Folhas soltas (enfim reunidas)

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Folhas Soltas (enfim reunidas)



CĂŠlia Barros

Folhas Soltas (enfim reunidas)


Copyright© Célia Barros, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa da autora.

Editor João Baptista Pinto

Revisão Rita Luppi

Editoração Rian Narcizo Mariano

Capa Rian Narcizo Mariano inspirada em arte de Erika Barros

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B275f Barros, Célia, 1953Folhas soltas (enfim reunidas) / Célia Barros. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2017. 126 p. : il. ; 21 cm. ISBN 9788577855452 1. Crônica brasileira. I. Título. 17-43952 CDD: 303.4833 CDU: 316.422

Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br


A minhas filhas, Erika e Ingrid, que me inspiram sempre. A minhas irmรฃs, minhas primeiras leitoras. Do tempo em que eu ainda escrevia em pรกginas de caderno, que elas me doavam carinhosamente. A todos que constam das entrelinhas deste livro, que se permitiram folhas, entre minhas prรณprias folhas. E a um Ser maior, que me fez รกrvore (entre รกrvores), e me fez dar frutos, e me ensinou a colher.



Cada palavra uma folha No lugar certo. Uma flor de vez em quando No ramo aberto... Cecília Meireles Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: leve tudo que for desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas. Daqui pra frente apenas o que couber no bolso e no coração. Cora Coralina “... Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas têm uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados...” Eduardo Galeano.



Sumário

Apresentação..................................................................... 11 Autobiografia resumida.................................................... 14 Aquele olhar...................................................................... 17 Pisa na fulô........................................................................ 20 Silêncio! Titio chegou....................................................... 23 A menina e o ladrão......................................................... 26 Cadê o anel que “tava” aqui?............................................ 28 Alienação........................................................................... 32 Quando é Natal................................................................. 35 Morte anônima................................................................. 39 Sem noção......................................................................... 45 Marca indelével................................................................. 50 Maria de todos.................................................................. 55 Primeiro “amor pra sempre”........................................... 58 Como amansar uma sogra............................................... 62 O cavaleiro da tarde ........................................................ 67 Deus existe e me ama!...................................................... 69 O corpo cheiroso de Lurdinha........................................ 75 O menino e o moço.......................................................... 78


Em memória...................................................................... 82 Ambiguidade.................................................................... 85 Livro, porque te amo........................................................ 87 Eu, Marina e o vento......................................................... 91 Papai do Céu é o culpado................................................ 93 Faz de conta....................................................................... 95 A dona do celular............................................................. 98 Trapaça.............................................................................. 101 Conto de fada às avessas................................................... 103 Onipotência....................................................................... 107 Bendita Fênix.................................................................... 111 Recado de um amor que já era........................................ 112 Sarau de poesia................................................................. 114


Apresentação

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dos sonhos que aflorou minha “veia poética”. Adolescente, comecei a escrever histórias de amor, impregnadas de romantismo, numa linguagem pontuada por minha parca experiência de vida. Assim, dei à luz seguidos melodramas, desenrolados em folhas de cadernos, disputados por minhas irmãs e amigas mais próximas, e também pelas mães das amigas mais próximas. Saudosa época de abundante criatividade, que me surrupiou noites e mais noites de sono e quietude. Por aquele tempo, fui literalmente subjugada por personagens que pareciam gritar aos meus ouvidos, tomando forma especialmente na calada da madrugada. Como quem embarca numa gangorra de emoções, construí tramas que me levaram ao choro e ao riso, à dor e, por fim, à alegria. Afinal, no mundo da imaginação não se concebem enredos sem finais felizes. Obviamente, não demorou muito até minha autocrítica – ainda hoje tão rígida, devo admitir – qualificar meus escritos como um monte de tolices, demasiadamente improfundas para serem levadas a sério. “Pretensão demais para uma adolescente com tão pouca vivência”, pensei. Contudo, também concluí que minhas “fiéis leitoras” eram tão insipidamente experientes quanto eu, daí a acolherem com tamanha efusão o que minha fantasia expelia em palavras, por noites e mais noites debruçada sobre folhas de caderno, enquanto o mundo à minha volta parecia invisível. oi na estação

