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Alessandro Rodrigues Rocha
MODOS DE CRER E CONHECER Relações entre teologia e epistemologia
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Copyright© Alessandro Rodrigues Rocha, 2017 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem a autorização prévia por escrito das autoras, poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R576m Rocha, Alessandro Rodrigues, 1973Modos de crer e conhecer : relações entre teologia e epistemologia / Alessandro Rodrigues Rocha. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Letra Capital, 2017. 158 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN: 9788577855254 1. Filosofia e religião. 2. Teologia. 3. Filosofia. I. Título. 17-41230 CDD: 210 CDU: 2-1
Letra Capital Editora Tel: (21) 2224-7071 / 2215-3781 vendas@letracapital.com.br
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Sumário
Introdução..........................................................................................7 Capítulo 1 Polissemia e univocidade na formação do pensamento filosófico: afirmação de caminhos epistemológicos.........................................11 Capítulo 2 Encontro da filosofia com o cristianismo: o surgimento da teologia..................................................................27 Capítulo 3 Pensamento Moderno: autonomia da razão e dualismo epistemológico................................................................47 Capítulo 4 Incidências da epistemologia Moderna sobre a teologia: os racionalismos teológicos..................................67 Capítulo 5 Pós-modernidade como expressão do pensamento pós-metafísico: epistemologia no plural.....................................................................81 Capítulo 6 Incidências das epistemologias Pós-modernas sobre a teologia: pensamento fraco e libertação da metáfora....................................107 Conclusão Novas aberturas.................................................................................143 Referência Bibliográfica....................................................................155
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Introdução
O que é teologia? Foi no mundo grego que o termo teologia lançou suas raízes, pois nos teatros gregos havia acima do palco um lugar chamado “theologeion”, onde apareciam os deuses. Esse verbo “theologéo”, significava o discursar sobre os deuses. Teologia exprimia a ciência das coisas divinas. O teólogo era aquele que falava sobre os deuses ou sobre os poetas como Hesíodo e Orfeu. Platão usava o termo para exprimir o discurso sobre Deus ou os deuses. Aristóteles delimita para o campo do saber. A filosofia primeira que tratava as causas necessárias, eternas e imutáveis, hoje chamamos de metafísica o estudo do ser enquanto ser. O sentido pagão foi considerado na teologia latina cristã antiga, nesse sentido Agostinho se referia a ela como fábula: “três são os gêneros da teologia, isto é, da razão que dá explicação sobre os deuses: um tipo dela é mítico, outro físico (natural) e o terceiro civil”. A teologia foi aceita como ciência de Deus pelo cristianismo, assumindo assim a acepção cristã do discurso sobre Deus e Cristo. Isso se deu a partir do século IV, sobretudo pela Patrística Grega. Abelardo (1079-1142), por sua vez, no mundo latino usa o termo para se referir ao tratado sobre Deus enquanto se utilizava ‘beneficia’ para a teologia sobre Cristo. A Escolástica, no entanto, preferiu outros nomes para a teologia, como “doctrina christiana”, “doctrina divina”. Santo Tomás (1225-1274), por sua vez, fez o uso mais dos termos “sacra doctrina” ou “doctrina cristiana”, mas muito raramente usava teologia. A teologia assume o lugar da “sacra doctrina”, entre São Tomás e Escoto (1266-1308). Na Idade Moderna surgem outros aspectos da teologia: teologia mística, teologia ascética, teologia moral, apologética, teologia positiva e teologia escolástica. Da antiga teologia o que restou foi a teologia que hoje se chama dogmática ou sistemática. Teologia possui o composto de dois termos: Théos = Deus + Lógia = ciência. Em um primeiro momento então, diríamos que teologia é a ciência de Deus, tratado de Deus, estudo de Deus. Deus é o centro de qualquer reflexão teológica, pois ela de alguma maneira se refere
