à própria comunidade indígena de um modo geral, trazendo benefícios coletivos ao território amazônico peruano. Esse “aproveitamento” também se dá, como fica claro, pela omissão do Estado peruano perante seu dever de atuação. Pois, se esse governo cumprisse seu papel ao invés de delegá-lo a terceiros, certamente o aparato tecnológico também estaria à disposição desse serviço. Mediante o emprego desse paradoxo narrativo, Llosa (2010) expõe criticamente a realidade social peruana sob muitos aspectos, embora todos culminem nos objetivos capitalistas daqueles que veem nessa modernidade a alternativa para a integração do país. Percebe-se que cada uma das antinomias postas em evidência até aqui é ancorada em realidades que refletem os problemas trazidos por mentalidades binárias, ainda irresolutos em pleno século XXI. Como se pode perceber, esse mundo trazido por Llosa ao enredo de El Hablador é um cujas questões culturais são ainda mais paradoxais diante das circunstâncias sociais do Peru moderno. Por essa razão, o enredo dessa obra ancora-se em dicotomias sem a pre155


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tensão de tentar resolvê-las. O autor visa a paradoxos sociais para incorporar em sua narrativa todo tipo de diferença cultural, vista desde dentro de uma realidade que se recusa a ser fechada numa raiz única e totalitária. Essas diferenças foram incorporadas a partir do que Glissant (2011) nominou de “poética da relação”, ou seja, por meio de relações dicotômicas, mas que, ainda assim, desvelam as riquezas geradas a partir dos contatos entre culturas diferentes. Como muito bem colocado por Glissant (2011), em toda relação é possível se gestar uma poética que incorpore e conceba a diferença como riqueza cultural que, longe de excluir, inclui todo tipo de cultura, língua e diversidade. Ao engendrar esse dilema nas vozes dos narradores, Llosa (2010) não apenas insere metáforas/imagens que paulatinamente podem ir incluindo os povos indígenas, mas também rompe qualquer pretensão de se resolver essa ambivalência a partir da negação da diferença, possibilitando-nos entender que podemos, sim, incorporar novas epistemes à que já possuímos. De modo que, olhando para os retratos das Amazônias aqui trazidos e relacionando-os aos dizeres de Neiva, compreende-se que: Para representar o mundo é preciso um repertório de esquemas que elaborem e interpretem a realidade. Obrigatoriamente, um modelo organiza a experiência perceptiva. O esquema fixa a instabilidade flutuante que caracteriza o mundo [...] A lógica da imagem exige que sua representação seja feita a partir desse esquema que reformula a experiência visual. [Pois se] a nomenclatura antecede a representação, a imagem é, por natureza autônoma; sua autonomia é restrita e contrabalanceada pela necessidade de assimilá-la ao objeto (2010, p. 12-13).

Ao verificarmos a base dessa proposição, vemos como os esquemas imagéticos de Hatoum e Llosa alinham imagens discursivas cuidadosamente pensadas para representar a região. O discurso ficcional desses dois autores trabalha, como visto, com novos ângulos de abordagem. E nesse sentido, podemos dizer que ambos romancistas usam a tradição literária e, a partir dela, produzem obras repletas

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de imagens discursivas solitárias e, ao mesmo tempo, solidárias para com as populações amazônicas. Solitárias, pois cada romancista se apropria de mecanismos e experiências individuais para empreender e representar essas travessias. Solidária no sentido de que, ao produzir obras literárias comprometidas com as necessidades das populações amazônicas, eles se comprometem também com a região. Longe dos binarismos presentes em nossas lógicas formais e convencionais de pensar a região, ambos os autores produzem imagens discursivas que constantemente evocam o imaginário e o senso crítico de seu leitor. Observamos, ainda, de que maneira os esquemas, de que fala Neiva, alinhavam, no decorrer das tramas, formações, valores, hábitos e concepções distintas, para narrar uma mesma visão, conforme salientam Machado & Pageaux: Eu ‘olho’ o Outro – mas a imagem do Outro veicula também uma certa imagem de mim mesmo. É impossível evitar que a imagem do Outro, a (sic) nível individual (um escritor), coletivo (uma sociedade, um país, uma nação), ou semi-coletivo (uma geração), não surjam também como negação do Outro, o complemento, o prolongamento do meu próprio corpo ou do meu próprio espaço (...) De certo modo, dizemos também o mundo que nos rodeia, dizemos o lugar de onde partiu o ‘olhar’, o juízo sobre o Outro: a imagem do Outro revela as relações que estabelecemos entre o mundo (espaço original e estranho) e eu próprio (2000, p. 61).

Considerando tais colocações, podemos dizer que as imagens presentes nos enredos de El Hablador e CN são ancoradas principalmente na concepção de que nós podemos exercer transformações nos imaginários coletivos. Conforme apresentado nas imagens discursivas aqui trazidas, é indispensável observarmos os modos como sistemas partilhados de significação estabelecem fronteiras e definem as diferenças, e como as distinções são estabelecidas principalmente sob a forma de oposições identitárias. Especialmente, porque os indivíduos assumem posições com as quais se identificam.

