mem贸ria da aus锚ncia
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Editor: João Baptista Pinto Editoração: Rian Narcizo Mariano Capa: Carolina Alves Revisão: Do Autor
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B336m Batista, William José, 1949Memória da ausência : os séculos de elaboração do discurso sobre o mistério / William Batista. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2011. 114p. : 21 cm Inclui bibliografia ISBN 978- 85- 7785 - 120 - 1 1. Cultura. 2. Filosofia. 3. Helenismo 4. Filosofia Medieval 5. Cristianismo. I. Título. 11- 6923. CDD: 210 CDU: 21 17. 10. 11
24. 10. 11
Letra Capital Editora Tels: 21. 2224- 7071 | 2215- 3781 www. letracapital. com. br
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William Batista
memória da ausência
os séculos de elaboração do discurso sobre o mistério
Sumário Ressonância longínqua e estranha............................................7 A ausência invisível.....................................................................11 1. A cristianização do Ocidente.................................................18 2. Helenismo................................................................................25 3. Estoicismo................................................................................34 4. Epicurismo...............................................................................37 5. Cinismo....................................................................................39 6. Ceticismo..................................................................................42 7. Fragmentos, máximas, citações.............................................44 8. Filon de Alexandria.................................................................48 9. O pensamento medieval Características gerais da filosofia na Idade Média..............51 10. Patrística.................................................................................54 11. Patrística grega.......................................................................55 12. Justino.....................................................................................58 13. Origenes.................................................................................60 14. Dionísio Areopagita..............................................................63 15. Patrística latina......................................................................66 16. Plotino....................................................................................67 17. Santo Agostinho ...................................................................69
18. Escolástica..............................................................................75 19. Anselmo de Cantuária..........................................................81 20. Pedro Abelardo......................................................................84 21. Roger Bacon...........................................................................87 22. Alberto Magno......................................................................90 23. Tomás de Aquino..................................................................93 24. Boaventura de Bagnoregio ..................................................102 25. Duns Scotus...........................................................................106 26. Mestre Eckhart......................................................................110 27. Guilherme de Ockham.........................................................112 Memória da ausência..................................................................117
Ressonância longínqua e estranha
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ste livro trata da elaboração do discurso sobre o mistério, e paralelamente fixa e deixa de manifesto as incontornáveis tendência e necessidade tipicamente gregas de saber e conhecer. E também a resistência e a capacidade, já perdidas, de suportar a ausência e o silêncio do objeto. E ainda o esquecimento de que o mais próprio do mistério é a ausência e o silêncio. A escolha do recorte cai sobre a cultura medieval e vai em busca de expor as determinações da cisão entre razão e fé e o seu confronto na longa duração de dois mil e duzentos anos. Trata de refletir, não apenas os seus contornos e as vizinhanças de uma com a outra, as suas coexistências e as remissões de uma a outra, mas em especial as modalidades da língua e os revestimentos da língua. Apesar de todas as evidências, não é um livro sobre religião, nem sobre a religião cristã. Pois não estuda a constituição ou a instituição ou a institucionalização da fé cristã sob o ponto de vista da verdade revelada ou da tradição. Não trata do sentido suposto numa interioridade; trata, ao contrario, da exterioridade da língua. Trata das arestas exteriores, trata do discurso. Não é um livro de teologia, pois não se ocupa de fundamentos ou da sistematização ou de critérios da sistematização da verdade revelada. Não se ocupa de dogmas nem de princípios que sistematizam postulados. Por dirigir a reflexão a um tipo singular de discurso sobre Deus, que é o discurso cristão, não é suficiente para definir-se como discurso teológico ou teologia. Não é um livro de história, nem apesar de todas as evidências, de historia do cristianismo. Pois não investiga encadeamentos causais nem descreve relações de figuras do tempo ou acontecimentos. Não busca as especificidades das transições ou continuidades. Não reconstitui o momento, não fica à espreita de emergências. 7