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a Ele. Por isso durante muito tempo se pôde afirmar que a teologia tinha como objeto Deus. A conclusão que teologia é a ciência de Deus, embora fundada na própria significação de seus termos, foi problematizada ao longo da Modernidade. Poderia o conhecimento humano investigar Deus? Seria Deus um objeto disponível à inteligência humana? Haveria de fato um método seguro para dizer aquilo que Deus é? Estas questões provocaram a teologia no sentido de repensar sua auto definição, bem como a extensão de sua pretensão. A partir de então, é comum pensar que a teologia é um saber sobre o que de Deus podemos apreender, e nesse sentido um saber sobre a revelação. O Teo da teologia não é, portanto, o Deus em si, mas o Deus para nós. Nesse sentido a logia como saber humano sobre algo, precisa se voltar à revelação para a partir desse momento dizer sua palavra. Contudo, ainda nos resta pensar sobre o que é ou onde encontramos tal revelação. O que é Epistemologia? Epistemologia significa ciência, conhecimento, é o estudo científico que trata dos problemas relacionados com a crença e o conhecimento, sua natureza e limitações. Os estudos epistemológicos tratam da origem, da estrutura, dos métodos e da validade do conhecimento, por isso é considerado como teoria do conhecimento que relaciona-se com a metafísica, a lógica e a filosofia da ciência. É uma das principais áreas da filosofia, no lugar em que compreende a possibilidade do conhecimento, ou seja, se é possível o ser humano alcançar o conhecimento total e genuíno. A epistemologia também pode ser vista como a filosofia da ciência. Ela trata da natureza, da origem e validade do conhecimento, e estuda também o grau de certeza do conhecimento científico nas suas diferentes áreas, com o objetivo principal de estimar a sua importância para o espírito humano. A epistemologia provoca duas posições, uma empirista que diz que o conhecimento deve ser baseado na experiência, ou seja, no que for apreendido durante a vida, e a posição racionalista, que prega que a fonte do conhecimento se encontra na razão, e não na experiência. Como se relacionam teologia e epistemologia? Como articular os modos de expressar o crer e de compreender? A história do Ocidente aponta diversas formas de responder a estas questões. Esse livro busca contribuir com estas discussões oferecendo uma reflexão sobre as relações dialética entre epistemologia e teologia. Tendo como refe-
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rencial as noções de pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade (categorias discutíveis, mas didaticamente úteis) percorremos a história da teologia e da filosofia estabelecendo as aproximações e distanciamentos, as harmonizações e tensionamentos, em suma, o mutuo enriquecimento entre o crer e o compreender.
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Capítulo 1
Polissemia e univocidade na formação do pensamento filosófico: afirmação de caminhos epistemológicos
O surgimento da metafísica e sua influência na epistemologia. A univocidade como forma de linguagem para falar da realidade não é o tronco da existência do discurso. Ela é sim um ramo que parte de um outro tronco, polissêmico e portanto mais voltado à equivocidade: o mito.1 Galimberti marca a diferença entre o mito e o método científico advindo da filosofia, indicando o mito como um caminho com as seguintes peculiaridades: Por isso é necessário seguir um caminho, mas como não se indica o lugar a que se deve chegar, não se pode entender caminho como simples meio para alcançar a meta que deixa o caminho para trás. Este é o motivo por que não há um método para ler os mitos. Deixando para trás ironia, maiêutica, epoché, dúvida, numa palavra os métodos do Ocidente, o mito inaugura aquele encontrar-se o caminho, aquele entreter-se no caminho, sem As expressões unívoco e equívoco são fundamentais à compreensão de toda nossa discussão. Aqui, discurso unívoco está ligado à metafísica que o sustenta e dá plausibilidade. Univocidade, neste sentido, significa afirmação uniforme acerca de um discurso, identificando-o como única possibilidade de falar do real. Em suma, identificação de determinado discurso com a realidade. Já, equivocidade, está ligada à compreensão múltipla da realidade. Esta, portanto, não se identifica imediatamente com o discurso, carecendo da metáfora para comunicação de significado. Nesse caso a realidade não é sustentada metafisicamente, mas metaforicamente. Os discursos estruturantes não dependem tanto de sua capacidade uniformizante mas, antes, de sua capacidade de articular a multiciplidade. A metáfora, torna-se aqui a forma mais relevante de produção de discurso. 1