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4. Trocas culturais nas fronteiras: sujeitos em trânsito Conhecer nossa alteridade reprimida, admitir o que nos é inaceitavelmente próprio e que desafogamos no migrante, no diferente ou no transgressor – isto pode servir para libertar as forças libidinais positivas e as convergências culturais que nos aproximam dos outros. Pode tornar visíveis as semelhanças e talvez nos integrar apesar das diferenças. Nestor Garcia Canclini O mapeamento das territorialidades discursivas, portanto, procura compreender as relações ou interações textuais como peças de um mosaico, em suas constantes mobilidades, configurando, nessas travessias, os seus agenciamentos históricos, sociais e culturais. Evelina Hoisel

Nas discussões anteriores, o uso da metáfora fronteira nas construções romanescas foi mencionado. Entre outras coisas, o uso dessa palavra no contexto literário, em seu sentido espacial, cultural, ou linguístico, comumente está ligado à derrubada de limites epistemológicos, porquanto a fronteira é considerada como o lugar onde podemos encontrar o híbrido, o mestiço, o diferente. Trata-se de um lugar onde os sujeitos em trânsito, continuamente, redesenham suas identidades. Tais pressupostos permitem reconhecer que os percursos da literatura contemporânea transgridem os modelos convencionais e transformam o espaço das narrativas em lugares de onde se podem “traduzir” as margens dos discursos hegemônicos, além de incluir caminhos de intercâmbio que consideram novas paisagens, vozes e sujeitos no decorrer de uma travessia posta em andamento, na/pela arte literária. Nesse sentido, como já salientado, as produções de Milton Hatoum e Vargas Llosa podem ser consideradas como integrantes dessa categoria de obras transgressoras, visto que ambas transformam os espaços ficcionais em novas fronteiras que abrigam todo tipo de troca cultural. Elas configuram lugares onde os personagens estão constantemente interagindo com outros sujeitos e renegociando suas identidades. 158


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Ao fazerem de suas narrativas esses espaços de travessias entre diferentes sujeitos, culturas e etnias, Hatoum e Llosa comprovam que não apenas suas ficções, mas suas próprias existências estão marcadas pela fronteira, “pela abertura de um outro lugar cultural e político de enfrentamento no cerne da representação colonial” (BHABHA, 1998, p. 62). Nesse sentido, as narrativas de Hatoum e Llosa deixam brotar contextos e percepções trazidos por personagens que se permitem viver o sabor dos deslocamentos. Conforme já mencionado no capítulo segundo deste livro, as próprias vozes artísticas de Hatoum e Llosa estão marcadas pelas experiências que ambos adquiriram ao se permitirem transitar por entre espaços, culturas e línguas diversificadas, da América Latina e do mundo, fazendo com que suas produções se abram para o novo, o outro, o diferente, o que nos levem a incluí-los na categoria de escritores migrantes. Em face dessa mudança de paradigma, ambos põem em cena personagens que vivenciam intensamente a experiência do estar entre-dois, do entre-lugar da fronteira. Por isso mesmo, os dois autores constroem personagens que estão constantemente se deslocando, ultrapassando fronteiras epistemológicas e renegociando seus saberes, línguas, culturas e identidades. Tais personagens possibilitam-nos averiguar que as práticas culturais e as aporias identitárias emergentes na pan-amazônia assemelham-se às que acontecem nas demais áreas do globo, inseridas nesse dinamismo, sendo ela mesma essa imensa fronteira. Por isso as “narrativas nacionais híbridas convertem o passado nacional naturalizado – um tempo e espaço monumental estruturados e para todo o sempre – em um presente histórico deslocável e aberto a novas enunciações” (CURY, s/d. In: Letras nº 26 – Língua e Literatura: Limites e Fronteiras). Isto posto, vejamos como essas afirmações se tornam constatáveis nas travessias das personagens Mundo e Mascarita. Nesse passo, começamos por apontar que os deslocamentos da personagem Mundo põem em evidência a reconstrução das identidades não fixas que fundamentam a construção do imaginário do sujeito contemporâneo. Ele, a nosso ver, é a representação dessa condição de estar entre-dois, de vivenciar essas travessias, de 159


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negociar constantemente sua identidade. Desde o nome percebemos que essa personagem metaforiza o desejo do autor de levar a cabo a criação de um personagem portador das características de um sujeito universal desvinculado das ideias de fixidez e enraizamento. Nesse sentido, podemos, inclusive, sugerir que Hatoum dá a Mundo as características de um sujeito angustiado, descontente e inquieto com a vida, no intento de mostrar os dramas que perfazem a existência humana. Lavo (Olavo), o narrador, reconhece isso no amigo Mundo, quando diz: [...] ainda guardo seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada momento a frase que enviou para mim num cartão-postal de Londres: ‘Ou a obediência estúpida ou a revolta’ (HATOUM, 2005, p. 10).

Essa opção de lançar-se à deriva é percebida na personagem Mundo, desde a infância, quando inicia uma trajetória que já apontava para um sujeito ficcional dotado de características que o inseririam mais além das fronteiras sociais, políticas e culturais estabelecidas em seu entorno. Ainda criança, Mundo demonstra sua identificação com os sujeitos marginais e começa a romper com as imposições paternas e sociais que pretendiam distanciá-lo dos menos favorecidos. Por tudo isso, dizemos que esta personagem nos fornece uma visão diferente e emblemática do “entre-lugar”, pois ele mesmo situa-se nessa condição: Tinhas cinco anos. Nos dias de chuva saías sozinho para brincar no quintal, no beco e tua mãe se preocupava com doenças: tifo, febre amarela, papeira... Jano temia outras coisas. Numa manhã de aguaceiro, Macau te encontrou perto da Legião Brasileira de Assistência brincando com uns meninos pobres das palafitas do centro. ‘Mundo só se dá com caboquinhos’, teu pai dizia a Alícia. ‘As crianças da vizinhança são filhos de casais distintos, mas ele só procura os selvagens’. Tua mãe quis te aproximar dos garotos das redondezas do palacete, filhos de grandes comerciantes e magistrados. Foi um desastre (HATOUM, 2005, p. 25).