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Não recorre a arquivos nem a atores da constituição do seu objeto. Os textos não são lidos como documento, mas como ressonância. Por tratar-se da exposição sincrônica de enunciados, as localizações não são suficientes para que se possa nomear esse trabalho como pesquisa documental ou histórica. Os textos nos servem como rastros indicadores da herança inestimável do patrimônio espiritual do ocidente, e que no entanto guardam seus segredos em algum não dito. O horizonte é anônimo; a obra não está colocada na rede que a sustenta, mas na pratica discursiva que a delineia. E lhe escapa. Persiste o estranhamento da instancia subjetiva. Mantemse a dispersão de identidades - talvez para proteger o segredo do objeto da sua busca. Este livro pode provisioriamente ser definido – pode ser – como um livro de filosofia. Procura fazer o esforço genealógico que persiga as oscilações de sentido sob o ponto de vista do conceito e da historicidade do conceito. Alude ao aparecimento e desaparecimento do sentido, os entrecruzamentos, as dispersões, os apagamentos e as ênfases. Recorre aos sentidos que se sustentam e aos que são esquecidos; mas sem definir as condições da sua formulação. Põe-em-questão a solidez da verdade e sai em busca de interferências obscuras, os parentescos e correspondências distantes. Pelo que fica oculto, o discurso toma formas inesperadas. Embora o que permaneça presente no pensamento nunca se ausente do seu passado. Este livro retrocede e percorre o campo do discurso do objeto Deus ao longo de dois mil e duzentos anos. Os traços dos enunciados, a recorrências do conceito grego “logos”, que foi espiritualizado e cristianizado, a sua persistência no horizonte e na configuração desse campo enunciativo. Tendo se encaminhado nessa direção, a reflexão estará sempre referida ao lugar e à função da língua na constituição de uma cultura. Mais concretamente: ao lugar e à função das 8
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línguas grega e latina que, com o concurso da cristianização do ocidente, se integraram ao cristianismo, e por essa via perduram nos fundamentos da cultura ocidental. Algumas citações e fragmentos testemunham o vigor da cultura grega no que diz respeito à assimilação e integração com a cultura latina em função da ocupação romana na Grécia a partir do segundo século a. C. Plauto (Cassina, 510) Iam victi vincimus. Já vencidos, vencemos. Declara que os gregos, embora tendo sido vencidos militarmente e politicamente pelos romanos, passaram, apenas apoiados na riqueza e pujança da sua cultura, de vencidos a vencedores. Plinio (Naturalis historia, 24, 1, 5) Vincendoque victi sumus. E vencendo, fomos vencidos. Lembra que os romanos, tendo conquistado a Grécia, ampliam seu império militar e politicamente, mas são dominados culturalmente pelos gregos. O que confirma o fragmento de Catão (2, 10) Victorem a victo superari saepe videmus. Muitas vezes vemos o vencedor ser superado pelo vencido. Cícero (Brutus, 73, 254) Vincebamur a victa Graecia. Fomos vencidos pela Grécia vencida. Cícero reconhece a excelência das produções culturais gregas – a filosofia, a tragédia, literatura, cultura, arquitetura... e a sua força frente ao poder romano, que só se apoia em suas armas de guerra. A fórmula mais célebre, no entanto, é de Horacio (Ep. 2, 1, 156): Graecia capta ferum victorem cepit. A Grécia conquistada conquistou o feroz vencedor. A tese deste livro é que a filosofia, a cultura e a língua gregas e a língua latina decidiram, mediante o discurso teológico, a constituição dos rumos do saber no ocidente. A filosofia, a cultura e a língua gregas, tão distantes e tão estranhas à língua 9
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e cultura palestinas, entram em inexplicável, estreita, definitiva assimilação e comunhão. A presença de Deus dura séculos como presença fundadora, e o discurso teológico como discurso vencedor. Elaborado por criaturas humanas dedicadas à ausência de Deus, empenhadas em elaborar os seus sinais velados, destinadas a vigiar o seu silêncio.