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possibilidade de que o resultado possa se oferecer como meta alcançada.2
O mito é, portanto, na perspectiva desse autor, um caminho que afirma mais a caminhada do que a meta, mais a vivência do que a definição, mais a existência do que a essência, mais a possibilidade desestruturadora da equivocidade do que as certezas produzidas pela univocidade. Para ele, o mito é instaurador de realidades e não definidor destas. O mito, com efeito, nunca é “este” ou “aquele”, no sentido em que a lógica conecta um predicado a um sujeito. A expressão “é”, atribuída ao mito, tem sempre e apenas um significado transitivo. Só se pode dizer que o mitoé isto ou aquilo no sentido em que a aventua, a faz acontecer. A impossibilidade de definir o mito com a lógica da razão testemunha a impossibilidade linguística intimamente ligada à incapacidade da razão de falar sem suprimir a fonte mesma da linguagem, pelo que a relação com a linguagem se torna relação privilegiada, em que o mito vem ou não à luz como fato lingüístico, enquanto ocasiona ou não vocábulos, exprime ou não culturas, institui ou não linguagens.3
Neste sentido é necessário relacionar-se com o mito não como um instrumento para desvendar a realidade, mas como uma palavra que fala. Palavra grávida de sentido existencial. É contra essa impossibilidade lógica que o mito instaura, que a filosofia se apresenta como discurso acerca da verdade.4 Como afirma ZILLES: “Até certo ponto se pode dizer que, na filosofia, se expressa a autoconsciência de determinada época. Assim, filosofias expressam o ser homem em sua história.5 Essa autoconsciência expressa na filosofia grega, é o resultado de um processo histórico-político-cultural, que foi se firmando sobre a necessidade de emancipação de um universo mítico. Esse GALIMBERTI, Umberto. Rastros do Sagrado. P. 48-49. GALIMBERTI, Umberto. Op. Cit. p. 48. 4 Há uma discussão entre os historiadores da filosofia se ela nasceu de uma transformação gradual dos mitos gregos ou de uma ruptura radical (CHAUÏ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol. 1. MARCONDES, Danilo. Introdução à História da Filosofia.). 5 ZILLES, Urbano. Op. Cit. P. 45. 2 3
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universo estruturava uma ordem social que gradativamente foi substituída. Como diz VERNANT: “Advento da pólis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega”.6 A filosofia grega como discurso acerca da realidade é fruto de uma cultura sem a qual não pode ser eficazmente compreendida. Para além da pesquisa sobre os deslocamentos do mito à filosofia (que atende aqui ao propósito de percepção de seus determinantes culturais), importa indicar a complexificação desse processo, que é a assunção das normas produtoras de discurso a uma esfera atemporal, legitimadora das falas temporais - uma fonte de autoridade para as pretensões de um discurso unívoco. Importa, então, compreender o surgimento da metafísica no interior da filosofia grega como caminho de afirmação da univocidade. Para legitimar a possibilidade de um discurso unívoco em contraposição a outro, de caráter equívoco, próprio da poética mítica, a filosofia passa a afirmar a unidade como essência de toda a existência. Esta unidade é evocada como princípio universal capaz de abarcar toda a multiplicidade. Desta forma, dizer sobre a unidade é ao mesmo tempo dizer sobre a multiplicidade. O múltiplo é dito não por ele mesmo, mas por uma pretensa essência que o antecede e, em última instância, o institui. Inaugura-se dessa forma, na dimensão da racionalidade, a dicotomia entre essência e existência. A existência, em um primeiro momento, é destituída de um núcleo em si mesma e, posteriormente, reduzida à sombra de uma instância superior. E é exatamente a metafísica que propõe esta abordagem, que posteriormente granjearia para si o status de filosofia primeira. A metafísica não considera o ente enquanto este ou aquele ente, não o ente na sua diferença, variedade, diversidade, nos seus setores ou regiões ou categorias determinadas e particulares; ela estuda o ente sob este único aspecto ou ângulo, segundo o qual o ente simplesmente é ou é ente. Sob este aspecto a metafísica estuda o ente precisamente naquilo que o determina como ente, VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. P. 141.