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Essa necessidade de quebrar as barreiras das convenções e ultrapassar as fronteiras porosas da segregação de classes norteia toda trajetória da personagem que traz como marca salutar o desejo ardente de percorrer outros itinerários. Numa das viagens à vila Amazônia, o narrador Olavo demonstra claramente essa opção de Mundo: Acordamos com uma agitação abordo. Urucurituba. Um padre se separou de uma pequena multidão para receber Jano. [...] Mundo desapareceu nas ruas de terra que terminavam na mata. [...] Mundo chegou antes do pai: trazia sementes que apanhara na floresta; conversara com moradores, a última enchente inundara até a igreja, e ainda hoje viviam na escuridão (HATOUM, 2005, p. 63).

Na passagem transcrita, percebemos que Mundo opta por estar com e na presença dos menos favorecidos. Ele prefere se embrenhar mata adentro, conversar com as populações carentes e apanhar sementes, em lugar de acompanhar a exploração levada a cabo pelo motorista da família ou mesmo acompanhar o suposto pai. Outro dado que merece destaque é a forma como a personagem vivencia intensamente a experiência do estar entre-dois; apesar de ser primeiramente moldado pelos valores da cultura dominante, ele opta por redefinir-se diante da alteridade e das práticas culturais dos menos favorecidos: Na noite da chegada, Mundo me acordou para dizer que havia encontrado um índio velho e doente. Um artista. Acendeu a luz e mostrou uma pintura em casca fina e fibrosa de madeira: cores fortes e o contorno diluído de uma ave agônica. Tirou da parede os quadros, [de santos católicos feitos por um artista português sob encomenda do velho Matoso] os enfiou debaixo da cama e num dos pregos pendurou a obra do índio (HATOUM, 2005, p. 69).

No fragmento transcrito, o narrador Olavo conta como Mundo transitava entre espaços culturais e se identificava com as populações humildes. Essas andanças de Mundo, embora compusessem a

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própria essência da personagem, também o ajudavam a constituir-se enquanto artista, que empreendia uma busca desenfreada no afã de encontrar saída para suas próprias angústias humanas. Angústias, diga-se, que também perpassam a constituição do sujeito pós-moderno. Nessa linha de raciocínio, Bhabha (1998) postula que um dos problemas da contemporaneidade está ligado justamente às formas de essencialismo, sobretudo identitário; esses essencialismos nos induzem a negar a diferença, por isso mesmo, afirma o crítico, a questão da identidade é mais complexa do que possa parecer, visto não podermos entendê-la dentro de uma visão essencialista, como um fato consumado e automaticamente representado pelas/nas novas práticas culturais. Nesse sentido, percebemos que a construção de identidade deve, antes de tudo, refletir o sujeito como alguém em contínua transformação, cuja totalidade jamais poderá ser plenamente concebida. Hall (2003) acrescenta que essa visão de identidade cultural não é muito familiar, gera impacto, uma vez que não procede linearmente, de forma ininterrupta, de uma origem fixa. Pelo exposto, acreditamos que Hatoum (2005) dá continuidade a um projeto artístico de incorporar à matéria romanesca a identidade não fixa do sujeito universal que rompe com modelos preestabelecidos pela tradição na ficção, daí as personagens de Cinzas do Norte, de modo geral, e em especial Mundo, serem portadores da angústia existencial, da inquietação e, de certa forma, da rebeldia para com as convenções sociais que regem nossa contemporaneidade. Essa necessidade de desafiar as formas repressivas e externar sua inquietação parece ser a própria matéria constitutiva da personagem Mundo. Mundo é o cidadão do vasto mundo que, através de suas travessias, sugere que a construção das identidades é um processo que nos leva a estar constantemente nos reconstituindo na interação com os demais. Ele mesmo, como já vimos, inicia seu contato artístico a partir dos ensinamentos de seu primeiro mestre, Arana, mas logo percebe que o projeto artístico deste prima por valores que divergem dos dele: 162


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[Arana] ‘Não é mais o mesmo’ disse, com aspereza. ‘Aliás, nós não somos mais os mesmos, Lavo.’ O ateliê dele é uma fábrica de quadros e esculturas. Arana renegou até aquela jaula queimada cheia de osso e de capim seco... dizia que era uma obra muito crítica, mais hoje acha que é fútil. Uma fase experimental, já passou... falou assim mesmo, e ainda riu. Arana virou um reles comerciante de arte (HATOUM, 2005, p. 163-4).

Assim, após constatar que Arana de fato mostrava-se o charlatão que todos anteveram, Mundo se afasta dele para buscar novos espaços onde pudesse redefinir-se enquanto artista. Após a morte de Jano, Alícia e Mundo se mudam para o Rio de Janeiro e Mundo inicia as travessias identitárias que marcariam sua trajetória de sujeito universal até os dias de sua morte. Essa postura de Hatoum (2005) em criar um ser ficcional dotado das inquietações que se assemelham às dos sujeitos de nosso tempo, parece sugerir a impossibilidade de se constituir um espaço ou lugar alheio às imbricações. O próprio Mundo, após mudar-se para a Europa e de lá tentar redefinir-se enquanto artista, reforça nossa afirmação: Anos depois, recebi da Alemanha uma pequena pintura em chapa de alumínio, com uma cópia ao lado, em papel. Na cópia, o rosto tinha outra expressão: uma face se esfumara, e nela se formavam cavidades. O título da obra: O artista deitado na rede (HATOUM, 2005, p. 73).