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A ausência invisível
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nquanto dura o mais longo acontecimento discursivo da história da filosofia, ainda no século II, a fé cristã emerge como objeto privilegiado de conhecimento, e inscreve os seus contornos em relações de afastamento e proximidade com a razão grega. O empenho é por trazer o impensável ao pensamento e o inefável à palavra. O percurso da cristianização do ocidente se apoia na incorporação das categorias da filosofia grega pelo discurso teológico cristão. É por essa via que os princípios do pensamento grego e da língua grega passam a vigorar como fundamento definidor e definitivo da cultura ocidental. Este livro traça um percurso enunciativo da constituição da fé como objeto discursivo. Não se trata nem de analisar, nem de investigar essa constituição, nem de descrever as condições da sua emergência, que é o que determina que esse é o objeto de que se pode e se deve falar. No limite do discurso se definem duas formas de abordagem: o solo originário da Revelação e a tradição. O discurso da fé forma o objeto fé, define sua configuração e sua tarefa, desloca os signos e conceitos, forma o seu conteúdo, acentua presenças e anuncia a ausência que se resguarda e vigora em suspenso. A recorrência de pressupostos e conceitos continuamente retomados, a interdependência dos signos, a sua coexistência e encadeamentos marcam a delimitação dos campos de atuação e as suas restrições. A singularidade da situação discursiva se apoia na unidade de princípios e pressupostos, na identidade do pensamento, na coerência dos raciocínios e argumentos. E exclui as outras formas de enunciação. Aponta para o mesmo objeto, o mesmo horizonte, os mesmos aparecimentos, 11
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o mesmo léxico, a mesma arquitetura conceitual do poderoso vigor do discurso que foi capaz de criar, primeiro um modo de ver o mundo e depois um modo de existência. As relações externas das condições de emergência – as instâncias sociais, econômicas, culturais e técnicas estão e não estão presentes no objeto, uma vez que todo dito manifesto parece destinado a um não- dito que ultrapassa o discurso ao mesmo tempo que o sustenta. A instauração do saber sobre o mistério no ocidente se estende por mais de mil e duzentos anos desde as primeiras tentativas de sistematização da experiência da fé em busca de fundamentos racionais e explicações lógicas para a verdade revelada, da incorporação das categorias da filosofia grega ao discurso teológico e às articulações da cisão entre razão e fé. O drama das tensões em torno do confronto entre fé e razão se desdobra por séculos seguidos sobre a cisão pela qual foram mantidas separadas. A distância, no entanto, sempre foi incômoda; tanto quanto foram e ainda são incômodas a sua aproximação e sua proximidade. Enquanto dura o enfrentamento, razão e fé desafiam a competência da racionalidade e as fronteiras da língua; os dois lados colidem com as possibilidades da linguagem ao mesmo tempo em que deixam aparecer dos dois lados os impasses, as reduções, fixações, dilemas, contradições, paradoxos, oscilações, rupturas. Durante os séculos de insistência no confronto, razão e fé chegam ao termo dos seus limites como se nunca tivessem se encontrado; ou se afastam como se nunca tivessem se aproximado mais do que pudessem se separar numa integração ainda mais incômoda do que são capazes de suportar quando se aproximam ou se afastam. No primeiro momento, a razão se apresenta como serva da fé e a filosofia como serva da teologia. A mensagem cristã com seus princípios, seus postulados, suas tradições e doutrinas, seus 12
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ensinamentos e seus dogmas se dispõe com competência sobre o quadro conceitual da filosofia grega. E dá inicio à lenta integração com a língua grega, seus signos e símbolos. E depois também com a língua latina, os signos e símbolos da cultura romana. O discurso teológico espiritualizou a noção latina de fides, fé, e a colocou como oposta à noção de ratio e à noção grega de logos, ambas com o sentido próximo ao de razão. Ainda que em alguns textos cristãos mais antigos o logos grego já tivesse sido identificado com Cristo ou com Deus, o próprio logos foi também definido como oposto à fé, embora o logos da filosofia não contenha nenhuma denotação que possa servir de oposição nem mesmo ao mito. O discurso da mística cristianizou o conceito socrático de arete, vindo da antiga arete homérica, e o traduziu para o latim como virtus; em português, virtude. Essa tradução perdeu o conteúdo ôntico que possui na filosofia grega e o termo latino virtus assumiu o sentido moral que trouxe das filosofias helênicas. O conceito grego de alma, princípio espiritual de vida, racionalidade e inteligência, fundamental