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naquilo que faz que o ente seja ente, naquilo que faz com que o ente se torne ente. Assim fazendo, a metafísica estuda o ser do ente: o ser é aquilo pelo qual o ente é ente.7
O ser da existência encontra-se fora dela. Neste sentido a existência é entificada, estando assim a sua compreensão última alienada a uma essência que se identifica com o seu próprio ser. Dessa forma, “a metafísica é ciência da totalidade do ente visto a partir do ser”.8 E ainda: “neste caso sendo a ciência da totalidade do ente, a metafísica é a ciência total: é ciência da totalidade do ser e é a totalidade da ciência.”9 A filosofia grega, distanciando-se da polissemia geradora de plurivocidade, encontra na metafísica um instrumento adequado capaz de sustentar um discurso unívoco. Por ser unívoco ele pode ser dito como universal. Uma vez potencializado e legitimado numa esfera de autoridade a-histórica, ele é evocado como fundamento último da existência, ou seja, como sua própria essência. Desse modo, a investigação metafísica é conduzida pela preocupação de des-cobrir as razões supremas da realidade. Quem faz metafísica prescruta o mistério do ser dos entes com a finalidade de descobrir o que é que lhes dá consistência e os preenche da realidade.10
A metafísica está para a filosofia como um método de compreensão da verdade. Esta verdade alcançada pela filosofia a partir da metafísica é absoluta, porque se identifica com o ser (fundamento último da existência). “Ser e verdade são a mesma coisa, e a metafísica, enquanto ciência do ser como tal, é ciência da verdade como tal”.11 Para completar seu método de produção de conhecimento de caráter unívoco, a filosofia, além da metafísica, gestou a lógica, que marcaria a impossibilidade da contradição no interior de uma proposição que se pretendesse verdadeira. Embora tenha sido esta a caminhada feita pela filosofia, em seu período clássico, não era ela a única possibilidade. A assunção da MOLINARO, Aniceto. Op. Cit. P. 7. Ibid. 9 Ibid. p. 8. 10 SILVA, Marcio Bolda da. Metafísica e Assombro: curso de ontologia. P. 30. 11 MOLINARO, Aniceto. Léxico de Metafísica. P. 132. 7 8
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metafísica (e também da lógica) como método de produção de conhecimento na filosofia grega se deu a partir da afirmação do pensamento de Parmênides em detrimento do de Heráclito. Importa agora evidenciar a compreensão da realidade que subjaz o pensamento desses filósofos, pois a partir desta compreensão é que se torna possível entender a construção da teoria do conhecimento em cada um deles.