Como se pode depreender do fragmento transcrito, mesmo estando na Europa, Mundo retoma as imagens do velho índio que conhecera na Vila Amazônia anos antes de sua partida, como fonte atual de inspiração artística, o que demonstra um dos fatores que impossibilitam o isolamento cultural dos sujeitos, ou seja, a memória. Como se pode perceber, Mundo preserva sua relação com a terra natal através da arte. Afinal, como bem coloca a personagem, “pintar não é uma maneira de lembrar com cores e formas? Inventar a vida numa situação extrema?” (HATOUM, 2005, p. 307). Essas lembranças ainda na Alemanha inspiram Mundo a iniciar os esboços de uma sequência de quadros intitulada por ele de Capital na Selva: 163


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Mundo escreveu que sentia saudades de mim [Lavo] e do meu tio, [Ran] e que desenhava os esboços de uma sequência de quadros intitulada Capital na selva, ‘pinturas da calçada da castanhola, retratos de mulheres e meninas que tão cedo não vou ver, ouvir nem tocar’ (HATOUM, 2005, p. 221).

É interessante ressaltar que, nessa sequência de quadros inspirados nas cenas cotidianas de Manaus, Hatoum (2005) coloca na memória e nos atos dessa personagem um modo de romper com as fronteiras e habitar o tempo, e o espaço alheios à ideia de fixidez e enraizamento. Ao recriar nas pinturas de Mundo o cotidiano de uma metrópole amazônica, Hatoum também ajuda a formar novas epistemes sobre essa região. O escritor nos leva, assim, a reconhecer a nossa necessidade de nos reconstituirmos nos diálogos, nas interações e travessias, nos acordos e desacordos com outras culturas. Por meio dessas imagens recriadas através do veio artístico da personagem Mundo, Hatoum (2005) sugere que a reformulação dos imaginários sobre os sujeitos amazônicos implica muitos regressos pela origem, e um constante transitar entre experiências que envolvem um imbricamento entre as muitas culturas que compõem o globo. Agora em Londres, errante em busca de um novo espaço onde pudesse redefinir-se, Mundo é subitamente envolvido por essas imbricações: [...] então senti, pela primeira vez em Londres, alguma coisa íntima: um cheiro que o porto quente e úmido exala. Um pedaço das Antilhas, da África e da Amazônia se espalhava nos pequenos empórios e nas tendas que vendiam quiabo, farinha de mandioca, azeite-de-dendê e melancia... No outro lado da rua uma mulher alta e vistosa oferecia pedaços de uma fruta de casca verde [...] Encarei os olhos escuros e senti o cheiro de polpa, e pude ver por inteiro o corpo de Naiá com um copo de suco de graviola (HATOUM, 2005, p. 242).

Como se pode perceber, não somente a Amazônia é retomada nesse fragmento, mas também as Antilhas, África, e tantas outras partes do globo que estão presentes nos empórios, nas culturas, cheiros, gostos e sabores de um mundo que se reorganiza na/pela 164


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performance das culturas, mostrando-nos que as relações se consolidam mais além das convenções e hierarquias humanas. De Brixton, Londres, Mundo escreve ao amigo Lavo, dizendo: “Minha reclusão não é atributo da geografia, mas a vida seria mais penosa sem certas coincidências, sem os amigos e a memória” (2005, p. 239). Em seu discurso, a personagem elucida que, para isolar os sujeitos, são necessários mais do que geografias e normas, pois, embora distante territorialmente, Mundo encontrou elementos que, ao longo do percurso, foram induzindo-o a sentir cheiros e sabores amazônicos espalhados pelos lugares por onde passava. Em carta enviada de Berlim para o amigo Lavo, Mundo conclui: “nada é puro, autêntico, original”... (HATOUM, 2005, p. 238). Como se pode perceber, essa personagem se movimenta e refaz suas identidades a partir de um trajeto que inclui travessias entre a floresta e o espaço urbano, fazendo-nos perceber que os sujeitos, bem como as culturas, em especial as amazônicas, se movimentam pelo mundo, levando-nos a reconhecer que as identidades, assim como as culturas, são híbridas, impuras, mutáveis e dependentes umas das outras. Caminho inverso segue a personagem llosiana Mascarita, pseudônimo de Saúl Zuratas. Ele deixa o ambiente urbano e decide redefinir-se no espaço da floresta amazônica peruana, sendo por isso mesmo personagem singular para levar a cabo o rompimento das fronteiras epistemológicas entre as culturas. O pouco tempo em que o narrador transcultural conviveu com Mascarita antes de ele tornar-se um falador converso, deixou-lhe pistas de que o amigo trazia em sua natureza a predisposição de viver papéis distintos. Assim o narrador transcultural relembra o amigo: Debí sospechar ya entonces que Saúl nunca sería abogado y, también, que su interés por los índios de la Amazonía era algo más que «etnológico». No un interés profesional, técnico, sino mucho más íntimo, aunque no fácil de precisar. Algo más emotivo que racional seguramente, acto de amor antes que curiosidad intelectual o que ese apetito de aventura que parecía anidar en la vocación de tantos compañeros suyos del Departamento de Etnología (LLOSA, 2010, p. 26). 165


