A GRANDE MISSÃO
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Editor: João Baptista Pinto
Capa: Hélio Juber
Editoração: Luiz Guimarães
Revisão: Da autora
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
C321g
Carvalho, Benedita Maria Vieira de, 1947A grande missão/Benedita Maria Vieira de Carvalho. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. 140 p. : il. ; 15,5x23 cm.
ISBN 978-85-7785-606-0
1. Ficção brasileira. I. Título.
18-50284 CDD: 869.3 CDU: 82-3(81) Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439
Letra Capital Editora Telefone (21) 22153781 / 35532236 www. letracapital.com.br
Benedita Maria Vieira de Carvalho
A GRANDE MISSĂƒO
Dedico este livro a todos os militantes de Direitos Humanos e de causas sociais e humanitárias, aos místicos e aos ecologistas e aos povos tradicionais de todos os quadrantes da Terra, guardiães da Tradição Primordial.
Sumário Capítulo I - Em Ouro Preto.................................................................... 9 Capítulo II - Em Busca de Provas..........................................................14 Capítulo III - O Primeiro Encontro......................................................19 Capítulo IV - As primeiras Revelações................................................. 33 Capítulo V - De Volta a Ouro Preto..................................................... 40 Capítulo VI - A Primeira Grande Reunião...........................................47 Capítulo VII - As Pequenas Missões..................................................... 54 Capítulo VIII - Mais uma Pequena Missão...........................................61 Capítulo IX - Rumo a Florianópolis..................................................... 73 Capítulo X - Uma Nova Missionária..................................................... 88 Capítulo XI - Uma Surpresa de Amor e Mais uma Grande Reunião......96 Capítulo XII - A Dúvida Ética do Advogado......................................107 Capítulo XIII - A Primeira Defesa Importante..................................114 Capítulo XIV - De Volta a Florianópolis............................................ 120 Capítulo XV - Uma Reunião Monumental........................................ 130 Capítulo XVI - O Grande Dia............................................................. 134
Capítulo I
Em Ouro Preto
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ladimir caminhava ao lado da tia pela Rua das Mercês em direção à Igreja de São Francisco de Assis para a missa das
9 horas. Ele ia calado, a tia o observava de soslaio, pensando: “A cabeça dele está fervendo”. Eles tinham conversado na noite anterior até tarde, razão pela qual não teriam como ir às missas das primeiras horas. Mas aqueles assuntos continuavam borbulhando em sua cabeça sempre inquieta. Ele vinha frequentemente de Belo Horizonte, onde cursava o último ano da Faculdade de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, para conversar com a tia Luiza em Ouro Preto. Era uma das poucas pessoas com quem podia discorrer livremente sobre suas teorias, versando sobre os vários mistérios da vida e da História e as explicações religiosas e antropológicas sobre as nossas origens; sobre os fatos políticos da atualidade e sobre o significado dos mitos que compõem os nossos arquétipos. Para um estranho que ouvisse parte dessas discussões, poder-se-ia dizer que era conversa de doidos. Algumas coisas Luiza não aceitava, sobretudo em fatos sobre política atual ou sobre alguns conceitos de misticismo, porque sua antiga militância política e permanente foco nos fatos da atualidade, bem como seus muitos anos de estudos místicos a abalizavam para um arsenal de argumentos bem fundamentados sobre esses temas. Eles iam passando por aquelas ruas antigas, onde ecoavam ainda os gritos dos pretos que vendiam frutas ou o xingamento das pretas gordas — que expunham nas janelas dos sobrados, para secar, aquele doce de amendoim e açúcar queimado, todo repartido em tijolinhos nos tabuleiros — contra os moleques que aproveitavam a sua distração para abocanhar um ou dois tijolinhos, enquanto corriam ladeira abaixo: — Moleque safado! Não rouba, pede. Pede, moleque! De tanto repetir: “Pede, moleque!”, o nome do doce ficou associado a esse apelo desesperado das pretas doceiras do Brasil colonial e ficou definitivamente Pé de Moleque. A grande missão