Origem histórica da formação da epistemologia metafísica. Dentro da filosofia pré-socrática salienta-se a filosofia de Heráclito e Parmênides. Trata-se de duas posições opostas, situadas em dois extremos: Éfeso, na Grécia Asiática, e Eléia, no sul da Itália. Estas duas direções têm em comum o mesmo ponto de partida, herdado dos filósofos Jônios: existe um princípio único que explique o mundo em seus diversos e múltiplos aspectos? Em Éfeso, Heráclito diz que os contrários formam uma unidade; em Eléia, Parmênides afirma que os contrários jamais podem coexistir.12 Tanto Heráclito quanto Parmênides, buscam afirmar uma teoria do conhecimento que possibilite ordenar a vida. A diferença fundamental entre os dois é o ponto de partida para esta tentativa de ordenamento e de afirmação da verdade. Heráclito parte do dado da experiência, da existência por assim dizer, e Parmênides busca afirmar a verdade das coisas no plano metafísico, naquele próprio da essência. A doutrina de Heráclito pode se resumir nos princípios seguintes: 1) O elemento primordial é o vir-a-ser. Tudo se acha em perpétuo fluxo, a realidade está sujeita a um vir-a-ser contínuo. O único princípio estável da realidade é a lei universal do próprio devir... 2) O vir-a-ser é antítese luta, revezar-se de vida e de morte... 3) A unidade do real está na lei dialética, racional, do vir-a-ser; a causa da diferenciação das coisas está no devir.13
O devir, mobilismo como princípio fundante, é o centro do pensamento heraclítico. Os fragmentos de sua obra possibilitam essa compreensão. O fragmento oito diz: “Tudo se faz por contraste, da luta
ZILLES, Urbano. Op. Cit. P. 55. PADOVANI, Umberto. CASTAGNOLA, Luis. História da Filosofia. P. 101.
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dos contrários nasce a mais bela harmonia”.14 O quarenta e nove (a) diz: “Descemos e não descemos para dentro dos mesmos rios; somos e não somos”.15 O noventa e um: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e se junta novamente, aproxima-se e se distancia”.16 E ainda o cinquenta e três: “A guerra (polemos) é o pai de todas as coisas”.17 O devir em Heráclito deve ser compreendido a partir de seu ponto de partida cognoscitivo. Heráclito parte do dado da experiência: o fluxo incessante das coisas e do sujeito concentre. “Ao fluxo da experiência Heráclito opõe a exigência da razão e a necessidade religiosa da unidade permanente. A fé e a autoconsciência, segundo ele, permitem descobrir, no homem e nas coisas, a razão eterna, harmonia oculta e identidade dos contrários”.18 Partindo da experiência (“Prefiro tudo aquilo que se pode ver, ouvir, e entender”19), Heráclito afirma poder encontrar “no homem e nas coisas” a verdade. Esta verdade se faz no devir, ou melhor, ela se faz e se refaz no devir, no espaço próprio e concreto da existência. Uma teoria do conhecimento advinda do pensamento heraclítico consagra a concretude da vida com espaço único da afirmação e compreensão da verdade, não como coisa acabada, mas como um processo (devir contínuo), por assim dizer, equívoco. Parmênides, ao contrário de Heráclito, tenta eliminar tudo que seja variável e contraditório. Ele contrapõe os conceitos de opinião (doxa) e verdade (alétheia). Descarta o conhecimento por via dos sentidos como meras opiniões e opta pela certeza que a razão produz por meios lógicos e dedutivos. Sua obra principal, o poema Sobre a Natureza, expõe em seu oitavo fragmento esta separação ao propor a existência de dois caminhos, o da opinião e o da verdade. “A decisão sobre este ponto recai sobre a seguinte afirmativa: ou é ou não é. Decidida está, portanto, a necessidade de abandonar o primeiro caminho, impensável e inominável (não é o caminho da verdade); o outro, ao contrário, é presença e verdade”.20 MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia. P. 15. Ibid. P. 16. 16 Ibid. P. 17. 17 Ibid. P. 16. 18 ZILLES, Urbano. Op. Cit. P. 56. 19 MARCONDES, Danilo. Loc. Cit. 20 Ibid. P. 13. 14
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Analisando a contraposição de opinião e verdade no poema parmenídico, CHAUÍ diz o seguinte: É sintomático que o poema fale em duas vias ou dois caminhos que correspondem à palavra inspirada (a verdade como não-esquecimento do que foi contemplado no invisível) e a palavra leiga das assembleias (a verdade como decisão e opinião compartilhada nas discussões públicas). Alétheia e doxa.21