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Tínhamos em comum um espírito sonhador, onde repousava previsível complexo de Cinderela. Por isso continuei a escrever, e por isso elas liam. Ponto e basta! Até que esse tempo foi ficando para trás. Cheguei a pensar que a febre poética do passado tivera origem mais em minha necessidade de diluir em palavras carências e ansiedades, do que numa vocação literária propriamente dita. Da inspiração que concebera “precocemente” tantos melodramas, parecia ter restado somente, ao longo dos anos que se seguiram, munição para poucos contos e crônicas, além de poesias ocasionais, atadas especialmente a circunstâncias afetivas. Mas não desanimei. Não parei de cultivar o sonho de publicar um livro. “Tudo isso ainda vai sair da gaveta”, prometi a mim mesma. Meu livro aconteceu em 2010, diferente, em muito, do que idealizei como primeiro trabalho editado. Sob o título Lavechia, um sapateiro contra a ditadura, contei a história de minha tia Maria e seu marido guerrilheiro, desaparecido nos anos 70. Foram mais de dois anos de pesquisa, colhendo depoimentos e lembranças, por vezes fragmentadas. Não sei se a obra agradou de fato ou se as pessoas que leram foram apenas generosas em elogios. O certo é que me senti gratificada. E foi esse sentimento de realização que me impeliu a tentar recuperar o tempo perdido, entre a inexperiência da juventude e a ousadia deflagrada na meia idade. Depois de muito riso e muito pranto, lancei mão de novos arroubos de inspiração, enquanto escancarava a gaveta do passado. Eis, pois, que finalmente surge meu segundo livro, Folhas soltas: pedaços de uma vida que ora vivi, ora observei e ora somente imaginei; fragmentos de amores reais ou inventados. Consi-

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dero este trabalho mera pretensão literária. Não esperem muito dele. Não vivi uma vida rebuscada. De uma vida comum, um retrato comum, penso. O que me vale é que os bocados que reúno aqui me fazem lembrar as colchas de retalhos de minha infância, esculpidas pelas mãos pequenas e hábeis de minha mãe. Não tinham simetria, como talvez Folhas soltas também não o tenha. Mas cada fração fora tão cuidadosamente selecionada e reunida, que o todo me extasiava o olhar, de indizível comoção e alegria. Célia Barros

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Autobiografia resumida

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como natural do Rio de Janeiro, nasci em Aracaju, Sergipe. Aportei em solo fluminense aos cinco anos de idade. Minha infância, adolescência e parte da vida adulta transcorreram no distante bairro de Realengo, na zona oeste da capital. Apesar de tempos bem difíceis, do ponto de vista financeiro, trago na memória agradáveis lembranças daqueles anos de tanta meninice e tantos sonhos. Fui uma criança saudável e estudiosa; e uma jovem bem-comportada. Irrequieta porém, e intermitentemente focada na busca de um objetivo de vida, para além das modestas expectativas familiares: meus pais esperavam que eu fosse uma mulher do lar, realizada em função do casamento e da maternidade. E eu não via a hora, desde a adolescência, de bater asas, buscar o lugar que me cabia no mundo. Tinha certeza absoluta de que não era aquele o lugar. Também nunca duvidei que alcançá-lo exigiria de mim muito esforço e tenacidade. Então, eu – que já fora cocadeira na infância e feirante na adolescência – comecei cedo minha revolução pessoal, desbravando um mercado de trabalho sofrível já naquela época. Assim foi que, a partir dos 18 anos, experimentei, por curtos intervalos de tempo, um pouco das mais diversificadas atividades: demonstradora de alimentos em clubes e supermercados; técnica de laboratório, com direito a diploma e estágio em hospital; recepcionista; atendente mbora registrada

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de marketing; vendedora de ações; secretária; datilógrafa; e preparadora de dados do IBGE, o que demandou concurso público ainda aos 19 anos. Um dia, realizei um sonho de infância ao me formar em jornalismo. A despeito de mil recomendações contrárias, joguei o emprego público para o alto, adquiri um gravador e uma máquina datilográfica portátil, com parte de minha indenização, e segui em minha luta. Depois de um meteórico e mal sucedido estágio em rádio, passei por assessorias de imprensa, jornais, TV e de novo assessorias. Até que me rendi à instabilidade do mercado e decidi disputar novamente uma vaga em concurso. Reingressei, aos 45 anos, no setor público, de onde só me desliguei com a aposentadoria, aos 60 anos. Nos últimos nove anos de trabalho, atuei novamente como jornalista, na assessoria de imprensa do órgão em que era lotada. Seguindo essa linha do tempo, alternei amores aparentemente possíveis com outros já de cara improváveis. Acumulei erros e acertos. O quanto fui amada, não sei. Sei que casei por amor, mas descasei. Restou-me a melhor parte disso: duas filhas maravilhosas. Já esperei bastante e me desesperei à beça. Em alguns momentos pensei em desistir. Resisti sempre, claro. Não desacreditei; ainda espero. E sigo em frente. Até onde vou? Só Deus sabe. Fui feliz? Certamente, em pedaços. Há outra forma de felicidade? – indago-me às vezes. Quem sou eu, afinal? Pergunto-me sempre. Enquanto a vida me empurra, de modo nem sempre suave, vou buscando a resposta. Sei apenas que queria ter sorrido mais, chorado menos. Não aprendi como. Se pudesse voltar atrás? Faria tudo de novo, porque não teria a cabeça de