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Ao pensar nisso, Wladimir ri. Mais adiante ele semicerra os olhos e vê o movimento daquelas ruas povoadas de homens e mulheres vestidos com as roupas do século dezenove, os escravos com sua pele retinta, carregando liteiras, realizando todos os tipos de trabalhos braçais, guardando em seus semblantes o silêncio de uma condição absolutamente anticristã. “Como foi possível que os padres aceitaram de bom grado a escravidão?” “Eles foram coniventes e se aproveitaram muito bem daquela situação”, vai pensando. Agora já avistam a igreja, em sua imponência barroco-rococó, ou rococó-barroco. Belíssima. Atravessam o grande pátio externo, já com outros fieis que se encaminham para o mesmo culto. Lá em cima da fachada Nossa Senhora da Conceição, esculpida em pedra sabão pelo Mestre Aleijadinho, faz as honras da casa, junto com a imagem de São Francisco de Assis, recebendo as chagas de Cristo, em magnífico medalhão. Entram contritos e sentam-se em um dos centenários bancos, ao lado de alguns jovens, certamente estudantes, moradores das inúmeras repúblicas da cidade. Ainda falta um pouco para começar a missa. Wladimir passeia os olhos pelas laterais da igreja, repleta de arte e devoção daqueles tempos de domínio português. “Quanto ouro!”, pensa. “Ainda bem que esse ficou aqui, ornamentando esse tesouro de beleza e criação dos nossos mestres.” Ele novamente semicerra os olhos e vê Mestre Ataíde conversando com o Aleijadinho sobre os detalhes da decoração. Ele eleva os olhos e se detém no painel da cúpula, onde Mestre Ataíde retratou Nossa Senhora dos Anjos ascendendo aos céus, acompanhada de uma orquestra de anjos. “Quanta beleza!”. “Certamente Mestre Ataíde estava pensando em sua concubina, a mulata alforriada Maria do Carmo Raimunda, quando pintou essa Nossa Senhora, com suas feições bem mestiças e os seus anjinhos também bem moreninhos. Um deles, bem pretinho, certamente representava o seu filho mais velho com a concubina”. Todos se levantam. Chegou o padre com seus paramentos e o coroinha para oficiar a santa missa. Os ecos da voz do padre se alternam na cabeça distante de Wladimir com o cântico da assistência e os refrãos repetidos coletivamente. Seus olhos acompanham cada escultura, cada alegoria. Na capela-mor, coberta com abóbada de madeira, nos cantos repousam contritos São Conrado, Santo Ivo, Santo Antônio e São Boaventura, enclausurados nos medalhões ovais, onde recebem as orações e súplicas dos fiéis. 10
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Ele observa também as pessoas, a maioria mulheres. Elas acompanham a missa disciplinadamente, respondendo em coro sempre que instadas e cantam com fervor os vários cânticos que compõem o ritual. Algumas bem velhas, velhinhas, de rostos enrugados e olhinhos quase fechados, acompanhando a missa de maneira quase maquinal, enquanto alternam as respostas em coro com o desfilar dos rosários, que vão recitando baixinho durante todo o culto, marcado pelo movimento das bocas murchas e dos dedos trêmulos. Quantas ave-marias e pais-nossos, rezados assim de maneira tão automática! Seria para permitir uma contabilidade positiva de pontos para uma entrada garantida no Céu? Ele não é católico. Está ali só para acompanhar a tia, que também não é completamente católica. Isto quer dizer que ela foi criada no catolicismo, mas não aceita os dogmas da Igreja. Mas gosta de ir à missa, porque aprecia o ritual e o vivencia de acordo com suas convicções místicas. Ela até comunga, às vezes. Wladimir ri disso. Ele questiona: — Tia, não sei por que você comunga? — Tudo é simbolismo. O importante nos rituais é o valor místico que atribuímos a eles. A comunhão é um momento muito sagrado. O sacerdote está imbuído de muita emoção e, sobretudo, de devoção. Isso dá vida e autenticidade ao ato. — Tia, será que as pessoas não percebem que essa história de Jonas ter sido