O simples enunciado de dois caminhos já revela uma tendência à afirmação das categorias de verdadeiro e falso. Uma delas será tão somente o depositório de todos os vícios que não se encontram na outra. Na teoria do conhecimento advinda do pensamento de Parmênides isto encontra-se amplamente evidenciado. E agora vou falar; e tu, escuta as palavras e guarda-as bem pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que o não-ser não é; este é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo, que não é, é, e que o não-ser é necessário; esta via digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é – isto é impossível -, nem expressá-lo em palavras... afasta, portanto, o teu pensamento desta via de investigação, e nem te deixes arrastar a ela pela múltipla experiência do hábito.22
Essa distinção que Parmênides faz entre verdade e opinião, ser e não-ser, imobilismo e mobilismo, apontam para a necessidade de afirmação de um único aspecto, um único caminho como sendo correspondente à realidade. Uma questão se impõe a este pensamento: como afirmar o uno em meio ao múltiplo? Como falar de imobilismo num ambiente marcado pela mobilidade? Do ponto de vista do método de produção de conhecimento, quais instrumentos podem ser utilizados neste intento? O pensamento de Parmênides inaugura na filosofia grega um método de conhecimento da verdade. Se esta não pode ser verificada na multiplicidade das interpretações nem na mobilidade (aparências) das coisas sensíveis, é necessário buscá-la em instâncias outras e com CHAUÍ, Marilena. Op. Cit. P. 89. MARCONDES, Danilo. Loc. Cit.
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instrumentos capazes de aferí-la em meio às opiniões. Neste sentido, Parmênides é considerado o primeiro a formular os princípios da lógica e da metafísica.23 Tanto a lógica com seus princípios de identidade e não- contradição, quanto a metafísica em sua identificação da verdade como não-esquecimento do contemplado do invisível, permitem que Parmênides afirme a univocidade da verdade. Univocidade que se funda não no interior da existência, mas numa dimensão outra, própria da essência. “Para encontrar a verdade, o filósofo deve fixar-se no ser além de toda multiplicidade”.24 O caminho da univocidade encontra na inauguração da metafísica as condições necessárias à sua afirmação. A metafísica passa a ser um instrumento de conservação da verdade única que se estabelece na negação de toda multiplicidade. Desta forma o pensamento de Parmênides se mostra como fundante. MOLINARO em seu Curso de Metafísica, ao falar de Parmênides diz: Relativamente à multiplicidade, todo outro diferente do ser deve ser negado: a planta é outro diferente do ser, e assim por diante. Toda diferença, diversidade, variedade, enquanto outro diferente do ser, decai na negação, porque decai na anulação do ser, ou seja, no não-ser: afirmar a multiplicidade das coisas equivale a afirmar que o não-ser é. Se, portanto, o não-ser não pode ser e se a multiplicidade é necessariamente, pelo menos no plano do rigor lógico e lingüístico, não ser é forçoso negar a multiplicidade: ela não passa de opinião, ilusão.25
A univocidade lógico-metafísica parmenídica, para dizer o ser (essência), precisa negar a existência. “Multiplicidade, mudança, nascimento e perecimento são aparências, ilusões dos sentidos”.26 Tanto Heráclito quanto Parmênides propõem uma teoria do conhecimento. Ambos se apresentam com possibilidades à filosofia. Porém, será o pensamento de Parmênides, sobretudo a lógica e a metafísica, que a influenciariam em seu período clássico. CHAUÍ, Marilena. Op. Cit. P. 90-95. MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. P. 23. 25 Ibid. 26 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. P. 212. 23 24