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Diz o narrador transcultural que Mascarita, ainda nos tempos de faculdade, dava fortes suspeitas de que não seria advogado e tampouco assumiria uma profissão naquela sociedade. Em sua própria origem, ele já trazia a marca da hibridez, e do intercâmbio cultural: – Mi mamá era una criollita de Talara que el viejo se levantó al poco tiempo de llegar como refugiado. Parece que la tuvo arrejuntada nomás, hasta que nací yo. Sólo entonces se casaron. ¿Te imaginas lo que es para un judío casarse con una cristiana, con lo que llamamos una goie? No, no te lo imaginas (LLOSA, 2010, p.19-20).

Filho único de pai judeu e mãe mestiça, Mascarita traz desde a origem a experiência de conviver com duas religiões totalmente distintas: a cristã e a judia. Pese a isso, outra coisa o distinguia dos demais: uma marca de nascença, um sinal físico que o diferenciava dos demais membros dessa comunidade: Saúl Zuratas tenía un lunar morado oscuro, vino vinagre, que le cubría todo el lado derecho de la cara y unos pelos rojos y despeinados como las cerdas de un escobillón. El lunar no respetaba la oreja ni los labios ni la nariz a los que también erupcionaba de una tumefacción venosa. Era el muchacho más feo del mundo; también, simpático y buenísimo.[...] (LLOSA, 2010, p.17).

Esse sinal, o distinguia e ao mesmo tempo o isolava dos demais. Após a morte do pai Mascarita, decide abandonar o ambiente urbano de Lima, os estudos e uns poucos amigos que possuía, para morar no espaço da floresta peruana, a fim de conviver entre os que, como ele, pareciam ser vistos como diferentes. Assim, Mascarita vai para a floresta, a fim de tornar-se um falador, ou uma espécie de homem de palavras, que perambula entre pequenas comunidades de famílias machiguengas, contando histórias e levando notícias, preservando essa cultura e se deslocando pela floresta amazônica peruana. Na figura desse personagem, Llosa (2010) demonstra que pertencer à classe média limenha, ser formado pela cultura ocidental em si mesma não é garantia de integrar-se a nenhuma cultura. No

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caso de Mascarita, isso não o isentava de sofrer discriminações e maus tratos por parte dessa comunidade. Comumente, as pessoas o faziam sentir-se marginal e, por isso mesmo, ele decide redefinir-se perante a alteridade. Como disse o narrador, a mancha lhe cobria todo o lado direito da face e ainda por cima era repleta de pelos vermelhos e despenteados, o que provocava rejeição por parte da sociedade. Por onde quer que andasse, todos o apontavam fazendo-o sentir-se excluído e às vezes até ridicularizado. De modo que a sensação de não se identificar com o grupo ao qual deveria integrar-se, parecia estar presente em seu dia a dia: [...] andando por la calle con Saúl se descubría lo molesta que tenía que ser su vida, por la insolencia y la maldad de la gente. Se volvían o se plantaban a su paso, para mirarlo mejor, y abrían mucho los ojos, sin disimular el asombro o la repulsión que les inspiraba su cara, y no era raro que, los chiquillos sobre todo, le dijeran majaderías. A él no parecía molestarle; reaccionaba siempre a las impertinencias con alguna salida chistosa (Idem, p. 22-23).

Nessa passagem, o narrador transcultural narra um episódio ocorrido num dia em que pôde acompanhar os incômodos, a insolência e a maldade dispersada para com Mascarita. As pessoas o olhavam com espanto, repulsão, zombaria e nem ao menos dissimulavam. Embora o amigo se mostrasse alheio às afrontas e mágoas que quase todos pareciam causar-lhe, essa rejeição de certa forma o impedia de integrar-se com os grupos aos quais pertencia. Fosse com a comunidade acadêmica, a sociedade judia ou limenha, ele parecia alheio aos padrões culturais de todas elas. Percebe-se na atuação de Mascarita que Llosa (2010) leva adiante a criação de um personagem que consegue falar e atuar para além das fronteiras culturais. O pseudônimo dado a Saúl, ou seja, Mascarita, condiz com as faces que ele oculta por trás da máscara de sujeito ocidentalizado. Percebe-se nos atos dessa personagem o sujeito que consegue viver e traduzir as diferenças postas à margem, rompendo, por meio de suas atuações, com os limites epistemológicos entre os espaços culturais. 167


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Ainda no tocante à personagem Mascarita, parece-nos oportuno destacar que desde a escolha do pseudônimo, Llosa (2010) parece ter pensado a personagem para mimetizar a instabilidade dos sujeitos. Ao atentarmos para o fato de que por trás de uma máscara existe sempre uma face, percebemos que essa personagem ostenta e assume várias no decorrer da narrativa. Uma delas diz respeito ao fato de que, embora aparentasse um aspecto monstruoso, na realidade, Mascarita era amável, meigo e sabia lidar com as diferenças, tal qual a etnia com a que ele se identificava. Assim o descreve o narrador transcultural: No he conocido a nadie que diera de entrada, como él, esa impresión de persona tan abierta, sin repliegues, desprendida y de buenos instintos, nadie que mostrara una sencillez y un corazón semejantes en cualquier circunstancia (LLOSA, 2010, p.17).