na teoria platônica do conhecimento, recebe sentido teológico que lhe atribui capacidade de união mística com Deus e enfatiza suas características que a opõem ao corpo. O termo muito antigo – ascese –, que remonta aos órficos e pitagóricos e que se faz presente nos pensamentos dos sábios helênicos, tem o sentido de exercício espiritual que fortalece o corpo e a alma e inspira uma vida de austeridade e renuncias, é cristianizado. Termos como fronesis e sofrosine, com sentidos próximos à sabedoria, ponderação, temperança, moderação, prudência, despojamento, antes vinculados aos sábios helênicos, descrevem atributos dos santos cristãos. O termo elpis, que pode ser traduzido por esperança, recebeu conteúdo espiritual e, associado ao amor e a fé, juntos se tornaram as virtudes teologais. 13
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O discurso teológico incorpora conceitos aristotélicos como ser, causa, substância, essência, forma, princípio, primeiro motor, necessidade, perfeição que tomam sentidos alusivos a Deus, embora Aristóteles pensasse em perfeição apenas como a expressão do ser que realiza em si todas as potencialidades do seu ser. O conceito platônico de Bem, definido como ideia das ideias, o inteligível, que só é acessível ao intelecto e inacessível à sensibilidade, e que é o absoluto, a plenitude, a verdade, objeto de aspiração e de conhecimento, no discurso teológico e místico descreve qualidades divinas. Ao longo de séculos, operações de formações e práticas discursivas transcrevem, conservam e adaptam os conceitos da filosofia grega ao referencial cristão. O ocidente cristianizado absorve o vocabulário e o modo de pensar dos gregos e incorpora ao uso das línguas grega e latina as categorias platônicas e aristotélicas. De modo definitivo e com repercussões permanentes. A filosofia grega provê a fonte dos conceitos com os quais se torna possível a sistematização do discurso teológico; é portanto no discurso teológico que fé e razão se encontram, e tanto quanto possível se integram. De certa forma se integram e de certa forma se separam. É essa delimitação que garante a regularidade da persistência do tema e do confronto, e garante a continuidade dos processos de elaboração das vinculações entre outros conceitos e entre outras modalidades de enunciação. É com os recursos do instrumental conceitual da filosofia grega que o discurso da fé cristã se institui e se consolida, e passa a vigorar como discurso verdadeiro. E é com os instrumentos da filosofia grega que o discurso cristão resiste à integração entre razão e fé ou à sua assimilação. A fórmula credo quia absurdum – creio porque é absurdo – afasta qualquer interferência da racionalidade em matéria de verdade revelada e faz com que a fé repouse na fé absolutamente e se inscreva como critério de conhecimento e de verdade. 14
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Pela urgência de síntese, a fórmula credo ut intelligam – creio para que compreenda – determina a anterioridade da fé e a sua precedência em relação à razão. Por sua absoluta transcendência, nenhum conceito pode exprimir a essência de Deus. Enquanto a fé procura o entendimento – fides quaerens intellectum –, dos dois pólos emergem todas as aparências de terem encontrado o rumo do equilíbrio. Ou um caminho para que os antagonistas se equacionem. Ou ao menos se articulem. Impregnada de inesperado racionalismo, a escolástica respalda a fórmula–intelligo ut credam: compreendo para que creia. Ainda assim, o pressuposto é o critério da fé, e se subentende que a finalidade do entendimento é servir de apoio capaz de sustentar a fé e mediante o qual a fé possa se justificar e esclarecer. Enquanto razão e fé servem de apoio e sustentação recíprocos é que se chega à fórmula – credo et intelligo: creio e compreendo. Creio e compreendo pode ser interpretado tanto como que razão e fé se separem radicalmente e como que radicalmente se integrem. Que se afastem ou se assimilem, o incômodo do confronto se mantém. Se razão e fé estão definitivamente separadas como dois contrários contraditórios, correm o risco de definitivamente se unirem; se estão radicalmente unidas, correm o risco de se afastarem radicalmente. Integradas ou não, a fé em Deus é uma intuição e a existência de Deus é uma verdade que não precisa ser demonstrada. Não há na fé , portanto, nenhuma racionalidade, e para crer em Deus a razão não é necessária. Como a fé não exige raciocínio, não há conflito entre fé e razão. Define-se que a fé procura Deus e a inteligência o encontra. E que antes irrompe a fé e só depois poderá haver interferência da razão. Antes amor e vontade de conhecer, depois entendimento. Pois só se procura o que se ama e só se ama o que se conhece. 15