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Consolidação da epistemologia metafísica e seu discurso unívoco – Platão. Interessa nesse momento não uma exposição exaustiva das obras de Platão e Aristóteles, mas a afirmação do pensamento de Parmênides, principalmente a metafísica, no interior da filosofia grega clássica em seus dois principais representantes. Além de trabalhar a continuidade de Parmênides, importa também evidenciar a teoria do conhecimento (método) formulada por esses pensadores. Platão (428-347 a.C.) em sua teoria do conhecimento aproxima, num primeiro momento, o pensamento de Heráclito e de Parmênides. Na metafísica platônica há lugar para o ser estático de Parmênides e para o mundo em devir de Heráclito.27 Porém isso não significa a assunção da existência ao status de dignidade, mas a organização da existência e da essência. Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material e sensível, mundo das imagens e das opiniões. A matéria, diz Platão é por essência e natureza algo imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas... o mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável... e por isso, dele só nos chegam as aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias. Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que a filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com o mundo verdadeiro, invisível aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico a si mesmo, eterno, imperecível, puramente inteligível.28
Platão toma o pensamento de Heráclito e Parmênides e os arruma num edifício de dois andares. Atentando para o erro de Parmênides em desconsiderar o devir identificando-o com o não- ser29, Platão afirma que o devir é legítimo de ser considerado, porém ele é próprio da dimensão da existência onde as coisas são imperfeitas. As perfeições ou essências, que Parmênides identifica com o ser, estas MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. Vol. 1. P. 63. CHAUÍ, Marilena. Loc. Cit. 29 MORENTE, Gabriel Garcia. Fundamentos da Filosofia. P. 220. 27 28
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estão numa outra dimensão da realidade, num outro mundo, numa dimensão superior. Essa proposição de dois mundos que Platão apresenta em seu diálogo A República revela sua compreensão acerca da apreensão da verdade e como e onde ela é possível. O mundo das ideias é o mundo do ser, o objeto do conhecimento verdadeiro, universal e necessário, isto é, a sede da verdade... nosso mundo sublunar é uma simples sombra do mundo das ideias, ou seja, não tem ser, é mera aparência, ou seja, objeto de um conhecimento que não passa de doxa (opinião). Com a teoria das ideias Platão sustenta, pois, que o sensível só se explica mediante o recurso ao supra- sensível, o relativo mediante ao absoluto.30
A verdade só é possível a partir da essência, nunca na existência. A essência é forma que comunica sentido à existência. Mas como é possível entrar em contato com o mundo das ideias para tomar delas a compreensão da verdade? Esse parece ser um problema para a demonstração do mundo das ideias (mundo inteligível) e para uma relação epistemológica que se possa ter com ele. Como o homem que se encontra preso no mundo das sombras (mundo sensível) pode falar da existência de uma outra dimensão que ele desconhece? Platão trabalha essa problemática principalmente em dois de seus diálogos: na República (com o mito da caverna) e no Mênon. Ali ele desenvolve o argumento da reminiscência ou anamnese.31 “Temos Ideias de verdade, de bondade, de igualdade, a Ideia universal de homem, etc. Ora, estas Ideias nós não tivemos da experiência; logo, o conhecimento atual é recordação de uma intuição que se deu em uma outra vida”.32 O necessário, é, portanto, aprender a recordar. Há no argumento de Platão uma espécie de inatismo da verdade. A alma preexistia no ZILLES, Urbano. Op. Cit. P. 71. Reminiscência ou anamnese é o mito platônico que diz que a alma é imortal e, portanto, nasce e renasce muitas vezes, de tal modo que viu tudo neste mundo e noutro, pelo que pode lembrar, em certas ocasiões o que já sabia antes. “E como toda a natureza é congênese e a alma aprendeu tudo, nada impede que quem se recorde uma só coisa (que é aquilo que se chama de aprender) encontre em si, todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência”. Mênon. 80-81. 32 MONDIM, BATISTA. Op. Cit. 60. 30 31