Outro aspecto a ser levado em conta é o fato de que o autor transgride os modelos convencionais de representar os sujeitos marginalizados; ao criar uma personagem pertencente à cultura dominante e que, de dentro dela, externa a sensação de sentir-se um excluído, Llosa promove no leitor reflexões que vão mais além da incorporação das diferenças étnicas: são abordagens que nos levam a pensar nos possíveis caminhos de intercâmbio para se compreender as diferenças, e entre elas inclui-se a sensação de sentir-se como um dos marginalizados. Sobre isso indaga o narrador transcultural: ¿Estaba ahí la clave de la conversión de Mascarita? Esos shipibos, huambisas, aguarunas, yaguas, shapras, campas, mashcos, representaban en la sociedad peruana algo que él podia entender mejor que nadie: un horror pintoresco, una excepcionalidad que los otros compadecían o escarnecían, pero sin concederle el respeto y la dignidad que sólo merecían quienes se ajustaban en su físico, costumbres y creencias a la «normalidad». Ambos eran una anomalía para el resto de los peruanos; su lunar provocaba en ellos, en nosotros, un sentimiento parecido al que en el fondo alentábamos por esos seres que vivían, allá lejos, semidesnudos, comiéndose los piojos y hablando dialectos incomprensibles. ¿Era ésa la raíz

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del amor a primera vista de Mascarita por los chunchos? ¿Se había inconscientemente identificado con esos seres marginales debido a su lunar que lo convertía también en un marginal cada vez que ponía los pies en la calle? (2010, p.38-39).

No fragmento acima, o narrador transcultural referenda várias comunidades indígenas excluídas, marginalizadas e esquecidas pelos demais peruanos. Llosa (2010) coloca na memória desse narrador a seguinte questão: a disponibilidade de Mascarita em identificar-se com os indígenas marginalizados e viver papéis distintos não se dava em função de que ele mesmo, de certa forma, era marginalizado e excluído pelos seus, ou mesmo porque ambos eram anomalias para o resto do mundo? Com isso não poderíamos deixar de conjecturar que, com essa postura, o escritor suscita a seguinte questão: se acaso tivéssemos a oportunidade de experimentar a rejeição que os indígenas experimentam, não mudaríamos de opinião? Acaso existe melhor forma de compreender a dor dos outros do que sentir a dor que sente o semelhante? Apesar das conjecturas, qualquer que seja a resposta, o certo é que a disponibilidade de Mascarita em assumir papéis diversos, sua hibridez constitutiva e sua própria alternância identitária, parecemnos que são estratégias narrativas do autor para mimetizar nossa instabilidade identitária e nossa própria possibilidade de transitar entre as culturas, e se deixar maravilhar pelo que de melhor elas possuem.

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C onclusão

Conforme se pôde notar, no decorrer dos anos, os imaginá-

rios sobre as Amazônias giraram em torno das mais diversas representações: paraíso terrestre, fonte da eterna juventude, plantas inimagináveis, país da canela, riquezas ocultas, El Dorado, inferno verde, lugar isolado, deserto, última página do Gênesis, entre outras qualificações. Enfim, por meio dessas designações, a Amazônia revela-se como síntese dos contrários. Em A invenção da Amazônia, Neide Gondim (1994) mostra como se estabeleceu esse poderoso processo de “fundação” e invenção da região. Em suas pesquisas Gondim também averigua o poder da visão europeia na consolidação das figurações amazônicas e como essas “interpretações” asseguraram – e de certa forma ainda asseguram – a supremacia do discurso colonizador. Segundo a autora, a prática da comparação foi e é um dos mecanismos mais eficazes para estabilizar e fortalecer os discursos que envolviam/em as comunidades nativas, a flora e a fauna da região. Assim, é a partir dessas “fabricações” dos primeiros europeus que a negação de tudo aquilo que causa estranhamento fora difundida. Junto ao “Novo Mundo”, os europeus passaram a descrever, nomear e propagar, sob o signo da recusa, suas “descobertas”. Conforme salienta Gondim (1994), desde a primeira viagem esses escritos traziam em seu cerne figurações advindas da cultura greco -romana, imagens, discursos, projeções, ideologias prontas a serem enquadradas nas culturas locais. Dessa forma, essas figurações difundiam a região conforme a disparidade que ela trazia com o “modelo” estabelecido. É claro, em conformidade com os interesses de quem os projetava, ora migrando para a flora, ora para a fauna, contudo, mantendo entre elas elementos comuns. Portanto, entendemos que a Amazônia é constituída a partir dos discursos forjados a seu respeito, onde as figurações ganham sentidos diferentes a cada momento, seguindo