engolido por uma baleia e lá na barriga do animal ele conversar com Deus, que isso não tem sentido? Eu me distraí muito durante a missa, mas durante o sermão, eu fiquei ouvindo o padre falar sobre essa passagem da Bíblia. Porque as pessoas aceitam através dos séculos essas histórias que não tem nenhum fundamento científico? — Wladimir, você sabe que esses livros sagrados falam por metáforas, por alegorias. — Pois eu te digo, tia, que a baleia não era nada mais, nada menos que um submarino. Jonas entrou e saiu de um submarino e o povo o aclamou como Deus, porque ele apareceu de forma extraordinária. — Wladimir, às vezes você viaja demais. Há explicações que consideram essa passagem como a representação simbólica de um período intermediário entre dois estados de consciência. É a metáfora da “Morte Iniciática”, a entrada na barriga da baleia, ou a penetração no mundo do invisível, tal como ocorria nos ritos dos Mistérios de Eleusis, de Delfos, de Orfeu e dos templos do antigo Egito. A saída de A grande missão
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Jonas da baleia é a “Ressurreição Iniciática”, ou o Novo Nascimento para uma nova consciência espiritual. Quer ver outro exemplo interessante: quando Jesus ressuscitou Lázaro, ele não estava morto fisicamente, ele estava em estado de morte Iniciática. Jesus o trouxe para uma nova vida, depois de passar pelos ritos, que eram comuns em certos círculos. Para isso eles usavam drogas de poder, sob o comando de Mestres ou sacerdotes bem treinados. São coisas que a Igreja oficial não reconhece ou sonega essas informações, porque não interessa aos seus objetivos de comando das grandes massas, como sempre fizeram todas as grandes ordens religiosas. Ou para manipulação de poder, ou porque também os mistérios não estavam ao alcance das mentes despreparadas. — Tia, essa interpretação é bastante interessante, mas não se trata de metafísica, eu estou falando de fatos concretos. Existem registros, o livro apócrifo de Enoque e o livro de Ezequiel, na Bíblia... — Aí é que está — interrompe-o Luíza — justamente esses textos, os do livro de Enoque, principalmente, e nisso e em outros aspectos, os relatos do profeta Ezequiel, nos dão conta de experiências iniciáticas muito importantes de viagens em vida ao mundo do além, onde o iniciado penetrava nos mistérios que o dotavam de um conhecimento só permitido a poucos eleitos. Tudo isso teria que ser mantido em segredo, daí a maneira velada de suas descrições, sempre cercadas de muito simbolismo, restrita aos círculos dos iniciados e sacerdotes. No caso dos grupos judaicos esotéricos, como os terapeutae, que tiveram contato com os cultos aos mistérios dos egípcios e Ezequiel com os babilônicos ... Nesse momento são interrompidos pela chegada do Padre Eustáquio, que, ao vê-los, se aproxima animadamente, dirigindo-se a Luíza. ___Minha amiga, como vai? Quem é o jovem? — Oh! Padre Eustáquio! Que boa surpresa! Esse é meu sobrinho Wladimir. ___Eu já o vi algumas vezes em sua companhia. É um fiel de nossa Igreja? ___Digamos, um curioso. Prazer em conhecê-lo! — diz Wladimir, estendendo-lhe a mão. ___Curioso? Como assim? — Ele é curioso por tudo que envolve a história humana, Padre, é isso — interfere Luiza. 12
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— Interessante! É estudante de História? — dirigindo-se para Wladimir. — Sou estudante de Direito. Formo-me no final do ano. Mas me interesso muito pela saga da humanidade e aí se inclui a Igreja Católica e as outras tantas instituições religiosas ou não, onde os homens desenvolvem a sua eterna luta por poder, dominação e manipulação. — Meu Deus! Você é ateu? — Não, de forma alguma. Sou bastante místico. Mas não gosto de dogmas e não sou inclinado a acreditar nas interpretações oficiais dos textos sagrados e também dos fatos históricos. — Isso é muito instigante. Eu gostaria de conversar com você, meu filho. Eu... Nesse momento alguém chama o Padre Eustáquio, que interrompe sua conversa, despedindo-se rapidamente de Wladimir e Luiza: — Tenho que ir, mas não esquecerei este encontro. Quero conversar com você, meu rapaz.