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hoje, ainda teimosa, polêmica, porém mais sensata. O que mais admiro em mim? A obstinação, embora isso tenha conspirado contra mim em muitos momentos. Uma particularidade minha de que não gosto? Muitas, para bem da verdade. Entre elas, a suscetibilidade e o espírito defensivo. O que me dá prazer? A companhia das pessoas que amo, ler, escrever, ouvir música (prefiro MPB, óbvio), ir ao cinema, viajar (melhor se para novos lugares). Adoro fotografias e também curto um bom vinho, embora reconheça não entender bulhufas do assunto. O que mais abomino no mundo? No topo da lista, traição e deslealdade. Em síntese, sou filha, mãe, irmã, tia, amiga. Sou eu. Algumas vezes, boa; outras vezes, demônio. Imperfeitamente humana. Acima de tudo, mulher, nas penas e na glória.

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Aquele olhar...

H

que insistem em permanecer na nossa memória, ainda que fragmentadas. Um detalhe qualquer, um gesto, um objeto, um olhar. Como aquele olhar de minha mãe, que eu captei, sabe-se lá por que, aos cinco anos de idade. Curiosamente, foi minha irmã Nadja, hoje com 71 anos, quem me ajudou, certa vez, a juntar as peças soltas de minhas lembranças sobre o dia, distante há muito, em que finalmente chegamos ao Rio de Janeiro. E do pouco que lembro, o mais marcante foi deveras aquele olhar de minha mãe... Havíamos deixado o interior de Sergipe nada menos que seis dias antes, na carroceria de um caminhão paude-arara. Éramos seis crianças, além daquela que minha mãe carregava na barriga, numa gravidez de cerca de sete meses. Dois de nós ainda não caminhavam: a caçula, com dois anos, e meu irmão de quatro anos, que fora acometido de paralisia infantil. Acima de mim, três irmãos, e a mais velha ainda nem completara 12 anos. Tínhamos uma irmã abaixo dela que já se antecipara a nós, viajando com minha avó paterna, em condições bem mais favoráveis. Protegidos do sol e da chuva pela lona do caminhão, viajáramos mal acomodados sobre uma carga de coco, que o motorista – de nome “Timbeu”, segundo minha irmã – veio a despachar apenas em Duque de Caxias, na Baixada á recordações

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Fluminense. E, como se isso já não representasse agrura suficiente, partilhávamos a carroceria com outra família: um casal e três filhos. Uma corda dividia em dois nosso alojamento desconfortável. “Dormíamos nas paradas, normalmente postos de gasolina de beira de estrada, onde tomávamos banho e eu lavava nas bicas as roupas de que iríamos necessitar no resto da viagem, que secavam ao longo da noite. As fraldas ficavam pelo meio do caminho” – conta minha irmã mais velha, um tanto emocionada. Ela lembra que “Timbeu” era sempre solícito e a ajudava a descer as crianças menores pela escada de madeira disposta junto à carroceria. Minha mãe descia do caminhão apenas uma vez por dia, com muita dificuldade devido à gestação avançada. O resto do tempo, ela urinava numa lata grande, esvaziada sempre que o caminhão parava para abastecer. Além de lavar as roupas e dar banho nos irmãos, minha irmã mais velha tinha ainda por tarefa – apesar da pouca idade e da baixa estatura (ela nunca chegou a medir mais que 1,40 m) – encher a moringa d’água sempre que necessário, subindo e descendo do caminhão, incansavelmente, inúmeras vezes ao dia. Era também dela a incumbência de distribuir entre os irmãos a provisão de alimentos adquiridos nas paragens com os módicos recursos que minha mãe trouxera da terra natal. No almoço e no jantar, comíamos farinha com carneseca crua, cortada em pedacinhos, bem como bolachão de água. “De manhã, bebíamos leite, comprado em garrafas” – Nadja acrescenta, bulindo com minha memória gustativa. Não sou muito afeita à farinha, mas gosto de leite frio sem açúcar e ainda me ligo num bom pedaço de carneseca magra e crua. É seguro, porém, que nenhum desses produtos se compara hoje aos vendidos naquela época. O 18  Folhas soltas (enfim reunidas)


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