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mundo das ideias, tendo contemplado as mesmas. Por uma sentença condenatória foi unida ao corpo no mundo das sombras. Como consequência dessa queda a alma já não mais recorda as ideias que contemplou, porém, ainda as traz em si. O argumento da reminiscência garante a possibilidade do conhecimento da verdade a partir das imagens ou simulacros. Se aprender é recordar, a ocasião, para isso, é o encontro com as coisas deste mundo. As quais são cópias das ideias. No sistema de Platão, a doutrina da reminiscência exerce três funções: a) fornece uma prova da pré-existência, da espiritualidade e da imortalidade da alma; b) estabelece uma ponte entre a vida antecedente e a vida presente; c) dá valor ao conhecimento sensitivo, reconhecendo-lhe o mérito de despertar recordações das ideias.33
Novamente é possível perceber a aproximação que Platão provoca do pensamento de Heráclito e Parmênides. Os dois sistemas são valorizados hierarquicamente, produzindo uma teoria do conhecimento que há de partir das imagens às ideias, da existência às essências, das opiniões e crenças à ciência. Marilena Chauí, em seu primeiro volume de sua Introdução à História da Filosofia, reproduz sistematicamente a teoria do conhecimento de Platão, dividindo-a em os objetos do conhecimento e os modos de conhecimento aplicáveis aos objetos. 34 A partir desta sistematização, é possível compreender como o conhecimento da verdade se dá na filosofia platônica. De baixo para cima os graus de conhecimento vão se tornando mais complexos. Ao mundo sensível, das imagens, coisas vivas e visíveis, equivalem os simulacros, as crenças e opiniões acerca da verdade. Ao mundo inteligível aplica-se o raciocínio dedutivo e a intuição intelectual como forma de apreensão da verdade em sua essência. O mundo sensível é, tão somente, um simulacro do inteligível. Aquele só é legítimo enquanto ponte para alcançar este. Desta forma, Platão estabelece um paradigma na filosofia grega no que diz respeito à teoria do conhecimento.35 Nesse paradigma o mundo ZILLES, Urbano. Op. Cit. 74. CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. Vol.1. P. 249-257. 35 Paradigma: modelo ou exemplo. Platão empregou essa palavra no primeiro sentido (C 33
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inteligível é forma de toda existência no mundo sensível. A verdade só pode ser dita a partir das essências. A multiplicidade das coisas visíveis ganham unidade em sua essência. Assim, o múltiplo só pode ser dito a partir de sua unidade que se encontra fora dele. Todo conhecimento a partir desse paradigma privilegia as essências de tal forma que as identifica com o real. O real não é o visível, mas o invisível. Não é o sensível, mas o inteligível. O realismo platônico é, então, estritamente metafísico.
Consolidação da epistemologia metafísica e seu discurso unívoco – Aristóteles. Em Aristóteles (384-322 a.C), a metafísica ganha sistematização em seu nível mais complexo. Envolvido na busca do verdadeiro, ele afirma ser a metafísica a ciência capaz de dizer o ser enquanto ser. Em sua opinião a metafísica é: Uma ciência que investiga o ser como ser e os atributos que lhe são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares, pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser. Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atributos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas, como estamos procurando os primeiros princípios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertençam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram os elementos das coisas existentes, é necessário que esses sejam elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é do ser enquanto ser que também nós teremos de descobrir as primeiras causas.36
Esta ciência (Episteme), pela qual aspirava Aristóteles em toda a sua obra, expressa um “saber fundado”37, um saber ciente de que necessariamente é sempre assim, já que conhece a razão daquilo que é conhecido, seu fundamento último, sua causa. F Timeu 29 b, 48 e), ao considerar como paradigma o mundo dos seres eternos, do qual o mundo sensível é imagem. (ABBAGNANO, Nicola. Op. Cit. P. 752). 36 PADOVANI, Umberto. CASTANGNOLA, Luís. Op. Cit. P. 125. 37 SILVA, Marcio Boldada. Op. Cit. P. 74.
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