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Conclusão

as construções textuais de viajantes, biólogos, missionários, historiadores e políticos que foram preenchendo necessidades, fossem elas religiosas, territoriais ou econômicas. Assim, ocorreu que a Amazônia tornou-se efetivamente conhecida a partir das divulgações europeias iniciadas nos séculos XV e XVI, época em que os imaginários sobre o “Novo Mundo” começaram a circular – o que também aconteceu com boa parte dos países que compõem a América Latina. Seguindo esta linha de raciocínio, Ana Pizarro (2007) aponta vários elementos que, em diferentes momentos, foram sendo incorporados a essas invenções discursivas, as quais “fundaram” a região amazônica. Contudo, para nossa linha de compreensão apenas um interessa: aquele ligado às políticas públicas que envolveram/em a região amazônica. Segundo a pesquisadora (2007), essas políticas foram ancoradas em pelo menos três diferentes construções discursivas: a primeira, como já mencionado, diz respeito ao discurso fantasioso dos primeiros ocupantes europeus. Como vimos, nele “inclui-se” tanto a paisagem como os nativos. Já o segundo discurso – o dos viajantes, cientistas, que antecedem o positivismo –, a Amazônia foi descrita por um olhar obsessivamente pautado em uma ordem de conhecimento centrada na racionalidade. Esse discurso era projetado por uma ótica dicotômica de modernidade, cujo propósito era observar, classificar, anotar e informar às academias de ciências situadas nas metrópoles europeias do teor das riquezas visíveis e analisáveis da Amazônia. Finalmente, e para nós o de maior relevância, o terceiro discurso, o do caucho. Um discurso complexo e que envolve várias vozes. Em meio a essas vozes que o conformam, temos as dos intelectuais modernos, também responsáveis pela invenção, recriação e divulgação das figurações amazônicas que induziram gerações a “conhecê-la”, reavivando imaginários e rememorando discursos poderosos para manter o apagamento das sociedades amazônicas, conforme demonstraremos a seguir. Como mostrado, Euclides da Cunha também não olharia para essas comunidades vendo-as como uma sociedade organizada e mantenedora de práticas ancestrais, de valor inestimável para a ma172


Conclusão

nutenção e preservação da vida e das culturas. Na realidade, a indiferença de nosso viajante-escritor ante o trato dispensado a essas comunidades revela abertamente que elas, de forma alguma, seriam chamadas a compor os projetos do autor, mostrando, uma vez mais, o alto grau de comprometimento do escritor com o pensamento do colonizador que, conforme já se sabe há séculos, também condenou essa prática “selvagem” das comunidades indígenas amazônicas. Portanto, as razões que a nosso ver alicerçam as condenações euclidianas à prática do nomadismo estavam diretamente associadas àquelas de outros colonizadores, que já haviam atribuído um estereótipo negativo para a prática do nomadismo, tendo em vista que, também para eles, era a sedentarização que viabilizava a criação de raízes com o lugar. Assim, após condenar o nomadismo e cegar veementemente para a realidade dos indígenas42, tão ou mais massacrados do que os seringueiros nesse processo de exploração, Euclides da Cunha se volta totalmente para denunciar as condições de vida dos imigrantes nordestinos nos seringais. O conto Judas-Asveros possibilita claramente essa constatação. A narrativa mostra que a sina do nordestino seringueiro é muito parecida com a de Judas-Asveros. Ambos perambulam pelo mundo, são esquecidos por Deus, e acabam rumando para o desconhecido. Nesse conto, o sujeito retratado não é o índio, o nativo ou mesmo os negros, mas tão somente o nordestino que, novamente, ocupa o centro de suas análises. Sua atenção estava totalmente voltada para aqueles que, embora estivessem submetidos ao sistema de semiescravidão dos barracões, não haviam perdido as características necessárias para povoar a região. Por isso, em seus Escritos Amazônicos, Euclides da Cunha demonstra que “o caboclo, descendente do índio ou do tapuio – índio aculturado –, não seria chamado a participar na constituição da Nação, [porque nele] não [se reconhecia] uma identidade nacional” (GONDIM, op. cit., p. 225). Assim, buscando essa “essência” de brasilidade, Euclides da Sobre a ocultação e silenciamento de Euclides da Cunha acerca dos povos indígenas amazônicos sugerimos a leitura do trabalho Amazônia Babel – ficção, margens, nomadismos e resíduos utópicos, pesquisa de pós-doutoramento de Simone de Souza Lima (no prelo). 42

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Cunha projeta de forma distorcida para a nação brasileira as figurações e ideologias mais poderosas da modernidade sobre a Amazônia – muito embora essa modernidade tivesse sido pensada a contrapelo da nação, e privilegiasse apenas uma pequena elite da população brasileira em detrimento da maioria –, que influenciaria gerações de escritores e romancistas que, como ele, falaram sobre a Amazônia. Como salienta o pesquisador Francisco Bento da Silva43, o resultado das distorções amplamente difundidas sobre a região amazônica foi tão poderoso que, já mesmo no século XIX, a nação brasileira ainda pensava a Amazônia, sobretudo o Acre, um pouco depois, como um lugar de desterro ou “um epíteto de Sibéria brasileira”, um lugar ideal para os desterrados da Primeira República. Por isso mesmo, as figurações de atraso, deserto e isolamento, difundidas através da pena euclidiana, ajudaram a manter vivos imaginários que, como dito anteriormente, eram rememorados desde a entrada dos viajantes europeus à região. Acrescenta-se a isso o fato de que as figurações euclidianas, “[serão] de uma forma ou de outra, fonte criadora de uma tradição estética no Amazonas” (GONDIM, 1994, p.225). Atualmente, entendemos as razões pelas quais em seus ensaios e cartas amazônicos, Euclides da Cunha jamais tenha falado sobre uma religiosidade africana, indígena ou mesmo sobre qualquer outra alteridade existente na região. Limitado pelas circunstâncias e pela formação que recebera em seu tempo, ele não conseguiria ver na região e nas culturas indígenas uma civilização. Como as visões evoluem, hoje entende-se que o nomadismo dá lugar à fluidez das práticas culturais sem hierarquia de valores e possibilita o rompimento das distâncias que isolavam os sujeitos, tornando possível que suas histórias sociais e trajetórias de existência se entrecruzem, se recriem e se difundam em um dinamismo ininterrupto, no qual o nômade é quem conduz as culturas pelo caminho da diversidade. E, no caso das Amazônias, transformam-nas em um local privilegiado de encontros, de passagens e de trocas entre povos, culturas A propósito, recomendamos a leitura do trabalho Acre – A ‘Pátria dos Proscritos’: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910 – feito pelo pesquisador Francisco Bento da Silva em sua tese de doutoramento. 43