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Se não há contradição entre fé e razão, a razão colabora com a fé, e a crença em Deus não implica apenas a fé mas também entendimento. Pode-se portanto demonstrar racionalmente que Deus existe. A razão se torna um instrumento da fé. Entende-se Deus como Causa primeira, a Causa necessária dos entes contingentes; Deus é o Ser necessariamente existente, sem o qual nenhum ente existiria. Embora a essência de Deus seja incognoscível, a existência de Deus pode ser comprovada pela razão. E assim, crer em Deus não é mais uma questão apenas de fé, mas de lógica. Com a persistência no tema e no confronto, filosofia e teologia se definem como campos diferentes de saber. Então, razão e filosofia proclamam autonomia em relação à fé e à teologia; a existência de Deus se declara como indemonstrável racionalmente e a essência de Deus como inefável. A fé não encontra mais na razão o apoio que encontrou nos séculos anteriores. E nem precisa. Deus ultrapassa qualquer possibilidade de conceituação ou definição. E é logicamente indemonstrável. A fé não procura mais na razão o fundamento que antes procurou. E nem precisa; as palavras não são mais convenientes para falar de Deus. E assim se nega à razão a competência para apreender as verdades da fé e se pronunciar a respeito de Deus. Não há conveniência alguma entre racionalidade e mistério. Os vínculos entre fé e razão se dissipam; é a própria fé que se mostra capaz de se sustentar sem os fundamentos racionais. A fé não dispõe de lógica alguma, e por isso mesmo a razão não desempenha nenhuma função em matéria de fé ou de verdade revelada. Os registros múltiplos, as exclusões, as relações complexas garantem a permanência da descontinuidade. Juntas, as duas instâncias nunca foram sistematizadas. Se se pode ater a um princípio de unidade, permanece oculto. Se se 16
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pode ater a um princípio de coexistência e coesão, conduz-se em surdina. O âmbito da fé se afasta definitivamente do âmbito da razão; a existência e a essência de Deus se declaram inacessíveis. Desde sempre, Deus é o inefável, o inapreensível, o inominável. Desde sempre Deus é o mistério. O mais distante e o mais próximo dos mistérios. Tão distante que pode nem ser percebido, e só se apreende como inefável; tão próximo que só se revela velado, e ao mesmo tempo em que se revela, desaparece na própria revelação. Ou só aparece como presença que não se dá a ver em nenhuma aparência. Se existe a ausência que pode não ser sentida como presença, o silêncio de Deus pode não ser ouvido e pode ser uma presença que apenas não é vista. Ou não é vista como presença ou é vista como uma ausência que não é visível, uma ausência que sequer é sentida como ausência. Quando uma ausência é sentida como presença, desaparece o impasse entre a visibilidade e a invisibilidade do ausente, a sua ausência e a sua presença são visíveis e são vistas como doação do seu ser de presença sem aparência, doação da presença que nunca aparece – a ausência invisível. Rio de Janeiro, 5 de setembro de 2011.
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1. A cristianização do Ocidente
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e a filosofia e a cultura gregas são consideradas fundadoras da cultura ocidental, o cristianismo – palestino em sua origem e depois grego e romano – é definidor dos rumos da história espiritual do ocidente. Este livro testemunha os séculos de enfretamento com a ausência mais incomoda – a invisibilidade do Outro impensável e inefável. A tradição cristã sustenta ainda hoje no ocidente manifesto poder informador em todos os níveis da cultura. Emerge em seu vigor já no século II pela conjugação de fatores de origens muito diversas e toma impulso até se instaurar e lentamente se instalar como decisiva poderosa coluna da cultura ocidental. Desde a conversão do imperador Constantino no século IV, o cristianismo se amplia e se fortalece sustentado pela vitalidade da mensagem de Cristo, mediante a intersecção entre o poder alcançado pela institucionalização da Igreja, a adoção do latim, a língua e a filosofia gregas, as culturas grega e romana. Depois da queda do império romano no século V, e enquanto se efetiva a aproximação da instituição eclesiástica com a estrutura política e hierárquica do império que desmoronou, a língua grega, que antes já se impôs como língua culta, se ajusta ao latim que, de língua do império romano, se estabelece como língua da cristandade. A estrutura política romana e a cultura latina, a filosofia e a cultura gregas se articulam com doutrinas, dogmas e princípios cristãos. As línguas grega e latina se harmonizam com os signos da Verdade Revelada e se põem a caminho da pronuncia do mistério inapreensível e do Deus inefável. E de posse desse mistério e já instituído em seu poder hierárquico, o cristianismo instaura com autoridade o processo de formação da sua cultura e sustenta com competência a cristianização do ocidente. 18