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Capítulo II
Em Busca de Provas
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ladimir sai apressadamente da Faculdade de Direito, caminha pela Avenida João Pinheiro, para diante do semáforo e, quando o sinal verde acende, atravessa a rua. Mal coloca o pé na calçada, depara-se com Ângela, aluna da Escola de Educação da mesma Universidade, só que sua unidade fica no campus da Pampulha. Ela ia atravessar para o outro lado, mas se detém, dirigindo-se a ele: — Oi, Wladimir! Aonde vai com tanta pressa? — Oi, Ângela! Como vai? — Estou ótima, e você? — Estou bem. Prazer em te ver. — Espera. Porque tanta pressa? Ele sorri e arrefece. Ela pega em seu braço e o leva até um barzinho ali perto. — Desta vez você não me escapa. Precisamos conversar. Apesar do que disse, ela fica calada, só olhando para ele. Ele sustenta o seu olhar e, docemente, aproxima seu rosto do dela. Ela fecha os olhos e ele a beija. — Porque você nunca mais me procurou? — Não foi por falta de vontade. É que estou confuso com um monte de coisas na minha cabeça. Ela não diz nada e ele continua. — Foi bom ter te encontrado. Você me faz bem, me acalma. Eu não quero mais me afastar de você. E apertando com força a sua mão, suplica: — Se eu me afastar, me busca. Hoje à noite eu vou para o seu apartamento. Posso? — Claro que pode. Vou esperar. — A que horas devo chegar? — Chega às oito. Vou preparar um jantar legal para nós dois. Ele a beija de novo e se despede. __Tenho que encontrar um cara que vai me dar uns documentos importantes para umas pesquisas que estou fazendo. 14
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Ele retoma o seu caminho pela Avenida João Pinheiro e chega à Praça da Liberdade, onde o espera João Afonso, um jovem pálido e já calvo, apesar de aparentar uns vinte e dois, vinte e três anos. Os dois se apertam as mãos e João Afonso lhe mostra a pasta recheada de papéis, que Wladimir pega com interesse. — Vamos nos sentar em algum lugar. Não dá pra ver isso aqui no meio da praça — diz Wladimir. Os dois se dirigem a um boteco das proximidades e pedem dois cafés. Enquanto o garçom os serve, Wladimir abre a pasta e começa a examinar os documentos, a maioria cópias Xerox de artigos e de textos diversos. Ele folheia tudo, lê alguns trechos e então pergunta: — Quanto você quer por isso? — Eu quero quinhentos paus. — Eu não tenho tudo isso. Posso te dar R$150,00. É pegar ou largar, pois agora com os títulos, posso pesquisar todo esse material. — Tá bem, vá lá. Me dá os 150. Wladimir sai do boteco e se dirige rápido para seu apartamento, um conjugado bem apertado na Rua Gonçalves Dias. Enquanto anda, vai pensando nos detalhes que aqueles artigos poderiam completar naquilo que ele já estava há muito programando. É claro que ele poderia pesquisar todos aqueles artigos, mas ele tinha pressa. Ali estava praticamente tudo o que ele precisava para entender e responder às suas dúvidas. O João Afonso conseguiu aquilo tirando cópias dos arquivos do Dr. Klaus Vejgen, pesquisador e historiador contratado da UFMG, em cuja imensa biblioteca ele trabalha como auxiliar de biblioteconomia. Chega em casa, tira os sapatos e se joga na cama. Permanece assim por algum tempo, depois, elétrico, pega a pasta e a leva para a sua mesinha de estudos, acende a lâmpada do abajur e começa a separar os artigos, pelas datas de publicação. “Agora sim, posso começar a leitura”, pensa. Mas não começa naquele momento. Levanta-se, vai até à cozinha embutida, “quitinete”, e faz um prato com as comidas que tem na geladeira: um pouco de arroz, feijão, uma fatia grossa de carne de panela e um pouco de abobrinha ensopada. Coloca o prato no micro-ondas, devidamente coberto com outro prato e prepara um suco. Senta-se à pequena mesa e come vagarosamente o seu almoço. Estava com muita fome. A grande missão
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