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e movimentos contínuos, através dos quais os sujeitos estabelecem relações com outras culturas que, por sua vez, passam a determinar novos processos numa relação ininterrupta com outros seres. Estas relações são facilmente verificadas em Cinzas do Norte e em El Hablador, respectivamente de Milton Hatoum e Mario Vargas Llosa. Assim, gestar encontros, relações incalculáveis no campo das memórias e dos imaginários tem a propriedade, conforme Édouard Glissant (2011), de se criar a Poética da Relação. Ou seja, uma poética capaz de gestar relações culturais primorosas para imbricar as relações entre os povos e seus bens simbólicos e culturais. Com efeito, como mostrado desde o primeiro capítulo, a região amazônica também tem sido palco dessas relações de que nos fala o ensaísta antilhano ao referir-se ao contexto do Caribe. As Amazônias, ao longo dos anos, vêm sendo lugar privilegiado de encontros, passagens e trocas entre etnias culturais, proporcionados por todos, nômades ou não, que nas Amazônias chegavam/am. Como é o caso dos estrangeiros, que sempre foram ideologicamente fortes e, por isso mesmo, ajudaram a imbricar culturas, marcas sociais, valores simbólicos e diferenças, que enriqueceram as culturas amazônicas. Através do nômade, seguisse ele ou não o viés do etnocentrismo, as culturas iam se misturando e formando novas “zonas de contato”. Seguindo essa linha de raciocínio e compreensão, entende-se ser a partir dos encontros que os sujeitos promovem entre as geografias do espaço amazônico que diferentes culturas e bens simbólicos são gerados, fazendo com que a diversidade seja uma realidade entre as culturas, as quais entram em contato na região amazônica. Embora ainda hoje muitos ainda pensem que o nomadismo e a errância impossibilitam o surgimento/manutenção das estruturas sociais, na realidade, ele vai “revestir-se de uma aparência, depois assumir outra aparência para desempenhar um outro papel na vasta teatralidade social” (MAFESSOLI, 2001, p. 90), tornando-se o elo entre elas, o que, deslocado e aplicado para o contexto das Amazônias, pode ser entendido como o dinamismo a que o exercício do nomadismo submete as culturas que se entrecruzam e geram novas formas de cultura, novos papéis sociais que, por sua vez, se fazem e refazem continuamente. Com esse pensamento, direciona-se a atenção para averiguar 175


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a força que a literatura exerce na consolidação das identidades pan -amazônicas. Conforme acima demonstrado, por meio da literatura, muitas distorções foram perpetuadas e impediram muitos de nós de ver as Amazônias a partir do ser humano que nelas vive. O problema das figurações distorcidas é exatamente esse: o lugar que ocupam nessas representações os habitantes da região e suas práticas culturais. Ainda hoje, as populações indígenas e seus descendentes continuam sendo marginalizados e a região permanece sendo imaginada como um lugar isolado e inóspito, inclusive pelos habitantes de nossas próprias metrópoles. À revelia de seus quase 20 milhões de habitantes ocupando oito países soberanos, figurações etnocêntricas a respeito da fauna, da flora e das populações pan-amazônicas continuam sendo preservadas no campo dos imaginários e das representações discursivas. Por isso é tão importante pesquisar as formas pelas quais os romancistas contemporâneos erguem suas representações e traduzem as práticas culturais dessa região, tendo em vista serem eles intelectuais que possuem ferramentas eficazes para exercerem formações ou imaginários que permeiam a história da região. No caso de Milton Hatoum e Vargas Llosa, essa observação se amplia ainda mais, pois suas obras são arquitetadas em distintos lugares de se pensar e narrar o espaço amazônico, forjando em seus personagens, portanto, identidades pensadas a partir de fronteiras, sejam elas linguísticas, geográficas ou epistemológicas. Ambos os romancistas fazem dessa região uma imensa zona de contato, para usar novamente a feliz expressão de Mary Luise Pratt (1999). Por fim, resta dizer que, em suas traduções, Milton Hatoum e Vargas Llosa apresentam as Amazônias como espaços culturais diversificados e repletos de vozes. Nesses espaços, encontram-se sujeitos resgatados nas/pelas representações de personagens que incluem em suas trajetórias de existência epistemes, as quais falam sobre as Amazônias como o lugar das trocas culturais, dos hibridismos e das movências. São Amazônias erguidas a partir de histórias, cujos personagens, inspirados em sujeitos reais, podem, por meio do discurso ficcional, levar o leitor à reflexão sobre suas realidades e, por consequência, à revisão de seus próprios conceitos e imaginários. 176


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Esta obra foi impressa em processo digital, na Oficina de Livros para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel Pólen Soft 80g/m² e a fonte ITC-NewBaskerville corpo 11 com entrelinha 15 Rio de Janeiro, agosto de 2017


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